Título: A Ideologia da Vitimização
Autor: Feral Faun
Data: Primavera de 1992
Fonte: Disponível em theanarchistlibrary.org
Notas: Apareceu pela primeira vez no número 32 de “Anarchy: A Journal Of Desire Armed”, primavera de 1992, e novamente no número 55 de “Anarchy”, primavera / verão de 2003. Republicado por Elephant Editions (Londres) 2000/2001 na colecção “Feral Revolution” . Reimpresso no panfleto “The Iconoclast’s Hammer” por Venomous Butterfly Publications.

Em Nova Orleães, próximo do Bairro Francês, há um pequeno graffito escrito numa vedação que diz assim: “Os homens violam”. Eu costumava passar por lá praticamente todos os dias. A primeira vez que o vi, irritou-me porque sabia que a pessoa que o escreveu me definiria como um ‘homem’ e eu nunca desejei violar ninguém. Nem nenhum dos meus amigos com pénis. Mas, à medida que todos os dias ia encontrando esse dogma pintado a spray, os motivos da minha raiva iam-se alterando. Reconheci este dogma como sendo uma ladaínha da versão feminista da ideologia da vitimização – uma ideologia que promove o medo, a fraqueza individual (e por conseguinte a dependência de grupos de apoio de base ideológica e protecção paternalista das autoridades) e a cegueira a todas as realidades e interpretações de experiência que não se adequem a uma visão de si próprio como uma vítima.

Não nego que haja algum fundamento por detrás da ideologia da vitimização. Nenhuma ideologia poderia funcionar se não tivesse uma qualquer base real. Como Bob Black disse: “Somos todos filhos adultos de pais”. Todos nós passamos as nossas vidas inteiras numa sociedade que se baseia na repressão e na exploração dos nossos desejos, das nossas paixões e da nossa individualidade, mas é certamente absurdo abraçarmos a derrota definindo-nos em termos da nossa vitimização.

Como meio de controlo social, as instituições sociais reforçam o sentimento de vitimização dentro de cada um de nós, enquanto ao mesmo tempo focam esses sentimentos em direcções que reforçam a nossa dependência dessas mesmas instituições sociais. Os media bombardeiam-nos com relatos de crimes, de corrupção política e corporativa, conflitos raciais e de género, escassez e guerra. Embora esses relatos muitas vezes se baseiem na realidade, são apresentados de forma sensacional para nos reforçar o medo. Mas como muitos de nós duvidam dos media , ficamos expostos a uma série de ideologias “radicais” – todas contendo um grãozinho de realidade, mas todas cegas para tudo aquilo que não se encaixe na sua estrutura ideológica. Cada uma dessas ideologias reforça a ideologia da vitimização e concentra a energia dos indivíduos para longe de um exame da sociedade na sua totalidade e dos seus próprios papéis na perpetuação dessa realidade. Tanto os media como todas as versões de radicalismo ideológico reforçam a ideia de que somos vitimados por aquilo que está ‘fora’, pelo Outro e que as estruturas sociais – a família, a polícia, a lei, os grupos de terapia e apoio, a educação, as ‘organizações radicais’ ou qualquer outra coisa que possa reforçar um sentimento de dependência – existem para nos proteger. Se a sociedade não produzisse esses mecanismos – incluindo as estruturas de oposição falsas, ideológicas e parciais – para se proteger, poderíamos vir a examinar a sociedade na sua totalidade e reconhecermos a sua dependência da nossa atividade para se ir mantendo. Portanto, sempre que possível, poderemos recusar os nossos papéis de dependentes / vítimas da sociedade. Mas as emoções, atitudes e modos de pensamento evocados pela ideologia da vitimização tornam extremamente difícil esta inversão de perspectiva.

Ao aceitarmos a ideologia da vitimização sob qualquer forma, escolhemos viver com medo. A pessoa que pintou o graffito “Os homens violam” era provavelmente uma feminista, uma mulher que sentiu o seu acto como um desafio radical à opressão patriarcal. Mas tais proclamações, na verdade, apenas alimentam um clima de medo que já existe. Em vez de dar às mulheres, como indivíduos, um sentimento de força, reforça a ideia de que as mulheres são essencialmente vítimas, e as mulheres que lêem esse graffito , mesmo que rejeitem conscientemente o dogma que afirma, possivelmente andarão nas ruas com mais medo. A ideologia da vitimização que tanto permeia o discurso feminista também pode ser encontrada, de alguma forma, na libertação gay, na libertação racial ou nacional, no conflito de classes e em quase todas as outras ideologias ditas “radicais”. O medo de uma ameaça real, imediata e prontamente identificada, poderá levar alguém a uma acção inteligente para erradicar a ameaça, mas o medo criado pela ideologia da vitimização é um medo de forças demasiado grandes e abstractas para conseguirem ser lidadas pelo indivíduo. Acaba por se transformar num clima de medo, desconfiança e paranóia que faz com que as mediações que constituem a rede de controlo social pareçam necessárias e até mesmo boas.

É esse clima opressor de medo que cria a sensação de fraqueza, que cria nas pessoas a sensação de vitimização essencial. Embora seja verdade que vários “liberacionistas” ideológicos frequentemente vociferam com fúria militante, raramente vão ao ponto de realmente ameaçar alguma coisa. Em vez disso, “exigem” (leia-se “imploram militantemente”) que aqueles que definem como seus opressores lhes concedam a “libertação”. Um exemplo disto ocorreu no encontro anarquista “Sem Fronteiras” de 1989 em São Francisco. Não há dúvida de que na maioria dos workshops em que participei, os homens tendiam a falar mais do que as mulheres. Mas ninguém estava a impedir as mulheres de falar, e não me apercebi de nenhuma falta de respeito pelas mulheres que falavam. No entanto, no microfone público no pátio do prédio onde o encontro foi realizado, foi feito um discurso no qual se proclamava que “homens” estavam a dominar as discussões e a impedir que as “mulheres” falassem. O orador “exigia” (novamente, leia-se “implorou militantemente”) que os homens se assegurassem de dar às mulheres espaço para falar. Por outras palavras, para garantir os “direitos” dos oprimidos – uma atitude que, por conseguinte, aceita o papel do homem como opressor e da mulher como vítima. Houve workshops em que certos indivíduos dominaram as discussões, mas uma pessoa que está a agir com a força da sua individualidade lidará com essa situação confrontando-a imediatamente quando ela ocorrer e lidará com as pessoas envolvidas enquanto indivíduos. A necessidade de colocar tais situações num contexto ideológico e de se referir aos indivíduos envolvidos como papéis sociais, transformando assim a experiência real e imediata em categorias abstractas é um sinal de que se escolheu ser fraco, de se ser uma vítima. E abraçar a fraqueza coloca a pessoa na posição absurda de ter de implorar ao opressor para lhe conceder a sua libertação – garantindo que ela nunca será livre para ser outra coisa que não uma vítima.

Como todas as ideologias, as variedades da ideologia da vitimização são formas falsas de consciência. Aceitar o papel social de vítima – em qualquer uma de suas muitas formas – é escolher nem sequer criar uma vida para si mesmo, nem explorar as suas relações reais com as estruturas sociais. Todos os movimentos de libertação parcial – feminismo, libertação gay, libertação racial, movimentos de trabalhadores e assim por diante – definem os indivíduos em termos dos seus papéis sociais. Por isso, esses movimentos não só não incluem uma inversão de perspectivas que rompa com os papéis sociais e que permita aos indivíduos criarem uma praxis construída sobre as suas próprias paixões e desejos; como na verdade funcionam contra essa inversão de perspectiva, a de ‘libertação’ de um papel social ao qual o indivíduo permanece sujeito. Mas a essência desses papéis sociais dentro da estrutura dessas ideologias de “libertação” é a vitimização. Portanto, as ladaínhas de injustiças sofridas devem ser cantadas continuamente para garantir que as “vítimas” nunca se esqueçam que é isso o que são. Esses movimentos de libertação “radicais” garantem assim que o clima de medo nunca desapareça e que os indivíduos continuem a ver-se como fracos e a ver a sua força como estando nos papéis sociais que são, efectivamente, a fonte da sua vitimização. Portanto, esses movimentos e ideologias agem para prevenir a possibilidade de uma revolta potente contra toda a autoridade e todos os papéis sociais.

A verdadeira revolta nunca é segura. Aqueles que optam por se definir em termos do seu papel de vítima não se atrevem a tentar a revolta total, pois isso ameaçaria a segurança dos seus papéis. Mas, como disse Nietzsche: “O segredo da maior fecundidade e do maior gozo da existência é viver perigosamente!” Apenas uma rejeição consciente da ideologia da vitimização, uma recusa em viver com medo e fraqueza e uma aceitação da força das nossas próprias paixões e desejos, de nós mesmos como indivíduos maiores e, portanto, capazes de viver para além de todos os papéis sociais, pode fornecer uma base para a rebelião total contra a sociedade. Tal rebelião é certamente alimentada, em parte, pela raiva, mas não a raiva estridente, ressentida e frustrada da vítima que motiva feministas, liberacionistas raciais, liberacionistas gays e outros a “exigir” os seus “direitos” das autoridades. Pelo contrário, é a fúria dos nossos desejos libertados, o retorno do reprimido com a sua força total e sem disfarces. Mas, mais fundamentalmente, a revolta total é alimentada por um espírito de liberdade e de alegria na aventura – por um desejo de explorar todas as possibilidades de vida intensa que a sociedade nos tenta negar. Para todos nós que queremos viver plenamente e sem restrições, já passou o tempo em que poderíamos tolerar viver como ratos tímidos dentro das paredes. E todas as formas da ideologia da vitimização nos levam a viver como ratos tímidos. Em vez disso, sejamos monstros enlouquecidos e risonhos, derrubando alegremente as paredes da sociedade e criando vidas de maravilha e espanto para nós mesmos.