Título: Anarquismo – Socialismo
Data: 1895
Notas: Titulo Original: Anarquismo — Socialismo. Tradução e Revisão por André Tunes @Nucleo de Estudos Autonomo Anarco Comunista.
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.

Semanário para o Anarquismo e Socialismo – é isso que diz nosso jornal.


Anarquismo é a finalidade que perseguimos: a ausência de dominação e do Estado; a liberdade do indivíduo. O socialismo é o meio pelo qual queremos alcançar e garantir essa liberdade: solidariedade, compartilhamento e trabalho cooperativo.


Algumas pessoas dizem que invertemos as coisas ao fazer do anarquismo nossa finalidade e do socialismo nosso meio. Eles veem a anarquia como algo negativo, como a ausência de instituições, enquanto o socialismo indica uma ordem social positiva. Eles pensam que a parte positiva deve ser o fim, e a negativa o meio que pode nos ajudar a destruir qualquer coisa que nos impede de atingir o fim. Essas pessoas não entendem que a anarquia não é apenas uma ideia abstrata de liberdade, mas que nossas noções de vida livre e atividade livre incluem muito do que é concreto e positivo. Haverá trabalho – com um propósito e justamente distribuído; mas será apenas um meio para desenvolver e fortalecer nossas ricas forças naturais, para impactar em nossos semelhantes humanos, a cultura, e a natureza, e para desfrutar as riquezas da sociedade em sua plenitude.


Quem não é cegado pelos dogmas dos partidos políticos reconhecerá que o anarquismo e o socialismo não se opõem, mas são co-dependentes. O verdadeiro trabalho cooperativo e a verdadeira comunidade só podem existir onde os indivíduos são livres, e os indivíduos livres só podem existir onde as necessidades são satisfeitas através da solidariedade fraterna.


É imperativo lutar contra os falsos clamores social-democratas de que o anarquismo e o socialismo são tão opostos como “fogo e água”. Aqueles que clamam tais coisas geralmente argumentam assim:


Socialismo significa “socialização”. Isso significa que a sociedade, um termo vago que geralmente abrange todos os seres humanos que habitam a terra, será amalgamada, unificada e centralizada. Os supostos “interesses da humanidade” se tornam a lei mais alta, e os interesses específicos de certos grupos sociais e indivíduos se tornam secundários. O anarquismo, por outro lado, significa individualismo, ou seja, o desejo dos indivíduos de reafirmar o poder sem limites; implica atomização e egoísmo. Como resultado, temos opostos incompatíveis: socialização e sacrifício individual de um lado; individualidade e egocentrismo do outro.


Eu acho que é possível ilustrar as desvantagens desses pressupostos através de uma simples alegoria. Imagine um povo que experimenta sol e chuva. Se alguém sugerir que a única maneira de proteger o povo contra a chuva é construindo um enorme telhado que cobre tudo e que estará sempre lá, não importa se chove ou não, então esta seria uma solução “socialista” de acordo com os social-democratas. Por outro lado, se alguém sugerir que, em caso de chuva, cada indivíduo deve tomar um dos guarda-chuvas do povo e aqueles que chegam tarde é simplesmente má sorte, então esta seria uma solução “anarquista”. Para nós, socialistas anarquistas, ambas as soluções nos parecem ridículas. Nem queremos forçar todos os indivíduos sob um teto comum e não queremos acabar com socos por guarda-chuvas. Quando for útil, podemos compartilhar um teto comum – desde que possa ser removido quando não é útil. Ao mesmo tempo, todos os indivíduos podem ter seu próprio guarda-chuva, contanto que saibam como cuidar deles. E para aqueles que querem se molhar – bem, não vamos forçá-los a ficar secos.


Deixando as alegorias de lado, o que precisamos é o seguinte: associações da humanidade em assuntos que dizem respeito aos interesses da humanidade; associações de um povo em particular em assuntos que dizem respeito aos interesses de um povo em particular; associações de grupos sociais em particular em assuntos que dizem respeito aos interesses de grupos sociais em particular; associações de duas pessoas em particular em assuntos que dizem respeito aos interesses de duas pessoas em particular; individualização em assuntos que dizem respeito aos interesses do indivíduo.


Em vez do Estado nacional e do Estado mundial que sonham os social-democratas, nós anarquistas queremos uma ordem livre de associações e companhias múltiplas, entrelaçadas, coloridas. Esta ordem será baseada no princípio de que todos os indivíduos estão mais próximos de seus próprios interesses, e que suas camisas estão mais perto deles do que seus casacos. Raramente será necessário abordar toda a humanidade para lidar com um problema específico. Portanto, não há necessidade de um parlamento global ou qualquer outra instituição global.


Há questões que dizem respeito a toda a humanidade, mas nesses casos os diferentes grupos encontrarão formas de chegar a soluções em comum. Tomemos o caso do transporte internacional e seus horários complicados como exemplo. Aqui, os representantes de cada país encontram soluções apesar da ausência de um poder coordenador superior. A razão é simples: a necessidade exige. Não é, portanto, surpreendente que eu ache que o Reichskursbuch é a única publicação burocrática digna de leitura[1]. Estou convencido que este livro receberá mais honras no futuro do que os livros de leis de todas as nações juntas!


Outras questões que requerem atenção global são as medidas, os termos científicos e técnicos, e as estatísticas, que são de grande importância para o planejamento econômico e outros fins. (Embora, eles são muito menos importantes do que pensam os social-democratas, que querem torná-los no trono sobre o qual construir a dominação global do povo). Aqueles que não estão condenados à ignorância pelas condições que os poderosos forçam, logo farão uso apropriado das estatísticas sem nenhuma instituição global. Haverá provavelmente uma organização global de algum tipo que compila e compara dados estatísticos diferentes, mas não desempenhará um papel muito significativo e nunca constituirá uma força política poderosa.


Há interesses comuns dentro de uma nação? Há alguns: a linguagem, literatura, artes, costumes e rituais, todos têm características nacionais específicas. No entanto, em um mundo sem dominação, sem “territórios anexados” e a ideia de “terra nacional” (terra que deve ser defendida e expandida), tais interesses não significarão o que significam hoje. O conceito de “trabalho nacional”, por exemplo, desaparecerá completamente. O trabalho será estruturado de formas que não seguem a linguagem ou a etnografia. Para as condições de trabalho nas comunidades locais, tanto a geografia como a geologia são muito importantes. Mas o que nossos Estados-nação têm a ver com essas realidades? (Quanto às diferenças de linguagem, são muito menos desafiadoras do que geralmente se imagina).


Falando de trabalho, há diferentes correntes dentro do campo anarquista. Alguns anarquistas propagam o direito ao livre consumo. Acreditam que todos os indivíduos devem produzir de acordo com suas habilidades e consumir de acordo com suas necessidades. Eles mantêm que ninguém além do indivíduo pode saber quais são suas habilidades e necessidades. A visão é ter armazéns preenchidos pelo trabalho voluntário de acordo com as necessidades das pessoas. O trabalho será feito porque cada indivíduo compreenderá que a satisfação das necessidades de todos requer um esforço coletivo. As estatísticas e informações sobre condições de trabalho em comunidades específicas fornecerão orientações sobre quanto produzir e quanto trabalho será necessário, levando em conta tanto a tecnologia como a força de trabalho geral. A necessidade de operários será anunciada publicamente para todos os que são qualificados. Aqueles que se recusam a trabalhar – total ou parcialmente – mesmo quando poderiam, vão se encontrar em um ostracismo social.


Eu acredito que este é um resumo preciso e imparcial das ideias dos comunistas. Agora eu quero explicar porque considero estas noções de organização do trabalho insuficientes e injustas.


Não acredito que sejam impossíveis. Acredito que o comunismo e o direito ao livre consumo podem existir. No entanto, acredito que muitas pessoas escolherão não trabalhar. Ostracismo social não lhes importará – podem assegurar apoio mútuo e respeito entre seus pares.


Embora este não é o maior problema. O maior problema é que uma nova autoridade moral será criada; uma autoridade moral que declara como “os melhores seres humanos” aqueles que trabalham mais duro, aqueles que estão preparados para fazer o trabalho mais difícil e sujo, e aqueles que fazem sacrifícios pelos fracos, os preguiçosos, e os aproveitadores. A restrição de tal moral e as recompensas sociais que promete serão muito piores e mais perigosas do que a restrição mais aceitável que conhecemos: o egoísmo. Eu cheguei a esta opinião após muita contemplação. Uma sociedade baseada na restrição da moral será de longe mais unidimensional e injusta do que uma sociedade baseada na restrição do interesse pessoal.


Anarquistas que compartilham essa visão veem uma conexão entre o trabalho dos indivíduos e seu consumo. Eles querem organizar o trabalho com base no egoísmo natural. Isso significa que aqueles que trabalham irão fazê-lo primeiramente para si mesmos. Em outras palavras, aqueles que se juntam a uma linha particular de trabalho o farão porque esperam certos benefícios pessoais disso; aqueles que trabalham mais do que outros, porque têm mais necessidades para satisfazer; aqueles que fazem o trabalho mais difícil e sujo (trabalho que sempre terá que ser feito, mesmo se é de uma maneira menos terrível do que hoje) Eles vão fazer isso porque, ao contrário de hoje, este trabalho será o mais valorizado e pago mais alto.


A crítica a este tipo de organização do trabalho é principalmente tripla: primeiro, vê-lo como uma injustiça contra o intelectualmente ou fisicamente fraco; segundo, teme que as riquezas individuais serão acumuladas e que novas formas de exploração surgirão; terceiro, preocupa-se que uma classe exclusiva de produtores obterá e defenderá privilégios.


Eu considero que todas essas preocupações são infundadas. É certo que haverá diferenciação do trabalho. No entanto, se as pessoas são bem-educadas e seus talentos bem nutridos, então todos eles vão encontrar facilmente um emprego que é adequado às suas qualificações. Alguns acharão que o trabalho intelectual é adequado, outros, trabalho manual, etc. Aqueles que não podem trabalhar – os deficientes, os idosos – serão providos de muitas maneiras, assim como as crianças são providas. O princípio do apoio mútuo será central.


Será impossível para os indivíduos acumularem riquezas dirigindo a exploração, pois todos em uma sociedade anarquista compreenderão que o uso comum da terra e dos meios de produção é do seu interesse individual. Como resultado, aqueles que trabalham mais podem obter vantagens em termos de propriedade pessoal, mas não obterão nenhum meio de exploração.


Finalmente, nenhum grupo ganha nada por se tornar exclusivo. Eles serão boicotados instantaneamente. Se um determinado grupo obtivesse alguma vantagem em uma determinada área de produção, novos produtores apareceriam e não demoraria muito para que se restabelecesse o equilíbrio justo. Quando os trabalhadores vão e vêm livremente e quando há real livre concorrência entre seres humanos iguais, então as desigualdades permanentes tornam-se impossíveis.


Não é inconcebível que a organização do trabalho, como delineei, possa adotar as duas formas simultaneamente em diferentes regiões ou em diferentes campos de trabalho. A experiência prática determinará em breve o caminho mais viável. Em todo caso, o objetivo de ambas as formas é o mesmo: a liberdade do indivíduo com base na solidariedade econômica. Não há razão para discutir sobre os detalhes organizacionais da sociedade futura. É muito mais importante combinar nossas forças para estabelecer as condições sociais que permitam as experiências práticas que determinarão esses assuntos. Anarquia não é um sistema sem vida de pensamentos pré-fabricados. Anarquia é vida; a vida que nos espera depois de termos nos livrado do jugo.

[1]Reichskursbuch: antigo horário de trens nacionais alemães.