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Geração Diáspora
Produzindo territórios a partir do desterro
Como bom filho de caçador, tenho uma tendência ao movimento. Saí tarde de casa, mas decidi vir para longe de minha casa e da família, em partes na tentativa de romper com velhas práticas adoecedoras que recebemos como herança e tentar produzir outras formas de viver. Nesse movimento, sem saber, abracei a diáspora que sou. Minha família, fundada no desterro dos povos do interior de Pernambuco e dos povos-territórios transatlânticos chegados de África, se compôs como tantas outras, tentando manter suas formas de vida e se defender do habitar colonial, que entre gerações se forçou em nossos hábitos e a cada vida, se fez mais presente. Romper com essa tradição ao mesmo tempo que busco retomar a história e os laços que foram sendo deixados para o passado é o grande esforço que me cabe atualmente.
Porém é interessante pensar que esse não é um caminho unicamente meu. De forma tão consoladora quanto assustadora, vejo várias pessoas que como eu, orbitando os 30, buscam entender novamente suas histórias, se reconectarem com a ancestralidade e em muitos momentos, apesar da violência neoliberal de nosso tempo, encontrar outras formas de viver. Apesar da forma ainda adoecida que isso possa acontecer, cooptada por conglomerados tecnológicos que capturam e deturpam as mudanças que tentam se apresentar, buscamos repensar a forma como nos ensinaram a viver, contestando a monogamia, as dinâmicas familiares, o adoecimento psíquico que carregamos pela falta de movimentos de cura de quem nos precedeu. A pouca esperança que isso promove reside mais no peso da mão do Estado em tentar nos manter desencantados que no desejo coletivo por mudança, esse latente nas mentes velhas e jovens por toda a parte.
De nós que somos resultado da diáspora, folhas ao vento das tantas árvores que derrubaram aqui e lá ao longo dos séculos, recai então uma missão tão bela quanto ingrata. Enquanto os povos que permaneceram nos territórios seguem lutando para mantê-los vivos e receber quem tem a oportunidade de regressar, nós que vagamos ao vento tentamos recriar mundos pelo caminho. A estrada acaba por se tornar nosso território, sendo as vidas marcadas pelas famílias e comunidades que tentamos produzir (por vezes inconscientemente) ao longo do processo. É duro o processo de entender de que não há mais o mundo pré-colonial. Não há retorno para Matamba e tampouco uma terra sem brancos e sem aos hábitos coloniais de produção de morte. Nascemos num momento da história que até existir fora dos mapas é algo quase inviável, dado o povoamento do céu por satélites e seu esvaziamento de significados. Cercados de tecnologias da máquina que nos desterrou e vítimas do apagamento das nossas tecnologias de vida e encantamento, ficamos responsáveis por criar os mundos pós-coloniais.
É importante frisar que isso não é e nem será feito hasteando grandes bandeiras, como os colonizadores decoloniais têm insistido em fazer. O fazemos através de nossos corpos. A partir de nossos amores. Buscamos praticar aquilo que pensamos que precisa ser diferente. Erramos diferente. Pagamos o preço diário da desorientação, sabendo o que não queremos reproduzir e tentando por tentativa e erro dar forma a algo que possamos ficar contentes em chamar de vida. Assim, vamos talhando com nossos amores, frustrações, incertezas e porque não, com nosso gozo, os territórios que estarão aí à beira da estrada para quem vier depois de nós.
Todo mundo é ancestral de alguém. Hoje estamos onde a correnteza de tantas outras vidas nos trouxe. Daqui, tentamos produzir os mundos onde tantos outros mundos se formarão e seguirão. Da destruição e desolação deixada pra nós (e de nós) refazemos o movimento feito por nossas/os ancestrais. É fácil esquecer, mas todo território um dia foi fundado. Em algum momento as pessoas decidiram parar num determinado local, assumiram o compromisso de estabelecer um convívio e passaram a trabalhar, ao longo de séculos, para fundamentar tudo o que vemos hoje como tradição. Seja pela guerra, pelo diálogo, pelos consensos e dissensos, o que vemos hoje como territórios ancestrais são o produto da decisão tomada há tempos e repassada vida após vida de manter o encantamento, de manter o mundo. No meio disso chegaram as diversas apresentações do maquinário colonial que esquartejaram e desenvolveram esses espaços. Do sangue espalhado desse massacre brotamos nós.
Dessa maneira, nos resta dar continuidade a esse jogo entra a radicalidade e a sobrevivência material. A ruptura com o que nos foi posto na tentativa de curar nós mesmos e por consequência, produzir mundos saudáveis. Acredito que seja revigorante pensar nisso ao nos colocarmos para novas relações e amores, visto que a solidão persegue quem por tantas vezes se vê sem lugar. Cada vínculo estabelecido, cada afeto cultivado é um pedaço possível do mundo que estamos a criar. Fazer esses movimentos de maneira consciente e intencional nos move então em direção à mudança. Se as grandes revoluções anunciadas a plenos pulmões por políticos de tantas frentes seguem sem se mexer, a nós, descendentes dos povos que não precisaram de revoluções pois se mantinham conscientemente em mudança, talvez caiba viver micro-revolucionando nossos dias. Cultivando esses territórios de trânsito, construindo as comunidades que estão por vir e intencionalmente, tecendo os amanhãs que serão vistos no horizonte dessa estrada. A soma desses esforços podem permitir que alguns dos nossos um dia consigam produzir assentamentos e geracionar territórios por aí. Enquanto isso, a diáspora segue com seu vento deixando de ser o sinônimo de nossa catástrofe para se tornar o anúncio da vida se espalhando e tomando de conta.