Título: Problemas da libertação da mulher
Autor: He Zhen
Assuntos: anarquismo, China, feminismo
Data: 1907
Notas: Versão inglesa em Documentary History of Libertarian Ideas, Vol. One, de Robert Graham

O mundo nos últimos milénios tem sido […] um mundo construído pela hierarquia de classes e dominado pelos homens. Para tornar o mundo melhor, é preciso eliminar o sistema da dominação masculina e praticar a igualdade de modo que homens e mulheres partilhem o mundo em conjunto. Todas estas mudanças começam com a libertação das mulheres.

Por milhares de anos a estrutura social da China forçou as mulheres a serem escravas submissas. Nos tempos antigos, as mulheres foram feitas propriedade dos homens. Para prevenir a libertinagem, os homens estabeleceram ensinamentos morais que enfatizavam a diferença entre os sexos. Com o tempo, a diferença entre machos e fêmeas começou a ser vista como lei natural. As mulheres foram confinadas aos seus aposentos privados, raramente podiam viajar […] a responsabilidade da mulher foi limitada ao cuidado das crianças e à gestão do lar.

A religião chinesa acredita que os descendentes contêm o espírito dos antepassados, e assim as pessoas pensam que a propagação é um modo de alcançar a imortalidade. O sistema político chinês trata as crianças como propriedade, e assim as pessoas veem na procriação um meio de obter riqueza. Por conseguinte, com a religião e o sistema político a apoiarem a indulgência sexual dos homens, estes tratam as mulheres como uma ferramenta para reprodução humana. Além disso, os homens chineses raramente estão disponíveis para lidar com as triviais tarefas domésticas; ao invés, têm as mulheres para todo o trabalho físico assim como para cuidar das crianças. Há outras causas para que o cuidado das crianças e a gestão doméstica sejam feitos carreira vitalícia das mulheres. Primeiro, os homens tratam as mulheres como sua propriedade privada. Segundo, o baixo nível de vida dos tempos pré-modernos fez com que só o labor do homem bastasse para alimentar a família, de modo que as mulheres de famílias abastadas raramente tinham outra ocupação além das crianças e a casa. Assim, todos os vícios da escravatura e da ociosidade reúnem-se em torno das mulheres […] Só nas famílias pobres as mulheres costumam contar consigo próprias para ganhar a vida. Trabalham nos campos; são contratadas como criadas; no pior dos casos, tornam-se prostitutas. Estas mulheres, embora fisicamente menos confinadas, nunca chegam à libertação espiritual. De facto, as que obtêm libertação física são na verdade as mais exploradas, humilhadas e degradadas […]

Os homens querem evitar a libertação das mulheres porque temem que a libertação conduza as mulheres a comportamentos promíscuos. Quanto mais restrições os homens impõem às mulheres, maior é nelas o desejo de transgressão. As mulheres agarrarão qualquer oportunidade para se soltarem; assim como, ainda que roubar seja proibido, quando o ladrão descobre o valor do objeto, a sua vontade de o roubar só aumenta. Logo, é o confinamento, e não a libertação, que conduz ao adultério das mulheres. Como podem os chineses dizer que a libertação faz as mulheres promíscuas? Eles não entendem a verdadeira causa. Quanto mais proíbem a libertação das mulheres, mais as virtudes femininas degeneram. É por isso que as mulheres chinesas não avançam […]

A verdadeira libertação significa liberdade completa de todo o confinamento. O sistema de casamento ocidental contemporâneo é limitado por condições de poder, riqueza, pela lei e a moral. Embora digam que o casamento é voluntário, será que todos os homens e mulheres do ocidente casam apenas por amor? Os homens costumam seduzir as mulheres com a sua riqueza; mulheres de famílias ricas também conseguem atrair mais pretendentes. Às vezes, homens ricos até forçam mulheres pobres a casar com eles. Esta é a limitação do casamento pela riqueza. Em alguns casos, homens casam com mulheres de origens prestigiadas como meio de eles próprios subirem socialmente; noutros casos, homens de prestígio e mulheres de baixo estatuto social não podem casar por causa das suas diferenças de classe. Esta é a limitação do casamento pelo poder. Simplesmente não há casamento de liberdade! […] Embora as mulheres recebam a mesma educação que os homens nas sociedades modernas governadas pela lei, elas raramente têm oportunidade de estudar política ou direito, para não falar de ingressar no exército ou nas academias de polícia. Embora se diga que as mulheres têm as mesmas oportunidades que os homens no estado moderno governado pela burocracia, elas não ocupam cargos públicos. A igualdade de género só existe nominalmente.

A libertação das mulheres deveria dar-lhes o benefício da igualdade e liberdade verdadeiras. O sistema ocidental de hoje dá às mulheres liberdade e igualdade apenas nominalmente. A liberdade que dizem ter é uma falsa liberdade! A igualdade é igualmente falsa! Sem verdadeira liberdade, as mulheres não avançam plenamente. Sem verdadeira igualdade, os direitos humanos não são gozados por toda a gente. As mulheres asiáticas, admiradas com o desenvolvimento da civilização ocidental, acreditam que as mulheres ocidentais estão libertas e que partilham plena liberdade e igualdade com os homens. Querem seguir as pegadas das mulheres ocidentais. Ai de mim! Estando nós na era da revolução das mulheres, eu não quero que as mulheres tenham apenas falsa liberdade e falsa igualdade; espero ardentemente que obtenham liberdade e igualdade verdadeiras!

Nos anos recentes, as pessoas começaram em busca da libertação das mulheres na sociedade chinesa. A libertação das mulheres pode ser obtida ativamente ou passivamente. O que quer dizer obter a libertação ativamente? É quando as mulheres defendem a sua própria libertação e lutam por ela. O que quer dizer obter a libertação passivamente? É quando a libertação é garantida às mulheres pelos homens. A libertação das mulheres chinesas hoje tem sido promovida principalmente pela via passiva. Quando a maioria dos defensores da libertação das mulheres são homens, elas não beneficiam tanto quanto eles. Porque é que os homens, que no passado promoveram com todo o empenho o confinamento e o constrangimento das mulheres, começaram a apoiar a igualdade de género e a libertação feminina nos anos recentes? Há três explicações. Primeira, os homens chineses veneram o poder bruto. Eles acreditam que a China deveria seguir os sistemas das maiores forças civilizacionais do mundo, como a Europa, a América e o Japão. Se os homens chineses proibissem a prática dos pés de lótus nas suas mulheres e filhas, e as colocassem na escola para se educarem, então a China seria considerada civilizada. Os homens chineses gozariam da fama de civilização, tal como as suas famílias. Quando esses homens “civilizados” aparecerem em público com a sua mulheres e filhas “civilizadas”, serão aplaudidos pela sua proeza. Estes homens promovem a libertação das mulheres por preocupação com as mulheres? Não. Eles apenas usam as mulheres para obter a sua própria fama. A sua preocupação egoísta mostra que eles tratam as mulheres como sua propriedade privada. Se o avanço das mulheres não lhes afetasse a reputação, eles não estariam tão interessados na sua libertação. A privatização das mulheres por parte dos homens chineses manifestou-se primeiro pelo seu empenho em confinar as mulheres na velha sociedade tradicional; e agora é demonstrado pelo seu apelo à libertação das mulheres segundo o modelo ocidental.

Segundo, a promoção da libertação das mulheres por parte de homens chineses também está relacionada com a estagnação económica da China. As famílias da classe média têm dificuldades em suportar os seus membros femininos. Os homens compreendem que não ganham com o confinamento das mulheres; pelo contrário, isso deixa a sua economia devastada. Então eles defendem a independência das mulheres e veem na sua dependência económica relativamente aos homens o seu prior inimigo. Homens chineses encorajam então as suas filhas a entrar nas escolas femininas. Mulheres de famílias menos abastadas aprendem ofícios manuais como o bordado, tricot, a costura e a culinária. As mais afortunadas vão para as escolas de professores. As mulheres mais avançadas recebem treinamento profissional, como medicina e ciência, fora do currículo regular. Os homens promovem a educação feminina, não para melhorar a situação das mulheres, mas para sua própria vantagem. Quando obtêm a sua graduação, as mulheres conseguem viver por conta própria tornando-se professoras ou operárias qualificadas. Também são forçadas a apoiar as suas famílias. Com as suas filhas a partilharem agora os encargos familiares, ou até a tornarem-se o principal ganha-pão da casa, os homens podem gastar mais do seu tempo e do seu dinheiro com as suas amantes e prostitutas. Enquanto os homens se entregam aos prazeres sem restrições, as suas filhas sofrem a solidão das dificuldades. Os homens defendem a independência das mulheres para o seu proveito próprio. Esta é a segunda razão para os homens chineses promoverem a libertação da mulher.

A terceira razão é que os homens chineses valorizam a família e têm grandes expectativas para os seus filhos. Contudo, não têm competência para lidar com a tarefa de cuidar da casa e das crianças por si próprios. Querem que as mulheres fiquem com essa responsabilidade. Por conseguinte, a “economia do lar” torna-se a disciplina mais popular nas escolas femininas da China. Até o novo partido estabelecido na China (a Aliança Revolucionária) disse que a educação doméstica é a base de toda a educação. Está implícito que a mulher civilizada consegue tratar melhor da casa e educar melhor as crianças do que a mulher retrógrada. Com efeito, a família pertence ao homem, pelo que cuidar da família é servir o homem; as crianças também pertencem ao homem, ficando com o apelido do pai e não o da mãe. É por isto que os homens querem usar as mulheres para os seus fins. Em conclusão, as três razões acima referidas demonstram que os homens de modo egoísta tiram proveito da libertação das mulheres. Eles dizem ajudar as mulheres a obter independência e a tornar-se civilizadas; contudo, eles prometem às mulheres a esperança da libertação mas na verdade atiram-nas para situações difíceis. Na sociedade tradicional, os homens tinham estatuto superior ao das mulheres mas estas gozavam de mais liberdade física e mais tempo de lazer; na sociedade de hoje, os homens continuam superiores às mulheres, embora elas partilhem o trabalho deles e eles partilhem o prazer delas. Por que deveriam as mulheres sentir-se felizes de serem usadas pelos homens? Mulheres tolas louvam homens por iniciarem a libertação feminina. Não compreendem que estão a fazer exatamente o mesmo que aqueles que enaltecem os constitucionalistas Manchu. Os Manchu escreveram uma constituição, mas não estão dispostos a garantir poder político ao povo. De modo semelhante, a promoção da emancipação das mulheres por parte dos homens não significa que elas obterão poder real da parte deles.

Não estou a dizer que os homens devem fazer todo o trabalho, nem a sugerir que os direitos das mulheres não devam ser expandidos e que elas devam cumprir os seus deveres de bom grado. O que eu estou a dizer é: o movimento pelos direitos da mulher deve ser uma luta das mulheres, não uma garantia dada pelos homens. Se as mulheres acatam ordens de homens, já perderam a sua liberdade; se as mulheres recebem direitos de homens, já se tornaram dependentes deles. Quando a emancipação das mulheres está nas mãos de homens, estes aproveitam-se delas e acabam por subordiná-las a si. É por isso que eu defendo que as mulheres devem buscar a sua própria libertação sem dependerem de homens que lha deem. Hoje as mulheres chinesas olham todas para os homens como a resposta para a sua libertação. Estão dispostas a ter um papel passivo porque lhes falta autoconsciência. Sem autoconsciência, as mulheres são manipuladas pelos homens e ainda os honram. Não serão estas as mulheres com mais falta de vergonha?

Falei dos inconvenientes da libertação feminina passiva. Sem dúvida, há algumas mulheres chinesas que têm buscado a liberdade e a igualdade e que não querem ser restringidas pelas tradições. A sua promoção de libertação parece ser conduzida pela sua vontade própria. Contudo, precisamos de explorar as suas verdadeiras motivações. O que elas realmente querem é entregar-se aos seus desejos sexuais sem entraves em nome da liberdade e igualdade. Interpretam de modo estreito a libertação como a via de libertar desejos sexuais. Não compreendem que a verdadeira emancipação só poderá ser obtida se as mulheres conseguirem ganhar o poder de transformar a sociedade. Quando as mulheres só estão interessadas em amor e sexo, o seu espírito de salvar a humanidade será substituído por desejos excessivos e por conseguinte a sua missão não será cumprida. É justificável se a obsessão das mulheres partir da busca do amor livre. Mas muito poucas mulheres chinesas entram nesta categoria. Algumas simplesmente não resistem à tentação e vão com qualquer homem; outras são seduzidas e tornam-se decadentes. Algumas trocam os seus corpos por riqueza: ou enveredam fazem dinheiro através da prostituição ou vão seduzindo e namorando homens ricos. Rebaixar-se assim em busca de riqueza é o tipo de comportamento mais degradante. Podemos chamar a tal conduta um ato de liberdade? E sendo que o termo “libertação” originalmente significa ser livre da escravidão, como poderemos fazer uma ligação entre prostitutas e mulheres libertas? Essas mulheres confundem a libertação com indulgência sexual, pelo que fica difícil compreenderem que já se tornaram nas prostitutas mais rebaixadas.

Hoje as mulheres caucasianas compreendem os problemas da desigualdade de género e identificam a distribuição desigual do poder como a origem dessa desigualdade. Elas criam organizações para lutar pelo sufrágio feminino […]

A maioria das mulheres já é oprimida pelo governo e pelos homens. O sistema eleitoral simplesmente reforça a sua opressão introduzindo um terceiro grupo dominante: as mulheres de elite. Mesmo com a opressão permanecendo a mesma, a maioria das mulheres é ainda enganada para proveito de mulheres minoritárias.

Quando poucas mulheres no poder dominam a maioria das mulheres que não têm poder, uma desigualdade de classe é criada entre elas. Se a maioria das mulheres não querem ser controladas por homens, porque é que hão-de querer ser controladas por mulheres? Portanto, em vez de competirem com os homens pelo poder, as mulheres devem lutar pelo derrube do domínio masculino. Quando se tirar aos homens os seus privilégios, eles tornar-se-ão iguais às mulheres. Não haverá mulheres nem homens submissos. Isto é a libertação das mulheres. Isto é reforma radical. Por que nos haveríamos de contentar com o sistema eleitoral existente e com o movimento sufragista como um objetivo final? Que as mulheres interessadas possam transformar o seu movimento para que, de movimento para entrar no governo, passe a ser movimento para exterminar o governo!