Guilherme Falleiros
Tente mudar o passado
Existe um disco de 1985 da banda Cólera, bastante conhecido entre os punks, chamado “Tente Mudar o Amanhã”. Um título que soa como uma proposta romântica, revolucionária, adolescente... Ao mesmo tempo, uma proposta que antevê uma catástrofe, o colapso está próximo – e temos de fazer alguma coisa a respeito.
Para além do romantismo, já foi bem dito que, se você quer mudar o amanhã, é preciso mudar o presente antes. Não adianta ficar esperando a “revolução” para, aí sim, transformar suas práticas de vida. Transformar as práticas é transformá-las agora. Ainda assim, em meio a essa concepção pragmática e bastante vívida, muitos se orientam por uma visão catastrófica do progresso... uma linha reta evolutiva (ainda que seja apenas da “nossa civilização”) é aceita como “dada” e, por causa dela, a vida está à beira do colapso.
O problema é que, ao atacar o progressismo desenvolvimentista, alguns críticos acabam “comprando” a linearidade histórica presente na própria ideia de progresso que querem negar. Antepor o primitivo ao civilizado, o original ao transviado, o “bom selvagem” ao cidadão burguês: para criticar o “presente”, baseiam-se na própria ideia de passado fixo e natural, constituída a serviço desse “presente”. Um “presente” que é, na verdade, ausente, já que nele estamos sempre voltados para o futuro, um presente alienado que transcende o nosso alcance.
Gosto de repetir que todo dado é dado por alguém, portanto também é mudado por alguém.
Toda pesquisa científica, e nisso se enquadra a pesquisa histórica, é ao mesmo tempo uma descoberta e uma invenção (coisa que já foi dita pelo antropólogo da ciência Bruno Latour). Novos dados são achados, vindos de outros que os deixaram lá, e nesse encontro são também inventados por outros que os acham.
Ou, em outras palavras, tudo que alguém dá a você se transforma com você por vários motivos: porque aquilo se torna parte de você e você torna-se parte daquilo; porque você também está em relação com outras pessoas diferentes daquela que lhe deu aquilo; porque você tem liberdade de desviar; e porque você não precisa pagar sua “dívida” no mesmo preço e na mesma hora.
Uma tradição é passada de pessoas para outras, mas essas pessoas não necessariamente a reproduzem da mesma forma que era antes e, ao mudá-la, afetam também as próprias pessoas que as passaram e com quem estariam em dívida. Não uma dívida financeira, mas uma gratidão, uma dívida de mão dupla e nunca inteiramente “paga”, pois as “pessoas do passado” também podem ser gratas às do “presente” por aceitarem algo de seu modo de vida.
Mesmo que essas “pessoas do passado” estejam “mortas” no sentido “materialista” e cartesiano do termo, seus espíritos podem mudar, suas histórias podem mudar, seu próprio corpo pode mudar de maneiras variadas. Alguns povos canibais da América do Sul, até bem pouco tempo atrás, comiam seus parentes falecidos, tornando-os, com isso, parte de si mesmos. Outros por aí gostam de embalsamar e enrolar seus mortos em trapos especiais, transformando-os em múmias.
Enfim, ao mudar o presente, muda-se também o passado. O presente tem duplo ou triplo sentido: o que está aí agora, nesse exato momento; o que foi dado por alguém; a presença de alguém do passado no presente: porque todo presente carrega algo essencial ou substancial daquele que deu, mistura as pessoas, é uma presença mista de quem estaria supostamente ausente.
Se a história é inventada ao mesmo tempo que é transmitida e descoberta, a perspectiva científica sobre isso, contudo, nem sempre aceita que “todo dado é dado por alguém”. Ainda perdura, mesmo em correntes críticas das ciências, a noção de que existe um “mundo real”, “lá fora”, uma realidade “nua e crua”, separada do “mundo ideal”, dos conceitos, dos símbolos, das ideias. A mente está, ao menos desde Descartes, separada do mundo*.
_ Veja bem, não quero dizer contra isso que “as ideias” são a única realidade ou que “a realidade não existe”: pelo contrário, quero dizer, contra o cartesianismo, que a mente e o mundo se misturam. Como diria Gregory Bateson, a mente não é limitada pela pele.
Entretanto, estamos acostumados a aprender na maioria das escolas que a ciência da história descobre dados brutos, que não são dados por alguém mas por coisas, realidades fixas no passado, simplesmente reveladas porque “já estavam lá”.
Assim, mitifica-se a ciência como uma “dona da verdade”, como a única capaz de descobrir “a vida como ela é”**. E a História trataria do passado fixo, “como ele foi”.
Entretanto, se todo dado é dado por alguém, o conhecimento não é neutro nem totalmente desinteressado. É comum buscarmos no passado legitimidade política para o presente. Nesse processo, a fim de demonstrar quem passou o que para quem e – assim, se se tem ou não posse legítima do que foi passado – podem surgir conflitos já que cada um transforma o passado a seu modo. Muitos mitos e histórias são usados nesse sentido. Assim como a história oral de habitantes de uma região de um antigo quilombo pode ser usada para legitimar a posse da terra por eles, da mesma forma mitos da “Cobra Grande” na bacia amazônica posicionam os povos que os contam numa cadeia de poderes políticos conforme sua posição no rio, ou mesmo a história dos “Pais Fundadores” e da independência dos Estados Unidos da América busca legitimar esse país como um defensor da democracia com direitos expansionistas.
É comum também que os mitos falem de coisas que não acontecem mais, mas cujos efeitos estão perenes e que podem voltar a acontecer. Por exemplo, o mito de Adão e Eva, que fala que vivíamos num paraíso e, por pecado, fomos postos a trabalhar – mas a salvação pode acontecer, basta trabalhar muito... Ou o mito das “Três Raças” no Brasil, que mostra uma origem conflituosa que juntou “brancos”, “negros” e “índios” os quais, finalmente, vivem em democracia – mas o Estado é necessário, sempre alerta, para evitar a volta das injustiças do “passado fixo” e “distante”... Os Xavante, povo que vive no meio do Brasil, têm um mito sobre dois adolescentes criadores que se transformavam em animais e inventaram várias das espécies de animais e plantas conhecidas; por serem tão mutantes e assustarem a todos, os dois foram mortos – mas nada garante que não possam voltar e vários rituais realizam, no presente, sua vida passada.
O problema não é essa busca de legitimação presente em histórias e mitos e mesmo suas contradições poderem parecer injustas e falsificadoras (como o mito das “Três Raças” e outros). O problema é quando o passado é transformado em algo absoluto e imutável e, pior ainda, universal – já que a realidade está separada, alienada, está “lá fora”, apenas esperando por ser descoberta. Nesse sentido não há mera disputa por legitimidade ou pela “história verdadeira”, mas sim a invenção de origens inquestionáveis que justificam tudo. Em vez da variedade de histórias, busca-se na ciência*** uma história absoluta, que garanta a supremacia de um argumento sobre outro. Em vez de histórias que vão e voltam no tempo, apenas uma história linear.