Guy Debord
A Sociedade do Espetáculo
Capitulo I
A separação consumada
E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.
(Feuerbach, prefácio à segunda edição de
Essência do Cristianismo.)
1
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação.
2
As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto pseudomundo à parte, objeto de exclusiva contemplação. A especialização das imagens do mundo encontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.
3
O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade, e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio fato de este setor ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; e a unificação que realiza não é outra coisa senão uma linguagem oficial da separação generalizada.
4
O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.
5
O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efetiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou.
6
O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um suplemento ao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos – o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são, identicamente, a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.
7
A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que se cindiu em realidade e imagem. A prática social, perante a qual se põe o espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de fazer aparecer o espetáculo como sua finalidade. A linguagem do espetáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última desta produção.
8
Não se pode opor abstratamente o espetáculo e a atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é efetivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, e retoma em si própria a ordem espetacular dando-lhe uma adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.
9
No mundo realmente invertido, a verdade é um momento que é falso.
10
O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível.
11
Para descrever o espetáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a sua dissolução, é preciso distinguir artificialmente elementos iinseparáveis. Ao analisar o espetáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espetacular, no sentido em que se pisa o terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espetáculo. Mas o espetáculo não é outra coisa senão o sentido da prática total de uma formação socioeconômica, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.
12
O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.
13
O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.
14
A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculosa. No espetáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio.
15
Enquanto indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, e enquanto setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.
16
O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.
17
A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o “ter” efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, diretamente dependente do poderio social, por ele moldada. Somente nisto em que ela não é, lhe é permitido aparecer.
18
Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.
19
O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.
20
A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica espetacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou- os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se torna opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraíso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.
21
À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.
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O fato de o poder prático da sociedade moderna se ter desligado de si próprio, e ter edificado para si um império independente no espetáculo, não se pode explicar senão pelo fato de esta prática poderosa continuar a ter falta de coesão, e permanecer em contradição consigo própria.
23
É a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espetáculo. O espetáculo é, assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida. O mais moderno é também aí o mais arcaico.
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O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o autorretrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é esse produto necessário do desenvolvimento técnico olhado como um desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, a forma que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. Se o espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos “meios de comunicação de massa”, que são a sua manifestação superficial mais esmagadora, pode parecer invadir a sociedade como uma simples instrumentação, esta não é de fato nada de neutro, mas a instrumentação mesmo que convém ao seu automovimento total. Se as necessidades sociais da época em que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfação senão pela sua mediação, se a administração desta sociedade e todo o contato entre os homens já não se podem exercer senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo, é porque esta “comunicação” é essencialmente unilateral; de modo que a sua concentração se traduz no acumular nas mãos da administração do sistema existente os meios que lhe permitem prosseguir esta administração determinada. A cisão generalizada do espetáculo é inseparável do Estado moderno, isto é, da forma geral da cisão na sociedade, produto da divisão do trabalho social e órgão da dominação de classe.
25
A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, tinha construído uma primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária. O espetáculo moderno exprime, pelo contrário, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se absolutamente ao possível. O espetáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermédio do refinamento incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos gestos, desde então dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se encontraram.
26
Com a separação generalizada do trabalhador e do seu produto perde-se todo o ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, toda a comunicação pessoal direta entre os produtores. Na senda do progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se o atributo exclusivo da direção do sistema. O êxito do sistema econômico da separação é a proletarização do mundo.
27
Pelo próprio êxito da produção separada enquanto produção do separado, a experiência fundamental ligada nas sociedades primitivas a um trabalho principal está a deslocar-se, no pólo do desenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, a inatividade. Mas esta inatividade não está em nada liberta da atividade produtiva: depende desta, é a submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora da atividade, e no quadro do espetáculo toda a atividade é negada, exatamente como a atividade real foi integralmente captada para a edificação global desse resultado. Assim, a atual “libertação do trabalho”, o aumento do lazer, não é de modo algum libertação do trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho. Nada da atividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.
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O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento funda a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias”. O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.
29
A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo se representa perante o mundo, e lhe é superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível no próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado mas o reúne como separado.
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A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em nenhum lugar, porque o espetáculo está em toda a parte.
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O trabalhador não se produz a si próprio, ele produz um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam monstram-se a nós em todo o seu vigor.
32
O espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta de alienação. A expansão econômica é principalmente a expansão desta produção industrial precisa. O que cresce com a economia, movendo-se para si própria, não pode ser senão a alienação que estava justamente no seu núcleo original.
33
O homem separado do seu produto produz cada vez mais poderosamente todos os detalhes do seu mundo e, assim, encontra-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto mais a sua vida é agora seu produto, tanto mais ele está separado da sua vida.
34
O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.
Capitulo II
Mercadoria como espetáculo
Porque apenas como categoria universal do ser social total é que a mercadoria pode ser entendida em sua essência autêntica. Apenas nesse contexto a reificação decorrente da relação mercantil adquire um significado decisivo, tanto para a evolução objetiva da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se expressa... Essa submissão cresce ainda mais porque, quanto mais aumentam a racionalização e a mecanização do processo de trabalho, tanto mais a atividade do trabalhador perde seu caráter de atividade para tornar-se uma atitude contemplativa.
(Lukãcs , em História e Consciência de Classe)
35
Por esse movimento essencial do espetáculo, que consiste em retomar nele tudo o que existia na atividade humana em estado fluido, para possuí-lo em estado coagulado, como coisas que se tornaram o valor exclusivo em virtude da formulação pelo avesso do valor vivido, é que reconhecemos nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem, à primeira vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo sendo tão complexa e cheia de sutilezas metafísicas, a mercadoria.
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O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis” se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como sensível por excelência.
37
O mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que produzem.
38
A tão evidente perda da qualidade, em todos os níveis, dos objetos que a linguagem espetacular utiliza e das atitudes que a ela ordena apenas traduz o caráter fundamental da produção real que afasta a realidade: sob todos os pontos de vista, a forma-mercadoria é a igualdade confrontada consigo mesma, a categoria do quantitativo. Ela desenvolve o quantitativo e só pode se desenvolver nele.
39
Esse desenvolvimento que exclui o qualitativo também está sujeito, como desenvolvimento, à passagem qualitativa: o espetáculo significa que ele transpôs o limiar de sua própria abundância; isto só é verdade localmente em alguns lugares, mas já é verdade em escala universal, que é a referência original da mercadoria, referência que seu movimento prático confirmou, ao unificar a Terra como mercado mundial.
40
O desenvolvimento das forças produtivas foi a história real inconsciente que construiu e modificou as condições de existência dos grupos humanos — até então condições de sobrevivência — e também a ampliação destas condições: a base econômica de todos os seus empreendimentos. O âmbito mercantil constituiu, no interior de uma economia natural, um excedente em relação à sobrevivência. A produção de mercadorias, que implica a troca de produtos diferentes entre produtores independentes, permaneceu por muito tempo artesanal, contida numa atividade econômica marginal, na qual sua verdade quantitativa ainda está dissimulada. Entretanto, nas situações em que encontrou as condições sociais do grande comércio e da acumulação de capitais, ela assumiu o domínio total da economia. A economia toda tornou-se então o que a mercadoria tinha mostrado ser durante essa conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. Essa exibição incessante do poder econômico sob a forma de mercadoria, que transfigurou o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em assalariado, resultou cumulativamente em uma abundância na qual a questão primeira da sobrevivência está, sem dúvida, resolvida, mas resolvida de um modo que faz com que ela sempre torne a aparecer, ela se apresenta de novo num grau superior. O crescimento econômico libera as sociedades da pressão natural, que exigia sua luta imediata pela sobrevivência; mas, agora, é do libertador que elas não conseguem se liberar. A independência da mercadoria estendeu-se ao conjunto da economia, sobre a qual ela impera. A economia transforma o mundo, mas o transforma apenas em mundo da economia. À pseudonatureza na qual trabalho humano se alienou exige prosseguir seu serviço infinitamente. Como esse serviço só é julgado e absolvido por ele mesmo, ele submete, como seus servidores, a totalidade dos esforços e dos projetos socialmente lícitos. A abundância das mercadorias, isto é, da relação mercantil, já não pode ser senão a sobrevivência ampliada.
41
A dominação da mercadoria sobre a economia exerceu-se primeiro de um modo oculto, pois a própria economia, como base material da vida social, era despercebida e incompreendida, a exemplo do parente com quem convivemos e que não conhecemos. Numa sociedade em que a mercadoria concreta é rara ou minoritária, o domínio aparente do dinheiro se apresenta como o de um emissário munido de plenos poderes que fala em nome de uma potência desconhecida. Com a revolução industrial, a divisão fabril do trabalho e a produção em massa para o mercado mundial a mercadoria aparece como uma força que vem ocupar a vida social. É então que se constitui a economia política, como ciência dominante e como ciência da dominação.
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O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura. Nos lugares menos industrializados, seu reino já está presente em algumas mercadorias célebres e sob a forma de dominação imperialista pelas zonas que deram o desenvolvimento da produtividade. Nessas zonas avançadas, o espaço social é invadido pela superposição contínua de camadas geológicas de mercadorias. Nesse ponto da “segunda revolução industrial”, o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada. Todo o trabalho vendido de uma sociedade se torna globalmente a mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir. Para conseguir isso, é preciso que essa mercadoria total retorne fragmentadamente ao indivíduo fragmentado, absolutamente separado das forças produtivas que operam como um conjunto. Nesse ponto, a ciência da dominação tem que se especializar: ela se estilhaça em sociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia etc., e controla a autorregulação de todos os níveis do processo.
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Na fase primitiva da acumulação capitalista, “a economia política só vê no proletário o operário”, que deve receber o mínimo indispensável para conservar sua força de trabalho; jamais o considera “em seus lazeres, em sua humanidade”. Esse ponto de vista da classe dominante se inverte assim que o grau de abundância atingido na produção das mercadorias exige uma colaboração a mais por parte do operário. Subitamente lavado do absoluto desprezo com que é tratado em todas as formas de organização e controle da produção, ele continua a existir fora dessa produção, aparentemente tratado como adulto, com uma amabilidade forçada, sob o disfarce de consumidor. Então, o humanismo da mercadoria se encarrega dos “lazeres e da humanidade” do trabalhador, simplesmente porque agora a economia política pode e deve dominar essas esferas como economia política. Assim, “a negação total do homem” assumiu a totalidade da existência humana.
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O espetáculo é uma permanente Guerra do Ópio para fazer com que se aceite identificar bens às mercadorias; Conseguir que a satisfação com a sobrevivência aumente de acordo com as leis do próprio espetáculo. Mas, se a sobrevivência consumível é algo que deve aumentar sempre, é porque ela não para de conter em si a privação. Se não há nada além da sobrevivência ampliada, nada que possa frear seu crescimento, é porque essa sobrevivência não se situa além da privação: é a privação tornada mais rica.
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Com a automação, que é ao mesmo tempo o setor mais avançado da indústria moderna e o modelo que resume perfeitamente sua prática, é preciso que o mundo da mercadoria supere esta contradição: a instrumentação técnica que suprime objetivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo conservar o trabalho como mercadoria e como único lugar de origem da mercadoria. Para que a automação, ou qualquer outra forma menos extrema de crescimento da produtividade do trabalho, não diminua o tempo de trabalho social necessário na escala da sociedade, é necessário criar novos empregos. O setor terciário, de serviços, é a imensa extensão das linhas do exército que distribui e promove as mercadorias atuais; o imperativo de organização desse trabalho de suporte, com a mobilização dessas forças supletivas, decorre da própria artificialidade das necessidades relacionada a tais mercadorias.
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O valor de troca só pôde se formar como agente do valor de uso, mas as armas de sua vitória criaram as condições de sua dominação autônoma. Ao mobilizar todo uso humano e ao assumir o monopólio de sua satisfação, ele conseguiu dirigir o uso. O processo de troca identificou-se com os usos possíveis, os sujeitou. O valor de troca, condottiere do valor de uso, acaba guerreando por conta própria.
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Essa constante da economia capitalista que é a baixa tendencial do valor de uso desenvolve uma nova forma de privação dentro da sobrevivência ampliada. Esta não se torna liberada da antiga penúria, pois exige a participação da grande maioria dos homens, como trabalhadores assalariados, na busca infinita de seu esforço; todos sabem que devem submeter-se a ela ou morrer. É a realidade dessa chantagem: o uso sob sua forma mais pobre (comer, morar) já não existe a não ser aprisionado na riqueza ilusória da sobrevivência ampliada, que é a base real da aceitação da ilusão geral no consumo das mercadorias modernas. O consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral.
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O valor de uso que estava implicitamente compreendido no valor de troca deve ser agora proclamado de forma explícita, na realidade invertida do espetáculo, justamente porque à realidade efetiva desse valor de uso está corroída pela economia mercantil superdesenvolvida; uma pseudojustificativa torna-se necessária para a falsa vida.
49
O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. O dinheiro dominou a sociedade como representação da equivalência geral, isto é, do caráter intercambiável dos bens múltiplos, cujo uso permanecia incomparável. O espetáculo é seu complemento moderno desenvolvido, no qual a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco, como uma equivalência geral dá a que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que apenas se olha, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é apenas o servidor do pseudo-uso, mas já em si mesmo o pseudo-uso da vida.
50
O resultado concentrado do trabalho social, no momento da abundância econômica, torna-se aparente e submete toda realidade à aparência, que é agora o seu produto. O capital já não é o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação o estende até a periferia sob a forma de objetos sensíveis. Toda a extensão da sociedade é o seu retrato.
51
A vitória da economia autônoma deve ser ao mesmo tempo o seu fracasso. As forças que ela desencadeou suprimem a necessidade econômica que foi à base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento econômico infinito, só pode estar substituindo a satisfação das primeiras necessidades humanas, sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudonecessidades que se resumem na única pseudonecessidade de manutenção de seu reino. Mas a economia autônoma se separa para sempre da necessidade profunda na medida em que ela sai do inconsciente social que dependia dela sem o saber. “Tudo o que é consciente se gasta. O que é inconsciente permanece inalterado. Mas este, quando libertado, também não cai em ruínas?” (Freud).
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No momento em que a sociedade descobre que depende da economia, a economia, de fato, depende da sociedade. Esse poder subterrâneo, que cresceu até parecer soberano, também perdeu sua força. No lugar em que havia o isso econômico deve haver o eu. O sujeito só pode emergir da sociedade, isto é, da luta que existe nela mesma, Sua existência possível depende dos resultados da luta de classes que se revela como o produto e o produtor da fundação econômica da história.
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A consciência do desejo e o desejo da consciência são o mesmo projeto que, sob a forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, que os trabalhadores tenham a posse direta de todos os momentos de sua atividade. Seu contrário é a sociedade do espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma no mundo que ela criou.
Capitulo III
Unidade e divisão na aparência
Nova polêmica acirrada aparece no país, no campo da filosofia, a respeito dos conceitos “um se divide em dois” e “dois se fundem em um”. Esse debate é a luta entre os que são pró e os que são contra a dialética materialista, luta entre duas concepções de mundo: a concepção proletária e a concepção burguesa. Quem sustenta que a lei fundamental das coisas é que “um se divide em dois” está do lado da dialética materialista; quem sustenta que a lei fundamental das coisas é que “dois se fundem em um” está contra a dialética materialista. Os dois lados traçaram entre si uma nítida linha de demarcação, e seus argumentos são diametralmente opostos. Essa polêmica reflete no plano ideológico a aguda e complexa luta de classes que ocorre na China e no mundo.
(Le Drapeau rouge de Pequim, 21 de setembro de 1964)
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O espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a sociedade, ele constrói sua unidade sobre o esfacelamento. Mas a contradição, quando emerge no espetáculo, é, por sua vez, desmentida por uma inversão de seu sentido; de modo que a divisão é mostrada unitária, ao passo que a unidade é mostrada dividida.
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A contradição oficial se apresenta como a luta de poderes que se constituíram para a gestão do mesmo sistema socioeconômico e que, na verdade, são partes da unidade real; isso tanto em escala mundial quanto dentro de cada nação.
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As falsas lutas espetaculares das formas rivais do poder separado são ao mesmo tempo reais, na medida em que expressam o desenvolvimento desigual e conflitante do sistema, os interesses relativamente contraditórios das classes, ou das sub-divisões de classes que integram o sistema, e definem sua própria participação no poder do sistema. O desenvolvimento da economia mais avançada é o confronto entre determinadas prioridades. Da mesma forma, a gestão totalitária da economia por uma burocracia de Estado e a situação dos países que se viram colocados na esfera da colonização ou da semicolonização são definidas por particularidades consideráveis na modalidade da produção e do poder. No espetáculo, essas diversas oposições podem aparecer segundo critérios diferentes, como sociedades totalmente distintas. Mas, mas na condição real de setores particulares, a verdade de sua particularidade reside no sistema universal que as contêm: no movimento único que transformou o planeta em seu campo, o capitalismo.
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A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetáculo. Nos lugares onde a base material ainda está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudobens a desejar, também oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução. O espetáculo específico do poder burocrático que comanda alguns países industriais, faz parte do espetáculo total, como sua pseudonegação geral, e seu sustentáculo. Visto em suas diversas localizações, o espetáculo mostra com clareza especializações totalitárias do discurso e da administração sociais, mas estas acabam se fundindo, no nível do funcionamento global do sistema, em uma divisão mundial das tarefas espetaculares.
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A divisão das tarefas espetaculares conserva o caráter geral da ordem existente, mas conserva sobretudo o polo dominante de seu desenvolvimento. A raiz do espetáculo está no terreno da economia que se tornou abundante, e daí vêm os frutos que tendem afinal a dominar o mercado espetacular, a despeito das barreiras protecionistas ideológico-policiais de qualquer espetáculo local com pretensões autárquicas.
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O movimento de banalização que, sob a diversão furta-cor do espetáculo, domina mundialmente a sociedade moderna, domina-a também em cada ponto em que o consumo desenvolvido das mercadorias multiplicou na aparência os papéis e os objetos a escolher. A sobrevivência da religião e da família — a qual continua sendo a principal forma da herança do poder de classe —, e, por isso, da repressão moral que elas garantem, podem combinar-se como uma só coisa com a afirmação redundante do gozo deste mundo, sendo este mundo produzido justamente apenas como pseudogozo que contém em si a repressão. À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento dessa matéria-prima.
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A vedete do espetáculo, a representação espetacular do homem vivo, ao concentrar em si a imagem de um papel possível, concentra pois essa banalidade. A condição de vedete é a especialização do vivido aparente, o objeto de identificação com a vida aparente sem profundidade, que deve compensar o estilhaçamento das especializações produtivas de fato vividas. As vedetes existem para representar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres para agir globalmente. Elas encarnam o resultado inacessível do trabalho social, imitando subprodutos desse trabalho que são mágicamente transferidos acima dele como sua finalidade: o poder e as férias, a decisão e o consumo que estão no início e no fim de um processo indiscutido. Num caso, é o poder governamental que se personaliza em pseudovedete; no outro, é a vedete do consumo que se submete a plebiscito como pseudopoder sobre o vivido. Mas, assim como essas atividades da vedete não são realmente globais, também não são variadas.
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Como vedete, o agente do espetáculo levado à cena é o oposto do indivíduo, é o inimigo do indivíduo nele mesmo tão evidentemente como nos outros. Aparecendo no espetáculo como modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas. A vedete do consumo, embora represente exteriormente diferentes tipos de personalidade, mostra cada um desses tipos como se tivesse igual acesso à totalidade do consumo, e também como capaz de encontrar a felicidade nesse consumo. A vedete da decisão deve possuir o estoque completo do que foi admitido como qualidades humanas. Assim, entre elas as divergências oficiais são anuladas pela semelhança oficial, que é a pressuposição de sua excelência em tudo. Khrutchev tornou-se general para decidir a batalha de Koursk não no momento da luta, mas no vigésimo aniversário dela, quando era chefe de Estado. Kennedy foi orador até pronunciar seu próprio elogio fúnebre, já que Théodore Sorensen continuava naquele momento a redigir para o sucessor os discursos cujo estilo tanto ajudaram a reconhecer a personalidade do falecido. As pessoas admiráveis em quem o sistema se personifica são conhecidas por aquilo que não são; tornaram-se grandes homens ao descer abaixo da realidade da vida individual mínima. Todos sabem disso.
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A falsa escolha em meio à abundância espetacular, escolha que reside na justaposição de espetáculos concorrentes e solidários e na justaposição dos papéis (principalmente expressos e incorporados por objetos) que são ao mesmo tempo exclusivos e imbricados, desenvolve-se como luta de qualidades fantasmáticas destinadas a incitar a adesão à banalidade quantitativa. Renascem assim falsas oposições arcaicas, regionalismos ou racismos encarregados de transfigurar em superioridade ontológica fantástica a vulgaridade dos lugares hierárquicos no consumo. Recompõe-se a interminável série de confrontos ridículos, que mobilizam um interesse sub-ludico, espécie de esporte eleitoral. Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas.
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Sob as oposições espetaculares esconde-se a unidade da miséria. Se formas diversas da mesma alienação se combatem sob as máscaras da escolha total, é porque todas foram construídas sobre as contradições reais reprimidas. Conforme as necessidades do estágio particular da miséria que o espetáculo nega e mantém, ele existe sob forma concentrada ou sob forma difusa. Em ambos os casos, ele não passa de uma imagem de unificação feliz cercada de desolação e pavor: ocupa o centro tranquilo da desgraça.
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O espetacular concentrado pertence essencialmente ao capitalismo burocrático, embora possa ser importado como técnica de poder estatal em economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avançado. De fato, a propriedade burocrática está concentrada, no sentido em que o burocrata individual só tem relação com a posse da economia global por intermédio da comunidade burocrática, como membro dessa comunidade. Além disso, a produção das mercadorias, ali menos desenvolvida, também se apresenta sob uma forma concentrada: a mercadoria que a burocracia controla é o trabalho social total, e o que ela revende à sociedade é a sobrevivência como um todo. A ditadura da economia burocrática não pode deixar às massas exploradas nenhuma margem significativa de escolha, pois ela teve de escolher tudo. Qualquer outra escolha que lhe seja exterior, referente à alimentação ou à música, representa a escolha de sua destruição completa. Essa ditadura tem que ser acompanhada de violência permanente. A imagem imposta do bem, em seu espetáculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra-se normalmente num só homem, que é a garantia da coesão totalitária. Com essa vedete absoluta é que todos devem identificar-se magicamente, ou desaparecer. Porque se trata do senhor de seu não consumo, e da imagem heróica de um sentido aceitável para a exploração absoluta, que é de fato a acumulação primitiva acelerada pelo terror. Se cada chinês tem de aprender Mao e, assim, tornar-se Mao, é porque não há outra coisa para ser. Onde o espetacular concentrado domina, a polícia também domina.
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O espetacular difuso acompanha a abundância de mercadorias, o desenvolvimento não perturbado do capitalismo moderno. No caso, cada mercadoria considerada separadamente é justificada em nome da grandeza da produção da totalidade dos objetos, cujo espetáculo é um catálogo apologético. Afirmações inconciliáveis se chocam no palco do espetáculo unificado da economia abundante; diferentes mercadorias célebres sustentam simultaneamente seus projetos contraditórios de planificação da sociedade, em que o espetáculo dos carros exige um tráfego perfeito que destrói as velhas cidades, ao passo que o espetáculo da própria cidade precisa dos bairros-museus. Logo, a satisfação, já problemática, que é considerada como pertencente ao consumo do conjunto é desde logo falsificada pelo fato que o consumidor real só poder tocar diretamente numa sequência de fragmentos dessa felicidade mercantil; a qualidade atribuída ao conjunto está forçosamente ausente desses fragmentos.
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Cada mercadoria específica luta por si mesma, não pode reconhecer as outras, pretende impor-se em toda parte como se fosse a única. O espetáculo é então o canto épico desse confronto, que nenhuma queda de Ilion pode concluir. O espetáculo não exalta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões. É nessa luta cega que cada mercadoria, ao seguir sua paixão, realiza de fato na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que também é o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astúcia da razão mercantil, o que é particular da mercadoria gasta-se no combate, ao passo que a forma-mercadoria caminha para sua realização absoluta.
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A satisfação que a mercadoria abundante já não pode dar no uso começa a ser procurada no reconhecimento de seu valor como mercadoria: é o uso da mercadoria bastando a si mesmo; para o consumidor, é a efusão religiosa diante da liberdade soberana da mercadoria. Ondas de entusiasmo por determinado produto, apoiado e lançado por todos os meios de comunicação, propagam-se com grande rapidez. Um estilo de roupa surge de um filme; uma revista lança lugares da moda, que por sua vez lançam as mais variadas promoções. No momento em que a massa de mercadorias caminha para a aberração, O gadget é a expressão do fato de o próprio aberrante tornar-se uma mercadoria especial. Nos chaveiros-brindes, por exemplo, que não são comprados mas oferecidos junto com a venda de objetos de valor, ou que decorrem de intercâmbio em circuito próprio, é possível perceber a manifestação de uma entrega mística à transcendência da mercadoria. Quem coleciona chaveiros que acabam de ser fabricados para serem colecionados acumula as indulgências da mercadoria, sinal glorioso de sua presença real entre os fiéis. O homem reificado exibe a prova de sua intimidade com a mercadoria. Como nos arroubos dos que entram em transe ou dos agraciados por milagres de velho fetichismo religioso,o fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitação fervorosa. O único uso que ainda se expressa aqui é o uso fundamental da submissão.
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Sem dúvida, a pseudonecessidade imposta pelo consumo moderno não pode ser contrastada a nenhuma necessidade ou desejo autêntico que não seja, ele mesmo, produzido pela sociedade e sua história. Mas a mercadoria abundante aí está como a ruptura absoluta do desenvolvimento orgânico das necessidades sociais. Sua acumulação automática libera um artificial ilimitado, diante do qual o desejo vivo fica desarmado. A força cumulativa de um artificial independente provoca por toda parte a falsificação da vida social.
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Na imagem da feliz unificação da sociedade pelo consumo, a divisão real fica apenas suspensa até a próxima não realização no consumível. Cada produto específico, que deve representar a esperança de um atalho fulgurante para enfim aceder à terra prometida do consumo total, é apresentado cerimoniosamente como a singularidade decisiva. Mas, como no caso da propagação instantânea da moda de nomes aparentemente aristocráticos que vão ser dados a quase todos os indivíduos de uma mesma faixa etária, o objeto do qual se espera um poder singular só pode ser oferecido à devoção da massa porque foi feito em um número de exemplares suficientemente grande para ser consumido de modo maciço. O caráter prestigioso desse produto decorre apenas do fato de ele ter sido colocado por um momento no centro da vida social, como o mistério revelado da finalidade da produção. O objeto que era prestigioso no espetáculo torna-se vulgar na hora em que entra na casa desse consumidor, ao mesmo tempo que na casa de todos os outros. Revela tarde demais sua pobreza essencial, que lhe vem naturalmente da miséria de sua produção. Mas já aparece um outro objeto que traz a justificativa do sistema e a exigência de ser reconhecido.
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A satisfação denuncia-se como impostura no momento em que se desloca, em que segue a mudança dos produtos e a das condições gerais de produção. Aquilo que, com o mais perfeito descaramento, afirmou sua própria excelência definitiva transforma-se no espetáculo difuso e também no espetáculo concentrado. É apenas o sistema que tem de continuar: Stalin tanto quanto a mercadoria fora de moda são denunciados por aqueles mesmos que os impuseram. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior. Cada queda de uma figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava unanimemente, e que não passava de um aglomerado de solidões sem ilusões.
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O que o espetáculo oferece como perpétuo é fundado na mudança, e deve mudar com sua base. O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido. Para ele, nada para; este é seu estado natural e, no entanto, o mais contrário à sua propensão.
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A unidade irreal que o espetáculo proclama é a máscara da divisão de classes sobre a qual repousa a unidade real do modo de produção capitalista. O que obriga os produtores a participarem da construção do mundo é também o que os afasta dela. O que põe em contato os homens liberados de suas limitações locais e nacionais é também o que os separa. O que obriga ao aprofundamento do racional é também o que alimenta o irracional da exploração hierárquica e da repressão. O que constitui o poder abstrato da sociedade constitui sua não liberdade concreta.
Capitulo IV
O proletariado como sujeito e como representação
O igual direito de todos aos bens e prazeres deste mundo, a destruição de toda autoridade, a negação de todo freio moral, eis aí[1], se descermos ao fundo das coisas, a razão de ser da insurreição de 18 de março e o programa da terrível associação que lhe forneceu um exército.
(Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18 de março)
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O movimento real que suprime as condições existentes governa a sociedade a partir da vitória da burguesia na economia e, visivelmente, desde a tradução política dessa vitória. O desenvolvimento das forças produtivas rompeu as antigas relações de produção, e toda a ordem estatal se desfaz em poeira. Tudo o que era absoluto torna-se histórico.
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Ao serem atirados na história, ao terem de participar das tarefas e lutas que a constituem, os homens se veem obrigados a encarar suas relações sem ilusão. Essa história não tem um objeto distinto do que ela realiza sobre si mesma, embora a última visão metafísica inconsciente da época histórica possa olhar a progressão produtiva, através da qual a história se desenrolou, como o próprio objeto da história. O sujeito da história só pode ser o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se mestre e possuidor de seu mundo que é a história, e existindo como consciência de seu jogo.
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Como uma corrente única, desenvolvem-se as lutas de classe da longa época revolucionária inaugurada pela ascensão da burguesia e pela ideia de história, a dialética, a ideia que já não se detém na busca do sentido do sendo, mas que se eleva ao conhecimento da dissolução de tudo o que é; e no movimento dissolve toda separação.
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Hegel já não tinha de interpretar o mundo, mas a transformação do mundo. Ao interpretar apenas a transformação, Hegel nada mais é que a realização filosófica da filosofia. Ele quer compreender um mundo que se faz a si mesmo. Esse pensamento histórico ainda é à consciência que sempre chega atrasada, e que enuncia a justificativa post festum. Assim, ele só superou a separação em pensamento. O paradoxo que consiste em atrelar o sentido de toda realidade à sua realização histórica, e ao mesmo tempo revelar esse sentido constituindo-se como realização da história, decorre do simples fato de o pensador das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVI ter buscado em sua filosofia apenas reconciliar-se com o resultado dessas revoluções. “Até como filosofia da revolução burguesa, ela não expressa todo o processo dessa revolução, mas apenas sua conclusão derradeira. Nesse sentido, é uma filosofia não da revolução, mas da restauração” (Karl Korsch, Thèses sur Hegel et la révolution). Hegel fez, pela última vez, o trabalho do filósofo, “a glorificação do que existe”; mas, para ele, o que existia só podia ser a totalidade do movimento histórico. À posição exterior do pensamento, na verdade mantida, só podia ser disfarçada por sua identificação com um projeto prévio do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e quis o que fez, e cuja realização coincide com o presente. Assim, a filosofia que termina no pensamento da história só pode glorificar seu mundo negando-o, pois, para tomar a palavra, é-lhe necessário supor terminada essa história total à qual ela reduziu tudo e encerrada a sessão do único tribunal no qual pode ser proferida a sentença da verdade.
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Quando, por sua própria existência em atos, o proletariado manifesta que esse pensamento da história não foi esquecido, o desmentido da conclusão é também a confirmação do método.
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O pensamento da história só pode ser salvo ao se tornar pensamento prático; e a prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser nada menos que a consciência histórica agindo sobre a totalidade de seu mundo. Todas as correntes teóricas do movimento operário revolucionário são resultantes do confronto crítico com o pensamento hegeliano, seja em Marx, seja em Stirner e Bakunin.
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O caráter inseparável da teoria de Marx e do método hegeliano é inseparável do caráter revolucionário dessa teoria, isto é, de sua verdade. Sob este aspecto, essa primeira relação foi em geral ignorada ou mal entendida, ou ainda denunciada como o ponto fraco do que se tornava falaciosamente uma doutrina marxista. Bernstein, em Socialisme théorique et Social-démocratie pratique, revela claramente essa ligação do método dialético com a tomada de posição histórica, ao deplorar as previsões pouco científicas do Manifesto de 1847 sobre a iminência da revolução proletária na Alemanha: “Essa autossugestão histórica, tão equivocada que nem o mais incauto visionário político conseguiria ter pior, seria incompreensível em Marx, que na época já havia estudado seriamente economia, se não descobríssemos nela o resquício da dialética antitética hegeliana, da qual Marx, tanto quanto Engels, nunca conseguiu se livrar de todo. Naqueles tempos de efervescência geral, isso lhe foi fatal”.
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À inversão que Marx efetua para “salvar por transferência” o pensamento das revoluções burguesas não consiste em substituir banalmente pelo desenvolvimento materialista das forças produtivas o percurso do Espírito hegeliano que vai ao encontro de si mesmo no tempo, Espírito cuja objetivação é idêntica à sua alienação e cujos ferimentos históricos não deixam cicatrizes. A história que se tornou real já não tem fim. Marx demoliu a posição separada de Hegel diante do que acontece e a contemplação de um agente supremo exterior, seja ele quem for. A teoria só conhece aquilo que ela faz. Ao contrário, no pensamento dominante da sociedade atual, a contemplação do movimento da economia é a herança não invertida da parte não dialética da tentativa hegeliana de um sistema circular: é uma aprovação que perdeu a dimensão do conceito e que já não precisa de um hegelianismo para se justificar, pois o movimento que se trata de louvar é apenas uma parte do mundo, sem ideia, cujo desenvolvimento automático domina o todo. O projeto de Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que surge no desenvolvimento cego das forças produtivas meramente econômicas deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro ato desse fim da pré-história: “De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a própria classe revolucionária”.
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O que liga estreitamente a teoria de Marx ao pensamento científico é a compreensão racional das forças que se exercem na sociedade. Mas ela é fundamentalmente um mais- além do pensamento científico, no qual este só será conservado se for superado: trata-se de uma compreensão da luta, não da lei. “Conhecemos uma única ciência: a ciência da his- tória”, diz A ideologia alemã.
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A época burguesa, que quer fundamentar cientificamente a história, esquece o fato de que a ciência disponível teve que ser fundamentada historicamente na economia. A história, ao contrário, não depende radicalmente desse conhecimento, a não ser que ela seja história econômica. Aliás, à inocuidade dos cálculos socialistas que pensavam ter estabelecido a periodicidade exata das crises mostra o quanto o papel da história na economia – ou seja, o processo global que modifica seus próprios dados científicos básicos – pô de ser desprezado pela observação científica; desde que a intervenção constante do Estado conseguiu compensar as tendências à crise, o mesmo tipo de raciocínio vê nesse equilíbrio uma harmonia econômica definitiva. Se o projeto de superar a economia e de apossar-se da história precisa conhecer – e trazer para si – a ciência da sociedade, ele não pode ser em si científico. Neste último movimento que acreditou dominar a história atual por um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.
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As correntes utópicas do socialismo, embora fundadas historicamente na crítica da organização social existente, podem ser qualificadas de utópicas na medida em que rejeitam a história – isto é, a luta real em curso, tanto quanto o movimento do tempo para além da perfeição imutável de sua imagem de sociedade feliz –, mas não por terem rejeitado a ciência. Ao contrário: os pensadores utópicos estão inteiramente dominados pelo pensamento científico, tal como ele se impusera nos séculos anteriores. Buscam a realização desse sistema racional geral: não se consideram profetas desarmados, porque creem no poder social da demonstração científica e até, no caso de Saint-Simon, na tomada do poder pela ciência. Sombart pergunta: “Como queriam eles arrancar pela luta o que deve ser provado?”. No entanto, a concepção científica dos utópicos não alcança o entendimento de que grupos sociais têm interesses numa situação existente, forças para mantê-la, assim como formas de falsa consciência correspondentes a essas posições. Ela fica portanto muito aquém da realidade histórica do desenvolvimento da própria ciência, que foi em grande parte orientada pela demanda social proveniente de tais fatores, demanda que seleciona não apenas o que pode ser conhecido, mas também o que pode ser buscado.
Os socialistas utópicos, que continuaram presos ao modo de exposição da verdade científica, concebem essa verdade de acordo com a pura imagem abstrata dela, tal como se impusera num estágio muito anterior da sociedade. Como observava Sorel, os utópicos crêem descobrir e demonstrar as leis da sociedade a partir do modelo da astronomia. A harmonia pretendida por eles, hostil à história, decorre de uma tentativa de aplicar à sociedade a ciência menos dependente da história. Tenta fazer-se reconhecida com a mesma inocência experimental da doutrina de Newton, e o destino feliz sempre postulado “desempenha em sua ciência social papel análogo ao que compete à inércia na mecânica racional” (Matériaux pour une théorie du prolétariat).
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O lado determinista-científico do pensamento de Marx foi a brecha pela qual penetrou o processo de “ideologização”, enquanto ele ainda vivia, e sobretudo em sua herança teórica deixada ao movimento operário. A vinda do sujeito da história é adiada para depois, e a ciência histórica por excelência, a economia, tende de modo cada vez mais alargado a garantir a necessidade de sua própria negação futura. Mas, dessa forma, a prática revolucionária, única verdade dessa negação, é rechaçada para fora do campo da visão teórica. Por isso é Importante estudar com paciência o desenvolvimento econômico e admitir ainda, com tranquilidade hegeliana, a dor que dele advém, o que resulta num “cemitério de boas intenções”. Descobre-se que agora, segundo a ciência das revoluções, a consciência sempre chega cedo demais, e deverá ser ensinada. “A história mostrou que estávamos errados, nós e todos os que pensavam como nós. Mostrou claramente que o desenvolvimento econômico no continente estava então longe de se mostrar maduro...”, dirá Engels em 1895. Durante toda a vida, Marx manteve o ponto de vista unitário de sua teoria, mas a exposição dessa teoria manteve-se no terreno do pensamento dominante ao adotar a forma de críticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia política. Foi essa mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constituiu o “marxismo”.
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A falha na teoria de Marx é a falha da luta revolucionária do proletariado de sua época. A classe operária não decretou a revolução permanente na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencida no isolamento. Portanto, a teoria revolucionária ainda não atingira sua própria existência total. Ter sido obrigado a defendê-la e a explicá-la no trabalho erudito separado, no Museu Britânico, implicava uma perda na própria teoria. As justificativas científicas tiradas do futuro desenvolvimento da classe operária e a prática organizacional combinada com essas justificativas tornar-se-ão os obstáculos à consciência proletária num estágio mais avançado.
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Toda a insuficiência teórica na defesa científica da revolução proletária pode ser resumida, para o conteúdo e a forma da exposição, em uma identificação do proletariado com a burguesia do ponto de vista da tomada revolucionária do poder.
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Desde o Manifesto, a tendência a fundamentar uma demonstração da legalidade científica do poder proletário pela referência às experiências repetidas do passado obscurece o pensamento histórico de Marx, levando-o a sustentar uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção, provocado por lutas de classe que acabariam sempre “numa transformação revolucionária de toda a sociedade ou na destruição comum das classes em luta”. Mas, na realidade observável da história, da mesma forma que “o modo de produção asiático”, como Marx o constatava em outro lugar, conservou sua imobilidade a despeito de todos os confrontos de classes, assim também as revoltas de servos nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos na Antiguidade derrotaram os homens livres. O esquema linear perde de vista, primeiro, que a burguesia é a única classe revolucionária que sempre venceu; ao mesmo tempo, é a única para quem o desenvolvimento da economia foi causa e consequência de seu domínio sobre a sociedade. A mesma simplificação levou Marx a descuidar do papel econômico do Estado na gestão da sociedade de classes. Se a burguesia ascendente pareceu tornar a economia livre em relação ao Estado, foi apenas na medida em que o Estado antigo se confundia com o instrumento de uma opressão de classe em uma economia estática. A burguesia desenvolveu seu poder econômico autônomo no período medieval de enfraquecimento do Estado, no momento de fragmentação feudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que, pelo mercantilismo, começou a apoiar o desenvolvimento da burguesia, e que finalmente tornou-se seu Estado na hora do “laisser faire, laisser passer”, vai depois revelar-se dotado de um poder central na gestão calculada do processo econômico. Marx pudera descrever, no bonapartismo, esse esboço da burocracia estatal moderna, fusão do capital e do Estado, constituição de um “poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a sujeição social”, em que à burguesia desiste de toda vida histórica que não seja sua redução à história econômica das coisas e quer ser condenada ao mesmo nada político das outras classes”. Estão aqui colocadas as bases sociopolíticas do espetáculo moderno, que pela negativa define o proletariado como único pretendente à vida histórica.
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As duas únicas classes que correspondem efetivamente à teoria de Marx, as duas classes puras para as quais converge toda a análise em O capital – a burguesia e o proletariado – são também as duas únicas classes revolucionárias da história, mas em condições diferentes: a revolução burguesa foi feita; a revolução proletária é um projeto, nascido da base da revolução precedente, mas diferindo dela qualitativamente. Ao descuidar-se da originalidade do papel histórico da burguesia, mascara-se a originalidade do projeto proletário, que só pode atingir seus fins se assumir suas próprias cores e conhecer “a imensidão de suas tarefas”. A burguesia chegou ao poder porque é a classe da economia que se desenvolve. O proletariado só poderá ser o poder se ele se tornar a classe da consciência. O amadurecimento das forças produtivas não pode garantir tal poder, nem mesmo por meio da despossessão ampliada que esse amadurecimento provoca. A conquista Jacobina do Estado não pode ser o instrumento do proletariado. Nenhuma ideologia lhe pode servir para disfarçar objetivos parciais em objetivos gerais, porque ele não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efetivamente dele.
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Num período determinado de sua participação na luta do proletariado, Marx teve esperanças exageradas na previsão científica, a ponto de criar a base intelectual das ilusões do economicismo. Mas o fato é que ele, pessoalmente, não sucumbiu a essa ilusão. Em uma carta bem conhecida de 7 de dezembro de 1867, acompanhando um artigo no qual ele próprio critica O capital, artigo que Engels deveria passar para a imprensa como se viesse de um adversário, Marx expôs com clareza o limite de sua própria ciência: “... A tendência subjetiva do autor (fruto talvez de sua posição política e de seu passado), isto é, o modo como ele mesmo se representa e como apresenta aos outros o resultado último do movimento atual, do processo social atual, não tem nenhuma relação com sua análise real”. Assim, Marx, ao denunciar ele próprio as “conclusões tendenciosas” de sua análise objetiva, e pela ironia do “talvez” relativo às opções extracientíficas que se teriam imposto a ele, mostra ao mesmo tempo a chave metodológica da fusão dos dois aspectos.
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A fusão do conhecimento e da ação precisa realizar-se na própria luta histórica, de tal modo que cada um desses termos coloque no outro a garantia de sua verdade. A constituição da classe proletária como sujeito é a organização das lutas revolucionárias e a organização da sociedade no momento revolucionário: é aí que devem existir as condições práticas da consciência, nas quais a teoria da práxis se confirma tornando se teoria prática. Entretanto, esta questão central da organização foi a menos considerada pela teoria revolucionária na época em que se fundava o movimento operário, quando essa teoria ainda possuía o caráter unitário vindo do pensamento da história (e que ele se tinha dado como tarefa desenvolver até uma prática histórica unitária). A questão da organização é, ao contrário, o lugar da inconsequência dessa teoria, ao admitir o uso de métodos estatais e hierárquicos tirados da revolução burguesa. Em contrapartida, as formas de organização do movimento operário desenvolvidas com base nessa renúncia da teoria tenderam a impedir a permanência de uma teoria unitária, dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Essa alienação ideológica da teoria não pode mais reconhecer a confirmação prática do pensamento histórico unitário que ela traiu, quando tal confirmação surge na luta espontânea dos operários; ela só pode ajudar a reprimir-lhes a manifestação e a memória. Entretanto, essas formas históricas surgidas na luta são justamente o meio prático que faltava à teoria para que ela fosse verdadeira. São uma exigência da teoria, mas que não havia sido formulada teoricamente. O soviete não era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores era sua própria existência prática.
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Os primeiros êxitos da luta da Internacional a levavam a se libertar das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam. Mas a rápida derrota e a repressão fizeram com que passasse para o primeiro plano um conflito entre duas concepções da revolução proletária. Ambas contêm uma dimensão autoritária, que faz com que a auto-emancipação consciente da classe seja deixada de lado. De fato, a querela que se tornou inconciliável entre marxistas e bakuninistas era dupla, referindo-se não só ao poder na sociedade revolucionária mas também à organização do movimento no momento presente. Ao passar de um aspecto para o outro, as posições dos adversários se invertem. Bakunin combatia a ilusão de que as classes pudessem ser abolidas pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais doutos, ou dos assim considerados. Marx acreditava que um amadurecimento inseparável das contradições econômicas e da educação democrática dos operários reduziria o papel do Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas relações sociais que se imporiam objetivamente. Ele denunciava em Bakunin e seus adeptos o autoritarismo de uma elite conspiradora que se colocara deliberadamente acima da Internacional e tinha o intuito extravagante de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou daqueles que iriam se autodesignar como tais. De fato, Bakunin recrutava adeptos dentro dessa perspectiva: “Pilotos invisíveis dentro da tempestade popular, devemos dirigi-la, não por um poder ostensivo, mas pela ditadura coletiva de todos os aliados. Ditadura sem distintivo, sem título, sem direito oficial, e tanto mais forte quanto menos tiver as aparências do poder”. Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária, cada qual contendo uma crítica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da história, e instituindo-se elas próprias como autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente uma ou outra destas ideologias; em toda parte o resultado foi muitíssimo diferente do que se pretendia.
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O fato de ver o objetivo da revolução proletária como imediatamente presente constitui a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (pois, em suas variantes individualistas, as pretensões do anarquismo ficam irrisórias). Do pensamento histórico das lutas de classe modernas, o anarquismo coletivista só retém a conclusão, e sua exigência absoluta dessa conclusão também se expressa no desprezo deliberado pelo método. Assim, sua crítica da luta política ficou abstrata, ao passo que sua opção pela luta econômica só é afirmada pela ilusão de uma solução definitiva, arrancada de um só golpe nesse terreno, no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e afasta qualquer ideia a respeito do mal histórico. Essa fusão de todas as exigências parciais conferiu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições gerais de vida existentes, sem cair em uma especialização crítica privilegiada. Mas como essa fusão foi pensada no absoluto, de acordo com o capricho individual, antes de sua realização efetiva, ela condenou também o anarquismo a uma evidente incoerência. O anarquismo está condenado a repetir-se e torna a pôr em jogo, em cada luta, a mesma simples conclusão total, porque essa primeira conclusão era desde a origem identificada com a realização integral do movimento. Por isso, Bakunin podia escrever em 1873, ao deixar a Federação Jurassiana[2]: “Nos últimos nove anos foram tratadas no âmbito da Internacional mais idéias do que seria necessário para salvar o mundo, se é que bastam ideias para salvá-lo. Duvido que alguém possa inventar uma nova. Já não é hora de idéias, é hora de fatos e atos”. Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as idéias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas dessa passagem à prática já foram encontradas e não vão variar mais.
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Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário por sua convicção ideológica, reproduzem entre si essa separação das competências, ao criarem, em suas organizações, um terreno favorável à dominação informal dos propagandistas e defensores de sua própria ideologia, especialistas em geral tanto mais medíocres quanto mais sua atividade intelectual se propõe a repetir algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão mais favoreceu a autoridade incontrolada, na própria organização, de especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo liberado o mesmo tipo de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. Além disso, a recusa de considerar como são opostas as condições entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente fragmentação dos anarquistas no momento da decisão comum, como se vê no exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha, cerceadas e esmagadas em âmbito local.
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De forma mais ou menos explícita, o anarquismo autêntico mantém a ilusão da iminência permanente de uma revolução que, ao realizar-se instantaneamente, deve dar razão à ideologia e ao modo de organização prática que decorre da ideologia. De fato, em 1936, o anarquismo conduziu uma revolução social e o esboço, o mais avançado que se conheceu, de um poder proletário. Mesmo nessa circunstância é preciso observar, de um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do Exército. De outro lado, na medida em que essa revolução não se concluiu nos primeiros dias – pelo fato de existir um poder franquista na metade do país, fortemente apoiado pelo estrangeiro num momento em que o resto do movimento proletário internacional já fora vencido, e pelo fato de sobreviverem forças burguesas ou de outros partidos operários estatizantes no campo da República –, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as semi-vitórias da revolução, e nem ao menos conseguiu defendê-las. Seus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para pôr fim à guerra civil.
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O “marxismo ortodoxo” da Segunda Internacional é a ideologia científica da revolução socialista, que identifica toda a sua verdade com o processo objetivo da economia e com o progresso de um reconhecimento dessa necessidade por parte da classe operária educada pela organização. Essa ideologia recobra a confiança na demonstração pedagógica que caracterizara o socialismo utópico, mas acrescida de uma referência contemplativa ao curso da história: entretanto, essa atitude perdeu tanto a dimensão hegeliana da história total quanto a imagem imóvel da totalidade, presente na crítica utópica (no mais alto grau, em Fourier). Desse tipo de atitude científica, que só podia formular opções éticas de modo simétrico, provêm as asneiras de Hilferding quando afirma que reconhecer a necessidade do socialismo não fornece “nenhuma indicação sobre a atitude prática a ser adotada. Porque reconhecer uma necessidade é uma coisa, e pôr-se a serviço dessa necessidade é outra” (O capital financeiro). Aqueles que não entenderam que o pensamento unitário da história, para Marx e para o proletariado revolucionário, não se distinguia de uma atitude prática a adotar foram sempre vítimas da prática que haviam simultaneamente adotado.
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A ideologia da organização social-democrata a entregava ao poder dos professores que educavam a classe operária, e a forma de organização adotada era adequada a essa aprendizagem passiva. A participação dos socialistas da Segunda Internacional nas lutas políticas e econômicas era concreta, mas profundamente não-crítica. Era conduzida em nome da ilusão revolucionária, mas de acordo com uma prática manifestamente reformista. Assim, a ideologia revolucionária devia ser destruída pelo próprio sucesso de seus portadores. O fato de destacar, no movimento, deputados e jornalistas arrastava para o modo de vida burguês aqueles que já eram recrutados entre os intelectuais burgueses. A burocracia sindical transformava em corretores da força de trabalho, a ser vendida como mercadoria pelo preço justo, aqueles que haviam sido recrutados a partir das lutas dos operários industriais, de cujo meio provinham. Para que a atividade de todos guardasse algo de revolucionário, teria sido necessário que o capitalismo de então fosse incapaz de suportar economicamente esse reformismo que ele tolerava politicamente na agitação legalista. A ciência de todos eles garantia esse tipo de incompatibilidade; a história a desmentia a cada momento.
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Só o próprio desenvolvimento histórico podia demonstrar de forma incontestável essa contradição cuja realidade Bernstein, por ser o social-democrata mais afastado da ideologia política e o mais francamente ligado à metodologia da ciência burguesa, teve a honestidade de querer mostrar; o movimento reformista dos operários ingleses, ao abster-se de ideologia revolucionária, também o mostrara. Bernstein, embora cheio de outras ilusões, havia negado que uma crise da produção capitalista viesse miraculosamente empurrar os socialistas, que só aceitavam a herança da revolução se legitimada por essa sagração. O momento de profunda reviravolta social que surgiu com a Primeira Guerra Mundial, embora tenha sido fértil em tomada de consciência, demonstrou duas vezes que a hierarquia social-democrata não tinha conseguido educar revolucionariamente, não havia tornado teóricos os operários alemães: primeiro, quando a grande maioria do partido se juntou à guerra imperialista; segundo, quando, na hora da derrota, ela esmagou os revolucionários espartaquistas. O ex-operário Ebert ainda acreditava no pecado, pois confessava odiar a revolução “tanto quanto o pecado”. E o mesmo dirigente se mostrou um bom precursor da representação socialista que pouco depois devia se opor como inimigo absoluto ao proletariado da Rússia e de alhures, formulando o exato programa dessa nova alienação: “Socialismo quer dizer trabalhar muito.”
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Lenin foi apenas, como pensador marxista, um kautsquista fiel e consequente. Aplicou a ideologia revolucionária desse “marxismo ortodoxo” nas condições russas, que não permitiam a prática reformista que a Segunda Internacional conduzia. A direção exterior do proletariado, agindo por meio de um partido clandestino disciplinado, sujeito aos intelectuais que se tornaram “revolucionários profissionais”, constitui aqui uma profissão que não quer compactuar com nenhuma profissão dirigente da sociedade capitalista (aliás, o regime político czarista era incapaz de oferecer tal abertura, cuja base é um estágio avançado do poder da burguesia). Essa direção se torna então a profissão da direção absoluta da sociedade.
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O radicalismo ideológico autoritário dos bolcheviques estendeu-se em escala mundial com a guerra e com a queda da social-democracia internacional diante da guerra. O fim sangrento das ilusões democráticas do movimento operário fez do mundo inteiro uma Rússia. O bolchevismo, reinando sobre a primeira ruptura revolucionária que essa época de crise havia provocado, oferecia ao proletariado de todos os países seu modelo hierárquico e ideológico, para “falar em russo” com a classe dominante. Lenin não criticou o marxismo da Segunda Internacional por ser uma ideologia revolucionária, mas por ter deixado de ser essa ideologia.
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O mesmo momento histórico em que o bolchevismo triunfou por si próprio na Rússia, e em que a social-democracia lutou vitoriosamente pelo velho mundo, marca o nascimento completo de uma ordem de coisas que está no âmago da dominação do espetáculo moderno: a representação operária opôs-se radicalmente à classe.
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“Em todas as revoluções anteriores”, escrevia Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de dezembro de 1918, “os combatentes se enfrentavam de peito aberto: classe contra classe, programa contra programa. Na revolução atual, as tropas de proteção da antiga ordem não agem sob a insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um ‘partido social-democrata’. Se a questão central da revolução fosse colocada aberta e honestamente — capitalismo ou socialismo —, nenhuma dúvida, nenhuma hesitação seriam hoje possíveis para a grande massa do proletariado.” Assim, alguns dias antes de sua destruição, a corrente radical do proletariado alemão descobria o segredo das novas condições criadas por todo o processo anterior (para o qual a representação operária contribuíra muitíssimo): a organização espetacular da defesa da ordem existente, o reino social das aparências onde já nenhuma “questão central” pode ser colocada “aberta e honestamente”. Nesse estágio, a representação revolucionária do proletariado tornara-se ao mesmo tempo o fator principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade
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A organização do proletariado a partir do modelo bolchevique, que nascera do atraso russo e da omissão do movimento operário dos países avançados diante da luta revolucionária, encontrou também no atraso russo todas as condições que levavam essa forma de organização à inversão contra-revolucionária que ela continha inconscientemente em seu germe original; e a omissão reiterada da massa do movimento operário europeu diante do Hic Rhodus, hic salta[3] do período 1918-1920, omissão que incluía a destruição violenta de sua minoria radical, favoreceu o desenvolvimento completo do processo e deixou que o resultado mentiroso disso se afirmasse diante do mundo como a única solução proletária. A tomada do monopólio estatal da representação e da defesa do poder dos operários, que justificou o partido bolchevique, fez com que ele se tornasse o que era: o partido dos proprietários do proletariado, eliminando no essencial as formas anteriores de propriedade.
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Todas as condições da liquidação do czarismo levadas em conta na discussão teórica, sempre insatisfatória, das diversas tendências da social-democracia russa durante vinte anos — fraqueza da burguesia, peso da maioria camponesa, papel decisivo de um proletariado concentrado e combativo mas extremamente minoritário no país — revelaram afinal, na prática, sua solução através de um dado que não estava presente nas hipóteses: ao se apossar do Estado, a burocracia revolucionária que dirigia o proletariado forneceu à sociedade uma nova dominação de classe. A revolução estritamente burguesa era impossível; a “ditadura democrática dos operários e camponeses” não tinha sentido; o poder proletário dos sovietes não se podia manter ao mesmo tempo contra a classe dos camponeses proprietários, contra a reação nacional e internacional dos russos brancos, e contra sua própria representação exteriorizada e alienada como partido operário dos mestres absolutos do Estado, da economia, da expressão e, em breve, do pensamento. A teoria da revolução permanente de Trotsky e Parvus, à qual Lenin se aliou em abril de 1917, era a única a se tornar verdadeira para os países onde o desenvolvimento social da burguesia se atrasara, mas somente após a introdução desse fator desconhecido que era o poder de classe da burocracia. A concentração da ditadura nas mãos da representação suprema da ideologia foi defendida com a máxima consequência por Lenin em inúmeros confrontos da direção bolchevique. Lenin sempre tinha razão contra seus adversários quando sustentava a solução decorrente das opções anteriores do poder absoluto minoritário: a democracia recusada estatalmente aos camponeses também o devia ser aos operários, o que significava recusá-la aos dirigentes comunistas dos sindicatos, e de todo o partido, e afinal até a cúpula do partido hierárquico. No X Congresso, no momento em que o soviete de Kronstadt era abatido pelas armas e enterrado sob calúnia, Lenin pronunciava contra os burocratas de esquerda organizados na “Oposição Operária” esta conclusão, cuja lógica Stalin ia estender até a perfeita divisão do mundo: “Aqui, ou além com um fuzil, mas não com a oposição... Estamos fartos da oposição.”
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Mantida como única proprietária de um capitalismo de Estado, a burocracia garantiu primeiro seu poder interno por uma aliança temporária com o campesinato, depois de Kronstadt, no momento da “nova política econômica”; defendeu-o também no exterior, ao utilizar os operários filiados aos partidos burocráticos da Terceira Internacional como força de apoio da diplomacia russa, para sabotar todo movimento revolucionário e apoiar governos burgueses dos quais ela esperava obter apoio em política internacional (o poder do Kuomintang na China de 1925-1927, a Frente Popular na Espanha e na França etc.). Mas a sociedade burocrática devia perseguir sua própria realização exercendo o terror sobre o campesinato, para realizar a mais brutal acumulação primitiva capitalista jamais vista. Essa industrialização da época stalinista revela a realidade última da burocracia: ela é a continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil que mantém o trabalho-mercadoria. E a prova da economia independente, que domina a sociedade a ponto de recriar para seus próprios fins a dominação de classe que lhe é necessária: o que equivale a dizer que a burguesia criou um poder autônomo que, enquanto subsistir essa autonomia, pode até prescindir da burguesia. A burocracia totalitária não é “a última classe proprietária da história” no sentido de Bruno Rizzi, mas apenas uma classe dominante substituta da economia mercantil. A propriedade privada capitalista enfraquecida é substituída por um subproduto simplificado, menos diversificado, concentrado em propriedade coletiva da classe burocrática. Essa forma subdesenvolvida de classe dominante é também a expressão do subdesenvolvimento econômico; e tem como única perspectiva recuperar o atraso desse desenvolvimento em algumas regiões do mundo. O partido operário, organizado segundo o modelo burguês da separação, forneceu o quadro hierárquico-estatal a essa edição suplementar da classe dominante. Anton Ciliga observou em uma prisão de Stalin que “as questões técnicas de organização revelaram-se questões sociais” (Lénine et la Révolution).
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A ideologia revolucionária, a coerência do separado da qual o leninismo constitui o mais alto esforço voluntarista, detém a gestão de uma realidade que a rejeita. Por isso, o stalinismo voltará à sua verdade na incoerência. Nesse momento, a ideologia já não é uma arma, mas um fim. A mentira que não é desmentida torna-se loucura. A realidade tanto quanto o objetivo são dissolvidos na proclamação ideológica totalitária: tudo o que ela diz é o que é. É um primitivismo local do espetáculo, cujo papel é porém essencial ao desenvolvimento do espetáculo mundial. A ideologia que aqui se materializa não transformou economicamente o mundo, como o capitalismo chegado ao estágio da abundância; ela apenas transformou policialmente a percepção.
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A classe ideológico-totalitária no poder é o poder de um mundo invertido: quanto mais forte ela é, mais afirma que não existe, e sua força serve-lhe em primeiro lugar para afirmar sua inexistência. E modesta apenas nesse ponto, pois sua inexistência oficial também deve coincidir com o nec plus ultra do desenvolvimento histórico, que ao mesmo tempo seria devido a seu infalível comando. Espalhada por toda parte, a burocracia deve ser a classe invisível à consciência, de modo que toda a vida social se torna demente. A organização social da mentira absoluta decorre dessa contradição fundamental.
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O stalinismo foi o reino do terror na própria classe burocrática. O terrorismo que fundamenta o poder dessa classe deve atingi-la cambem, pois ela não possui nenhuma garantia ju rídica, nenhuma existência reconhecida como classe proprietária, que possa estender a cada um de seus membros. Sua propriedade real é dissimulada: ela só se tornou proprietária pela via da falsa consciência. A falsa consciência só mantém seu poder absoluto pelo terror absoluto, no qual todo verdadeiro motivo acaba se perdendo. Só coletivamente os membros da classe burocrática no poder têm direito de posse sobre a sociedade, como participantes de uma mentira fundamental: é preciso que desempenhem o papel de proletariado que dirige uma sociedade socialista; que sejam os atores fiéis ao texto da infidelidade ideológica. Mas a participação efetiva nesse ser mentiroso deve se ver reconhecida como uma participação verídica. Nenhum burocrata pode sustentar individualmente seu direito ao poder, porque provar que ele é um proletário socialista seria manifestar-se como o contrário do burocrata; e provar que é um burocrata é impossível, porque a verdade oficial da burocracia é não existir. Assim, cada burocrata fica na dependência absoluta de uma garantia central da ideologia, que reconhece uma participação coletiva em seu “poder socialista” de todos os burocratas que ela não esmaga. Se os burocratas considerados como um todo decidem tudo, a coesão de sua própria classe só pode ser garantida pela concentração de seu poder terrorista em uma única pessoa. Nessa pessoa reside a única verdade prática da mentira no poder: a fixação indiscutível de sua fronteira sempre retificada. Stalin decide sem recurso quem é, afinal, burocrata possuinte; isto é, quem deve ser chamado “proletário no poder” ou então “traidor a soldo do Mikado e de Wall Street”. Os átomos burocráticos só encontram a essência comum de seu direito na pessoa de Stalin. Stalin, esse soberano do mundo, se considera a pessoa absoluta, cuja consciência não admite espírito mais elevado. “O soberano do mundo possui a consciência efetiva do que ele é – a força universal da efetividade – na violência destruidora que exerce contra o Eu de seus súditos que lhe faz contraste.” É o poder que define o terreno da dominação e, ao mesmo tempo, é “o poder que devasta esse terreno”.
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Quando a ideologia, tornada absoluta pela posse do poder absoluto, transforma-se de conhecimento parcelar em mentira totalitária, o pensamento da história fica tão aniquilado que a própria história, no nível do conhecimento mais empírico, já não pode existir. A sociedade burocrática totalitária vive em um presente perpétuo, no qual tudo o que aconteceu só existe para ela como um espaço acessível à sua polícia. O projeto, já formulado por Napoleão, de “dirigir monarquicamente a energia das lembranças” encontrou sua concretização total em uma manipulação permanente do passado, não apenas nos significados mas também nos fatos. O preço dessa libertação em relação a toda realidade histórica é, porém, a perda da referência racional indispensável à sociedade histórica do capitalismo. Já se sabe o que a aplicação científica da ideologia enlouquecida pôde custar à economia russa, ao menos pelo exemplo de Lyssenko[4]. Essa contradição da burocracia totalitária administrando uma sociedade industrializada, dividida entre sua necessidade do racional e sua recusa do racional, constitui também uma de suas deficiências principais com relação ao desenvolvimento capitalista normal. Ao contrário deste, a burocracia não pode resolver a questão da agricultura, e lhe é inferior na produção industrial, planificada autoritariamente com base no irrealismo e na mentira generalizada.
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Entre as duas guerras, o movimento operário revolucionário foi aniquilado pela ação conjunta da burocracia stalinista e do totalitarismo fascista, que havia copiado a forma de organização do partido totalitário experimentado na Rússia. O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sítio da sociedade capitalista, pelo qual essa sociedade se salva e concede a si própria uma primeira racionalização de emergência, fazendo o Estado intervir maciçamente em sua gestão. Mas essa racionalização vem onerada pela imensa irracionalidade de seu meio. Embora o fascismo se dedique à defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação) ao reunir a pequena-burguesia e os desempregados assustados com a crise ou decepcionados com a impotência da revolução socialista, em si ele não é fundamentalmente ideológico. Apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação em uma comunidade definida por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. Seu ersatz [sucedâneo] decomposto do mito é retomado no contexto espetacular dos mais modernos meios de condicionamento e de ilusão. Assim, ele é um dos fatores de formação do espetáculo moderno. Sua parte na destruição do antigo movimento operário torna-o uma das forças fundadoras da sociedade presente; mas como o fascismo também é a forma mais custosa da manutenção da ordem capitalista, tinha normalmente que deixar o proscênio do palco ser ocupado pelos Estados capitalistas que desempenham papéis mais destacados, eliminado por formas mais racionais e mais fortes dessa ordem.
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Quando a burocracia russa conseguiu se desfazer dos vestígios da propriedade burguesa que entravavam seu império sobre a economia, desenvolver esta economia para seu próprio uso e ser reconhecida no exterior entre as grandes potências, ela quis desfrutar calmamente de seu próprio mundo, suprimir dele o componente arbitrário que se exercia sobre ela mesma. Então, ela denuncia o stalinismo que lhe deu origem. Mas tal denúncia permanece stalinista, arbitrária, inexplicada, e sempre corrigida, porque a mentira ideológica de sua origem nunca pode ser revelada. Assim, a burocracia não pode se liberalizar nem cultural nem politicamente, pois sua existência como classe depende de seu monopólio ideológico, o único título de propriedade de que dispõe. Decerto, a ideologia perdeu a paixão de sua afirmação positiva, mas o que lhe resta de trivialidade indiferente ainda tem essa função repressiva de barrar a mínima concorrência, de manter cativa a totalidade do pensamento. Assim, a burocracia está ligada a uma ideologia na qual já ninguém acredita. O que era terrorista tornou-se irrisório, mas até essa derrisão só pode ser mantida se conservar como pano de fundo o terrorismo do qual deseja livrar-se. Dessa forma, no momento em que a burocracia quer mostrar sua superioridade no terreno do capitalismo, ela confessa ser um parente pobre do capitalismo. Assim como sua história efetiva está em contradição com seu direito, e sua ignorância, grosseiramente mantida, em contradição com suas pretensões científicas, seu projeto de igualar-se à burguesia na produção de uma abundância mercantil é emperrado pelo fato de tal abundância trazer em si mesma uma ideologia implícita e ter como complemento normal uma liberdade sem limites para multiplicar falsas opções espetaculares, pseudoliberdade que é inconciliável com a ideologia burocrática.
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Nesse momento do desenvolvimento, o título de propriedade ideológica em mãos da burocracia desmorona em escala internacional. O poder que se estabelecera em âmbito nacional como modelo fundamentalmente internacionalista deve admitir que já não pode manter sua coesão enganosa além de cada fronteira nacional. O desenvolvimento econômico desigual experimentado pelas burocracias, com interesses concorrentes, que conseguiram possuir seu “socialismo” para além de um só país, levou ao confronto público e completo da mentira russa e da mentira chinesa. A partir desse ponto, cada burocracia no poder, ou cada partido totalitário candidato ao poder que o período stalinista deixou em algumas classes operárias nacionais, deve seguir seu próprio caminho. Às manifestações de negação interna que começaram a se afirmar diante do mundo com a revolta operária de Berlim Leste que opôs aos burocratas sua exigência de “um governo de metalúrgicos”, e que uma vez já chegaram até o poder nos Conselhos operários na Hungria, soma-se a decomposição mundial da aliança da mistificação burocrática. Este é, em última análise, o fator mais desfavorável ao desenvolvimento atual da sociedade capitalista. A burguesia está perdendo o adversário que objetivamente a sustentava, pois unificava de modo ilusório toda negação da ordem existente. Uma tal divisão do trabalho espetacular vê seu fim quando o papel pseudo-revolucionário se divide. O elemento espetacular da dissolução do movimento operário vai ser, por sua vez, dissolvido.
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Hoje, a ilusão leninista só tem como base as diversas tendências trotskistas, nas quais a identificação do projeto proletário com uma organização hierárquica da ideologia sobrevive inabalavelmente à experiência de todos os seus resultados. A distância entre o trotskismo e a crítica revolucionária da sociedade atual permite-lhe também uma distância respeitosa em relação a posições que já eram falsas quando se desgastaram numa luta real. Trotski foi fundamentalmente solidário com a alta burocracia até 1927, enquanto procurava apoderar-se dela para fazê-la retomar uma ação de fato bolchevique no exterior (sabe-se que nesse momento, para ajudar a enfraquecer o famoso “testamento de Lenin”, ele chegou a desmentir caluniosamente seu correligionário Max Eastman, que o havia divulgado). Trotski foi condenado por sua perspectiva fundamental: no momento em que a burocracia conhece a si mesma em seu resultado como classe contra-revolucionária no interior, ela deve escolher também ser contra-revolucionária no exterior, em nome da revolução. A luta posterior de Trotski por uma Quarta Internacional contém a mesma inconseqüência. Durante toda a vida ele recusou-se a reconhecer na burocracia o poder de uma classe separada, porque ele se tornara durante a segunda revolução russa [outubro de 1917] o adepto incondicional da forma bolchevique de organização. Quando Lukàcs, em 1923, afirmava que essa forma era a mediação enfim encontrada entre teoria e prática, em que os proletários deixavam de ser espectadores dos acontecimentos ocorridos em sua organização, mas conscientemente os escolhiam e viviam, ele descrevia como méritos do partido bolchevique tudo o que o partido bolchevique não era. Lukàcs ainda era, ao lado de seu profundo trabalho teórico, um ideólogo, falando em nome do poder mais vulgarmente exterior ao movimento proletário, acreditando e fazendo crer que ele mesmo se achava, com sua personalidade total, nesse poder como se fosse no seu próprio. Quando os fatos posteriores mostraram de que modo esse poder renega e suprime seus lacaios, Lukács, se renegando sem parar, demonstrou com nitidez caricatural com que coisa ele se tinha identificado: com o contrário dele mesmo e do que havia sustentado em História e consciência de classe. Lukàcs é a maior prova da regra fundamental de julgamento em relação a todos os intelectuais deste século: o que eles respeitam dá a exata medida de quão desprezível é sua própria realidade. Lenin não havia alimentado esse gênero de ilusões sobre sua atividade, ele que achava que “um partido político não pode examinar seus membros para ver se há contradições entre a filosofia destes e o programa do partido”. O partido real – do qual Lukàcs havia apresentado fora de hora o retrato ideal – só era coerente para uma tarefa precisa e parcial: tomar o poder do Estado.
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A ilusão neoleninista do trotskismo atual, por ser a todo momento desmentida pela realidade da sociedade capitalista moderna, tanto burguesa quanto burocrática, encontra um campo natural de aplicação privilegiado nos países “subdesenvolvidos” formalmente independentes. Neles, a ilusão de uma variante qualquer de socialismo estatal e burocrático é conscientemente manipulada pelas classes dirigentes locais como a ideologia do desenvolvimento econômico. A composição híbrida dessas classes se liga de modo mais ou menos nítido a uma gradação no espectro burguesia-burocracia. Ao jogar em escala internacional com os dois polos do poder capitalista existente e com seus compromissos ideológicos — sobretudo com o islamismo — que expressam a realidade híbrida de sua base social, essas classes acabam por retirar desse último subproduto do socialismo ideológico qualquer aspecto sério que não seja policial. Uma burocracia pode ser formada ao enquadrar a luta nacional e a revolta agrária dos camponeses: sua tendência então, como na China, é aplicar o modelo stalinista de industrialização a uma sociedade menos desenvolvida que a da Rússia de 1917. Uma burocracia capaz de industrializar a nação pode formar-se a partir da pequena-burguesia dos quadros do Exército que tomam o poder, como o mostra o exemplo do Egito. Em certos lugares, como na Argélia ao sair de sua guerra de independência, a burocracia, que se constituiu como direção paraestatal durante a luta, busca o ponto de equilíbrio de um compromisso para fundir-se com uma fraca burguesia nacional. Enfim, nas antigas colônias da África negra que continuam abertamente ligadas à burguesia ocidental, americana e europeia, uma burguesia se constitui — quase sempre a partir da força dos chefes tradicionais do tribalismo — para possuir o Estado : nesses países em que o imperialismo estrangeiro continua sendo o verdadeiro senhor da economia, chegou-se a um estágio em que os compradores receberam, em compensação por sua venda de produtos indígenas, a propriedade de um Estado indígena, independente diante das massas locais mas não diante do imperialismo. Nesse caso, trata-se de uma burguesia artificial que não é capaz de acumular, mas que simplesmente dilapida, tanto a parte de mais-valia do trabalho local que lhe cabe quanto os subsídios estrangeiros outorgados pelos Estados ou monopólios que são seus protetores. A evidência da incapacidade dessas classes burguesas para cumprirem a função econômica normal da burguesia faz surgir diante de cada uma delas uma subversão que tenta adaptar o modelo burocrático às particularidades locais e quer recolher sua herança. Mas o próprio sucesso de uma burocracia no seu projeto fundamental de industrialização contém necessariamente a perspectiva de seu fracasso histórico: ao acumular capital, ela acumula proletariado, e cria seu próprio desmentido, num país em que ele ainda não existia.
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Nesse desenvolvimento complexo e terrível que conduziu a época das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industriais perdeu toda a afirmação de sua perspectiva autônoma e, em última análise, suas ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Permanece irredutivelmente existente na alienação intensificada do capitalismo moderno: ele é a imensa maioria de trabalhadores que perderam todo poder sobre o uso de sua própria vida, e que, assim que tomam conhecimento disso, se redefinem como proletariado, o negativo em ação nessa sociedade. Esse proletariado é objetivamente reforçado pelo movimento de desaparecimento do campesinato, bem como pela extensão da lógica do trabalho fabril que se aplica a grande parte dos “serviços” e das profissões intelectuais. Esse proletariado ainda está subjetivamente afastado de sua consciência prática de classe, não apenas entre os empregados, mas também entre os operários que só conheceram a impotência e a mistificação da velha política. No entanto, quando o proletariado descobre que sua própria força exteriorizada concorre para o reforço permanente da sociedade capitalista, já não apenas sob a forma de seu trabalho, mas também sob a forma de sindicatos, de partidos ou de poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar, descobre também pela experiência histórica concreta que é a classe totalmente inimiga de toda exteriorização rígida e de toda especialização do poder. Ele traz em si a revolução que não pode deixar nada fora dela mesma, a exigência da dominação permanente do presente sobre o passado, e a crítica total da separação; e ele deve encontrar na ação a forma adequada disso. Nenhuma melhora quantitativa de sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é um remédio duradouro para sua insatisfação, pois o proletariado não pode se reconhecer com veracidade num mal particular que tenha sofrido, nem portanto na reparação de um mal particular, nem de um grande número desses males, mas apenas no mal absoluto de ter sido rejeitado para a margem da vida.
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Pelos novos sinais de negação, incompreendidos e falsificados pelo arranjo espetacular, que se multiplicam nos países mais avançados economicamente, já se pode concluir que uma nova era começou: passada a primeira tentativa de subversão operária, agora foi a abundância capitalista que fracassou. Quando as lutas antissindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiro pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadas da juventude lançam um primeiro protesto informe – no qual, entretanto, já está presente a recusa da antiga política especializada, da arte e da vida cotidiana – , aí estão as duas faces de uma nova luta espontânea que começa com feição criminosa. São o prenúncio do segundo assalto proletário contra a sociedade de classes. Quando os herdeiros desgarrados desse exército ainda imóvel reaparecem nesse terreno, que se tornou outro e permanece o mesmo, eles seguem um novo “general Ludd”[5] que, desta vez, os lança na destruição das máquinas do consumo permitido.
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“A forma política enfim descoberta sob a qual a emancipação econômica do trabalho podia ser realizada” tomou neste século uma forma nítida nos Conselhos operários revolucionários, concentrando neles todas as funções de decisão e de execução, e federando-se por meio de delegados responsáveis diante da base e substituíveis a qualquer momento. Sua existência efetiva ainda não passou de breve esboço, logo combatida e vencida por diferentes forças de defesa da sociedade de classes, entre as quais é preciso muitas vezes considerar a própria falsa consciência. Pannekoek insistia no fato de que a edificação de um poder dos Conselhos operários mais “propõe problemas” do que traz soluções. Mas esse poder é o lugar onde os problemas da revolução do proletariado podem encontrar sua verdadeira solução. E o lugar onde as condições objetivas da consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação direta ativa, na qual terminam a especialização, a hierarquia e a separação, na qual as condições existentes foram transformadas “em condições de unidade”. Aqui o sujeito proletário pode emergir de sua luta contra a contemplação: sua consciência é igual à organização prática que ela mesma se propôs, porque essa consciência é inseparável da intervenção coerente na história.
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No poder dos Conselhos, que deve suplantar internacionalmente qualquer outro poder, o movimento proletário é seu próprio produto, e esse produto é o próprio produtor. Ele é seu próprio fim. Só aí a negação espetacular da vida é, por sua vez, negada.
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O aparecimento dos Conselhos foi a realidade mais elevada do movimento proletário no primeiro quarto do século, realidade que passou despercebida ou disfarçada porque desaparecia com o resto do movimento que o conjunto da experiência histórica de então desmentia e eliminava. No novo momento da crítica proletária, esse resultado volta como o único aspecto não vencido do movimento vencido. A consciência histórica que sabe ter nos Conselhos seu único meio de existência pode reconhecê-los agora, já não na periferia do que reflui, mas no centro do que está em ascensão.
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Por todos esses motivos históricos, uma organização revolucionária existente antes do poder dos Conselhos — e ela tem de encontrar na luta sua própria forma — já sabe que não representa a classe. Deve apenas reconhecer-se como separação radical com o mundo da separação.
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A organização revolucionária é a expressão coerente da teoria da práxis que entra em comunicação não unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoria prática. Sua própria prática é a generalização da comunicação e da coerência nessas lutas. No momento revolucionário, em que a separação social se dissolve, essa organização deve reconhecer sua própria dissolução como organização separada.
121
A organização revolucionária só pode ser a crítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica formulada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta da organização revolucionária contra a sociedade de classes, as armas são a essência dos próprios combatentes: a organização revolucionária não pode reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade dominante. Ela tem de lutar sempre contra sua deformação no espetáculo reinante. O único limite da participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a auto-apropriação efetiva, por todos os seus membros, da coerência de sua crítica, coerência que deve se provar na teoria crítica propriamente dita e na relação entre esta e a atividade prática.
122
Quando a realização sempre mais avançada da alienação capitalista em todos os níveis, ao tornar sempre mais difícil aos trabalhadores reconhecerem e nomearem sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade de sua miséria, ou nada, a organização revolucionária deve ter aprendido que já não pode combater a alienação sob formas alienadas.
123
A revolução proletária depende inteiramente dessa necessidade: pela primeira vez, a teoria, como entendimento da prática humana, deve ser reconhecida e vivida pelas massas. Ela exige que os operários se tornem dialéticos e inscrevam seu pensamento na prática; por isso, pede aos homens sem qualidade muito mais do que a revolução burguesa pedia aos homens qualificados a quem ela delegava sua instalação: pois a consciência ideológica parcial edificada por uma parte da classe burguesa tinha como base essa parte central da vida social, a economia, na qual esta classe já estava no poder. O próprio desenvolvimento da sociedade de classes até a organização espetacular da não-vida leva pois o projeto revolucionário a tornar-se visivelmente o que ele já era essencialmente.
124
A teoria revolucionária é agora inimiga de toda ideologia revolucionária, e sabe que o é.
Capitulo V
Tempo e história
Ó fidalgos, a vida é breve...
Se vivemos, vivemos para andar sobre a cabeça dos reis.
Shakespeare (Henrique IV)
125
O homem, “o ser negativo que é apenas na medida em que suprime o Ser”, é idêntico ao tempo. A apropriação pelo homem de sua própria natureza é também sua apropriação do desenrolar do universo. “A própria história é uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem” (Marx). Inversamente, essa “história natural” só tem existência efetiva através do processo de uma história humana, da única parte que encontra esse todo histórico, como o telescópio moderno cujo alcance recupera no tempo a fuga das galáxias para a periferia do universo. A história sempre existiu, mas nem sempre sob forma histórica. A temporalização do homem, tal como se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo se manifesta e se torna verdadeiro na consciência histórica.
126
O movimento propriamente histórico, embora ainda oculto, começa na lenta e insensível formação da “natureza real do homem”, esta “natureza que nasce na história humana, no ato gerador da sociedade humana”. Mas a sociedade que então dominou uma técnica e uma linguagem, se já é o produto de sua própria história, tem consciência apenas de um presente perpétuo. Todo conhecimento, limitado à memória dos mais antigos, aí é conduzido pelos que estão vivos. Nem a morte nem a procriação são entendidas como lei do tempo. O tempo permanece imóvel, como um espaço fechado. Quando uma sociedade mais complexa chega a tomar consciência do tempo, seu trabalho é mais de negá-lo, pois ela vê no tempo não o que passa, mas o que volta. A sociedade estática organiza o tempo segundo sua experiência imediata da natureza, no modelo do tempo cíclico.
127
O tempo cíclico é dominante na experiência dos povos nômades, porque as mesmas condições se apresentam a eles a cada momento de sua passagem: Hegel nota que “a errância dos nômades é apenas formal, porque está limitada a espaços uniformes” . A sociedade que, ao se fixar localmente, dá ao espaço um conteúdo pela estruturação de lugares individualizados encontra-se por isso mesmo confinada no interior dessa localização. O retorno temporal a lugares semelhantes passa a ser o puro retorno do tempo em um mesmo lugar, a repetição de uma série de gestos. A passagem do nomadismo pastoral à agricultura sedentária é o fim da liberdade preguiçosa e sem conteúdo, o início do labor. O modo de produção agrária em geral, dominado pelo ritmo das estações, é a base do tempo cíclico plenamente constituído. A eternidade lhe é interior: e aqui na terra o retorno do mesmo. O mito é a construção unitária do pensamento que garante toda a ordem cósmica em torno da ordem que essa sociedade já realizou de fato dentro de suas fronteiras.
128
A apropriação social do tempo e a produção do homem pelo trabalho humano se desenvolvem em uma sociedade dividida em classes. O poder que se constituiu acima da penúria da sociedade do tempo cíclico, a classe que organiza esse trabalho social e se apropria da limitada mais-valia desse trabalho, apropria-se também da mais-valia temporal de sua organização do tempo social: ela possui só para si o tempo irreversível do ser vivo. A única riqueza que pode existir concentrada no círculo do poder, para ser materialmente gasta em festa suntuosa, encontra-se aí também gasta como dilapidação de um tempo histórico da superfície da sociedade. Os proprietários da mais-valia histórica detêm o conhecimento e o gozo dos acontecimentos vividos. Esse tempo, separado da organização coletiva do tempo que predomina com a produção repetitiva da base da vida social, transcorre acima de sua própria comunidade estática. E o tempo da aventura e da guerra, no qual os senhores da sociedade cíclica realizam sua história pessoal; e é também o tempo que aparece no choque das comunidades estrangeiras, no desarranjo da ordem imutável da sociedade. A história se apresenta aos homens como um fator estranho, como aquilo que eles não quiseram e aquilo contra o que eles pensavam estar protegidos. Mas por esse desvio volta também a inquietação negativa do homem, que estivera na própria origem de todo o desenvolvimento que adormecera.
129
O tempo cíclico é, em si, o tempo sem conflito. Mas nessa infanda do tempo o conflito está instalado: a história luta primeiro para ser história na atividade prática dos senhores. Essa história cria superficialmente o irreversível: seu movimento constitui o próprio tempo que ele esgota, no interior do tempo inesgotável da sociedade cíclica.
130
As “sociedades frias” são as que desaceleraram ao máximo sua parte de história; que mantiveram em equilíbrio constante sua oposição ao ambiente natural e humano, e suas oposições internas. A extrema diversidade das instituições estabelecidas com essa finalidade comprova a plasticidade da autocriação da natureza humana, mas essa comprovação só aparece para o observador de fora, como o etnólogo que voltou do tempo histórico. Em cada uma dessas sociedades, uma estruturação definitiva excluiu a mudança. O conformismo absoluto das práticas sociais existentes, com as quais todas as possibilidades humanas estão identificadas para sempre, só tem como limite externo o medo de recair na animalidade sem forma. Aqui, para permanecerem humanos, os homens têm de continuar os mesmos.
131
O nascimento do poder político, que parece estar relacionado com as últimas grandes revoluções da técnica, como a fundição do ferro, no limiar de um período que não sofrerá profundas reviravoltas até o aparecimento da indústria, é também o momento que começa a dissolver os vínculos da consanguinidade. A partir de então, a sucessão de gerações escapa da esfera do puro movimento cíclico natural para tornar-se acontecimento orientado, sucessão de poderes. O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; as dinastias são a primeira forma de medi-lo. A escrita é sua arma. Na escrita, a linguagem atinge sua plena realidade independente de mediação entre as consciências. Mas essa independência é idêntica à independência geral do poder separado, como mediação que constitui a sociedade. Com a escrita aparece uma consciência que já não é sustentada e transmitida na relação imediata dos vivos: uma memória impessoal, que é a da administração da sociedade. “Os escritos são os pensamentos do Estado; os arquivos, sua memória” (Novalis).
132
A crônica é a expressão do tempo irreversível do poder e também o instrumento que mantém a progressão voluntarista desse tempo a partir de seu traçado anterior, pois essa orientação do tempo deve desaparecer com a força de cada poder particular, recaindo no olvido indiferente do tempo apenas cíclico conhecido pelas massas camponesas que, na queda dos impérios e de suas cronologias, nunca mudam. Os possuidores da história colocaram no tempo um sentido: uma direção que é também um significado. Mas essa história se desenrola e sucumbe à parte; deixa imutável a sociedade profunda, porque ela é justamente o que fica separado da realidade comum. Eis por que a história dos impérios do Oriente se resume para nós na história das religiões: essas cronologias desfeitas em ruínas só deixaram a história, aparentemente autônoma, das ilusões que as envolviam. Os senhores que, sob a proteção do mito, detêm a propriedade privada da história, detêm-na primeiro no modo da ilusão: na China e no Egito, tiveram por muito tempo o monopólio da imortalidade da alma; suas primeiras dinastias reconhecidas são o arranjo imaginário do passado. Mas essa posse ilusória dos senhores é também toda a posse possível, nesse momento, de uma história comum e de sua própria história. A ampliação de seu poder histórico efetivo caminha junto com uma divulgação da posse mítica ilusória. Tudo isso decorre de um fato simples: na mesma medida em que os senhores se encarregaram de assegurar miticamente a permanência do tempo cíclico, como nos ritos sazonais dos imperadores chineses, eles próprios conseguiram uma relativa libertação.
133
Para que a seca cronológica sem explicação do poder divinizado que se dirige a seus servidores, e que quer ser compreendida como execução terrestre dos mandamentos do mito, pudesse ser superada e tornar-se história consciente, foi necessário que a participação real na história tenha sido vivida por grupos maiores. Dessa comunicação prática entre os que se reconheceram como os possuidores de um presente singular, os que experimentaram a riqueza qualitativa dos acontecimentos como sua atividade e o lugar onde estavam — sua época —, nasce a linguagem geral da comunicação histórica. Aqueles para quem o tempo irreversível existiu descobrem aí, simultaneamente, o memorável e a ameaça do esquecimento: “Heródoto de Halicarnasso aqui apresenta os resultados de sua pesquisa, a fim de que o tempo não apague os trabalhos dos homens...”
134
Refletir sobre a história é, inseparavelmente, refletir sobre o poder. A Grécia é o momento em que se discutem e se compreendem o poder e sua mudança, a democracia dos senhores da sociedade. Lá era o inverso das condições conhecidas pelo Estado despótico, no qual o poder, na inacessível obscuridade de seu ponto mais concentrado, só acerta contas consigo mesmo pela revolução palaciana, que é mantida fora de qualquer discussão, seja quando tem êxito, seja quando fracassa. Entretanto, o poder partilhado das comunidades gregas só existia no dispêndio de uma vida social cuja produção ficava separada e estática na classe servil. Só vive quem não trabalha. A divisão das comunidades gregas, bem como a luta pela exploração das cidades estrangeiras, exteriorizavam o princípio da separação que fundamentava interiormente cada uma delas. A Grécia, que sonhara a história universal, não conseguiu se unir para enfrentar a invasão; nem mesmo unificou os calendários de suas cidades independentes. Na Grécia, o tempo histórico tornou-se consciente, mas ainda não consciente de si próprio.
135
Após o desaparecimento das condições localmente favoráveis que as comunidades gregas haviam conhecido, a regressão do pensamento histórico ocidental não foi acompanhada de uma reconstituição das antigas organizações míticas. No confronto entre os povos do Mediterrâneo, na formação e queda do Estado romano, apareceram religiões semi-históricas que se tornavam fatores fundamentais da nova consciência do tempo e da nova armadura do poder separado.
136
As religiões monoteístas foram um compromisso entre o mito e a história, entre o tempo cíclico que ainda dominava a produção e o tempo irreversível em que se enfrentam e se recompõem os povos. As religiões procedentes do judaísmo são o reconhecimento universal abstrato de um tempo irreversível democratizado, aberto a todos, mas no ilusório. O tempo é todo orientado para um único acontecimento final: “O reino de Deus está próximo.” Essas religiões nasceram no solo da história e nele se estabeleceram. Mesmo assim, elas se mantêm em oposição radical à história. A religião semi-histórica estabelece um ponto de partida qualitativo no tempo, o nascimento de Cristo, a fuga de Maomé, mas seu tempo irreversível — que introduz uma acumulação efetiva, a qual no Islã pode assumir a feição de uma conquista. ou no cristianismo da Reforma a feição de um aumento de capital — é de fato invertido no pensamento religioso como uma contagem regressiva: a espera, no tempo que encurta, do acesso ao outro mundo de verdade, a espera do Juízo final. A eternidade saiu do tempo cíclico. É seu além. É o elemento que rebaixa a irreversibilidade do tempo, que suprime a história na própria história, ao se colocar do outro lado do tempo irreversível, como puro elemento pontual em que o tempo cíclico entrou e se aboliu. Bossuet dirá: “E, por meio do tempo que passa, entramos na eternidade que não passa.”
137
A Idade Média, esse mundo mítico inacabado cuja perfeição estava fora dele, é o momento em que o tempo cíclico, que ainda regula a parte principal da produção, é de fato corroído pela história. Uma certa temporalidade irreversível é concedida individualmente a todos, na sucessão das idades da vida, na vida considerada como uma viagem, passagem sem retorno por um mundo cujo sentido está alhures: o peregrino é o homem que sai desse tempo cíclico para ver efetivamente o viajante que cada um de nós prenuncia. A vida histórica pessoal encontra sempre sua realização na esfera do poder, na participação nas lutas empreendidas pelo poder e nas lutas pela disputa do poder: mas, sob a unificação geral do tempo orientado da era cristã, o tempo irreversível do poder é infinitamente partilhado num mundo da confiança armada, em que o jogo dos senhores gira em torno da fidelidade e da contestação da fidelidade devida. Essa sociedade feudal nasceu do encontro da “estrutura organizacional do exército conquistador tal como se desenvolveu durante a conquista” com as “forças produtivas encontradas no país conquistado” (A ideologia alemã), e é preciso incluir na organização dessas forças produtivas sua linguagem religiosa. Tal sociedade dividiu a dominação entre a Igreja e o poder estatal, por sua vez subdividido nas complexas relações entre suseranos e seus vassalos dos feudos e das comunas urbanas. Nessa diversidade da vida histórica possível, o tempo irreversível que conduzia inconscientemente a sociedade profunda, o tempo vivido pela burguesia na produção de mercadorias, na fundação e expansão das cidades, na descoberta comercial da Terra — a experimentação que destrói para sempre toda organização mítica do cosmos — , esse tempo revelou-se lentamente como o trabalho incógnito da época, quando a grande empreitada histórica oficial desse mundo fracassou com as Cruzadas.
138
No declínio da Idade Média, o tempo irreversível que invade a sociedade é sentido, pela consciência ligada à antiga ordem, sob a forma de uma obsessão da morte. É a melancolia da dissolução de um mundo, o último mundo em que a segurança do mito ainda equilibrava a história; para essa melancolia, toda coisa terrestre caminha para corromper-se. As grandes revoltas dos camponeses da Europa são também sua tentativa de responder à história que os arrancava violentamente do sono patriarcal, garantido pela tutela feudal. É a utopia milenarista da realização terrestre do paraíso, em que volta ao primeiro plano o que dava origem à religião semi- histórica, quando as comunidades cristãs — assim como o messianismo judaico do qual provinham, como resposta aos distúrbios e à infelicidade da época — aguardavam a realização iminente do reino de Deus e acrescentavam um fator de inquietude e subversão à sociedade antiga. O cristianismo, que tinha conseguido partilhar o poder no império, desmentira em determinado momento, considerando como simples superposição, o que subsistia dessa esperança: tal é o sentido da afirmação agostiniana, arquétipo de todos os satisfecit[6] da ideologia moderna, segundo a qual a Igreja instalada já era há muito esse reino de que se falara. A revolta social do campesinato milenarista se define naturalmente, em primeiro lugar, como uma vontade de destruição da Igreja. Mas o milenarismo se desenrola no mundo histórico, e não no terreno do mito. Ao contrário do que Norman Cohn tenta mostrar em La Poursuite du millénium, as esperanças revolucionárias modernas não são o prosseguimento irracional da paixão religiosa do milenarismo. Muito ao contrário, o milenarismo, luta de classe revolucionária falando pela última vez a língua da religião, já é uma tendência revolucionária moderna, à qual ainda falta a consciência de ser apenas histórica. Os milenaristas deviam perder porque não podiam reconhecer a revolução como operação deles. O fato de eles esperarem por um sinal exterior da decisão de Deus para agir equivale, no âmbito do pensamento, à prática dos camponeses revoltados que seguiam chefes escolhidos fora deles. A classe camponesa não podia atingir uma consciência justa do funcionamento da sociedade, nem do modo de conduzir a própria luta: por lhe faltarem essas condições de unidade de ação e de consciência, ela formulou um projeto e empreendeu guerras de acordo com a imagem do paraíso terrestre.
139
A nova posse da vida histórica, o Renascimento, que encontra na Antiguidade seu passado e seu direito, traz em si a ruptura feliz com a eternidade. Seu tempo irreversível é o da acumulação infinita dos conhecimentos, e a consciência histórica decorrente da experiência das comunidades democráticas e das forças que as destroem vai retomar, com Maquiavel, o raciocínio sobre o poder dessacralizado, dizer o indizível do Estado. Na vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida se conhece como gozo da passagem do tempo. Mas esse gozo da passagem tinha de ser passageiro. A canção de Lorenzo de Médicis, que Burckhardt considera como a expressão “do próprio espírito do Renascimento”, é o panegírico que esta frágil festa da história formulou a respeito de si mesma: “Como é bela a juventude — que passa tão depressa.”
140
O movimento permanente de monopolização da vida histórica pelo Estado da monarquia absoluta, forma de transição para a dominação total da classe burguesa, faz aparecer em sua verdade o que é o novo tempo irreversível da burguesia. A burguesia está ligada ao tempo do trabalho, pela primeira vez liberado do tempo cíclico. O trabalho se tornou, com a burguesia, trabalho que transforma as condições históricas. A burguesia é a primeira classe dominante para quem o trabalho é um valor. E a burguesia que suprime todo privilégio, que só reconhece valor decorrente da exploração do trabalho, identificou justamente com o trabalho seu próprio valor como classe dominante. Fez do progresso do trabalho o seu próprio progresso. A classe que acumula as mercadorias e o capital modifica continuamente a natureza ao modificar o próprio trabalho, ao promover sua produtividade. Toda vida social já se concentrou na pobreza ornamental da Corte, adorno da fria administração estatal que culmina no “ofício de rei”; e toda liberdade histórica particular teve de aceitar a própria perda. A liberdade do jogo temporal irreversível do mundo feudal esgotou-se em suas últimas batalhas perdidas nas guerras da Fronda ou na rebelião dos escoceses em favor de Carlos Eduardo[7]. O mundo mudou de base.
141
A vitória da burguesia é a vitória do tempo profundamente histórico, porque é o tempo da produção econômica que transforma a sociedade, de modo permanente e absoluto. Enquanto a produção agrária permaneceu como trabalho principal, o tempo cíclico que estava presente no fundo da sociedade alimentou as forças coligadas da tradição, que vão frear o movimento. Mas o tempo irreversível da economia burguesa extirpa esses resquícios em toda a extensão do mundo. A história que até então aparecerá como o movimento apenas dos indivíduos da classe dominante, escrita portanto como história factual, é agora compreendida como o movimento geral, e nesse movimento severo os indivíduos são sacrificados. A história que descobre sua base na economia política percebe agora a existência do que era seu inconsciente, mas que continua a ser o inconsciente que ela não pode trazer à luz. A economia mercantil democratizou apenas essa pré-história cega, uma nova fatalidade que ninguém domina.
142
A história que está presente em toda a profundeza da sociedade tende a perder-se na superfície. O triunfo do tempo irreversível é também sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma de sua vitória foi precisamente a produção em série dos objetos, segundo as leis da mercadoria. O principal produto que o desenvolvimento econômico fez passar da raridade luxuosa para o consumo corrente é portanto a história, mas apenas como história do movimento abstrato das coisas, que domina todo uso qualitativo da vida. O tempo cíclico anterior havia sustentado uma parte crescente de tempo histórico vivido por indivíduos e grupos; agora, a dominação do tempo irreversível da produção vai tender a eliminar socialmente esse tempo vivido.
143
Assim, a burguesia mostrou e impôs à sociedade um tempo histórico irreversível, mas lhe recusa o uso desse tempo. “Houve história, mas já não há”, porque a classe dos possuidores da economia, que não pode romper com a história econômica, deve rechaçar como ameaça imediata qualquer outro emprego irreversível do tempo. A classe dominante, feita de especialistas da posse das coisas — que, por isso, são eles mesmos possuídos pelas coisas —, deve ligar seu destino à manutenção dessa história reificada, à permanência de uma nova imobilidade na história. Pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente estranho à história, porque agora é por sua base que a sociedade se move irreversivelmente. Na reivindicação de viver o tempo histórico, o proletariado encontra o centro inesquecível de seu projeto revolucionário: e cada uma das tentativas, até aqui destruídas, de executar esse projeto marca um ponto de partida possível da nova vida histórica.
144
O tempo irreversível da burguesia senhora do poder apresentou-se primeiro sob seu próprio nome, como uma origem absoluta, o ano I da República. Mas a ideologia revolucionária da liberdade geral que tinha derrubado os últimos restos de organização mítica dos valores, e toda regulamentação tradicional da sociedade, já deixava entrever a vontade real que ela havia vestido à romana: a liberdade de comércio generalizada. A sociedade da mercadoria, ao descobrir que devia reconstruir a passividade que ela mesma precisara abalar profundamente a fim de estabelecer seu próprio reinado puro. “encontra no cristianismo com seu culto do homem abstrato... o complemento religioso mais conveniente”’ (O capital). Então, a burguesia fez com essa religião um acordo que se expressa também na apresentação do tempo: abandona seu próprio calendário, e seu tempo irreversível volta a moldar-se na era cristã, cuja sucessão ele prossegue.
145
Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo irreversível unificou-se mundialmente. A história universal torna-se uma realidade, porque o mundo inteiro está reunido sob o desenvolvimento desse tempo. Mas essa história, que em todo lugar é a mesma, ainda é apenas a recusa intra-histórica da história. O tempo da produção econômica, recortado em fragmentos abstratos iguais, se manifesta por todo o planeta como o mesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do mercado mundial e, corolariamente, do espetáculo mundial.
146
O tempo irreversível da produção é antes de tudo a medida das mercadorias. Assim, o tempo que se afirma oficialmente em toda a extensão do mundo como o tempo geral da sociedade significa apenas os interesses especializados que o constituem: é um mero tempo particular.
Capitulo VI
O tempo espetacular
A única coisa que temos de nosso é o tempo, do qual gozam até os que não têm morada.
Baltasar Gracián (L’Homme de Cour)
147
O tempo da produção, o tempo-mercadoria, é uma acumulação infinita de intervalos equivalentes. E a abstração do tempo irreversível, e todos os seus segmentos devem provar pelo cronômetro sua mera igualdade quantitativa. O tempo é, em sua realidade efetiva, o que ele é em seu caráter intercambiável. E nessa dominação social do tempo-mercadoria que “o tempo é tudo, o homem não é nada: no máximo, ele é a carcaça do tempo” (Miséria da filosofia). E o tempo desvalorizado, a inversão completa do tempo como “campo de desenvolvimento humano”.
148
O tempo geral do não-desenvolvimento humano existe também sob o aspecto complementar de um tempo consumível, que volta para a vida cotidiana da sociedade, a partir dessa produção específica, como um tempo pseudocíclico.
149
O tempo pseudocíclico é o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Contém os caracteres essenciais de unidades homogêneas intercambiáveis e de supressão da dimensão qualitativa. Mas, como ele é o subproduto desse tempo destinado ao atraso da vida cotidiana concreta — e à manutenção desse atraso — , deve estar carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sequência de momentos falsamente individualizados.
150
O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica moderna, a sobrevivência ampliada. Nele, o vivido cotidiano fica privado de decisão e submetido, já não à ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; esse tempo, portanto, reencontra naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico não só se baseia nos traços naturais do tempo cíclico mas também cria novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o descanso semanais, a volta dos períodos de férias.
151
O tempo pseudocíclico é um tempo que foi transformado pela indústria. O tempo que tem sua base na produção das mercadorias é ele próprio uma mercadoria consumível, que reúne tudo o que anteriormente se havia diferenciado, durante a fase de dissolução da velha sociedade unitária, como vida privada, vida econômica, vida política. Todo o tempo consumível da sociedade moderna vem a ser tratado como matéria-prima de novos produtos diversificados que se impõem no mercado como empregos socialmente organizados do tempo. “Um produto que já existe sob uma forma que o torna apto ao consumo pode tornar-se, por sua vez, matéria-prima de outro produto” (O capital).
152
Em seu setor mais avançado, o capitalismo concentrado orienta-se para a venda de blocos de tempo “todos equipados”, cada um constituindo uma única mercadoria unificada, que integrou um certo número de mercadorias diversas. Por isso, na economia em expansão dos “serviços” e dos lazeres pode aparecer a expressão “pagamento com tudo incluído” para o habitat espetacular, os pseudodeslocamentos coletivos das férias, as assinaturas do consumo cultural e a venda da própria sociabilidade sob a forma de “conversas animadas” e de “encontros com personalidades”. Essa espécie de mercadoria espetacular, que evidentemente só pode existir em função da penúria das realidades correspondentes, também aparece entre os artigos que promovem a modernização das vendas, e pode ser paga a crédito.
153
O tempo pseudocíclico consumível é o tempo espetacular, tanto como tempo do consumo das imagens, em sentido restrito, como imagem do consumo do tempo, em toda a sua extensão. O tempo do consumo das imagens, meio de ligação de todas as mercadorias, é o campo inseparável em que se exercem plenamente os instrumentos do espetáculo, e o objetivo que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna — seja nos transportes rápidos, seja no uso da sopa em pó — traduzem-se de modo positivo para a população dos Estados Unidos no fato de ela poder assistir à televisão, em média, de três a seis horas por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente dominada pelos momentos de lazer e de férias, momentos representados à distância e desejáveis por definição, como toda mercadoria espetacular. Essa mercadoria é explicitamente oferecida como o momento da vida real, cujo retorno cíclico deve ser aguardado. Mas, mesmo nesses momentos concedidos à vida, ainda é o espetáculo que se mostra e se reproduz, atingindo um grau mais intenso. O que foi representado como a vida real revela-se apenas como a vida mais realmente espetacular.
154
Essa época, que mostra seu tempo a si mesma como sendo essencialmente o giro acelerado de múltiplas festividades, é também uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida é impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Quando suas pseudofestas vulgarizadas, paródias do diálogo e da doação, incitam a uma despesa econômica excedente, elas só trazem a decepção, sempre compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna deve, no espetáculo, tanto mais vangloriar-se quanto menor for seu valor de uso. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo.
155
O consumo do tempo cíclico das sociedades antigas estava de acordo com o trabalho real dessas sociedades, nus o consumo pseudociclico da economia desenvolvida se acha em contradição com o tempo irreversível abstrato de sua produção. O tempo cíclico era o tempo da ilusão imóvel, vivido realmente; o tempo espetacular é o tempo da realidade que se transforma, vivido ilusoriamente.
156
O que é sempre novo no processo da produção das coisas não se encontra no consumo, que permanece como o retorno ampliado desse processo. Já que o trabalho morto continua a dominar o trabalho vivo, no tempo espetacular o passado domina o presente.
157
Como outro lado da deficiência da vida histórica geral, a vida individual ainda não tem história. Os pseudo-acontecimentos que se sucedem na dramatização espetacular não foram vividos por aqueles que lhes assistem; além disso, perdem-se na inflação de sua substituição precipitada, a cada pulsão do mecanismo espetacular. Por outro lado, o que foi realmente vivido não tem relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e está em oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo. Esse vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico a seu próprio passado, não registrado em lugar algum. Ele não se comunica. E incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espetacular do não-memorável.
158
O espetáculo, como organização social da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo.
159
Para levar os trabalhadores ao status de produtores e consumidores “livres” do tempo-mercadoria, a condição prévia foi a expropriação violenta do tempo deles. O retorno espetacular do tempo só se tornou possível a partir dessa primeira despossessão do produtor.
160
Ao olhar da produção moderna, a parte irredutivelmente biológica que continua presente no trabalho, tanto na dependência do tempo cíclico natural da vigília e do sono quanto na evidência do tempo irreversível individual do gasto de uma vida. torna-se simplesmente acessória: como tais, esses elementos são descurados nas proclamações oficiais do movi- mento da produção, bem como nos troféus consumíveis que são a tradução acessível dessa incessante vitória. Imobilizada no centro falsificado do movimento de seu mundo, a consciência espectadora já não conhece em sua própria vida uma passagem para sua realização e para sua morte. Quem desistiu de despender sua vida já não deve reconhecer sua morte. A publicidade dos seguros de vida apenas insinua que o indivíduo é culpado de morrer sem ter garantido a regulação do sistema depois dessa perda econômica: e a do american way of death insiste na capacidade de manter nesse encontro a maior parte das aparências da vida. Nos bombardeios publicitários restantes, é nitidamente proibido envelhecer. É como se houvesse uma tentativa de manter, em todo indivíduo, um “capital-juventude” que. por ter sido usado de um modo medíocre, não pode pretender adquirir a realidade durável e cumulativa do capital financeiro. Essa ausência social da morte é idêntica à ausência social da vida.
161
O tempo é a alienação necessária, como demonstrava Hegel, o meio em que o sujeito se realiza ao se perder, tomando-se outro para tornar-se a verdade de si mesmo. Mas seu contrário é justamente a alienação dominante, que é sofrida pelo produtor de um presente estranho. Nessa alienação espacial, a sociedade que separa pela raiz o sujeito e a atividade que ela lhe subtrai, o separa primeiro de seu próprio tempo. A alienação social superável é justamente aquela que proibiu e petrificou as possibilidades e os riscos de alienação viva no tempo.
162
Sob as modas aparentes que se anulam e se recompõem na superfície fútil do tempo pseudociclico contemplado, o grande estilo da época está sempre naquilo que é orientado pela necessidade evidente e secreta da revolução.
163
A base natural do tempo, o dado sensível do transcorrer do tempo, torna-se humana e social ao existir para o homem. O estado limitado da prática humana, o trabalho em diferentes estágios, até agora humanizou e também desumanizou o tempo, como tempo cíclico e tempo separado irreversível da produção econômica. O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida histórica generalizada, é o projeto de um enfraquecimento da medida social do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. É o programa de uma realização total, imersa no tempo, do comunismo que suprime “tudo o que existe independentemente dos indivíduos”.
164
O mundo já possui o sonho de um tempo. Para vivê-lo de fato, deve agora possuir consciência dele.
Capitulo VII
O planejamento do espaço
E quem se torna Senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrói, que aguarde ser destruído por ela, porque ela sempre tem como refúgio de suas rebeliões a palavra liberdade e seus velhos costumes, os quais nem pela extensão do tempo nem por nenhum benefício serão jamais esquecidos. E por mais coisas que se façam ou que se ofereçam, a menos que se expulsem ou dispersem os habitantes, nunca eles esquecerão essa palavra e esses costumes...
Maquiavel (O Príncipe)
165
A produção capitalista unificou o espaço, que já não é limitado por sociedades externas. Essa unificação é ao mesmo tempo um processo extensivo e intensivo de banalização. A acumulação das mercadorias produzidas em série para o espaço abstrato do mercado, assim como devia romper as barreiras regionais e legais e todas as restrições corporativas da Idade Média que mantinham a qualidade da produção artesanal, devia também dissolver a autonomia e a qualidade dos lugares. Essa força de homogeneização é a artilharia pesada que fez cair todas as muralhas da China.
166
Para tornar-se sempre mais idêntico a si mesmo, para se aproximar ao máximo da monotonia imóvel, o espaço livre da mercadoria é doravante modificado e reconstruído a todo instante.
167
Essa sociedade que suprime a distância geográfica recolhe interiormente a distância, como separação espetacular.
168
Subproduto da circulação das mercadorias, o turismo, circulação humana considerada como consumo, resume-se fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal. O planejamento econômico da frequência de lugares diferentes já é em si a garantia de sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, lhe retirou também a realidade do espaço.
169
A sociedade que modela tudo o que a cerca construiu uma técnica especial para agir sobre o que dá sustentação a essas tarefas: o próprio território. O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário.
170
A necessidade capitalista satisfeita pelo urbanismo, corno glaciação visível da vida, pode se expressar — segundo a terminologia hegeliana — como a predominância absoluta da “pacífica coexistência do espaço” sobre “o inquieto devir na sucessão do tempo”.
171
Todas as forças técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como fatores de separações. No caso do urbanismo, o que está em jogo é o equipamento da base geral dessas forças, do tratamento do solo que convém a seu desenvolvimento, à própria técnica da separação.
172
O urbanismo é a realização moderna da tarefa permanente que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização de trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido. A luta sempre travada contra todos os aspectos dessa possibilidade de encontro descobre no urbanismo seu campo privilegiado. O esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua culmina afinal com a supressão da rua. “Com os meios de comunicação de massa a longa distância, o isolamento da população revelou-se um meio de controle bem mais eficaz”, constata Lewis Mumford em La Cité à travers l’histoire, ao descrever um “mundo doravante de mão única”. Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve recuperar os indivíduos isolados como indivíduos isolados em conjunto: as fábricas e os centros culturais, os clubes de férias e os “condomínios residenciais” são organizados de propósito para os fins dessa pseudocoletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado de aparelhos receptores da mensagem espetacular faz com que esse isolamento seja povoado pelas imagens dominantes, imagens que adquirem sua plena força por causa desse isolamento.
173
Pela primeira vez uma arquitetura nova, que em cada época anterior era reservada à satisfação das classes dominantes, acha-se diretamente destinada aos pobres. A miséria formal e a extensão gigantesca dessa nova experiência de habitat provêm ambas de seu caráter de massa, implícito tanto por sua destinação quanto pelas condições modernas de construção. A decisão autoritária, que planeja abstratamente o território como território da abstração, está bem evidente no centro dessas condições modernas de construção. Nos lugares onde se inicia a industrialização dos países atrasados, aparece a mesma arquitetura, terreno adequado ao novo gênero de existência social que se deseja aí implantar. Da mesma forma que nas questões do armamento termonuclear ou da natalidade — esta última já próxima à possibilidade de manipulação da hereditariedade —, o urbanismo mostra com nitidez a superação de um limiar no crescimento do poder material da sociedade e o atraso na dominação consciente desse poder.
174
O momento presente já é o da autodestruição do meio urbano. O transbordamento das cidades para um meio rural cheio de “massas informes de resíduos urbanos” (Lewis Mumford) é diretamente regido pelos imperativos do consumo. A ditadura do automóvel, produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil, se enraizou no terreno com a dominação da autoestrada, que desloca os centros antigos e comanda uma dispersão sempre mais pronunciada. Ao mesmo tempo, os momentos de reorganização inacabada do tecido urbano se polarizam passageiramente em torno das “fábricas de distribuição” que são os hipermercados construídos em áreas afastadas, sustentados por um estacionamento; e mesmo esses templos do consumo precipitado também são empurrados pelo movimento centrífugo, que os repele à medida que se tornam centros secundários sobrecarregados, porque provocaram uma recomposição parcial da aglomeração. Mas a organização técnica do consumo está no primeiro plano da dissolução geral que levou a cidade a se consumir a si mesma.
175
A história econômica, que se desenvolveu toda em torno da oposição cidade-campo, chegou a um estágio de sucesso que anula ambos os termos. A paralisia atual do desenvolvimento histórico total, em proveito apenas da busca do movimento independente da economia, faz do momento em que começam a desaparecer a cidade e o campo não a superação de sua cisão, mas sua destruição simultânea. O desgaste recíproco da cidade e do campo, produto da falha do movimento histórico pelo qual a realidade urbana existente deveria ser superada, aparece nessa mistura eclética de elementos decompostos que recobre as zonas mais adiantadas da industrialização.
176
A história universal nasceu nas cidades e atingiu a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Marx considera como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia o fato de “ela ter sujeitado o campo à cidade”, cujo “ar emancipa”. Mas, se a história da cidade é a história da liberdade, ela também foi a da tirania, da administração estatal que controla o campo e a própria cidade. Até agora, a cidade só pôde ser o terreno de batalha da liberdade histórica, e não o lugar em que essa liberdade se realizou. A cidade é o espaço da história porque é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna possível a empreitada histórica, e consciência do passado. Portanto, a atual tendência de liquidação da cidade é outra forma de expressar o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação em que a sociedade recupere os poderes que se destacaram dela.
177
“O campo mostra justamente o fato oposto, o isolamento e a separação” (A ideologia alemã). O urbanismo que destrói as cidades reconstitui um pseudocampo, no qual estão perdidas tanto as relações naturais do antigo campo quanto as relações sociais diretas, e diretamente questionadas, da cidade histórica. Um novo campesinato artificial é recriado pelas condições de habitat e de controle espetacular no atual “território planificado”: a dispersão no espaço e a mentalidade estreita, que sempre impediram o campesinato de empreender uma ação independente e de se afirmar como força histórica criadora, voltam a ser as características dos produtores. Assim, o movimento do mundo que eles próprios fabricam fica completamente fora do alcance deles, tal como era o ritmo natural dos trabalhos para a sociedade agrária. Mas, quando esse campesinato, que foi a base inabalável do “despotismo oriental” e cuja dispersão clamava pela centralização burocrática, reaparece como produto das condições de crescimento da burocratização estatal moderna, então sua apatia tem de ser historicamente fabricada e mantida; a ignorância natural cedeu lugar ao espetáculo organizado do erro. As “cidades novas” do pseudocampesinato tecnológico fixam no terreno, claramente, a ruptura com o tempo histórico no qual elas são construídas; sua divisa pode ser: “Aqui, nunca acontecerá nada, e nada nunca aconteceu!”. Já que a história que é preciso liberar nas cidades ainda não foi liberada, as forças da ausência histórica começam a compor sua própria paisagem exclusiva.
178
A história que ameaça este mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao tempo vivido. A revolução proletária é a crítica da geografia humana através da qual os indivíduos e as comunidades devem construir os locais e os acontecimentos correspondentes à apropriação, já não apenas de seu trabalho, mas de sua história total. Nesse espaço movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode se reencontrar, sem reintroduzir um apego exclusivo ao solo, e assim trazer de volta a realidade da viagem, e da vida entendida como uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido.
179
A ideia mais revolucionária a respeito do urbanismo não é uma ideia urbanística, tecnológica ou estética. E a decisão de reconstruir integralmente o território de acordo com as necessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, da ditadura antiestatal do proletariado, do diálogo executório. E o poder dos Conselhos, que só pode ser efetivo ao transformar a totalidade das condições existentes, não poderá adotar uma tarefa menor se quiser ser reconhecido e reconhecer a si mesmo em seu mundo.
Capitulo VII
A negação e o consumo na cultura
Viveremos o suficiente para ver uma revolução política? Nós, os contemporâneos destes alemães? Meu amigo, você acredita no que quer... Quando julgo a Alemanha segundo sua história presente, você não virá me dizer que toda a sua história está falsificada e que toda a sua vida pública atual não representa o estado real do povo. Leia os jornais que quiser, convença-se de que ninguém pára — e você há de convir que a censura não impede ninguém de parar — de celebrar a liberdade e a felicidade nacional que possuímos...
Ruge (Carta a Marx, março de 1843)
180
A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido, na sociedade histórica dividida em classes; o que equivale a dizer que ela é o poder de generalização que existe à parte, como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão. A cultura se desligou da unidade típica da sociedade do mito, “quando o poder de unificação desaparece da vida do homem e os opostos perdem sua relação e sua interação vivas, ganhando autonomia...” (Difference des systèmes dc Fichte et de Schelling). Ao ganhar independência, a cultura começa um movimento imperialista de enriquecimento que é ao mesmo tempo o declínio de sua independência. A história, que cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas a respeito dessa autonomia, também se expressa como história da cultura. E toda história de vitórias da cultura pode ser compreendida como a história da revelação de sua insuficiência, como uma marcha para sua auto-supressão. A cultura é o lugar da busca da unidade perdida. Nessa busca da unidade, a cultura como esfera separada é obrigada a negar si própria.
181
A luta entre a tradição e a inovação, que é o princípio de desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas, só pode prosseguir através da vitória permanente da inovação. Mas a inovação na cultura só é sustentada pelo movimento histórico total que, ao tomar consciência de sua totalidade, tende à superação de seus próprios pressupostos naturais e vai no sentido da supressão de toda separação.
182
O desenvolvimento dos conhecimentos da sociedade, que contém a compreensão da história como o cerne da cultura, adquire por si um conhecimento sem retorno, expresso pela destruição de Deus. Mas essa “condição primeira de toda crítica” é também a obrigação primeira de uma crítica infinita. Quando nenhuma regra de conduta pode mais se manter, cada resultado da cultura a faz avançar para a dissolução. Como a filosofia no instante em que ganhou sua plena autonomia, toda disciplina tornada autônoma deve desmoronar, primeiro como pretensão de explicação coerente da totalidade social, e depois até mesmo como instrumentação parcelar utilizável em suas próprias fronteiras. A falta de racionalidade da cultura separada é o elemento que a condena a desaparecer, porque nela a vitória do racional já está presente como exigência.
183
A cultura provém da história que dissolveu o gênero de vida do velho mundo. Mas, como esfera separada, ela é tão-somente a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é o juízo de um mundo pouquíssimo capaz de julgar.
184
O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na contemplação espetacular. Um desses movimentos ligou seu destino à crítica social; o outro, à defesa do poder de classe.
185
Cada um desses lados do fim da cultura existe como uma unidade, em todos os aspectos dos conhecimentos e em todos os aspectos das representações sensíveis — naquilo que era a arte no sentido mais geral. No primeiro caso, opõem-se, de um lado, a acumulação de conhecimentos fragmentados que se tornam inutilizáveis, porque a aprovação das condições existentes deve renunciar a seus próprios conhecimentos, e, de outro, a teoria da práxis, que detém sozinha a verdade de todos esses conhecimentos ao deter sozinha o segredo de seu uso. No segundo caso, opõem-se a autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e sua recomposição artificial no espetáculo mercantil, a representação ilusória do não vivido.
186
Ao perder a comunidade da sociedade do mito, a sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem efetivamente comum, até o momento em que a cisão da comunidade inativa possa ser superada pelo acesso à real comunidade histórica. A arte, que é essa linguagem comum da inação social desde que se constitui como arte independente no sentido moderno, quando emerge de seu primeiro universo religioso e se torna produção individual de obras separadas, conhece, como caso particular, o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. Sua afirmação independente é o começo de sua dissolução.
187
A linguagem da comunicação está perdida — eis o que expressa positivamente o movimento de decomposição moderna de toda arte, seu aniquilamento formal. O que esse movimento expressa negativamente é o fato de uma linguagem comum ter de ser reencontrada, mas não na conclusão unilateral que, para a arte da sociedade histórica, sempre chegava tarde demais, falando com outros do que foi vivido sem diálogo real, e admitindo essa deficiência da vida. Essa linguagem precisa ser reencontrada na práxis, que reúne em si a atividade direta e sua linguagem. Trata-se de possuir efetivamente a comunidade do diálogo e o jogo com o tempo que foram representados pela obra poético-artística.
188
Quando a arte tornada independente representa seu mundo com cores brilhantes, um momento da vida envelheceu e não se deixa rejuvenescer com cores brilhantes. Deixa-se apenas evocar na lembrança. A grandeza da arte só começa a aparecer no ocaso da vida.
189
O tempo histórico que invade a arte se expressou primeiro na própria esfera da arte, a partir do barroco. O barroco é a arte de um mundo que perdeu seu centro: a última ordem mítica reconhecida pela Idade Média, no cosmos e no governo terrestre — a unidade da Cristandade e o espectro de um Império —, caiu. A arte da mudança deve trazer em si o princípio efêmero que ela desdobre no mundo. Ela escolheu, diz Eugenio d’Ors, “a vida contra a eternidade”. O teatro e a festa, a festa teatral, são os momentos dominantes da realização barroca, na qual toda expressão artística particular só adquire sentido por sua referência ao cenário de um lugar construído, a uma construção que deve ser por si mesma o centro de unificação; e esse centro é a passagem, que está inscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica de tudo. A importância, às vezes excessiva, adquirida pelo conceito de barroco na discussão estética contemporânea traduz a tomada de consciência da impossibilidade de um classicismo artístico: os esforços em prol de um classicismo ou neoclassicismo normativos, há três séculos, não passaram de breves construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado, a da monarquia absoluta ou da burguesia revolucionária vestida à romana. Do romantismo ao cubismo, o curso geral do barroco foi seguido por uma arte sempre mais individualizada da negação, que se renova perpetuamente até a atomização e a negação completas da esfera artística. O desaparecimento da arte histórica que estava ligada à comunicação interna de uma elite, que tinha sua base social semi-independente nas condições parcialmente lúdicas ainda vividas pelas últimas aristocracias, traduz também o fato de o capitalismo experimentar o primeiro poder de classe que se confessa despojado de toda qualidade ontológica; um poder enraizado na simples gestão da economia é também a perda de toda mestria humana. O conjunto barroco, que para a criação artística é ele próprio uma unidade há muito perdida, se reencontra de certa forma no consumo atual da totalidade do passado artístico. O conhecimento e o reconhecimento históricos de toda a arte do passado, retrospectivamente constituída em arte mundial, a relativizam em uma desordem global que constitui por sua vez um edifício barroco em nível mais elevado, edifício no qual se devem fundir a produção de uma arte barroca e todas as suas ressurgências. Pela primeira vez, as artes de todas as civilizações e de todas as épocas podem ser conhecidas e admitidas juntas. Tal “recoleção das lembranças” da história da arte, ao se tornar possível, é também o fim do mundo da arte. Nesta época dos museus, quando já não pode existir nenhuma comunicação artística, todos os momentos antigos da arte podem ser igualmente admitidos, pois nenhum deles sofre a perda de suas condições específicas de comunicação, na atual perda das condições de comunicação em geral.
190
A arte em sua época de dissolução, como movimento negativo que prossegue a superação da arte em uma sociedade histórica na qual a história ainda não foi vivida, é ao mesmo tempo uma arte da mudança e a pura expressão da mudança impossível. Quanto mais grandiosa for sua exigência, tanto mais sua verdadeira realização estará além dela. Essa arte é forçosamente de vanguarda, e não existe. Sua vanguarda é seu desaparecimento.
191
O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. Embora de modo apenas relativamente consciente, são contemporâneos da última grande investida do movimento revolucionário proletário. O fracasso desse movimento, que os deixou encerrados no próprio campo artístico do qual haviam proclamado a caducidade, é a razão fundamental da imobilização deles. O dadaísmo e o surrealismo estão historicamente ligados e, ao mesmo tempo, em oposição. Nessa oposição, que constitui também para cada um a parte mais consequente e radical de sua contribuição, aparece a insuficiência interna de sua crítica, desenvolvida parcialmente tanto por um como pelo outro. O dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte sem suprimi-la. A posição crítica elaborada desde então pelos situacionistas[8] mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.
192
O consumo espetacular que conserva a antiga cultura congelada, inclusive com o reiterado remanejamento de suas manifestações negativas, torna-se abertamente em seu setor cultural o que ele é implicitamente em sua totalidade: a comunicação do incomunicável. A destruição extrema da linguagem pode ver-se aí reconhecida como um valor positivo oficial, porque se trata de demonstrar unia reconciliação com o estado predominante das coisas, no qual toda comunicação é despreocupadamente proclamada ausente. A verdade crítica dessa destruição como vida real da poesia e da arte modernas está, é claro, escondida, porque o espetáculo, cuja função é fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudonovidade de seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade. Dessa maneira, pode considerar-se nova a escola de neoliteratura que admite ter como objeto a contemplação do escrito por si mesmo. Além disso, ao lado da simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável, a tendência mais moderna da cultura espetacular — e a mais ligada à prática repressiva da organização geral da sociedade — procura recompor, através de “trabalhos de conjunto”, um meio neo-artístico complexo a partir dos elementos decompostos, sobretudo nas buscas de integração dos destroços artísticos ou de híbridos estético-técnicos no urbanismo. Isto é a tradução, no plano da pseudocultura espetacular, do projeto geral do capitalismo desenvolvido que visa a retomar o trabalhador parcelar como “personalidade bem integrada no grupo”, tendência descrita pelos recentes sociólogos americanos (Riesman,Whyte etc.). Por toda parte é o mesmo projeto de reestruturação sem comunidade.
193
A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados dessa tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos já açambarca anualmente 29% do produto nacional dos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade do século XX o papel motor no desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século XIX.
194
O conjunto dos conhecimentos que continua a se desenvolver atualmente como pensamento do espetáculo deve justificar uma sociedade sem justificativas e constituir-se em ciência geral da falsa consciência. Esse pensamento está inteiramente condicionado pelo fato de não poder, nem querer, pensar sua própria base material no sistema espetacular.
195
O pensamento da organização social da aparência fica obscurecido pela subcomunicação generalizada que ele defende. Não sabe que o conflito está na origem de todas as coisas de seu mundo. Os especialistas do poder do espetáculo, poder absoluto no interior de seu sistema de linguagem sem resposta, são absolutamente corrompidos por sua experiência do desprezo e do êxito do desprezo; pois reencontram seu desprezo confirmado pelo conhecimento do homem desprezível que é realmente o espectador.
196
No pensamento especializado do sistema espetacular, intervém uma nova divisão das tarefas, à medida que o próprio aperfeiçoamento desse sistema acarreta novos problemas: de um lado, a crítica espetacular do espetáculo é empreendida pela sociologia moderna, que estuda a separação com a ajuda apenas dos instrumentos conceituais e materiais outorgados pela separação; de outro, a apologia do espetáculo constitui um pensamento do não-pensamento, num esquecimento explícito da prática histórica, nas diversas disciplinas em que se enraíza o estruturalismo. Entretanto, o falso desespero da crítica não dialética e o falso otimismo da pura publicidade do sistema são idênticos como pensamento submisso.
197
A sociologia que começou a discutir, primeiro nos Estados Unidos, as condições de existência produzidas pelo atual desenvolvimento conseguiu reunir muitos dados empíricos, mas nem por isso conhece a verdade de seu próprio objeto, porque não encontra em si mesma a crítica que lhe é imanente. De modo que a tendência sinceramente reformista dessa sociologia só se apoia na moral, no bom senso, em apelos à moderação destituídos de qualquer pertinência etc. Por não conhecer o negativo que existe no cerne do seu mundo, esse modo de criticar insiste em descrever uma espécie de excedente negativo que, deploravelmente, parece atrapalhá-lo na superfície, como uma proliferação parasita irracional. Essa boa vontade indignada, que só consegue censurar as consequências externas do sistema, acredita ser crítica ao esquecer o caráter essencialmente apologético de suas pressuposições e de seu método.
198
Aqueles que denunciam o absurdo ou os perigos da incitação ao desperdício na sociedade da abundância econômica não sabem para que serve o desperdício. Condenam com ingratidão, em nome da racionalidade econômica, os bons vigias irracionais sem os quais o poder dessa racionalidade econômica despencaria, Boorstin, por exemplo, que descreve em L’lmage o consumo mercantil do espetáculo americano, não chega a atingir o conceito de espetáculo, porque pensa poder deixar de fora desse desastroso exagero a vida privada, ou a noção de “mercadoria honesta”. Não compreende que a própria mercadoria fez leis cuja aplicação “honesta” deve produzir a vida privada como realidade distinta e sua reconquista posterior pelo consumo social das imagens.
199
Boorstin descreve os excessos de um mundo que se tornou estranho para nós como excessos estranhos a nosso mundo. Mas a base “normal” da vida social — à qual ele se refere implicitamente quando qualifica o reino superficial das imagens, em termos de juízo psicológico e moral, como o produto de “nossas extravagantes pretensões” — não tem realidade alguma nem em seu livro, nem em sua época. Já que a vida humana real de que fala Boorstin está, para ele, no passado, inclusive no passado da resignação religiosa, ele não consegue compreender toda a profundidade de uma sociedade da imagem. A verdade dessa sociedade nada mais é que a negação dessa sociedade.
200
A sociologia, que pensa poder isolar do conjunto da vida social uma racionalidade industrial que funciona à parte, pode chegar até a isolar, do movimento industrial global, as técnicas de reprodução e transmissão. Assim, Boorstin considera que os resultados que descreve têm como causa o infeliz encontro, quase fortuito, de um imenso aparato técnico de difusão das imagens com a imensa atração dos homens de nossa época pelo pseudo-sensacional. O espetáculo decorreria do fato de o homem moderno ser demasiado espectador. Boorstin não compreende que a proliferação dos “pseudo-acontecimentos” pré-fabricados, que ele denuncia, decorre do simples fato de os homens, na realidade maciça da vida social atual, não viverem acontecimentos. Porque a própria história assombra a sociedade moderna como um espectro, surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado.
201
A afirmação da estabilidade definitiva de um curto período de congelamento do tempo histórico é a base inegável, proclamada inconsciente e conscientemente, da atual tendência a uma sistematização estruturalista. O ponto de vista no qual se coloca o pensamento anti-histórico do estruturalismo é o da eterna presença de um sistema que jamais foi criado e jamais acabará. O sonho de que uma estrutura prévia inconsciente exerce uma ditadura sobre toda a práxis social pôde ser abusivamente tirado dos modelos de estruturas elaborados pela linguística e pela etnologia (e até pela análise do funcionamento do capitalismo) — modelos compreendidos de forma abusiva mesmo nestas circunstâncias — simplesmente porque um pensamento do baixo clero universitário, logo satisfeito, pensamento completamente inserido no elogio deslumbrado do sistema existente, conduz de modo chão toda realidade à existência do sistema.
202
Como em toda ciência social histórica, é preciso sempre manter presente, para compreender as categorias “estruturalistas”, que as categorias expressam formas de existência e condições de existência. Assim como não se aprecia o valor de um homem segundo a ideia que ele tem de si próprio, não se pode apreciar — e admirar — uma sociedade qualquer tomando como indiscutivelmente verídica a linguagem que ela usa consigo mesma. “Não é possível apreciar determinadas épocas de transformação de acordo com a consciência que a época tem delas; ao contrário, deve-se explicar a consciência com a ajuda das contradições da vida material...” A estrutura é filha do poder. O estruturalismo é o pensamento garantido pelo Estado, que pensa as atuais condições da “comunicação” espetacular como um absoluto. Seu modo de estudar o código das mensagens em si mesmo é apenas o produto e o reconhecimento de uma sociedade na qual a comunicação existe sob a forma de cascata de sinais hierárquicos. Assim, não é o estruturalismo que serve para provar a validade trans-histórica da sociedade do espetáculo; ao contrário, é a realidade maciça da sociedade do espetáculo que serve para provar o sonho frio do estruturalismo.
203
Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular. Porque é evidente que nenhuma ideia pode levar além do espetáculo existente, mas apenas além das ideias existentes sobre o espetáculo. Para destruir de fato a sociedade do espetáculo, é preciso que homens ponham em ação uma força prática. A teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar- se à corrente prática da negação na sociedade. E essa negação, a retomada da luta de classes revolucionária, se tornará consciente de si ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a teoria de suas condições reais, das condições práticas da opressão atual, desvelando inversamente o segredo do que ela pode ser. Essa teoria não espera milagres da classe operária. Ela considera a nova formulação e a realização das exigências proletárias como uma tarefa de grande fôlego. Para distinguir artificialmente luta teórica e luta prática — pois, sobre a base aqui definida, a própria constituição e a comunicação de tal teoria só podem ser concebidas com uma prática rigorosa —, é certo que o caminhar obscuro e difícil da teoria crítica deverá ser também o apanágio do movimento prático agindo na escala da sociedade.
204
A teoria crítica deve comunicar-se em sua própria linguagem, a linguagem da contradição, que deve ser dialética na forma como o é no conteúdo. É crítica da totalidade e crítica histórica. Não é um “grau zero da escrita”, mas sua inversão. Não é uma negação do estilo, mas o estilo da negação.
205
Pelo próprio estilo, a exposição da teoria dialética é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante e para o gosto que elas educaram: no emprego positivo dos conceitos existentes, essa exposição inclui também a compreensão de sua fluidez reencontrada, de sua destruição necessária.
206
Esse estilo que contém sua própria crítica deve expressar a dominação da crítica presente sobre todo o seu passado. Por ele o modo de exposição da teoria dialética comprova o espírito negativo que existe nela. “A verdade não é como o produto no qual já não se encontra vestígio do instrumento” (Hegel). Essa consciência teórica do movimento, na qual o próprio vestígio do movimento deve estar presente, manifesta-se pela inversão das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo desvio de todas as aquisições da crítica anterior. A inversão do genitivo é a expressão das revoluções históricas, registrada na forma de pensamento, que foi considerada como o estilo epigramático de Hegel. O jovem Marx, ao preconizar, seguindo o uso sistemático que Feuerbach fizera disso, a substituição do sujeito pelo predicado, chegou ao emprego mais consequente desse estilo insurrecional que, da filosofia da miséria, extrai a miséria da filosofia. O desvio subverte as conclusões críticas passadas que foram cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras. Kierkegaard já fizera uso disso deliberadamente, acrescentando por sua vez uma denúncia: “Mas não obstante as voltas e rodeios, como a geléia volta sempre para o armário, você sempre acaba acrescentando uma palavrinha que não é sua e que perturba pela lembrança que ela evoca” (Miettes philosophiques). A obrigação da distância para com o que foi falsificado como verdade oficial determina esse emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaard no mesmo livro: “Ainda uma última observação a propósito de suas inúmeras alusões, todas referentes à acusação de que, nas minhas afirmações, misturo palavras tiradas de outros. Não nego e já não vou esconder que era deliberado. Na continuação deste texto, se algum dia eu escrevê-la, tenho a intenção de chamar o objeto por seu verdadeiro nome e revestir o problema com roupagem histórica.”
207
As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta.
208
O uso desviado é o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada pelo simples fato de se ter tornado citação; fragmento arrancado do seu contexto, do seu movi- mento, da sua época como referência global e da opção exata que representava dentro dessa referência, exatamente reconhecida ou falseada. O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação que sabe que não pode deter nenhuma garantia em si mesma e definitivamente. Ele é, no mais alto nível, a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. Ao contrário, sua própria coerência, em si mesmo e com os fatos praticáveis, pode confirmar o antigo núcleo de verdade que ele traz de volta. O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua própria verdade como crítica presente.
209
O que, na formulação teórica, apresenta-se abertamente como desviado, ao desmentir toda autonomia durável da esfera do teórico enunciado, ao fazer nele intervir por essa violência a ação que incomoda e arrasta toda ordem existente, lembra que essa existência do teórico não é nada em si mesma. Só se pode conhecer sua verdadeira fidelidade pela ação histórica e pela correção histórica.
210
A negação real da cultura é a única coisa que lhe conserva o sentido. Já não pode ser cultural. Desse modo, ela é o que sobra, de certa forma, no nível da cultura, embora numa acepção bem diferente.
211
Na linguagem da contradição, a crítica da cultura se apresenta unificada: porque domina toda a cultura — seu conhecimento e sua poesia — , e porque ela já não se separa da crítica da totalidade social. É essa crítica teórica unificada, e apenas ela, que vai ao encontro da prática social unificada.
Capitulo IX
A ideologia materializada
A consciência de si existe em si e para si quando e porque ela existe em si e para si diante de uma outra consciência de si: isto é, ela só existe como ser reconhecido.
Hegel (Fenomenologia do Espírito)
212
A ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da história. Os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem uma real ação deformante; tanto mais que a materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto da produção econômica autonomizada, na forma do espetáculo, praticamente confunde com a realidade social uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo com seu modelo.
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Quando a ideologia, que é a vontade abstrata do universal e sua ilusão, se encontra legitimada na sociedade moderna pela abstração universal e pela ditadura efetiva da ilusão, ela já não é a luta voluntarista do parcelar, mas seu triunfo. Assim, a pretensão ideológica adquire uma espécie de chã exatidão positivista: já não é uma escolha histórica, mas uma evidência. Numa afirmação dessas, os nomes específicos das ideologias sumiram. Até a parte de trabalho propriamente ideológica a serviço do sistema já não se concebe senão como reconhecimento de uma “base epistemológica” que se pretende além de qualquer fenômeno ideológico. A ideologia materializada não tem nome, como também não tem programa histórico enunciável. Isso equivale a dizer que a história das ideologias acabou.
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A ideologia, cuja lógica interna levava à “ideologia total”, no sentido de Mannheim, despotismo do fragmento que se impõe como pseudo-saber de um todo estático, visão totalitária, está agora realizada no espetáculo imobilizado da não-história. Sua realização é também sua dissolução no conjunto da sociedade. Com a dissolução prática dessa sociedade, deve desaparecer a ideologia, a última desrazão que bloqueia o acesso à vida histórica.
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O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente,“a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem”. A “nova força do embuste” que nele se concentrou tem por base essa produção, pela qual “com a massa de objetos cresce... o novo domínio dos seres estranhos a quem o homem fica sujeito”. E o estágio supremo de uma expansão que fez com que a necessidade se oponha à vida. “A necessidade de dinheiro é a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz” (Manuscritos econômico-filosóficos). O espetáculo estende a toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe como o do dinheiro: é “a vida do que está morto se movendo em si mesma”.
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Ao contrário do projeto resumido nas Teses sobre Feuerbach (a realização da filosofia na práxis que supera a oposição entre idealismo e materialismo), o espetáculo conserva ao mesmo tempo, e impõe no pseudoconcreto de seu universo, os caracteres ideológicos do materialismo e do idealismo. O lado contemplativo do velho materialismo que concebe o mundo como representação e não como atividade — e que afinal idealiza a matéria — se completa no espetáculo, no qual coisas concretas são automaticamente donas da vida social. Reciprocamente, a atividade sonhada do idealismo em geral se completa no espetáculo, pela mediação técnica de signos e sinais, que afinal materializam um ideal abstrato.
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O paralelismo entre ideologia e esquizofrenia estabelecido por Gabel (La Fausse conscience) deve ser compreendido nesse processo econômico de materialização da ideologia. O que a ideologia já era, a sociedade tornou-se. A desinserção da práxis, e a falsa consciência antidialética que a acompanha, eis o que é imposto em cada momento da vida cotidiana sujeita ao espetáculo; eis o que é preciso compreender como uma organização sistemática da “falha da faculdade de encontro”, e como sua substituição por um fato alucinatório social: a falsa consciência do encontro, a “ilusão do encontro”. Numa sociedade em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria realidade. A ideologia está em casa; a separação construiu seu próprio mundo.
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“Nos quadros clínicos da esquizofrenia”, diz Gabei, “a decadência da dialética da totalidade (que tem como forma extrema a dissociação) e a decadência da dialética do devir (que tem como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias.” A consciência espectadora, prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do espetáculo, para trás da qual sua própria vida foi deportada, só conhece os interlocutores fictícios que a entretêm unilateralmente com sua mercadoria e com a política de sua mercadoria. O espetáculo, em toda a extensão, é sua “imagem do espelho”. Aqui se encena a falsa saída de um autismo generalizado.
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O espetáculo, que é o apagamento dos limites do eu [moi] e do mundo pelo esmagamento do eu [moi] que a presença-ausência do mundo assedia, é também a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência. Quem sofre de modo passivo seu destino cotidianamente estranho é levado a uma loucura que reage de modo ilusório a esse destino, pelo recurso a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no cerne dessa pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta. A necessidade de imitação que o consumidor sente é esse desejo infantil, condicionado por todos os aspectos de sua despossessão fundamental. Segundo os termos que Gabel aplica em outro nível patológico,“a necessidade anormal de representação compensa aqui o sentimento torturante de estar à margem da existência”.
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Se a lógica da falsa consciência não pode conhecer a si própria de forma verídica, a busca da verdade crítica sobre o espetáculo tem de ser também uma crítica verdadeira. Praticamente, ela tem de lutar no meio dos inimigos irreconciliáveis do espetáculo e admitir estar ausente lá onde eles estão ausentes. Quando compactua com o reformismo ou com a ação comum de restos pseudo-revolucionários, a vontade abstrata da eficácia imediata reconhece as leis do pensamento dominante, o ponto de vista exclusivo da atualidade. Assim, o delírio se refaz na própria posição que pretende combatê-lo. Ao contrário, a crítica que vai além do espetáculo deve saber esperar.
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Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipação de nossa época. Nem o indivíduo isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação podem realizar essa “missão histórica de instaurar a verdade no mundo”, tarefa que cabe, ainda e sempre, à classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática controla a si mesma e vê sua ação. Somente ali os indivíduos estão “diretamente ligados à história universal”; somente ali o diálogo se armou para tornar vitoriosas suas próprias condições.
[1] 18 de março de 1871 é a data do início da Comuna de Paris, levante revolucionário que se estendeu a outras cidades francesas e só foi dominado cerca de dois meses depois. (N. da T.)
[2] O líder anarquista russo Mikhail Bakunin (1814-1876) concebeu uma entidade a que denominou Fraternidade Internacional, que reuniria ativistas organizados em federações de caráter nacional ou regional. A Federação Jurassiana era uma delas. (N. da T.)
[3] Hic Rhodus, hic salta é a tradução latina de uma expressão grega que aparece numa fábula de Esopo: “Aqui é Rodes, salta aqui.” O personagem diz isso quando ouve um mentiroso gabar-se do enorme salto que, supostamente, dera na ilha de Rodes. A expressão passou a ser usada no sentido de indicar a chegada da “hora da verdade”. (N. da T.)
[4] As teorias Lyssenko em genética, hoje desmoralizadas, foram aceitas pelo Estado soviético na época de Stalin por serem consideradas mais fiéis aos princípios do materialismo dialético.
[5] Referência ao ludismo, movimento de trabalhadores contra as máquinas que causavam desemprego nas décadas que se seguiram à Revolução Industrial.
[6] Atestado de aprovação que um mestre dá ao aluno. Literalmente, em latin, “ele satisfez”. (N. da T.)
[7] A Fronda foi uma sublevação contra novos encargos fiscais determinados pelo governo francês. Ela se estendeu de Paris às províncias de 1648 e 1652, mas fracassou. A aliança dos escoceses com o rei inglês Carlos I ocorreu na década de 1640, no contexto da guerra civil que terminou com a vitória das forças de Oliver Cromwell, processo que teve profundas consequêncais políticas: Carlos I foi executado em 30 de janeiro de 1649, a Câmara dos Lordes foi abolida e a Inglaterra transformou-see em Commom-wealth ou república. (N. da T.)
[8] A Internacional Situacionista (IS) foi um movimento contestador surgido em 1957, cuja atuação foi marcante em todo o processo de luta política, ideológica e cultural que culminou nos acontecimentos de 1968. O movimento, que teve em Guy Debord seu pensador mais influente, deixou como principal herança teórica “A Sociedade do Espetáculo’’’. A IS deixou de existir em 1972. (N. da T.)