Georges Fontenis
Manifesto Comunista Libertário
COMUNISMO LIBERTÁRIO: UMA DOUTRINA SOCIAL
RELAÇÕES ENTRE AS MASSAS E A VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA
II – Natureza do papel da vanguarda revolucionária
III – De que forma pode ser exercido esse papel de vanguarda revolucionária?
PRINCÍPIOS INTERNOS DA ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA OU PARTIDO
II – Unidade tática, método coletivo de ação
III – Ação coletiva e disciplina
IV – Federalismo ou democracia interna
O PROGRAMA COMUNISTA LIBERTÁRIO
I – Aspectos da dominação burguesa: o capitalismo e o Estado
II – As características do comunismo libertário
Comunismo: da fase inferior à fase superior ou comunismo perfeito
Comunismo libertário e humanismo
III – O fato revolucionário: a questão do poder e do Estado
Poder revolucionário e liberdade
O papel da organização anarquista específica e o papel das massas
COMUNISMO LIBERTÁRIO: UMA DOUTRINA SOCIAL
Foi no século XIX, ao longo do desenvolvimento do capitalismo e das primeiras grandes batalhas operárias – mais precisamente, no seio da Primeira Internacional (1864-1871) –, que surgiu uma doutrina social chamada de “socialismo revolucionário” (em reação ao socialismo legalista, reformista ou estatista), “socialismo antiautoritário” ou “coletivismo”; e, depois, de “anarquismo”, “comunismo anarquista” ou “comunismo libertário”.
Essa doutrina ou teoria surgiu como reação dos trabalhadores socialistas organizados e se vincula à existência de um crescente antagonismo de classes. Trata-se de um produto histórico, que surge em certas condições históricas, de desenvolvimento da sociedade de classes, e não da crítica idealista de certos pensadores.
O papel dos fundadores da doutrina, Bakunin principalmente, foi expressar as verdadeiras aspirações das massas, suas reações e suas experiências, e não criar artificialmente uma teoria, apoiando-se em uma análise abstrata, puramente ideal, ou em teorias anteriores.
Bakunin – e, com ele, James Guillaume, depois Kropotkin, Reclus, Jean Grave, Malatesta etc. – partiu da observação das condições, das formas de organização e da luta das associações de operários e das massas camponesas.
A origem do anarquismo na luta de classes é incontestável.
* * *
Por que, então, o anarquismo é tão frequentemente considerado uma filosofia, uma moral ou uma ética independente da luta de classes e, assim, um humanismo desvinculado das condições históricas e sociais?
Há muitos motivos para isso. Por um lado, os primeiros teóricos anarquistas várias vezes se basearam nas opiniões de escritores, economistas e historiadores que os precederam, sobretudo Proudhon – autor de muitos escritos que, incontestavelmente, manifestam concepções anarquistas.
Os teóricos que os seguiram, em certos casos, encontraram até entre escritores como La Boétie, Spencer, Godwin, Stirner etc., ideias análogas ao anarquismo, no sentido de que manifestavam uma oposição às sociedades de exploração e aos princípios de dominação que nelas existiam. Mas as teorias de Godwin, Stirner, Tucker e outros são apenas reflexões sobre a sociedade, que não levam em conta a história, as forças que a determinam e nem as condições objetivas que colocam a questão da revolução.
Por outro lado, em todas as sociedades baseadas na exploração e na dominação, sempre houve atos de revolta, individuais ou coletivos, por vezes com conteúdo comunista, federalista ou realmente democrático. Por isso, em certas ocasiões, se chegou a considerar o anarquismo uma expressão da luta eterna dos homens rumo à liberdade e à justiça; conceito vago, insuficientemente fundado no plano sociológico ou histórico, e que tende a assimilar o anarquismo a um humanismo vago, baseado em noções abstratas de “humanidade” e de “liberdade”.
Os historiadores burgueses do movimento operário estão sempre dispostos a misturar o comunismo anarquista com as teorias individualistas e idealistas e são, em grande medida, responsáveis por essa confusão. Foram eles que quiseram aproximar Stirner de Bakunin.
Quando se esquecem as condições de surgimento do anarquismo, ele pode ser reduzido a um tipo de ultraliberalismo, apesar de seu caráter materialista, histórico e revolucionário.
As revoltas anteriores ao século XIX e as reflexões de certos pensadores sobre as relações entre indivíduos e grupos humanos prepararam o caminho para o anarquismo, mas ele só passou a existir como doutrina a partir de Bakunin.
Sem dúvida, tais revoltas e escritos realmente existiram no passado da humanidade, porque já havia a exploração de certos grupos sociais por outros. As obras de Godwin, por exemplo, expressam bem a existência da sociedade de classes, ainda que o façam de maneira idealista e confusa. A alienação do individuo pelo grupo, pela família, pela religião, pelo Estado, pela moral etc. tem natureza social, e é a expressão de uma sociedade dividida em castas ou classes.
Sempre houve atitudes, reflexões e modos de agir que podem ser chamados de rebeldes, não conformistas ou “anarquistas” – no sentido vago do termo. Mas a formulação coerente de uma teoria comunista anarquista remonta apenas ao fim do século XIX, e prossegue a cada dia, se tornando mais precisa e se aperfeiçoando com o aporte da experiência histórica.
Portanto, o anarquismo não pode ser equiparado a uma filosofia ou a uma ética abstrata ou individualista.
O anarquismo surgiu no social e pelo social; foi preciso esperar um determinado período histórico e um certo estado no antagonismo de classes para que as aspirações comunistas anarquistas se manifestassem claramente, para que o fenômeno da revolta encontrasse uma concepção revolucionária coerente e completa.
* * *
Por não ser uma filosofia ou uma ética abstrata, o anarquismo não pode se dirigir ao ser humano abstrato, ao ser humano em geral. Para o anarquismo, não existe em nossas sociedades o ser humano universal; existe o ser humano explorado dos setores espoliados, e existe o ser humano dos setores privilegiados, da classe dominante.
Dirigir-se ao “ser humano” é cair no erro ou no sofisma dos liberais, que se dirigem ao “cidadão” sem levar em conta suas condições econômicas e sociais.
Dirigir-se ao ser humano em geral, negligenciando a existência das classes e da luta de classes, se satisfazendo com declarações retóricas e vazias sobre a Liberdade e a Justiça, em geral e em maiúsculas, é permitir que todas as filosofias burguesas de aparência liberal – que, na verdade, são conservadoras ou reacionárias – se infiltrem no anarquismo, que o pervertam em um vago humanitarismo, que castrem sua doutrina, sua organização e seus militantes.
Houve um tempo – e isso se manifesta ainda hoje em alguns países – em que, no seio de certos grupos, a propaganda anarquista se degenerou em lamúrias de pacifismo integral ou em uma espécie de cristianismo sentimental. Foi preciso reagir, e hoje o anarquismo realiza novamente o ataque ao velho mundo, com algo mais do que considerações nebulosas.
É aos espoliados, aos explorados, ao proletariado, às massas operárias e camponesas que se dirige o anarquismo, doutrina social e método revolucionário, porque apenas a classe explorada, enquanto força social, é um fator revolucionário.
Será que, com isso, queremos dizer que a classe trabalhadora é uma classe messiânica, que os explorados possuem uma clarividência providencial, que eles têm todas as qualidades e nenhum defeito? Isso seria cair na idolatria operária, em um novo gênero de metafísica.
Mas a classe explorada, alienada, ludibriada, frustrada, ou seja, o proletariado tomado em seu sentido amplo, que envolve tanto a classe operária propriamente dita – composta por trabalhadores manuais, que possuem certos aspectos psicológicos, maneiras de ser e de pensar em comum – e outros assalariados, quanto os trabalhadores administrativos (de escritórios ou empresas).
Em outros termos, trata-se do conjunto dos indivíduos que têm apenas função operacional na produção, na ordem política, e que estão apartados do controle da produção. É apenas essa classe, graças à sua posição econômica e social, que tem condições de derrubar o poder e acabar com a exploração; apenas os produtores podem realizar a gestão operária.
Pois o que será a revolução, senão a passagem do controle da produção para todos os produtores?
A classe proletária é a classe revolucionária por excelência. Porque a revolução que ela pode realizar é uma revolução social, e não apenas política; porque, ao se libertar, ela liberta toda a humanidade; e porque, ao destruir o poder da classe privilegiada, ela suprime as classes.
Na sociedade atual, sem dúvida não há fronteiras precisas entre as classes. É durante os diversos episódios da luta de classes que a separação entre elas se faz. Não há fronteiras precisas, mas dois polos: proletariado e burguesia – capitalistas, burocratas etc.
As chamadas classes médias se dividem nos períodos de crise e se deslocam a um ou outro polo; por si mesmas, elas são incapazes de dar uma solução à questão social, pois não têm nem as características revolucionárias do proletariado, nem exercem realmente o controle da sociedade atual, como a burguesia propriamente dita.
Nas greves, por exemplo, uma parte dos técnicos – sobretudo aqueles que são, de fato, especialistas, como os trabalhadores de departamentos de pesquisa – se aproxima da classe operária, enquanto outra parte, dos técnicos que ocupam posições de gestão e grande parte dos supervisores, se afasta da classe operária, ao menos por algum tempo.
A realidade sindical baseia-se na experiência e no pragmatismo; certos setores são sindicalizados e outros não, de acordo com seu papel e sua função. Em todo caso, é a função e o estado de espírito que distinguem uma classe, mais do que a remuneração.
Então, o que existe é o proletariado. Há sua parte mais decidida, mais ativa, a classe operária propriamente dita. Mas há também algo mais amplo que o proletariado, que compreende outras camadas sociais que precisam ser incorporadas à ação: são as massas populares que envolvem, além do proletariado, os pequenos camponeses, os artesãos pobres etc.
Não se trata aqui de cair em uma mística do proletariado, mas de levar em conta esse dado preciso: o proletariado, apesar da lentidão de sua tomada de consciência, de seus recuos e de suas derrotas, é definitivamente a única alavanca real da revolução.
Sobre essa questão, não podemos deixar de citar um texto fundamental de Bakunin:
Compreender que, por ser o proletário, o trabalhador manual, o trabalhador subalterno, o representante histórico do último tipo de escravidão sobre a terra, sua emancipação é a emancipação de todo o mundo, seu triunfo é o triunfo final da humanidade [...]. (Oeuvres complètes, tomo IV, p. 425)
Sem dúvida, acontece de indivíduos pertencentes aos setores sociais privilegiados romperem com sua classe, com a ideologia e as vantagens de sua classe, e chegarem ao anarquismo. Seu aporte é considerável, mas, de certa forma, ao fazer isso, esses indivíduos se tornam proletários.
Para Bakunin, mais uma vez, os “socialistas revolucionários” (isto é, os anarquistas) se dirigem “às massas operárias, tanto das cidades quanto dos campos, aí incluídos todos os indivíduos de boa vontade das classes superiores que, rompendo com todo seu passado, desejam francamente se juntar às massas e aceitar integralmente o programa das massas”.
No entanto, não se pode dizer que o anarquismo se dirige ao ser humano em geral, ao ser humano abstrato, sem levar em conta seu meio social.
Privar o anarquismo de seu caráter de classe é condená-lo ao amorfismo, ao esvaziamento de seu conteúdo; é condená-lo a se tornar um passatempo filosófico inconsistente, uma curiosidade para intelectuais burgueses, um objeto de simpatia para pessoas de bom coração que buscam um ideal, um tema de discussões acadêmicas.
Concluiremos, portanto. O anarquismo não é uma filosofia do indivíduo ou do ser humano em geral. Seria possível dizer que o anarquismo é uma filosofia ou uma ética, apenas num sentido bastante particular e concreto: pelas aspirações que representa, pelos objetivos que propõe atingir, como nos lembra a citação de Bakunin: “Seu triunfo [do proletariado] é o triunfo final da humanidade”.
Proletário e classista em sua origem, é apenas em termos de seus objetivos que o anarquismo visa ao ser humano em geral ou ao humanismo. O anarquismo é uma escola do socialismo. Para sermos mais precisos, ele é o único socialismo, o comunismo verdadeiro; a única teoria e o único método válidos para se chegar à sociedade sem castas e sem classes, e para realizar a liberdade e a igualdade.
O anarquismo social, o comunismo anarquista – ou, simplesmente, o comunismo libertário – é uma doutrina social revolucionária que se dirige a esse proletariado, do qual representa as aspirações e manifesta a verdadeira ideologia; ideologia que esse proletariado tende a tomar consciência por meio de suas próprias experiências.
A QUESTÃO DO PROGRAMA
Sendo o anarquismo uma doutrina social, ele se manifesta por um conjunto de análises e proposições que fixam objetivos e tarefas, isto é, por um programa. E é esse programa que constitui a plataforma comum a todos os militantes da organização anarquista; fora dessa plataforma, o agrupamento só se dá com base em aspirações sentimentais, vagas, confusas, sem que haja unidade real de perspectivas. Fora dela, há apenas o agrupamento sob um mesmo nome, mas com pensamentos discordantes e opostos.
A partir disso, uma questão se coloca. Não pode ser o programa uma síntese, que leve em conta aquilo que há de comum entre pessoas que reivindicam um mesmo ideal, ou, mais precisamente, uma posição política similar?
Isso seria buscar uma unidade falsa para evitar as oposições; seria sustentar, na maior parte do tempo, algo que não tem importância: haveria uma plataforma comum, mas que seria praticamente vazia. Tal experimento foi tentado várias vezes (“sínteses”, uniões, coalizões, alianças e acordos) e só resultou em ineficácia e no rápido retorno aos conflitos.
Com a realidade impondo problemas, aos quais se havia proposto soluções divergentes ou opostas, os confrontos reapareceram, e a insignificância e a inutilidade do pseudoprograma comum – que só pode ser considerado uma recusa à ação – foram demonstradas.
A própria ideia de fazer um programa com meias verdades, a partir da busca de pequenos consensos, supõe que todos os pontos de vista propostos são justos, que um programa pode brotar das mentes das pessoas, assim, em termos abstratos.
Um programa revolucionário (o programa anarquista) não pode ser criado pela militância para, em seguida, ser imposto às massas. É o contrário que deve ocorrer. O programa da vanguarda revolucionária, da minoria ativa, deve ser a expressão robusta, vigorosa, clara, consciente e evidente das aspirações das massas exploradas convocadas a fazer a revolução. Em outros termos: a classe deve ter prioridade sobre o “partido”.
Assim, aquilo que tem de conformar a base do programa é o estudo, a experiência e a própria tradição daquilo que está permanentemente nas aspirações das massas. Ou seja, na elaboração do programa deve prevalecer um certo “empirismo”; é fundamental evitar o dogmatismo e também que o esquema elaborado por um pequeno grupo revolucionário substitua aquilo que é indicado pela ação e pela consciência das massas.
Quando levado ao conhecimento das massas, o programa só pode desenvolver sua consciência. Enfim, o programa assim definido pode ser modificado à medida que progredir a análise da situação e as tendências das massas; desse modo, ele pode ser formulado em termos mais justos e claros.
Concebido dessa maneira, o programa deixa de ser o conjunto de pontos secundários que unem – ou, melhor, que não dividem – pessoas que se consideram próximas, e se conforma num conjunto de análises e proposições ao qual se associam apenas aqueles que o aprovam e que se engajam em sua propagação e realização.
Contudo, alguém poderá dizer que essa plataforma terá que elaborada e redigida por uma pessoa ou um grupo. Sem dúvida, mas, já que não se trata de um programa qualquer, mas do programa do anarquismo social, só serão aceitas proposições consideradas concordantes com os interesses, as aspirações, a consciência e a capacidade revolucionárias da classe explorada.
Aí então é possível falar, verdadeiramente, de uma síntese, pois não se trata mais de eliminar questões importantes que separam as pessoas, mas de mesclar, em um texto novo e comum, as proposições que possam se fundir em um conjunto de aspectos fundamentais.
O papel das reuniões de estudos, das assembleias e dos congressos de revolucionários é reconhecer um programa, agrupar e fundar suas organizações sobre esse programa.
O drama é que muitas organizações pretendem representar autenticamente a classe operária – tanto organizações socialistas reformistas ou comunistas autoritárias, quanto organizações anarquistas. Apenas a experiência pode resolver essa questão e dar razão definitiva a uma ou outra delas.
Não há revolução possível sem que as massas revolucionárias se agrupem em torno de certa unidade ideológica e que atuem no mesmo sentido. Para nós, isso significa que, por meio de suas experiências, as massas acabarão encontrando a via do comunismo libertário.
Isso significa também que a doutrina anarquista jamais estará completa do ponto de vista dos detalhes e da aplicação, e que ela se faz e se completa a cada instante, em função das experiências históricas.
Tudo indica que as experiências revolucionárias parciais, como a Comuna de Paris, a Revolução Russa popular de 1917, a Makhnovitchina, as realizações da Espanha [de 1936-39], as greves, as duras tentativas de implantar o socialismo de Estado total ou parcial experienciadas pela classe operária – desde a União Soviética até as nacionalizações e traições dos partidos políticos do ocidente; ao que parece, tudo isso indica e permite afirmar que o programa anarquista, com todas as modificações que ele pode incorporar, representa a direção na qual se revela a unidade ideológica das massas.
Por ora, nos contentemos em resumir assim esse programa: a sociedade sem classes e sem Estado.
RELAÇÕES ENTRE AS MASSAS E A VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA
Vimos, a propósito da questão do programa, qual é nossa concepção geral da relação entre a classe oprimida e a organização revolucionária definida por um programa – isto é, o partido, no verdadeiro sentido do termo. Mas não podemos nos contentar em dizer: “A classe deve ter prioridade sobre o partido”.
Precisamos desenvolver e explicar como a minoria ativa, a vanguarda revolucionária, é necessária, sem que por isso se torne um estado-maior, uma ditadura sobre as massas. Em outros termos, precisamos mostrar que a concepção anarquista de minoria ativa não tem nada de aristocrática, oligárquica ou hierárquica.
I – Necessidade da vanguarda
Existe uma concepção segundo a qual a iniciativa espontânea das massas é suficiente para qualquer possibilidade revolucionária.
É verdade que a história nos mostra alguns fatos que podemos considerar como movimentos espontâneos de massa, e esses fatos são preciosos porque evidenciam as capacidades e os recursos das massas. Mas eles não podem nos levar a aceitar uma concepção geral e fatalista de espontaneidade. Tal mito conduz à demagogia populista, à apologia de um rebeldismo sem princípios, eventualmente reacionário, à inação e à capitulação.
Do outro lado, encontramos uma concepção puramente voluntarista, dando a iniciativa revolucionária apenas à organização de vanguarda. Tal concepção leva a uma avaliação pessimista do papel das massas, ao desdém aristocrático pela capacidade política das massas, a uma conduta abstrata da ação revolucionária e, em consequência, à derrota. Essa concepção contém em germe a contrarrevolução burocrática e estatista.
Próxima da concepção espontaneísta, há uma teoria segundo a qual as organizações de massa (os sindicatos, por exemplo) não apenas são autossuficientes, mas bastam para resolver tudo. Essa concepção, que se diz absolutamente antipolítica, é, na verdade, economicista. Ela se expressa frequentemente sob a forma do “sindicalismo puro”. Entretanto, para essa teoria funcionar, é necessário que seus partidários se abstenham de formular qualquer programa ou finalidade, sob risco de conformar uma organização puramente ideológica ou de constituir um estado-maior que preconize dada orientação. Essa teoria só é coerente sob a condição de se limitar a uma concepção socialmente neutra dos problemas sociais, a um certo empirismo.
Igualmente afastados do espontaneísmo, do empirismo e do voluntarismo, afirmamos a necessidade da organização anarquista revolucionária específica, concebida como vanguarda consciente e ativa das massas populares.
II – Natureza do papel da vanguarda revolucionária
Certamente a vanguarda revolucionária exerce um papel orientador dirigente em relação ao movimento das massas. As polêmicas a esse respeito nos parecem inúteis, pois que outra utilidade poderia ter uma organização revolucionária? Sua própria existência atesta esse caráter dirigente e orientador.
A verdadeira questão é saber como é concebido esse papel, que sentido damos à palavra “dirigente”.
A organização revolucionária tende a ser criada pelo próprio fato de que os trabalhadores mais conscientes sentem sua necessidade diante do desenvolvimento desigual e da coesão insuficiente das massas.
O que precisamos detalhar é que a organização revolucionária não deve constituir um poder sobre as massas; seu papel de guia deve ser concebido como aquele de formular e expressar uma orientação ideológica, organizativa e tática, uma orientação precisa, elaborada, adaptada, com base nas aspirações e nas experiências das massas.
Ou seja, as diretrizes da organização não são imperativos externos, mas uma expressão refletida das aspirações populares em geral.
A função diretiva da organização revolucionária, na ausência das possibilidades coercitivas, só pode se manifestar pelo esforço para fazer triunfar sua ideologia, conseguindo que as camadas populares sejam profundamente impregnadas de seus princípios teóricos e de suas diretrizes táticas. Trata-se de uma luta por meio das ideias e do exemplo.
Se não nos esquecermos que o programa da organização revolucionária, a via e os meios que ele indica são o reflexo das aspirações e da experiência das massas, e que a vanguarda organizada é, no fundo, o espelho da classe explorada, compreendemos: que “direção” não é “ditadura”, mas uma orientação coordenada; que, pelo contrário, ela se opõe às manipulações burocráticas das massas, ao militarismo, ao gregarismo; que ela deve se colocar como tarefa o desenvolvimento da responsabilidade política direta das massas; que ela visa a desenvolver a capacidade de auto-organização das massas.
Essa concepção de “direção” é, portanto, ao mesmo tempo, natural e educativa.
É nesse mesmo sentido que, no interior da organização, os militantes com mais experiência e formação exercem diante dos outros esse papel de guia e educador, a fim de que todos se tornem militantes solidamente informados e sempre alertas, tanto no plano teórico como no prático, para que todos, a seu tempo, se tornem lideranças.
A minoria organizada é a vanguarda de um exército mais numeroso, e retira sua razão de ser da existência desse exército: as massas. Se a minoria ativa ou vanguarda se desliga das massas, ela não pode mais exercer sua função, pois se torna um grupelho ou um clã.
Em última análise, a minoria revolucionária deve apenas servir aos oprimidos. Ela tem enormes responsabilidades e nenhum privilégio.
Outro aspecto da natureza da minoria revolucionária é sua permanência. Há períodos em que a minoria encarna e expressa as posições de uma maioria, a qual, por sua vez, se reconhece nessa minoria ativa; mas há períodos de recuo, ao longo dos quais a minoria revolucionária não passa de uma embarcação na tempestade.
Ela deve se manter para conseguir reencontrar rapidamente a audiência das massas, assim que as circunstâncias voltarem a estar favoráveis.
Mesmo isolada e desligada de suas bases populares, a minoria revolucionária age segundo as constantes aspirações populares, mantendo seu programa contra marés e ventos turbulentos.
Ela pode até ser levada a realizar certos atos isolados, destinados a despertar as massas, como atentados e insurreições. Contudo, ela tem de evitar se desligar da realidade, se transformar em seita ou em estado-maior autoritário, se consumir em sonhos ou tentar agir sem ser compreendida, impulsionada ou seguida pelas massas populares.
Para evitar essa degeneração, ela precisa manter o contato com os acontecimentos e com o ambiente dos explorados; se atentar às menores reações, revoltas e realizações dos explorados; estudar minuciosamente a sociedade contemporânea, suas contradições, suas fraquezas e suas possibilidades de evolução.
Ao participar de todas as formas de resistência e de ação das massas – que podem ir, segundo as condições, da reivindicação à sabotagem, da resistência silenciosa à revolta –, a minoria mantém a possibilidade de orientar e de desenvolver os mínimos movimentos.
Ao se esforçar para manter ou adquirir uma visão geral e panorâmica dos fatos sociais e de sua evolução, ao adaptar suas táticas às condições do momento, ao estar presente, a minoria permanece fiel à sua missão.
Ela evita se colocar a reboque dos acontecimentos, se tornar um simples aparelho exterior e estranho ao proletariado e ser ultrapassada por ele. Também evita fazer cálculos e esquemas puramente abstratos para as aspirações verdadeiras do proletariado. Enfim, mantém seu programa, mas reorganiza e corrige os erros do programa a partir dos fatos.
Quaisquer que sejam as circunstâncias, a minoria não deve jamais se esquecer que seu objetivo supremo é desaparecer, se fundir nas massas, assim que estas alcançarem o mais alto nível de consciência ao longo da realização revolucionária.
III – De que forma pode ser exercido esse papel de vanguarda revolucionária?
Praticamente, a influência da organização revolucionária pode ser exercida nas massas de duas formas: há o trabalho nos organismos de massas constituídos e o trabalho de propaganda direta.
Esse segundo tipo de atividade é exercido por meio da imprensa, das campanhas de agitação e de reivindicação, dos debates culturais, dos gestos de solidariedade, das manifestações comemorativas, das conferências, dos encontros.
Esse trabalho direto pode, às vezes, ser realizado em atividades organizadas por outros. Ele é indispensável para se afirmar e para atingir certos setores da opinião pública que, de outra maneira, seriam inacessíveis. É de primordial importância nos locais de trabalho, assim como nos locais de moradia. Mas não soluciona a questão de como a “direção” pode evitar se tornar uma “ditadura”.
Isso é diferente para a atividade no interior dos organismos de massas constituídos. Mas, antes de tudo, o que são esses organismos?
Esses organismos são geralmente de natureza econômica, baseados na solidariedade social de seus membros e suas funções podem ser múltiplas: defesa (resistência, apoio mútuo), educação (formação para o autogoverno), ofensiva (reivindicações no plano tático, expropriação no plano estratégico) e administração.
Esses organismos (sindicatos, comitês de luta operária e outros), mesmo quando só assumem uma de suas funções possíveis, são de interesse direto para o trabalho com as massas.
Ao lado dos organismos econômicos, há uma série de organismos populares por meio dos quais a organização específica pode realizar o contato com as massas. São, por exemplo, as organizações culturais, recreativas, de assistência.
A organização específica pode encontrar nessas organizações energias, sugestões e experiências. Pode estender a elas sua influência e aportar sua orientação. Pode lutar contra os objetivos de hegemonia e controle do Estado e dos políticos ou pela defesa das características próprias dessas organizações; fazer delas centros de autogoverno e de mobilização revolucionária, germes da nova sociedade – visto que os elementos da sociedade de amanhã já existem na sociedade de hoje.
Em todas essas organizações de massas (econômicas e sociais), a influência deve ser exercida e reforçada não por um sistema de decisões externas, mas pela presença ativa e coordenada de militantes anarquistas revolucionários nesses organismos e nos postos de responsabilidade, aos quais eles normalmente são convocados por suas capacidades e atitudes.
Contudo, é importante dizer que os militantes não devem se deixar encerrar em funções puramente administrativas e altamente absorventes, que não lhes deixem tempo nem oportunidades para exercer uma influência real. Muitas vezes, os adversários políticos tentam transformar os militantes revolucionários em “prisioneiros” dessas tarefas.
Esse trabalho de “inserção”[1], como diriam alguns, deve transformar a organização específica de minoritária em majoritária, ao menos do ponto de vista de sua influência.
Esse trabalho também deve evitar toda a monopolização, que termina fazendo com que todas as tarefas – inclusive as da organização específica – sejam absorvidas pela organização de massas ou, ao contrário, que termina atribuindo apenas aos membros da organização específica, exclusivamente, a direção dos organismos de massa, deixando de lado todas as demais posições.
A esse respeito, é preciso explicitar que, nas organizações de massa, a organização específica deve promover e defender não apenas uma estrutura e um funcionamento democráticos e federalistas, mas também uma estrutura “aberta”.
Ou seja, uma estrutura que facilite o acesso a essas organizações por todos os trabalhadores não organizados, a fim de que elas adquiram novas forças sociais, estendam sua representação e permitam à organização específica o maior contato possível com as massas.
PRINCÍPIOS INTERNOS DA ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA OU PARTIDO
Tudo aquilo que dissemos sobre o programa, o papel e as formas de atividade da vanguarda mostra, claramente, que ela deve ser organizada. Mas como?
I – Unidade ideológica
Para agir, precisamos de um conjunto coerente de ideias. As contradições e as hesitações impedem qualquer concretização das ideias.
Por outro lado, a “síntese” – ou melhor, a aglutinação de ideias díspares, que só têm pontos em comum sem importância real – só produz confusão e não consegue impedir que, rapidamente, as divergências fundamentais se imponham.
Além das razões que encontramos na análise da questão do programa e das razões ideológicas profundas da natureza desse programa, há razões práticas que exigem que uma verdadeira organização tenha como base a unidade ideológica.
A expressão dessa ideologia comum e única pode até ser fruto de uma síntese, mas apenas no sentido da busca por uma expressão única de ideias profundamente afins, com os aspectos fundamentais sendo comuns.
A unidade ideológica é constituída pelo programa, tal como propusemos anteriormente, e como o definiremos adiante; trata-se de um programa comunista libertário que expressa as aspirações gerais das massas exploradas.
Deixemos bem claro que a organização específica não é a reunião, o pacto formal ou contratual entre indivíduos que professam convicções ideológicas particulares e artificiais.
Ela surge e se desenvolve de modo orgânico e natural, pois corresponde a uma necessidade real e a um certo número de dados programáticos, que não estão desligados da realidade, mas que refletem – repitamos uma vez mais – as aspirações profundas dos explorados.
A organização tem uma base de classe, ainda que possa admitir elementos oriundos das classes privilegiadas que, de algum modo, foram rejeitados por elas.
II – Unidade tática, método coletivo de ação
Com base no programa, a organização determina uma orientação tática comum. É isso que permite tirar todas as vantagens da organização: continuidade e constância no trabalho, compensação das fraquezas de uns pelas capacidades e forças de outros, concentração dos esforços, economia de forças, possibilidade de responder às necessidades, em qualquer momento e ocasião, com o máximo de eficácia.
A unidade tática evita a dispersão e liberta o movimento do efeito nefasto das diversas táticas que se opõem umas às outras. É nesse sentido que se coloca a questão da determinação tática.
No que diz respeito à ideologia, ao programa geral e aos princípios, não há problema, pois eles são reconhecidos unanimemente na organização. Se há divergência sobre aquilo que é fundamental, há cisão. Aqueles que ingressam na organização devem aceitar esses princípios básicos, que não podem ser modificados senão por um acordo unânime ou ao preço de uma cisão.
O mesmo não acontece com as questões de tática. A unanimidade pode ser buscada, mas apenas até certo ponto. Não se pode aceitar que, para colocar todos de acordo, se termine não decidindo nada; os acordos evasivos transformam a organização numa carcaça vazia, sem substância e sem utilidade, pois a organização tem justamente por objetivo coordenar as forças para um mesmo objetivo.
Por isso, é necessário admitir que, quando todos os argumentos e proposições tiverem sido colocados, quando a discussão não puder mais se prolongar de maneira proveitosa, quando as posições próximas ou idênticas tiverem sido fundidas, e restar ainda uma oposição irredutível entre as táticas propostas, a organização deve encontrar uma solução.
Só existem quatro soluções possíveis:
a.) Não decidir nada, se recusando a agir, e fazendo com que a organização perca sua razão de ser.
b.) Aceitar diferentes táticas e deixar que cada um permaneça com sua posição. A organização pode admitir essa solução, mas com certos limites; somente nos casos de temas que não tenham importância crucial.
c.) Consultar a organização por votação, chegando a uma maioria e uma minoria; a minoria aceita sacrificar seu ponto de vista publicamente na ação, mesmo se reservando ao direito de continuar a desenvolvê-lo internamente, e assumindo que, se seu ponto de vista de fato corresponde melhor à realidade do que o majoritário, ele acabará triunfando pela força dos fatos.
Algumas vezes se alega que esse procedimento peca por falta de objetividade e pelo fato de a quantidade não significar, necessariamente, a verdade; entretanto, esse é o único procedimento possível. Ele não manifesta qualquer tendência coercitiva, pois só é aplicável se os membros da organização o aceitarem como regra, e se a minoria o aceitar como necessidade, permitindo experimentar as proposições táticas aceitas.
d.) Quando nenhum acordo for possível entre a maioria e a minoria acerca de um aspecto crucial, que exija uma tomada de posição por parte da organização, então a cisão se produz, de maneira natural e inevitável.
Em todos os casos, sempre se busca a unidade tática, sem a qual os congressos seriam apenas discussões sem resultados e utilidade prática. É por isso que a primeira solução possível (a) – isto é, não decidir nada – deve ser rejeitada em todos os casos, e a segunda (b) – isto é, aceitar diversas táticas – só pode ser adotada em casos excepcionais.
Naturalmente, apenas os encontros em que a organização está inteiramente representada (conferências, congressos etc.) podem deliberar sobre a linha tática a seguir.
III – Ação coletiva e disciplina
Uma vez decidida essa tática geral (ou orientação), coloca-se a questão de sua aplicação. É evidente que, se a organização definiu uma linha de ação coletiva, as atividades militantes de todos os membros ou de todos os agrupamentos da organização devem estar em conformidade com essa linha.
Nos casos em que se formaram uma maioria e uma minoria, e as duas partes aceitaram continuar o trabalho conjuntamente, ninguém pode se considerar prejudicado, pois todos aceitaram de antemão essa forma de atuação e participaram da elaboração dessa linha.
Essa disciplina livremente aceita não tem nada em comum com o militarismo e com a obediência passiva às ordens. Não existe aparelho de coerção para impor um ponto de vista que não foi aceito por toda a organização; o que existe é, simplesmente, o respeito aos compromissos livremente assumidos, tanto pela minoria quanto pela maioria.
Naturalmente, os militantes e as diferentes instâncias da organização podem tomar iniciativas, mas apenas na medida em que não entrem em contradição com os acordos realizados e com as medidas tomadas pelos organismos regulares; isto é, se corresponderem às decisões coletivas. Se os detalhes de sua realização envolverem toda a organização, os membros devem consultá-la por meio de seus órgãos representativos e orgânicos.
Isso significa adotar a atividade coletiva, e não a atividade decidida pessoal ou separadamente por certos militantes.
Dessa maneira, cada membro participa da atividade de toda a organização, como também a organização é responsável pela atividade revolucionária e política de cada um de seus membros, pois estes não agem no plano político sem consultar a organização.
IV – Federalismo ou democracia interna
Contrariamente ao centralismo, que é a submissão cega das massas a um centro, o federalismo permite tanto as centralizações necessárias quanto a livre determinação de cada membro e seu controle sobre o conjunto. O federalismo só engaja os participantes naquilo que lhes é comum.
Quando o federalismo reúne agrupamentos baseados em interesses materiais, ele repousa sobre um pacto, e a base dessa unidade pode às vezes ser frágil. Tal é o caso de certos setores vinculados à ação sindical.
Mas, na organização anarquista revolucionária, que tem um programa que representa as aspirações gerais das massas, a base para o agrupamento (os princípios e o programa) é mais importante que quaisquer diferenças, e a unidade é muito forte; mais do que um pacto ou um contrato, seria recomendável falar em unidade funcional, orgânica, natural.
O federalismo não deve ser entendido como direito de manifestar fantasias pessoais sem levar em conta as obrigações assumidas frente à organização. Ele significa o acordo entre os membros e os grupos em relação a um trabalho comum, rumo a um objetivo comum, mas um acordo livre, uma adesão refletida.
Tal acordo implica, por um lado, que os participantes cumpram completamente os deveres aceitos e que concordem com as decisões comuns; ele implica, por outro lado, que os órgãos de coordenação e de execução sejam designados e controlados por toda a organização, por meio de assembleias e congressos, e com suas obrigações e atribuições sendo precisamente fixadas.
* * *
Portanto, é sobre as seguintes bases que pode existir uma organização anarquista eficaz: Unidade ideológica; Unidade tática; Ação coletiva e disciplina; Federalismo.
O PROGRAMA COMUNISTA LIBERTÁRIO
I – Aspectos da dominação burguesa: o capitalismo e o Estado
Antes de indicar os objetivos e as soluções do comunismo libertário, é necessário examinar, em linhas gerais, diante de qual adversário nos encontramos.
Naquilo que nos é permitido conhecer da história da humanidade, observamos, desde que as sociedades humanas foram divididas em grupos ou setores – em particular com a divisão social do trabalho –, a existência de antagonismos entre as classes sociais e, desde as primeiras reivindicações e revoltas, uma corrente de lutas sendo levadas a cabo, reivindicando uma vida melhor e uma sociedade mais justa.
A análise anarquista considera que a sociedade de nossos tempos, assim como todas aquelas que a precederam, não constitui uma unidade; ela é dividida em dois campos muito diferentes, tanto em relação à sua situação, quanto do ponto de vista de suas funções sociais: o proletariado (no sentido amplo do termo) e a burguesia.
Essa situação é acompanhada de um fato: a luta de classes, cujo caráter pode variar – ora ela é complexa, imperceptível; ora ela é aberta, rápida, claramente observável.
Essa luta é muitas vezes mascarada por oposições de interesses secundários, por conflitos entre grupos da mesma classe, por fatos históricos complexos e, ao menos aparentemente, sem relação direta com a existência das classes e seu antagonismo.
Mas, no fundo, essa luta está sempre dirigida para a transformação da sociedade atual em uma sociedade que responda às necessidades e à concepção de justiça dos oprimidos, e, por isso mesmo, em uma sociedade sem classes, que liberte toda a humanidade.
A estrutura de qualquer sociedade sempre expressa em seu direito, em sua moral e em sua cultura a situação respectiva desses grupos sociais: uns são explorados e escravizados, outros são detentores da propriedade e da autoridade.
Na sociedade moderna, economia, política, direito, moral e cultura repousam sobre a existência de privilégios e de monopólios de uma classe, e da violência organizada por esta classe para manter sua supremacia.
O capitalismo
Muitas vezes, o sistema capitalista é considerado como a única forma de sociedade de exploração. Ora, o capitalismo é uma forma econômica e social relativamente recente; as sociedades humanas conheceram muitas outras formas de submissão e de exploração, desde os clãs, os impérios bárbaros, as cidades antigas, o feudalismo, as cidades do Renascimento etc.
A análise do surgimento, do desenvolvimento e da evolução do capitalismo foi obra do conjunto de teóricos socialistas do início do século XIX; Marx e Engels foram responsáveis apenas por sua sistematização. Contudo, essa análise não dá conta do fenômeno geral da opressão de uma classe por outra, e nem da origem dessa opressão.
É inútil promover aqui essa discussão para saber se a autoridade precedeu a propriedade ou o contrário. No estado atual da sociologia, não se pode fazer afirmações absolutas a esse respeito, mas parece evidente que os poderes econômico, político, religioso, moral etc. estiveram, desde sua origem, intimamente ligados. Por isso, não se pode limitar o papel do poder político a mero instrumento do poder econômico.
Em geral, a análise do fenômeno “capitalismo” não foi acompanhada de uma análise suficiente do fenômeno “Estado”. Isso porque os estudos se ativeram em uma parte muito limitada da história, e apenas os teóricos anarquistas – sobretudo Bakunin e Kropotkin – deram a devida importância para esse fenômeno, muitas vezes reduzido ao Estado do período de ascensão do capitalismo.
Hoje, a evolução do capitalismo – passando do capitalismo clássico ao capitalismo de monopólio, e depois ao capitalismo de Estado – engendra novas formas sociais, das quais as análises sucintas do Estado não dão conta.
O que é o capitalismo?
a.) É uma sociedade de classes antagônicas, em que a classe exploradora detém e controla os meios de produção.
b.) Na sociedade capitalista, todos os bens, inclusive a força de trabalho dos assalariados, são mercadorias.
c.) A lei suprema do capitalismo, o motivo de a produção de bens ser não a necessidade dos seres humanos, mas o aumento do lucro, isto é, o fato de o excedente produzido pelos trabalhadores estar acima daquilo que é estritamente necessário para sua sobrevivência. Esse excedente é chamado de mais-valia.
d.) O aumento da produtividade do trabalho não é acompanhado pela valorização do capital, a qual é limitada (subconsumo). Essa contradição, que se expressa pela “tendência decrescente da taxa de lucro”, vem criando crises periódicas e levando os detentores do capital a promover todo tipo de medidas: restrição da produção, destruição de produtos, desemprego, guerras etc.
O capitalismo conheceu uma evolução:
1.) Período pré-capitalista: Desde o fim da Idade Média, a burguesia mercantil e bancária desenvolve-se no seio da economia feudal.
2.) Capitalismo clássico, liberal ou privado: Individualismo dos detentores do capital, concorrência e expansão – a partir da acumulação primitiva de capital, por meio da expropriação, da pilhagem, da ruína das populações camponesas etc. O capitalismo que se estabeleceu na Europa ocidental passa a conquistar o mundo, as fontes formidáveis de riquezas e os mercados que parecem imensos.
As revoluções burguesas, ao eliminar os entraves feudais, ajudam no desenvolvimento do novo sistema. A industrialização e o progresso técnico estão na origem da forma capitalista de produção, e da passagem da burguesia comercial dos séculos XV, XVI e XVII, para a burguesia capitalista industrial. Tais fatores continuam a se desenvolver.
Durante esse período, as crises são pouco numerosas, pouco graves; o Estado desempenha um papel de bastidor, pois a concorrência elimina os mais fracos – trata-se do jogo livre do sistema. É o período do vapor, do carvão, no plano técnico; da propriedade privada, do patrão individual, da concorrência e do livre câmbio, no plano econômico; do parlamentarismo, no plano político; da exploração total e da miséria mais pavorosa dos assalariados, no plano social.
3.) Capitalismo de monopólio, de pactos ou imperialismo: A produtividade aumenta, mas os mercados se restringem ou não aumentam na mesma proporção. Baixa da taxa de lucro do capital sobreacumulado.
Os pactos (trustes, cartéis etc.) substituem a concorrência, as sociedades anônimas substituem o patrão individual, o protecionismo intervém, a exportação de capitais vem se juntar à das mercadorias, o crédito financeiro desempenha um grande papel, a fusão do capital bancário e do capital industrial forma o capital financeiro, que domestica o Estado e apela à sua intervenção.
É o período do petróleo, da eletricidade, no plano técnico; dos pactos, do protecionismo, da sobreacumulação do capital e da tendência à queda da taxa de lucro, das crises, no plano econômico; das guerras, do imperialismo, do desenvolvimento do Estado, no plano político. A guerra é uma necessidade para superar as crises, as destruições liberam mercados. No plano social: miséria operária, mas as leis sociais limitam certos aspectos da exploração.
4.) Capitalismo de Estado: Tudo aquilo que caracteriza o período precedente se acentua. As guerras não bastam para superar as crises. É preciso uma economia de guerra permanente, que invista enormes capitais nas indústrias bélicas, sem nada acrescentar ao mercado saturado de mercadorias; um lucro considerável é obtido por demandas do Estado.
Esse período se caracteriza pela intervenção do Estado nos setores mais importantes da economia e no mercado de trabalho. O Estado se torna capitalismo, cliente, fornecedor e supervisor dos trabalhos e da mão de obra e, por consequência, garante cada vez mais o controle da orientação, da cultura etc. A burocracia se desenvolve, a disciplina e a regulamentação se impõem no trabalho e justificam uma planificação cada vez mais restrita.
A exploração e o trabalho assalariado são mantidos, assim como outras características fundamentais do capitalismo, mas sob a aparência de formas socializantes (estatutos, previdência social, pensões etc.), que marcam a submissão cada vez maior dos proletários.
As formas do capitalismo de Estado são variadas: nacional-socialismo alemão, “nacional-socialismo stalinista”, dirigismo cada vez maior das “democracias”, ainda que apresentando uma forma atenuada – devido a uma reserva de mais-valia obtida das colônias. Tanto em termos políticos como econômicos, esse período tende a assumir uma forma totalitária.
O estatismo se manifesta em formas ao mesmo tempo políticas, econômicas e culturais: financiamento do Estado, economia de guerra, grandes obras, trabalho obrigatório, campos de concentração, transferência de populações, ideologias que justificam a ordem totalitária das coisas.
As ideologias são variadas: uma deturpação da ideologia marxista-leninista na URSS, a raça para o nacional-socialismo de Hitler, a Roma antiga para o fascismo de Mussolini etc.
O Estado
Se o capitalismo, mesmo com suas transformações e adaptações, conserva características permanentes (mais-valia, crises, competição etc.), o Estado não pode mais ser considerado apenas a organização pública da repressão nas mãos da classe dominante, o agente dos negócios da burguesia, o policial do capitalismo.
Um exame das formas de Estado anteriores ao período da ascensão do capitalismo e daquelas atuais nos leva a afirmar que o Estado é algo mais importante que esse mero instrumento.
O Estado medieval, o Estado das monarquias absolutistas da Europa, o Estado faraônico etc. constituíram realidades em si mesmas; eles realizaram o Estado-Classe dominante. O Estado da época imperialista do capitalismo e o Estado atual tendem deixar de ser “superestrutura” para se converterem em “estrutura”.
Para os ideólogos da burguesia, o Estado é o órgão regulador da sociedade moderna. Isso é verdade, mas no contexto de uma ordem que submete a maioria a uma minoria. Ele é a violência organizada da burguesia contra os trabalhadores; é o aparelho ou instrumento da classe dominante.
Ao mesmo tempo, esse caráter instrumental do Estado tende a adquirir um caráter funcional, tornando-se, ele mesmo, classe dominante organizada. Ele tende a superar as antinomias entre os grupos dirigentes na política e na economia, e também a fundir em um bloco único as forças que detêm o poder econômico e o poder político, os diferentes setores da burguesia, seja para aumentar seu peso repressivo no interior, seja para aumentar sua pressão expansiva no exterior.
Ele tende a unificar o político e o econômico, estendendo sua hegemonia sobre todas as atividades, integrando os sindicatos operários etc., transformando o assalariado propriamente dito em servo moderno, completamente submetido, mas com um mínimo de garantias (indenizações, previdência social etc.).
O Estado não é mais um instrumento, mas um poder em si mesmo.
Essa é a fase em que se encontram todos os países, inclusive os EUA; ela foi promovida no nazismo e quase perfeitamente alcançada na URSS. Pode-se mesmo perguntar se é ainda apropriado falar em “capitalismo”, ou se esse nível de desenvolvimento da fase imperialista do capitalismo não deve ser considerado uma nova forma de sociedade de exploração, distinta do capitalismo.
A diferença aqui não é quantitativa, mas qualitativa; não se trata mais do nível de evolução do capitalismo, mas de outra coisa, realmente nova e diferente. Contudo, isso é sobretudo uma questão de apreciação, de terminologia, que pode parecer prematura e sem importância real na atualidade.
Para nós, é suficiente expressar a forma de exploração e de submissão para a qual tende a sociedade burguesa da seguinte maneira: o Estado como o instrumento de classe, e como a própria organização de classe – ao mesmo tempo instrumental e funcional, superestrutura e estrutura –, tende a unificar os poderes, todas as formas de dominação da burguesia sobre o proletariado.
II – As características do comunismo libertário
Tentamos resumir, da maneira mais clara possível, os aspectos da sociedade burguesa que a revolução tem por objetivo liquidar, dando origem a uma nova sociedade: a sociedade comunista anarquista. Antes de examinarmos de que maneira se pode vislumbrar o fato revolucionário, é necessário detalhar as características fundamentais da sociedade comunista libertária.
Comunismo: da fase inferior à fase superior ou comunismo perfeito
Não poderíamos definir melhor a sociedade comunista do que repetindo a velha fórmula: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.
A princípio, ela afirma a subordinação total da economia às necessidades do desenvolvimento humano na abundância de bens, a diminuição do trabalho social e a redução da parte de cada um nesse trabalho às suas próprias forças, às suas capacidades reais.
Essa fórmula expressa a possibilidade de desenvolvimento completo do ser humano. E também supõe o desaparecimento das classes e da propriedade, assim como da exploração coletiva dos meios de produção – apenas esse tipo de exploração por parte da comunidade permite uma repartição segundo as necessidades.
No entanto, o comunismo perfeito da fórmula “a cada um segundo suas necessidades” pressupõe não apenas a propriedade coletiva (gerida pelos conselhos de trabalhadores, “sindicatos” ou “comunas”), mas um desenvolvimento expandido da produção, isto é, a abundância.
Ora, é certo que, quando o fato revolucionário se produz, as condições não permitem esse estágio superior do comunismo, e a situação de escassez ocasiona a persistência do econômico sobre o humano e, assim, certa limitação.
Nessa circunstância, a aplicação do comunismo não pode ser aquela do princípio “a cada um segundo suas necessidades”, mas apenas a da igualdade de renda ou de condições.
Esta equivale a um racionamento igualitário ou a uma repartição por intermédio de signos monetários de validade limitada, cuja única função é repartir os produtos que não são nem muito raros para serem estritamente racionados, nem muito abundantes para serem de “acesso livre”. Esse sistema monetário permite que os consumidores decidam, por si mesmos, a maneira de usufruir de sua renda.
Pode-se considerar a manutenção da fórmula “a cada um segundo seu trabalho”, levando em conta o atraso psicológico de certos grupos, ainda vinculados a certas noções de hierarquia. Ou por se considerarem necessárias as diferenciações de níveis salariais ou as vantagens – como a redução da jornada de trabalho, por exemplo – para a manutenção e o desenvolvimento da produção de certas atividades “inferiores” ou pouco atraentes, para a obtenção aumentos de produtividade ou para a promoção de deslocamentos de mão de obra.
Mas a importância dessas diferenciações é mínima, pois a sociedade comunista, mesmo em sua fase inferior – chamada por alguns de “socialismo” –, tende à maior igualdade possível e à equivalência de condições.
Comunismo libertário
Uma sociedade que conta com a propriedade coletiva e a realização do princípio igualitário não pode ser uma sociedade em que persiste a exploração econômica, em que há um novo regime de classes. Ela é justamente a negação disso tudo.
Isso também vale para a fase inferior do comunismo que, mesmo manifestando uma certa limitação em termos econômicos, não justifica a persistência da exploração. Do contrário, a revolução, que quase sempre parte de uma situação de escassez, automaticamente se anula.
A revolução comunista libertária não realiza desde o princípio uma sociedade perfeita ou altamente desenvolvida, mas destrói as bases da exploração e da dominação. É nesse sentido que Voline falava de “Revolução imediata, mas progressiva”.
Entretanto, há ainda outro problema: aquele do Estado, do tipo de organização política, econômica e social. É certo que as próprias escolas marxistas e leninistas preveem o desaparecimento do Estado na fase superior do comunismo; contudo, elas consideram o Estado uma necessidade na fase inferior.
Esse Estado dito “operário” ou “proletário” é concebido como coerção organizada, necessária graças à insuficiência do desenvolvimento econômico, à falta de desenvolvimento das capacidades humanas e, ao menos num primeiro momento, à luta contra as reminiscências das antigas classes dominantes derrotadas pela revolução ou, mais precisamente, à defesa do território revolucionário, tanto em termos internos quanto externos.
Qual pode ser a forma de gestão econômica da sociedade comunista? Indiscutivelmente a gestão operária, a gestão realizada pelo conjunto dos produtores.
Ora, vimos que a sociedade de exploração estava cada vez mais unificando o poder, que as condições de exploração provinham cada vez menos da propriedade privada, do mercado, da concorrência etc. E que, dessa maneira, a exploração econômica, a coerção política e a mistificação ideológica se uniam, conformando os fundamentos essenciais do poder, e faziam da gestão da produção a linha divisória das classes sociais entre exploradores e explorados.
Nessas condições, o mais importante do ato revolucionário – a abolição da exploração – se realiza pela gestão operária, e tal gestão é o sistema que substitui todos os poderes.
Nela, o conjunto dos produtores gere, organiza e realiza a autoadministração, o autogoverno, a verdadeira democracia, a liberdade na igualdade econômica, a supressão dos privilégios e das minorias dirigentes e exploradoras. São também os produtores que levam em conta as necessidades econômicas e relativas à defesa da revolução.
Com isso, a administração das coisas substitui o governo dos seres humanos.
Se a abolição das distinções, no plano econômico, entre aqueles que dirigem e aqueles que executam ordens, for acompanhada da manutenção das distinções no campo político (da ditadura de um partido ou de uma minoria), a revolução não terá futuro e criará um conflito entre produtores e burocratas políticos.
Por esse motivo, a gestão operária deve suprimir todo poder exercido por minorias – e, portanto, todo Estado. Não deve mais haver dominação ou hegemonia de uma classe, mas gestão e administração, tanto no plano político, quanto no campo econômico, dos organismos econômicos de massa, das comunas, do povo em armas.
O que significa a construção de um poder direto do povo, e não de um Estado. Ainda que alguns chamem isso de ditadura do proletariado – esse é um termo ambíguo, como discutiremos adiante –, não há mais nada em comum com a ditadura de um partido ou uma burocracia. Trata-se simplesmente da verdadeira democracia revolucionária.
Comunismo libertário e humanismo
O comunismo anarquista ou comunismo libertário, ao realizar a sociedade de pleno desenvolvimento do ser humano, da pessoa humana, do ser humano completo, abre uma era de progresso permanente, de transformação gradual e de transições.
Ele cria um humanismo de objetivos, cuja ideologia tem origem no seio da sociedade de classes, ao longo do próprio desenvolvimento da luta de classes; trata-se de um humanismo que não tem nada em comum com as mistificações sobre o ser humano abstrato, tal como sustentado pelos liberais burgueses no seio de sua sociedade de classes.
A revolução, baseada na poderosa alavanca das massas, do proletariado, ao libertar a classe explorada, liberta toda a humanidade.
A negação, desde o início, de um humanismo falso, nos conduz à luta por uma sociedade comunista libertária, em que o progresso e o objetivo não são, em última instância, outra coisa senão o desenvolvimento do ser humano.
III – O fato revolucionário: a questão do poder e do Estado
Depois de termos examinado as linhas gerais das formas sob as quais se expressa o poder da classe dominante, e depois de termos fixado os aspectos fundamentais do comunismo libertário, resta detalhar como concebemos a passagem revolucionária. Tocamos aqui em um ponto crucial do anarquismo, que o diferencia mais claramente de todas as outras correntes socialistas.
O que é a revolução?
A revolução – isto é, a passagem da sociedade de classes para a sociedade comunista libertária sem classes – deve ser considerada um processo lento de transformação ou uma insurreição?
As bases da sociedade comunista se conformam no interior da sociedade de exploração. E as novas condições técnicas, econômicas, as novas relações de classe e as novas ideias entram em conflito com as velhas instituições, produzem uma crise que exige um desfecho brusco e decisivo. Isso produz uma transformação que foi preparada por muito tempo no seio da velha sociedade.
A revolução é o momento em que surge a nova sociedade, rompendo com as estruturas da velha: capitalismo de Estado, ideologias burguesas etc. É uma passagem real e concreta entre dois mundos, que só pode ser realizada em condições objetivas: a crise final do regime de classes.
Essa concepção não tem nada a ver com a velha noção romântica da insurreição, da mudança realizada “do dia para a noite”, sem preparação. Ela tampouco tem a ver com a concepção gradualista, puramente evolucionista, dos reformistas, ou dos defensores da revolução como processo.
Nossa concepção de revolução, igualmente distante do insurrecionalismo e do gradualismo, pode ser descrita pela noção do ato revolucionário longamente preparado no seio da sociedade burguesa, mas bem determinado no tempo. A princípio pela intervenção insurrecional do proletariado contra a burguesia, e ao fim pela tomada e pela gestão dos meios de produção e por sua substituição pelas organizações de massa.
É essa culminação do ato revolucionário que estabelece uma linha divisória precisa entre a velha sociedade e a nova.
A revolução destrói o poder econômico e político da burguesia. Isso significa que ela não se limita à supressão física de antigos dirigentes ou à imobilização da máquina governamental, mas alcança a liquidação das instituições jurídicas do Estado: as leis e os hábitos estatais, os procedimentos e as prerrogativas hierárquicas, a tradição e o culto do Estado como realidade psicológica coletiva.
O período de transição
O que significa, então, a expressão “período de transição”, tantas vezes empregada e associada à noção de revolução?
Se essa transição é a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes, ela se confunde com o ato revolucionário. Se ela é a passagem da fase inferior do comunismo para sua fase superior, então a expressão é inexata, pois a época pós-revolucionária envolve um lento e contínuo progresso, uma transformação sem abalos sociais; assim a sociedade comunista continua evoluindo.
Tudo o que se pode dizer é aquilo que já colocamos a respeito do comunismo libertário: o ato revolucionário produz uma transformação imediata, pois as bases da sociedade são radicalmente transformadas, mas também progressiva, pois o comunismo é um desenvolvimento constante.
Na verdade, para os partidos socialistas e comunistas estatistas, o “período de transição” representa uma sociedade que rompe com a antiga ordem das coisas, mas que conserva elementos sobreviventes do sistema capitalista e estatista. Isso significa a negação da verdadeira revolução, por razão da conservação de elementos do sistema de exploração, cuja tendência é se reforçarem e se desenvolverem.
A ditadura do proletariado
De maneira parecida, a fórmula “ditadura do proletariado” também foi empregada nos sentidos mais diversos. Só por isso, ela já deveria ser descartada, pois constitui um germe de confusão. Na obra do próprio Marx, ela representa tanto a ditadura centralizada do partido que pretende representar o proletariado, quanto a concepção federalista da Comuna de Paris.
Será que ela pode significar o exercício do poder político pela classe operária vitoriosa?
Não, pois o exercício do poder político, no sentido clássico do termo, só pode ser levado a cabo por um grupo limitado, que exerce um monopólio, uma supremacia, e assim se separa da classe; esse grupo não faz (mais) parte da classe e a oprime. A tentativa de se servir do aparelho de Estado acaba reduzindo a ditadura do proletariado à ditadura de um partido sobre as massas.
Contudo, se entendermos a ditadura do proletariado como um exercício coletivo e direto do “poder político” pela classe explorada, isso significa que já não haverá mais “poder político”, visto que este tem como características distintivas a supremacia, a exclusividade e o monopólio.
Não se trataria mais do exercício do poder político ou de sua conquista, mas de sua liquidação!
Se por ditadura compreendermos a dominação de uma minoria sobre a maioria, então não se trata de dar o poder ao proletariado, mas a um partido, a um grupo político determinado.
Se por ditadura compreendermos a dominação da maioria sobre uma minoria – dominação do proletariado vitorioso sobre as reminiscências da burguesia derrotada enquanto classe –, então a instituição da ditadura não tem outro sentido senão o aquele da necessidade da maioria articular eficazmente sua própria organização social para a defesa e a instituição de uma vigilância generalizada. Nesse caso, ainda assim, a expressão é imprópria, imprecisa e gera mal-entendidos.
Se por “ditadura do proletariado” entendermos a supremacia da classe operária sobre outras camadas de explorados (pequenos proprietários pobres, artesãos, camponeses etc.), a expressão não dá conta de uma realidade que não tem nada a ver com as relações mecânicas entre governantes e governados, assim como expressa o conceito de ditadura.
Falar em “ditadura do proletariado” é inverter mecanicamente a situação entre a burguesia e o proletariado. Ora, se a classe burguesa tende, pelo poder, a conservar sua natureza de classe, a se identificar com o Estado, a se separar da sociedade em geral, isso não acontece da mesma forma com a classe subalterna, que tende a se desfazer de sua natureza de classe e a se fundir na sociedade sem classes.
Se a dominação de classe e o Estado representam o poder constituído e codificado de um grupo que oprime os grupos subalternos, eles não têm nada a ver com a pressão violenta exercida diretamente pelo proletariado.
Os termos “dominação”, “ditadura” e “Estado” são tão pouco adequados quanto a expressão “tomada do poder” para se referir ao fato revolucionário da tomada das fábricas pelos trabalhadores.
Por isso rejeitamos as expressões “ditadura do proletariado”, “tomada do poder político”, “Estado operário”, “Estado socialista” e “Estado proletário”, já que são impróprias e produzem equívocos.
Agora nos resta examinar como pretendemos resolver a questão das lutas, colocada pela revolução e pela defesa da revolução.
O poder operário direto
Apesar de rejeitarmos a noção de Estado, que implica a existência e a dominação de uma classe exploradora que tende a se perpetuar, e apesar de rejeitarmos a noção de ditadura, que implica relações mecânicas entre governantes e governados, nós admitimos, para a ação direta revolucionária, a necessidade de uma coordenação.
É preciso tomar os meios de produção e de trocas, os centros de administração; é necessário combater as forças da burguesia, defender a revolução contra os setores contrarrevolucionários, os hesitantes e, inclusive, as camadas sociais exploradas mais atrasadas, como, por exemplo, certos grupos de camponeses.
Trata-se do exercício de um poder, agora sob domínio da maioria, do proletariado em ação, do povo em armas se organizando de modo eficaz para o ataque e a defesa, e instituindo uma vigilância generalizada.
As experiências da Revolução Russa, da Makhnovtchina e da Espanha de 1936 estão aí como testemunhas. Não podemos fazer nada melhor do que apoiar a posição de Camillo Berneri, que escrevia em plena Revolução Espanhola, refutando a concepção bolchevique de Estado:
Os anarquistas admitem o uso de um poder direto por parte do proletariado, mas entendem este poder político como o conjunto dos sistemas de gestão comunista dos organismos corporativos, das instituições comunais, regionais e nacionais livremente constituídas, fora e contra o monopólio político de um e que tenda à mínima centralização administrativa.
Contra a noção de Estado, em que o poder é exercido por um grupo especializado e isolado das massas, sustentamos a noção de poder operário direto, em que os responsáveis e delegados eleitos – controlados, revogáveis a qualquer momento e remunerados com o mesmo salário dos trabalhadores – substituem a burocracia especializada, hierarquizada e privilegiada.
Em que as milícias, controladas pelos organismos de gestão (sovietes, sindicatos, comunas etc.), sem privilégios para os técnicos militares, dão corpo ao povo em armas, substituem o exército, organismo separado do corpo social e submetido ao arbítrio de um poder de Estado ou governo.
Em que os júris populares, encarregados de arbitrar os conflitos surgidos em decorrência dos contratos e compromissos assumidos, substituem a repressão judiciária da burguesia.
A defesa da revolução
No que diz respeito à defesa da revolução, devemos enfatizar que nossa concepção teórica de revolução é aquela de um fenômeno internacional, que destrói toda base de contra-ataque da burguesia. A revolução ocorre quando a organização internacional do capitalismo esgotou todas as suas possibilidades de sobrevivência, quando atingiu o ponto culminante de sua crise e quando se encontram dadas as condições ótimas para a vitória de uma revolução internacional.
A questão da defesa é aquela do desaparecimento completo da burguesia. Decapitada de seu poder econômico, amputada de seu poder político, a burguesia não existe mais como classe. Uma vez derrotada, seus elementos são obrigados a respeitar as organizações proletárias armadas, e depois são absorvidos por uma sociedade que tende ao mais alto nível de homogeneidade. Tarefa que deve ser feita diretamente, sem o auxílio de um corpo burocrático especial.
Durante o período revolucionário, a questão da delinquência pode estar vinculada à defesa da revolução. Não podemos esquecer que, mesmo com o desaparecimento do direito burguês, dos métodos judiciários e penitenciários da sociedade de classes, continuarão existindo indivíduos antissociais.
Ainda que tais indivíduos sejam poucos, se comparados ao número assustador de prisioneiros na sociedade burguesa. Na maioria dos casos, estes prisioneiros são resultado de suas condições de vida, marcadas por injustiça social, miséria, exploração.
Há também o problema de alguns elementos totalmente inassimiláveis da burguesia. Os órgãos do poder direto das massas anteriormente definidos têm a obrigação de impedir que esses elementos causem prejuízos e devem se encarregar deles.
Não se pode deixar solto, sob pretexto de liberdade, um assassino, um reincidente, um desequilibrado perigoso ou um sabotador. Ainda que sua detenção pelos serviços populares de segurança nada tenha em comum com o regime penitenciário aviltante da sociedade de classes.
O indivíduo privado de liberdade deve ser tratado em termos médicos, mais do que judiciais, na expectativa de que possa ser devolvido à sociedade sem riscos.
Mas a revolução não se realiza necessária e inevitavelmente em toda parte e no mesmo instante; pode haver casos concretos de revoluções sucessivas, mas elas só levam à revolução geral se se difundem ao exterior, se ocorre o contágio revolucionário, se ao menos o proletariado combate internacionalmente para a defesa e para a expansão desses fatos revolucionários que são, a princípio, limitados.
Ao lado da defesa interna da revolução, é também necessária a defesa externa, mas esta só é possível com o povo em armas organizado em suas milícias e, repitamos, com o apoio do proletariado internacional e as possibilidades de expansão do fato revolucionário.
A revolução morre se se deixa circunscrever e se, sob pretexto de defesa, cai na restauração do Estado e, assim, da sociedade de classes.
A melhor maneira de defender a nova sociedade é pela afirmação de seu caráter revolucionário, porque isso cria rapidamente as condições para que nenhuma tentativa de restauração burguesa encontre bases sólidas. A completa afirmação de seu caráter socialista é a melhor arma do território revolucionário, porque isso cria a energia e o entusiasmo internamente, e o contágio e a solidariedade externamente.
Talvez esse tenha sido um dos erros mais funestos da Revolução Espanhola: silenciar sobre suas próprias realizações e se dedicar principalmente às tarefas militares de defesa.
Poder revolucionário e liberdade
A luta revolucionária e a consolidação da transformação revolucionária colocam a questão da liberdade das tendências políticas que pretendem manter ou restaurar a exploração. Esse é um dos aspectos do poder direto das massas e da defesa da revolução.
Aqui não se trata da liberdade propriamente dita – visto que, até então, ela só existe em termos aspiracionais –, pois a liberdade só se realiza com a revolução: com a supressão da exploração e da alienação; com a gestão coletiva, ou seja, a participação ativa na vida social; e, portanto, com a democracia real para todos.
Não estamos falando aqui do direito de todos os participantes da sociedade sem classes e sem Estado expressarem suas posições particulares e suas divergências. Esse é, obviamente, um direito garantido.
No entanto, não é a mesma coisa quando falamos de correntes e organizações que se opõem, mais ou menos abertamente, à gestão operária, ao exercício do poder pelos organismos de massas. Ou quando falamos – o que é, inclusive, mais comum – de correntes burocráticas, pseudossocialistas ou da burguesia derrotada.
Nesse caso, é necessário fazer uma distinção. Durante o período violento da luta, é preciso destruir violentamente as formações e tendências que defendem ou querem restaurar a sociedade de exploração. Não se pode permitir que o inimigo se organize insidiosamente, nem que pratique a desmoralização ou a espionagem. Isso seria a negação da luta, a desistência.
Makhno e os libertários espanhóis se viram diante desses problemas e os resolveram suprimindo a propaganda do inimigo.
Agora, as ideologias reacionárias que não tiverem consequências para os resultados da revolução – por exemplo, depois da consolidação das realizações revolucionárias – poderão ser expressadas, se ainda houver interesse por elas ou se elas ainda tiverem força.
Nessa circunstância, essas ideologias seriam apenas “curiosidades”, e a vinculação das massas com a revolução retiraria delas todo seu caráter nocivo. Se essas ideologias só se expressarem no terreno ideológico, só deverão ser combatidas nesse plano, e não com a proibição. A total liberdade de expressão no seio das massas conscientes é algo que certamente produz cultura.
Sem dúvida, muitas vezes a distinção entre uma expressão ideológica reacionária e uma atividade reacionária é difícil de estabelecer. Makhno se viu diante de um caso delicado desse tipo, em Kharkov, relativo à imprensa dos “russos brancos”.
Consideramos que essa distinção deve ser estabelecida caso a caso, sob pena de uma evolução burocrática ou de uma derrota frente ao inimigo. É necessário enfatizar que o julgamento e a decisão pertencem sempre – tanto nessa questão, quanto nas outras – aos organismos populares, ao proletariado em armas.
Dessa maneira, a liberdade fundamental, aquela pela qual se faz a revolução, é mantida e protegida.
O papel da organização anarquista específica e o papel das massas
A concepção de revolução que acabamos de desenvolver necessita de um certo número de condições históricas: por um lado, a crise aguda da velha sociedade; por outro, a presença de um movimento de massa consciente, e de uma minoria ativa bem organizada e orientada.
É a própria evolução da sociedade que permite o desenvolvimento da consciência e das capacidades do proletariado, a organização de suas camadas mais avançadas e o progresso da organização revolucionária. Essa organização revolucionária atua no conjunto das massas, visando a desenvolver a capacidade de autoadministração dessas massas.
No que diz respeito às relações entre a organização revolucionária e as massas, vimos que, no período pré-revolucionário, a organização específica só pode propor objetivos e meios, e só pode fazer com que sejam aceitos por meio da luta ideológica e do exemplo.
Durante o período revolucionário, essa posição deve continuar, sob risco de degeneração burocrática e de transformação da organização anarquista em corpo especializado, poder político separado das massas, Estado.
Sem dúvida, a organização política de vanguarda, a minoria ativa, pode se encarregar, no decurso do ato revolucionário, de tarefas especiais – como, por exemplo, a liquidação das forças inimigas –, mas, como regra geral, ela não pode ser mais do que a consciência do proletariado.
Ela deve, enfim, ser reabsorvida, se dissolver na sociedade progressivamente. Por um lado, porque seu papel termina com a consolidação da sociedade sem classes e com sua evolução da fase inferior para a fase superior do comunismo; por outro lado, porque as massas em sua totalidade adquiriram o máximo nível necessário de consciência.
Desenvolvimento da capacidade de autogoverno das massas e vigilância revolucionária – essas devem ser as tarefas da organização específica, uma vez que a revolução esteja completa.
O destino da revolução depende, em grande medida, da atitude da organização específica, da maneira de conceber seu papel. Pois a vitória da revolução não é inevitável: as massas podem abandonar a luta, a organização da minoria revolucionária pode negligenciar sua vigilância, permitir que se estabeleçam as bases da restauração burguesa ou da ditadura burocrática, ou ainda se transformar, ela mesma, em poder burocrático. De nada adianta esconder esses perigos ou, para evitá-los, se recusar à ação organizada.
Devemos conduzir o combate com muita lucidez; na medida em que formos lúcidos e vigilantes, a organização anarquista poderá cumprir sua tarefa histórica.
IV – A moral comunista libertária
A concepção anarquista revolucionária – ao expressar objetivos a serem atingidos e detalhar a natureza do papel da organização de vanguarda em relação às massas – reflete um certo número de regras de conduta. Por isso, é necessário especificar aquilo que entendemos por “moral”.
Nós combatemos as morais
As morais de todas as sociedades refletem, em certa medida, as condições de existência e o nível de desenvolvimento dessas sociedades; por consequência, elas se expressam em regras muito severas, que não admitem desvio em nenhum sentido – a transgressão e a vontade de modificar essas regras constituem crimes.
As morais, que expressam uma certa necessidade no quadro da vida social, tendem à imobilidade.
Elas não apenas expressam uma necessidade prática média, pois entram em contradição com as novas condições de existência que podem ser produzidas. Elas são afetadas por um caráter religioso, teológico ou metafísico, e apresentam suas regras como expressão de um imperativo sobrenatural.
As ações conformes ou não conformes às regras são caracterizadas por qualidades místicas: virtude ou pecado, e a resignação – que, na realidade, deveria ser apenas o reconhecimento do limite do ser humano diante de certos fatos – se torna a primeira das virtudes, e pode levar mesmo à busca do sofrimento, tornando-se virtude suprema.
O cristianismo é, desde esse ponto de vista, uma das morais mais odiosas.
A moral não se codifica apenas sob a forma de sanções exteriores, mas se ancora nos indivíduos como “consciência moral”. Essa consciência moral é obtida e mantida, sobretudo, em função do caráter religioso que impregna a moral; ela também é afetada por um caráter religioso, sobrenatural.
Com isso, ela se torna algo muito diferente de uma simples tradução das necessidades da vida social na consciência humana.
Enfim – e acima de tudo –, ainda que as morais não expressem abertamente a divisão da sociedade em classes ou castas, elas são utilizadas pelos setores privilegiados para justificar e garantir sua dominação.
Como o direito e a religião – religião, direito, moral são apenas expressões de uma mesma realidade social em campos próximos –, a moral sanciona as condições e as relações existentes no sentido da dominação e da exploração.
O fato de as morais expressarem a alienação do ser humano nas sociedades de exploração – assim como as ideologias, as leis, as religiões etc., que também se caracterizam pela imobilidade, pela mistificação, pela resignação, pela justificação e pela manutenção de privilégios de classe – permitem que se entenda porque os anarquistas dispenderam grande parte de seus esforços na denúncia das verdadeiras características das morais.
Nós temos uma moral?
Costuma-se dizer que as morais podem evoluir ou se modificar, que uma moral pode suceder outra, inclusive no seio das sociedades de exploração.
Houve nuances, adaptações ou variações ligadas às condições de existência, mas as morais sempre salvaguardaram os mesmos valores fundamentais: resignação e respeito pela propriedade, por exemplo.
Não é menos verdade que essas adaptações foram combatidas e que seus defensores foram muitas vezes perseguidos (Sócrates, Cristo), já que a moral tende à imobilidade.
Em todo caso, não parece que os sujeitados tenham algum dia conseguido introduzir seus próprios valores nas morais.
Agora, o que importa é saber se os escravizados – e os revolucionários que expressam suas aspirações – podem ter valores, uma moral própria.
Se não queremos aceitar a moral da sociedade em que vivemos, se recusamos essa moral, tanto porque ela reconhece e sustenta um estado social de exploração e de dominação, quanto porque ela está impregnada de abstrações e de ideais metafísicos, sobre o que podemos basear nossa moral?
Existe uma solução para essa contradição aparente: a reflexão e a ciência social nos permitem vislumbrar um porvir de pleno desenvolvimento do ser humano, e, aliás, esse porvir não é outra coisa senão as aspirações gerais dos oprimidos, expressadas pelo verdadeiro socialismo, pelo comunismo libertário.
É esse o nosso objetivo revolucionário, nosso ideal, nosso imperativo.
Trata-se de um ideal, de um imperativo sobre o qual se pode fundar uma moral, mas é um ideal que repousa sobre o real, e não sobre uma revelação religiosa ou metafísica.
Esse ideal é um humanismo, mas um humanismo baseado em uma transformação revolucionária da sociedade, e não um humanismo sentimental, que não se baseia em nada e camufla as realidades da luta social.
Nossa moral
Quais são os valores morais que manifestam esse ideal no seio do proletariado? Essa moral se expressa por meio de regras e de preceitos?
É evidente que não falamos de atuar e julgar, em função das noções de “bem” e de “mal”, as morais que combatemos. Também não nos deixamos arrastar para discussões fúteis de terminologia, para saber se o motor da ação deve se chamar “egoísmo” ou “altruísmo”.
Entre os atos que normalmente são assegurados pelo jogo da afetividade e dos sentimentos (o amor materno, a simpatia, o salvamento de um semelhante em perigo etc.), e os atos que dependem de contratos, de pactos escritos ou tácitos – e, portanto, do direito –, há toda uma gama de relações sociais que dependem de concepções e de consciências morais.
Qual é a garantia do respeito sincero às cláusulas contratuais? Qual deve ser a atitude de uma pessoa em relação a seus adversários? Que armas tem de ser proibidas?
Só existe uma moral capaz de guiar, determinar limites, evitar que se recorra incessantemente ao litígio e ao júri.
Encontramos na prática revolucionária e na vida do proletariado consciente valores como a solidariedade, a coragem, o senso de responsabilidade, a lucidez, a tenacidade.
Encontramos, da mesma maneira, o federalismo ou a democracia real das organizações operárias e anarquistas, que promovem a disciplina, o espírito de iniciativa e o respeito pela democracia revolucionária – isto é, a possibilidade, para todas as correntes sinceramente ligadas à criação da sociedade comunista, de se expressar, de criticar, e assim aperfeiçoar a teoria e a prática revolucionárias.
A base revolucionária que estabelecemos como imperativo, evidentemente nos dispensa de toda moralidade diante do inimigo, a burguesia, que, para se defender, faz pesar sobre os revolucionários as interdições de sua moral burguesa.
É bastante claro que, nesse campo, apenas o objetivo dita a nossa conduta. Isso significa que, com o reconhecimento desse objetivo, e sendo ele estabelecido cientificamente, os meios envolvem somente técnicas. Estas, entretanto, só podem ser consideradas meios se estiverem adaptadas ao fim, ao objetivo perseguido.
Isso não significa que os meios não importam, e também não se trata de uma justificativa dos meios. Rejeitamos a fórmula equivocada: “Os fins justificam os meios”, e dizemos, mais simplesmente: “Os meios só existem e só são escolhidos tendo em vista o fim a que estão vinculados, adaptados, e não precisam ser justificados diante do inimigo e em função da moral do inimigo”.
Esses meios devem ser necessariamente concebidos no quadro de nossa moral, visto que estão de acordo com nosso ideal. Tal ideal, o comunismo libertário, exige a revolução; esta, por sua vez, exige a tomada de consciência das massas, estimuladas pela organização anarquista.
Por exemplo, os meios exigem a solidariedade, a coragem, o senso de responsabilidade etc. – aspectos que mencionamos anteriormente como virtudes de nossa moral.
Há um outro aspecto sobre o qual precisamos nos deter. Trata-se de um aspecto de nossa moral que pode ser associado a um determinado sentido de solidariedade, e que, de fato, resume nossa moral: a verdade. É normal que enganemos nosso inimigo, a burguesia, que utiliza contra nós todo tipo de mentira. No entanto, entre companheiros e para as massas, é imprescindível dizer sempre a verdade.
Como isso poderia ser diferente, sendo que precisamos, sobretudo, elevar a consciência e, assim, o conhecimento e o juízo das massas?
Aqueles que procederam de outra forma só conseguiram aviltar e desencorajar as massas, fazer com que elas perdessem qualquer senso de verdade, de análise e de crítica.
O cinismo imoralista não tem nada de proletário ou de revolucionário. É a expressão dos elementos decadentes da burguesia que constatam o vazio da moral oficial, mas que são incapazes de encontrar uma moral saudável no meio existente. O imoralista é aparentemente livre em todos os seus movimentos. Contudo, ele não sabe aonde vai; depois de enganar os outros, ele engana a si mesmo.
Não basta ter um objetivo, é preciso ter uma bússola.
A elaboração de uma moral no seio das massas conscientes e, mais ainda, no seio do movimento comunista libertário, na própria ação, contribui para reforçar o edifício da ideologia revolucionária e aportar uma importante contribuição na preparação de uma nova cultura, que nega a cultura burguesa.
[1] “Noyautage”, no original em francês, que literalmente significa “infiltração”; fiz a mesma opção que a tradução espanhola pelo termo “inserção”, mais utilizado na América Latina. (N.E.)