#title As Jornadas de Junho de 2013 no Brasil: Anarquismo e Tática Black Blocs #author Isaias Albertin Moraes #LISTtitle Jornadas de Junho de 2013 no Brasil: Anarquismo e Tática Black Blocs, As #SORTauthors Isaias Albertin Moraes; Fernando Antonio da Costa Vieira #SORTtopics anarquismo, contentious politics, movimentos sociais, jornadas de junho de 2013 no Brasil, black blocs. #date jul./dez. 2017 #source Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v.7, n. 2, p.165-198 #lang pt #pubdate 2019-08-10T22:00:00 RESUMO: O presente trabalho é fruto de pesquisa de campo realizada nas Jornadas de junho de 2013 com objetivo de avaliar a participação dos anarquistas, o uso da tática Black Blocs e a cobertura da mídia. Para atingir seu escopo, na primeira parte, a pesquisa apresentou notas sobre o anarquismo e uma breve historiografia do movimento no Brasil. Na segunda parte, focou-se em relatar as experiências vivenciadas em trabalho de campo realizado nas cidades de São Paulo e de Rio de Janeiro durante as Jornadas de junho de 2013. Empenhou-se em contextualizar e em avaliar criticamente o cenário multifacetado e complexo em que as manifestações estavam inseridas. Os resultados obtidos com a pesquisa empírica e as entrevistas foram confrontados com as contribuições teóricas existentes sobre a temática e o material midiático produzido, criando a possibilidade de um diálogo entre as diversas fontes levantadas. ** INTRODUÇÃO O presente artigo é resultado parcial de pesquisa de campo realizada desde 2013 no âmbito do Laboratório de Movimento Sociais e Mídia (LMSM) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ/UCAM). A pesquisa buscou refletir sobre a participação dos anarquistas nas Jornadas de junho de 2013, sua tática Black Blocs e a cobertura midiática ao movimento. Importante frisar que como LMSM do IUPERJ/UCAM já tinha pesquisadores realizando estudos correlacionados com a ideologia, a história e o renascimento do movimento anarquista no Brasil e no mundo, quando eclodiram as manifestações de junho de 2013, a ideia de tentar registrar essa participação já estava pré-concebida. Os procedimentos técnicos priorizados foram: bibliográficos, documentais e pesquisa de campo. O objetivo da metodologia é o exploratório, pois o ressurgimento dos movimentos anarquistas recentemente no Brasil ainda é algo pouco conhecido, pouco explorado. O estudo, portanto, almejou muito mais aprimorar ideias, descortinar intuições e construir hipóteses do que responder perguntas. A primeira parte da pesquisa dedicou-se em realizar algumas notas da ideologia anarquista e de apresentar uma breve pesquisa histórica do movimento no Brasil. Em um segundo momento, o artigo intentou em descrever cronologicamente as Jornadas de junho de 2013, procurando dar maior ênfase na análise dos manifestantes anarquistas, na tática Black Blocs e na cobertura midiática do processo, porém contextualizando e avaliando criticamente o cenário multifacetado e complexo em que todos estavam inseridos. Para explanar sobre a temática proposta, a pesquisa usou dados de trabalho de campo coletados pelos autores e por colaboradores nas principais manifestações realizadas nas cidades de São Paulo e de Rio de Janeiro em junho de 2013. Nessa ocasião, procurou-se desempenhar observação direta das atividades do grupo estudado e entrevistas não estruturadas e focalizadas com informantes para captar as explicações e as interpretações do ocorrem naquela realidade. Foram criadas, além disso, redes de contatos com ativistas anarquistas e com coletivos para coleta de novas informações, buscando o aprofundamento e a exploração, por meio de entrevistas periódicas e informais conversacionais. Os resultados obtidos com a pesquisa empírica e as entrevistas foram confrontados com a produção bibliográfica existente sobre o tema, com a pesquisa documental e com o conteúdo midiático selecionado, criando a possibilidade de um diálogo entre as diversas fontes levantadas. Adotou-se uma abordagem sistemática por meio da avaliação crítica dos dados bibliográficos e históricos, de fontes primárias e secundárias, tais como: livros, revistas, jornais, vídeos, discursos, fotografias, anúncios, entre outros. Como referencial teórico para contribuir na análise desse novíssimo movimento social contemporâneo, o artigo elencou a Contentious Politics (Teoria do Confronto Político, em português[1]), mormente os estudos relacionados à ideologia em fenômenos sociais mais amplos. Para a operacionalização conceitual de movimentos sociais, a pesquisa definiu o apresentando pela pesquisadora brasileira Maria da Glória Gohn. Segundo a autora: Para nós, desde logo é preciso demarcamos nosso entendimento sobre o que são movimentos sociais: nós os vemos como ações sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações, etc), até as pressões indiretas” (Gohn, 2003, p.13). Para compreender a construção teórico-lógica-argumentativa do artigo se faz necessário definir, mesmo que seja sucintamente, pois não é o escopo da pesquisa, as principais características da Contentious Politics. Em 1996, Doug McAdam, Sidney Tarrow e Charles Tilly publicaram o artigo To Map Contentious Politics em que procuraram apresentar um quadro teórico único para as pesquisas relativas a processos sociais, tais como: conflitos étnicos, religiosos, industriais, revoluções, ações coletivas e movimentos sociais. Segundo os autores: Contention begins when people collectively make claims in other people, claims which if realized would affect those others’ interest. Claims run from humble supplications to brutal attacks, passing through petitions, chanted demands, and revolutionary manifestos. Contention therefore depends on mobilization, on creation of means and capacities for collective interaction” (McAdam, Tarrow, Tilly, 1996, p.17-18). Para os teóricos dessa corrente, a interação coletiva envolve dois pontos: a) há sempre contencioso, pois faz reivindicações vinculadas a outros interesses; b) um dos grupos envolvidos nessa interação conflitiva é o governo, estabelecido em um território definido e controlando os meios de coerção. Os autores descrevem a interdependência e a continuidade entre a presença do Estado e a atuação dos movimentos sociais (McAdam, Tarrow, Tilly, 1996). Segundo MacAdam, Tarrow e Tilly (1996), à medida que o Estado vai ganhando força e se aprofundando vão surgindo conflitos na sociedade. Esses que antes estavam concentrados nas relações sociais e locais deslocam-se para centros nacionais de tomadas de decisão. A luta pelo controle do poder estatal faz com que os cidadãos, agora estabelecidos em papéis e em identidades padronizados pelo Estado, organizam-se em redes, surgindo os movimentos sociais. Outra questão apresentada pelos autores é a relação das revoluções e os movimentos sociais. Para os formuladores da Contentious Politics, a sociedade possui ciclos de conflitos. Esses se caracterizam pelo conflito acentuado que atravessa um sistema social e envolve variados tipos de ação coletiva. Segundo os autores, conforme os ciclos de conflitos vão se expandindo, eles vão englobando mais movimentos e gerando oportunidades de ação coletiva tanto para setores progressistas quanto para setores reacionários. O ciclo poderia levar, até mesmo, a uma revolução, caso os grupos persistirem no contencioso. Caso cedessem ao governo e começassem a cooperar, o ciclo tenderia a entrar em queda e a se institucionalizar, podendo transformar-se em grupos de interesses (Drago, 2011). Verifica-se que a Contentious Politics pode ser utilizada como marco teórico, sobretudo quando o contencioso é entre a relação sociedade X Estado. A teoria é capaz de fornecer alicerce compreensivo para revoluções, para conflitos étnicos, religiosos, gênero, familiar e, no caso da pesquisa aqui proposta, para manifestações com pauta por melhores condições sociais, anticapitalista e anti-estamental, como as presenciadas nas grandes cidades brasileiras em junho de 2013. Os conceitos da Contentious Politics apresentados serão retomados no decorrer do artigo. ** BREVES NOTAS SOBRE O ANARQUISMO E SUA HISTÓRIA NO BRASIL. A palavra anarquia (em grego ἀναρχία/anarkhia) significa literalmente “sem governo”, ou seja, é um modo de auto-organização que dispensa um poder central coercitivo e hierarquizado. Isso, no entanto, não quer dizer que não haja poder ou ordem, eles ainda existem na sociedade anárquica. A diferença é que o poder está difuso na própria sociedade, não está concentrado em aparatos estatais; a ordem é via autogestão. Kropotkin (2009) afirma que o anarquismo é uma manifestação dos desejos naturais do ser humano de ser livre e de cooperar. Historicamente sempre estiveram presentes em costumes tribais, pelas comunidades aldeãs, pelas guildas medievais e em diversas comunidades. O processo de criação de instituições autoritárias e opressoras foi, para o autor, uma aberração que se vem perpetuando. Segundo Rocker (2005) e Woodcock (2002), historicamente, Lao-Tsé, Zenão de Eleia e Jesus de Nazaré poderiam ser considerados percussores dos ideários anarquistas como: ajuda-mútua, fraternidade, solidariedade, rejeição a tirania e defesa do comunitarismo. Entretanto, como ideologia científica, estética, ética e tática; que motivou a estruturação de movimentos sociais com diretrizes econômicas, políticas e coletivas próprias, o anarquismo desenvolveu-se entre o século XVIII e XIX (Walter, 2009). Durante os processos revolucionários da Europa, autores, como o inglês William Gowin, o alemão Max Stirner e o francês Pierre-Joseph Proudhon, começaram a publicar textos questionando o papel do Estado, da propriedade privada e em defesa de maior liberdade. Proudhon, em sua obra O que é propriedade? de 1840, vai ser o primeiro a cunhar o termo anarquia. Segundo Proudhon: Anarquia, ausência de mestre, de soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e a sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos. Conta-se que tendo um burguês de Paris do século XVII ouvido dizer que em Veneza não havia rei, esse bom homem não podia crer e julgou morrer a rir com a primeira notícia de uma coisa tão ridícula. Tal é o nosso preconceito [...]. Ninguém é rei; somos associados, quer queiramos quer não” (Proudhon, 1975, p.239). A política é a ciência da liberdade: o governo do homem pelo homem, qualquer que seja o nome que se lhe atribui, é opressão; a maior perfeição da sociedade encontra-se na união da ordem e da anarquia” (Proudhon, 1975, p.247). Desde então, vários pensadores vêm contribuindo para o amadurecimento teórico anarquista. Didaticamente, as correntes anarquistas podem ser divididas, segundo Guérin (1968), em duas: anarquismo individualista e anarquismo social. O primeiro, alicerçado nas obras de Stirner, de Proudhon e de Godwin, dá maior ênfase ao indivíduo e ao seu livre-arbítrio. A interação social por meio da associação voluntária é incentivada, porém se teme a tirania do grupo sobre o indivíduo. Como estratégia para transformar a sociedade há, prioritariamente, a educação e a propaganda. Os principais pensadores anarquistas individualistas são estadunidenses e escreveram suas obras, sobretudo, no século XIX, destacam-se: Henry David Thoreau, Josiah Warren, Lysander Sponner, Benjamin Tucker e Herbert Spencer. Por outro lado, os anarquistas sociais, de acordo com Guérin (1968), pregam uma associação comunitária e produtiva com apoio mútuo e solidariedade. Os autores dessa vertente afirmam que o excesso de individualismo pode levar à competição e ao egoísmo. O anarquismo social enfatiza a necessidade da organização em movimentos sociais com ações diretas que almejam intervenções econômicas e políticas na busca por uma revolução social. Essa corrente, segundo Nettlau (2014) e Woodcock (2002), também sofreu influências de Proudhon e se divide em: coletivistas, anarco-comunistas, anarcossindicalistas e mutualistas. Os principais pensadores da corrente são: Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin e Enrico Malatesta. Dentro do anarquismo, ainda há correntes que se declaram: a) anarquismo verde (foco no meio ambiente, principais autores: Derrick Jensen, John Zerzan e Murray Bookchin – em sua primeira fase, posteriormente ele elabora o Municipalismo Libertário); b) anarquismo pacifista (prega a desobediência civil e a não violência, os grupos seguem as obras de Liev Tolstói, Henry Thoreau e Jacques Ellul, muitos ligados a religião ou movimentos espiritualistas); c) anarco-primitivismo (luta pelo retorno pré-industrialização, apoia em obras de: John Zerzan e Thoreau); d) anarco-feminismo (enfoque na questão de gênero e na luta contra o patriarcado, embasa em obras de: Emma Goldman, Voltairine de Cleyre e de Maria Lacerda de Moura). Os movimentos anarquistas, em sua base histórico-filosófica – independentemente das duas correntes apresentadas e suas subdivisões e enfoques – têm como escopo a superação do sistema capitalista e a transformação da sociedade. A corrente individualista defende um mercado não-capitalista construído a partir das transformações educacionais e culturais, ou seja, modificando a superestrutura e somente reorientando a infraestrutura. Por outro lado, o anarquismo social advoga por um socialismo sem mercado, revolucionando completamente a infraestrutura que modificaria a superestrutura.[2] Atualmente, os intelectuais que se apresentam como anarquistas de maior destaque são: Noam Chomsky, David Graeber, Robert Charles Black Jr., Gabriel Kuhn, John Zerzan, Paul Cudene, Kevin Carson e Marianne Enckell. No Brasil, há um excelente trabalho de resgate histórico e teórico realizado por Felipe Corrêa. Segundo Noam Chomsky: Em seu ataque ao direito de controle burocrático ou privado dos meios de produção, o anarquista posiciona-se em favor daqueles que lutam para realizar “a terceira e última fase emancipatória da história”; a primeira, fazendo dos escravos, servos; a segunda, tendo feito dos servos, assalariados; e a terceira, que abole o proletariado num ato final de libertação, que coloca o controle da economia nas mãos das associações livres e voluntárias de produtores” (Chomsky, 2015, p.18). Evidencia-se, após essa sintética apresentação – proposital, pois não é objetivo ou pretensão do trabalho aprofundar-se no debate entre as correntes teóricas anarquistas – que o anarquismo é uma ideologia modernista influenciada pelo Iluminismo com um claro projeto emancipatório de superação do capitalismo e de libertação do sujeito. As duas correntes, apesar de suas especificidades e suas singularidades, são uniformes na questão anticapitalista e do anti-autoritarismo.[3] O texto, a partir deste momento buscará mostrar como essa ideologia chegou e se organizou no Brasil. As raízes do anarquismo no Brasil estão diretamente relacionadas com a abolição da escravatura em 1888, a constituição da classe operária e a vinda de imigrantes europeus para substituição da mão-de-obra escrava (Fausto, 1976; Vianna, 2006). Entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), entraram, no país, imigrantes alemães, suíços, austríacos, poloneses, mas, sobretudo espanhóis, portugueses e italianos. Com os imigrantes vieram ideias e livros anarquistas que tiveram grande sucesso no sul da Europa. Além disso, as famílias abastadas da elite brasileira enviavam seus filhos para estudarem na Europa, principalmente na França e em Portugal. Ao chegaram ao continente europeu, eles tinham contato com os ideários anarquistas e o traziam, posteriormente, para o Brasil (Rodrigues, 2010; Dulles, 1973). Os recém-imigrados começaram a se organizarem e a publicarem importantes periódicos que propagavam os ideários anarquistas. Os mais famosos foram: La Battaglia, O Livre-Pensador, Aurora, O Amigo do Povo, A Terra Livre, O Despertar, Kurtur, O Direito, O Protesto, O Libertário, O Socialista e A Lanterna. Entre os principais nomes dessa primeira fase anarquista brasileira destacam-se: Neno Vasco, Maria Lacerda de Moura, José Oiticica, Oreste Ristori, Florentino de Carvalho, Everardo Dias, José Sarmento Marques, Elísio de Carvalho, Martins Fontes, Pedro de Couto, Rocha Pombo, Pausilipode da Fonseca, João Gonçalves da Silva, Maximino Maciel, Gigi Damiani, J. Mota Assunção, Antonio Avelino Fóscolo, Edgard Leuenroth e Giovanni Rossi (Arvich, 1988; Dulles, 1973; Rodrigues, 1997, 2010). Rossi chegou a fundar no município de Palmeira no Paraná em 1890 uma comuna baseada nas premissas anarquistas, a Colônia Cecilia. A experiência durou quatro anos e contou com até 250 pessoas (Felici, 1998; Roscoche, 2011; Duarte, 1991). As ideologias anarquistas que tiveram maior influência no Brasil foram a anarco-sindicalista e a anarco-comunista, especialmente nas cidades mais proletarizadas, São Paulo e Rio de Janeiro. A primeira defende a ação revolucionária via sindicatos, entre seus principais militantes estavam: Neno Vasco, Giulio Sorelli, Edgard Leuronth e José Marques. A segunda predica a organização em redes horizontais de associações voluntárias (comunas) e em conselhos operários. A luta via sindicato, para esta corrente, poderia levar ao reformismo e a busca por questões intermediárias e não emancipatórias. Seus principais ativistas foram: Gigi Damiani, Oreste Ristori, Alessandro Cerchiai, Angelo Bandoni e Florentino de Carvalho (Lopreato, 1997). Na primeira metade do século passado, os anarquistas organizaram-se em associações ou sindicatos para lutarem contra a exploração intensiva dos trabalhadores no Brasil. Esses enfrentavam condições de vida e de trabalho precárias, jornadas laborais exaustivas, com uso da mão-de-obra feminina e infantil de forma abusiva e com salários mais baixos. Os objetivos das duas principais correntes anarquistas brasileiras podem ser resumidos em dois, um de curto prazo e outro de longo prazo. a) Melhorar as condições de trabalho presentes, realizar a propaganda associativa e a educação anarquista. b) A busca da emancipação integral do trabalhador e a superação do sistema capitalista (Rodrigues, 1977; Vianna, 2006). Entre 1906-1908, houve uma onda de greves no país por melhores condições de trabalho em diversas cidades brasileiras e foi duramente reprimida pela polícia. Em Jundiaí, por exemplo, um policial e diversos operários perderam a vida. Os anarquistas começaram a realizar mais frequentemente palestras em federações e em centros de estudos. Em 1908, eles fundam a Confederação Operária Brasileira (COB) no Rio de Janeiro (Pinheiro, Hall, 1979). Em julho de 1917, com a Primeira Guerra inflacionando os alimentos e a condição do trabalhador se tornando mais precária ainda, os sindicatos, as ligas, as federações, as uniões e as associações operárias mobilizaram-se. Ao tentar dispersar uma manifestação na porta de uma fábrica no bairro do Brás em São Paulo, a cavalaria militar matou o jovem operário anarquista espanhol José Martinez. O funeral de Martinez atraiu uma multidão e se transformou em um ato político espontâneo (Dulles, 1973; Lopreato, 1997). A mobilização desencadeou uma greve realizada em duas fábricas têxteis no bairro da Mooca em São Paulo e, rapidamente, espalhouse para outros setores da cidade. Três dias depois da morte de Martinez mais de 70 mil trabalhadores de São Paulo estavam em greve. O movimento expandiu-se, posteriormente, para outros Estados (Koval, 1982). Com certeza essa foi a maior mobilização operária e anarquista no Brasil. O movimento que tinha constantes debates internos sobre suas principais ideologias (anarco-sindicalistas X anarco-comunistas) uniu-se em prol de causas mais pragmáticas como: redução da jornada de trabalho, fim do trabalho infantil e livre associação para os trabalhadores. Conseguiu, ademais, isolar os socialistas-cristão que se articulavam para um processo mais conciliatório (Lopreato, 1997). Sublinha-se que, como apresentado pelos autores da Contentious Politics, a sociedade possui ciclos de conflitos. As greves de 1906-08 podem ser consideradas o começo de um ciclo de protesto e a grande greve de 1917 o seu ápice. No auge de expressividade do ciclo, os movimentos sociais, nesse caso de operários liderados por anarquistas, poderiam seguir dois caminhos: persistirem no contencioso, podendo ampliar o processo até uma revolução ou cederem ao governo e optarem pela cooperação, levando o movimento à institucionalização. Não é uma questão puramente de escolha ideológico-política, mas uma questão de cálculo e de estratégia de ação e de leitura do cenário, pois às vezes é melhor recuar e se preparar melhor para um ciclo futuro do que ser completamente exterminado ou fracassar. Vários fatores levaram o movimento anarquista operário brasileiro a se institucionalizar e a se desfigurar. Em outubro de 1917, ocorreu a Revolução Russa, que teve como principal força os bolcheviques formados por ex-integrantes do Partido Operário SocialDemocrata da Rússia (POSDR), que adotaram a vertente do socialismo-marxista. O sucesso de tomada de poder pelos bolcheviques e a implantação de uma ditadura do proletariado repercutiram mundialmente, inclusive nos movimentos anarquistas brasileiros. Aliado a isso, e com fragmentação ideológica interna das ligas, dos sindicatos e das federações, alguns anarquistas converterem-se ao marxismo. Ademais, como as organizações anarquistas eram consideradas as principais responsáveis pelas grandes greves, elas ficaram sob o holofote do aparato repressor do Estado. Houve prisões e deportações de militantes; jornais, escolas infantis e escritórios foram fechados e até queimados. Durante o governo de Artur Bernardes (1918 – 1922), a repressão intensificou-se e muitos líderes e ativistas anarquistas foram enviados para campos de concentração e de tortura como o de Clevelândia no Oiapoque (Do Carmo, 1992; Romani, 2003). Durante o governo e a ditadura de Getúlio Vargas (1930 – 1945), os anarquistas não encontravam espaços para se organizarem que não fossem dentro dos próprios movimentos socialistas de orientação ideológica a ação prática marxista-leninista. O movimento que antes possuía centenas de milhares ficou restrito a algumas dezenas de pessoas. Por exemplo, no Décimo Encontro Anarquista de 1963, ou seja, em um período pós-ditadura Vargas e de efervescência sindicalista no Brasil, compareceram, segundo Rodrigues (2010), algo em torno de somente 100 militantes. Após o Golpe Civil-Militar de 1964, a situação que já era complicada ficou ainda mais drástica. O movimento anarquista ficou restrito a poucos membros em diversos grupos de esquerda de resistência a ditadura. Espaços como: Centro de Estudos Professor José Oiticica (CEPJO); Movimento Estudantil Libertário (MEL), Grupo de Teatro Social (Grutepa), o Movimento Pacifista Brasileiro; o Centro Internacional de Pesquisas sobre Anarquismo no Brasil (CIRA-Brasil), entre outros foram fortemente monitorados, militantes presos e torturados, e suas atuações restringidas ou encerradas pelos agentes da ditadura (Oliveira, 2014). Em 1977, surgiu o jornal anarquista O Inimigo do Rei publicado pelos estudantes de filosofia da Universidade Federal da Bahia. O jornal, que teve como seus principais editores Ricardo Liper, Alex Ferraz e Tony Pacheco, levantava temas como: liberdade sexual, desobediência civil, pluralismo sindical, antimilitarismo e utilizava constantemente do humor. O sucesso de O Inimigo do Rei, que foi publicado até 1988, impulsionou outras revistas como: Barbárie (1979), na Bahia e Autogestão (1979), em São Paulo (Oliveira, 2014). Após a Lei da Anistia em 1979, e com a redemocratização no Brasil em andamento, os movimentos anarquistas, assim como toda a esquerda, começaram aos poucos se reestruturarem. Exemplos são: reabertura do Centro de Cultural Social em São Paulo (CCS/SP); fundação do Circulo de Estudos Libertários (CEL) no Rio de Janeiro; criação do Centro de Documentação e Pesquisa Anarquista (CDPA) em Salvador; estabelecimento do Círculo Alfa de Estudos Históricos em São Paulo (Alaniz, 2009). Em fevereiro de 1986, militantes anarquistas do sul do país organizaram a Primeira Jornada Libertária em Florianópolis, que teve como pauta a redefinição das estratégias para o movimento. Eventos similares e menores surgiram em outras regiões do Brasil, sobretudo nas universidades. O anarco-sindicalismo teve sua tentativa de reorganização com a retomada da COB e suas publicações como o jornal A Voz do Trabalhador em 1988. No entanto, com o centralismo, a burocratização e o partidarismo dominando as formações dos sindicatos no Brasil, a COB foi engolida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela central sindical ligada a ele, a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Na década de 1980 e 1990, a ideologia anarquista encontrou espaço particularmente entre os jovens. Esses criaram grupos de estudos, coletivos e publicaram revistas e panfletos libertários e contestadores, especialmente nas universidades. No período, além disso, começou a surgir bandas de estilo anarco-punk, destaque para Cólera, Inocentes e Garotos Podres todas da periferia de São Paulo. Serão essas ações de jovens nas universidades, nos centros culturais e, mais recentemente, na internet e suas redes sociais que estruturaram o alicerce para o renascimento da militância anarquista no Brasil durante os anos 2000 e que teve, até o momento, sua maior participação no movimento das Jornadas de junho de 2013. ** AS JORNADAS DE JUNHO DE 2013: OS ANARQUISTAS RETORNAM AS RUAS. Em junho de 2013, marchas populares tomaram as ruas de diversas capitais brasileiras. Entre os manifestantes muitos se vestiam de preto, carregavam bandeiras, símbolos, além de entoarem gritos de ordens anarquistas. A presença anarquista, nas principais e maiores manifestações de massa desde a campanha de Diretas Já na década de 1980 e dos Caras Pintadas em 1992 no Brasil, foi tão notória que a Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro chegou a citar, como suspeito, Bakunin em seu inquérito de investigação sobre os atos.[4] De acordo com Maria da Glória Gohn: Não se pode dizer que junho de 2013 tenha tido manifestações completamente anárquicas, porque havia um foco central, contra o aumento das tarifas, que se ampliou, tanto nas demandas como no tipo de personagem que ia para as ruas. Mas temos de reconhecer que vários dos núcleos ou coletivos que organizaram as manifestações viam as redes sociais, se inspiraram mais nos ideias de autonomistas anarquistas, libertários, socialistas utópicos, etc. do que os da esquerda tradicional” (Gohn, 2017, p.54). As Jornadas de junho de 2013 tiveram como ponto inicial dia 06 de junho em São Paulo. Tudo começou com uma manifestação articulada pelo Movimento Passe Livre (MPL) e por organizações estudantis contra o aumento de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus, de metrô e de trens na cidade. Os manifestantes reivindicavam um transporte público popular de tarifa zero, pois, segundo eles, o transporte coletivo, da forma que se encontrava, não contribuía para acessibilidade na cidade e proporcionava segregação. Utilizando de redes sociais, tanto para convocar as pessoas quanto para informar sobre sua luta, esses grupos conseguiram reunir em torno de 2.000 a 5.000 pessoas[5] para batalhar a favor de um transporte coletivo inclusivo. Neste primeiro ato houve participação significativa de anarquistas, mais em atitudes do que em números. Alguns portando a tradicional bandeira preta do movimento ou a bandeira preta e vermelha do Socialismo Libertário bakuniano, além de outras simbologias como bandanas, lenços, escudos improvisados com o desenho do A sobre o O (representando Anarquia é Ordem) entre outras. A identificação como movimento era relativamente facilitada. Os anarquistas defendem manifestações com mais autonomia. Por isso parte da mídia vem os chamando de autônomos, porém nem todos autônomos são necessariamente anarquista. Sem um sistema hierarquizado em líderes e em base, mas em coletivos horizontalizados, críticos à forma tradicional de política organizada em partidos e sindicatos, os manifestantes anarquistas procuram estabelecer uma organização bottom up e não top down, ou seja, de baixo pra cima e não de cima pra baixo. Os anarquistas, em relatos, afirmaram que apesar de estarem marchando juntamente com o MPL e com membros da Associação Nacional dos Estudantes Livre (ANEL) – suas bandeiras também estavam presentes – eram críticos a aproximação desses grupos com partidos políticos. Esse anti-centralismo partidário dos anarquistas presentes nessas manifestações é em virtude de adotarem a ação direta como forma de atuação. Segundo Sparrow: A característica da ação direta é que ela busca chegar aos nossos objetivos por meio de nossas próprias atividades, ao invés de tentar isso por meio da ação de outros. A ação direta busca exercer o poder diretamente sobre os assuntos e as situações que nos dizem respeito. Dessa maneira, ela diz respeito à tomada do poder pelas próprias pessoas. Nisso, ela se diferencia da maior parte de outras formas de ação política como as votações, os lobbies, as tentativas de se exercer pressão política com ações industriais ou midiáticas. Todas essas atividades buscam outras pessoas para alcançar nossos objetivos. Tais formas de ação funcionam com base na aceitação tácita de nossa própria fraqueza. [...] A ação direta repudia a aceitação da ordem existente e sugere que temos tanto o direito, quanto o poder, de transformar o mundo. Isso é demonstrado quando a ação direta é realizada. Os exemplos de ação direta incluem bloqueios, piquetes, sabotagens, ocupações, colocações de barras de metal em árvores, greves parciais, reduções no ritmo de trabalho e a greve geral revolucionária” (Sparrow, 2009, p.11). As táticas de ação direta vêm se modificando com o tempo, mais recentemente ganhou destaque duas específicas: desobediência civil e as performances dos Black Blocs. Desde as primeiras manifestações de junho de 2013, a tática Black Blocs esteve presente. Os Blacks Blocs não são um movimento ideológico, mas uma organização estratégica descentralizada e não hierárquica que alguns ativistas optam por adotar, especialmente os anarquistas. A tática Black Blocs, em suma, estabelece a criação de uma linha de frente nos movimentos de massas com pessoas vestidas de forma padronizadas (sempre preto e com rosto coberto). O bloco é responsável pela defesa dos demais manifestantes contra a violência direta[6] e coercitiva do Estado, representada pela polícia. Para tanto, estudam e elaboram guias de desobediência civil, táticas de formação, primeiros socorros, legislação e medidas de segurança (DériDupuis, 2014; Solano, Manso, Novaes, 2014). Além dessa função de resistência, os Blacks Blocs realizam ataques diretos contra símbolos do sistema capitalista, particularmente propriedade privada representativa do sistema financeiro global. Os atos de ação direta com uso da violência direta são chamados por eles de performance. Segundo seus adeptos, essa é a forma que eles encontraram para serem ouvidos e para denunciarem a violência do Estado contra setores marginalizados da sociedade. Desse modo, desde o dia 06 de junho, houve algumas performances como: forçar fechamento de shopping na região da Avenida Paulista, pichação de espaços, queima de lixeiras e provocações verbais a policiais, entre outros. Os policiais, que também realizavam provocações, adotaram a brutalidade historicamente característica dos aparatos coercitivos do Estado brasileiro, particularmente da polícia militar, para impor o domínio da situação. Houve vários feridos e de acordo com Freixo (2016), 15 ativistas foram presos. Seguindo a lógica da Contentious Politics, renascia, naquele momento, um conflito acentuado que atravessa o sistema social brasileiro desde a Grande Greve de 1917 e envolve variados tipos de ação coletiva. O próximo momento desse ciclo ocorreu em 08 de junho de 2013 quando o MPL, a ANEL, outros coletivos e anarquistas voltaram novamente às ruas de São Paulo. Em torno de 5.000 pessoas encontraram-se no Largo do Batata e subiram a Avenida Rebouças em direção à Avenida Paulista. No trajeto houve, novamente, fortes confrontos com a polícia. A pauta continuava a questão do passe livre. Entretanto, havia insatisfação generalizada com diversos serviços públicos (saúde, educação, transporte e segurança) e com os próprios partidos, isso era evidente nos dizeres dos anarquistas. Pelas entrevistas e pelas observações diretas pôde-se evidenciar que, em sua maioria, eram jovens universitários da classe média (alguns oriundos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade São Paulo/USP e outros dos cursos de humanas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP), porém havia militantes das zonas periféricas de São Paulo atuantes em coletivos. No dia 11 de junho de 2013, os mesmos grupos retornam as ruas de São Paulo. Dessa vez, reunindo cerca de 12.000 pessoas, majoritariamente jovens. Interessante enfatizar que se em um primeiro momento as manifestações continham uma grande maioria de estudantes de universidades públicas e tradicionais da classe média paulistana, neste dia começou a surgir mais jovens oriundos das regiões periféricas. Em diálogos, constatou-se que muitos desses eram estudantes e trabalhadores, contudo de universidades particulares menos tradicionais e vários bolsistas do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) ou do Programa Universidade para Todos (PROUNI). Outros faziam parte de grupos de debates anarquistas em redes sociais. De acordo com os novos entrevistados, em virtude da divulgação das manifestações anteriores em redes sociais – o número de grupos e de páginas nas redes sociais se multiplicou – resolveram aderir às manifestações. Alguns, inclusive, estavam entre os adeptos às táticas Black Blocs. Muitos conheciam o anarquismo por grupos de redes sociais, outros, quando indagados se eram anarquistas, negavam e não apresentavam o mesmo discurso ideológico presente entre os entrevistados das primeiras manifestações. O que se notava era um descontentamento generalizado com a situação política, social e econômica do país. De acordo com Jessé de Souza: As manifestações de junho de 2013 marcam o ponto de virada da hegemonia ideológica até então dominante e das altas taxas de aprovação aos presidentes dos governos petistas. Na verdade, representam o início do cerco ideológico até hoje mal compreendido pela maioria da população. [...] Os jovens da periferia estavam tendo acesso às universidades, mas os empregos disponíveis eram precários e de baixa produtividade. [...] Havia aqui um material para criticar o governo. Mas seria uma crítica benigna para profundar o processo inclusive que exigiria, por exemplo, uma nova base produtiva capaz de gerar empregos melhores e mais bem pagos” (Souza, 2016, p. 87-88). Percebe-se que à medida que aumentou o número de pessoas – particularmente daqueles que são mais vitimizados diariamente pela violência direta, estrutural e cultural do Estado, isto é, os periféricos – as ações diretas e à adesão as táticas Black Blocs também aumentaram. A pesquisa conseguiu observar que os anarquistas oriundos das universidades e de coletivos aproveitaram a oportunidade para propagar suas ideias. No entanto, em virtude de todo processo das manifestações, das ações diretas e do surgimento de novos atores, as performances Black Blocs modificaram-se. Enquanto alguns anarquistas tentavam organizar as ações diretas para símbolos capitalistas como, bancos e multinacionais, outras pessoas – por terem sido estruturalmente excluídas de educação política e por uma agressividade necessária à sobrevivência no sistema – faziam depredações desorganizadas, como por exemplo, em bens públicos.[7] O confronto com a polícia resultou, segundo Gohn (2014), em 19 presos, entre esses havia: jornalista, professor, publicitário, metalúrgico e artistas. Moradores de bairros como Alphaville, Poá e da região do ABCD de São Paulo. De acordo Marco Aurélio Nogueira: O junho brasileiro foi um grito de angústia coletiva contra a vida de hoje, que não deriva de uma longa noite de autoritarismo, mas se ressente do mau funcionamento do Estado de bem-estar. Não antecipou um ciclo revolucionário, mas anunciou uma nova dialética política. Os novos ativistas querem outro tipo de política. Uma política de cidadãos, não só de políticos, militantes partidários ou entidades. Desejam atuar de forma mais livre e horizontal, mediante ações que se organizam no calor da hora e em função dos recursos e da disponibilidade dos participantes. Nas manifestações dos nossos tempos líquidos, não há partidos ou sindicatos no comando” (Nogueira, 2013, p.53). Indispensável, para o desenvolvimento da pesquisa, é relatar a cobertura midiática sobre as manifestações. A imprensa brasileira não hesitou em descaracterizar as manifestações, nomeando os ativistas de vândalos. Arnaldo Jabor, comentarista da Rede Globo, acusou as ações diretas de “atos de vandalismos” realizados por “jovens mimados”. Jabor chegou, até mesmo, a comparar os ativistas com a principal facção criminosa de São Paulo e, em uma clara soberba intelectual e completamente deslocado da sociedade, os intitulou de ignorantes, de não valerem “nem mesmo R$ 0,20” e defensores de um “socialismo caricaturado da década de 1950”.[8] Programas policiais como Brasil Urgente apresentado por José Luiz Datena realizaram coberturas extremamente tendenciosas e sensacionalistas. O apresentador trabalhou com a geração e a propagação do medo. Esforçou-se para moldar a opinião pública em relação a uma enquete, além de ter estimulado a violência policial.[9] Na mesma linha seguiram os principais meios de comunicação impressos.[10] No dia 13 de junho, apesar da pesada violência direta sofrida por parte do aparato estatal e da intensa violência cultural praticada pelos meios de comunicação, mas vendo seu movimento crescer e ganhar novos adeptos, os manifestantes de São Paulo retornaram as ruas. Nessa mesma data, começaram em outras cidades brasileiras manifestações similares. No Rio de Janeiro, cerca de 2.000 manifestantes marcharam pela Avenida Rio Branco em um protesto convocado pelo Fórum de Lutas Contra o Aumento das Passagens e articulado com ajuda das redes sociais. As diferentes tribos urbanas iam se misturando e, consequentemente, a pauta também se ampliava. A ampliação e continuação das manifestações, para Marco Aurélio Nogueira representa o nascimento de uma nova esquerda. Segundo o autor: A revolta das ruas foi como o “espírito” de uma nova esquerda, anunciando aquilo que a velha esquerda deixou de valorizar: mais importante que “chegar ao poder” é elaborar novas maneiras de organizar a convivência e compartilhar poderes. Uma esquerda mais “cultural” e participativa, refratária a ordens unilaterais e hierarquias, que deseja uma nova economia, mas dá mais destaque, aos direitos, às liberdades, aos indivíduos” (Nogueira, 2013, p.56). Enquanto que a manifestação do Rio de Janeiro foi relativamente tranquila, em São Paulo, o cenário foi de barbárie por parte do aparato estatal. Nesse dia, a polícia não economizou brutalidade nem balas de borrachas, bombas de efeito moral, gás de pimenta e gás lacrimogêneo. A intenção era que não houvesse manifestação e nem mesmo registros filmográficos das ações. A polícia atacou manifestantes, jornalistas e pesquisadores simplesmente pelo fato de estarem filmando, fotografando ou gravando áudios. Foram notados diversos feridos em razão de espancamentos aleatórios, até mesmo jornalistas de veículos oficiais da grande mídia foram atacados pela polícia. Os principais meios de comunicação divulgaram largamente o caso da repórter da Folha de São Paulo Giuliana Vallone, que foi atingida por uma bala de borracha no olho direito. Surgiam, na ocasião, importantes registros de mídias alternativas, como a Mídia Ninja, que acompanhou e registrou os acontecimentos de dentro das manifestações. Além de capturas individuais propagadas em redes sociais. Segundo Gohn (2014), no dia 13 de junho, 192 pessoas foram presas, as reportagens da Folha de São Paulo e do O Globo falam em mais de 200 presos e diversos feridos.[11] Pode-se dizer que é neste momento que o tratamento da mídia em relação às manifestações se modifica. A polícia, que antes já estava agindo de forma severa, no dia 13 de junho, intensificou ainda mais sua truculência. A televisão, os jornais e as revistas – impressos e digitais – as redes sociais e os blogs nacionais e internacionais repercutiram a ação policial. As imagens mostravam jovens sendo fustigados pelo aparato coercitivo do Estado de São Paulo, muitos eram brancos universitários e de classe média e alta. Isso chocou setores da opinião pública brasileira de onde esses jovens e seus colegas saíram. Parte das classes médias e altas brasileiras acostumadas, historicamente, a assistir somente jovens negros e periféricos vítimas da brutalidade policial, de repente se depararam com seus filhos e/ou amigos sofrendo abusos do poder coercitivo do Estado. Muitos resolveram, assim, denunciarem o descomedimento do poder estatal. A partir disso, os meios de comunicação reorientaram radicalmente seu discurso. O próprio Arnaldo Jabor realizou um comentário no Jornal da Globo que viralizou pela internet e suas redes sociais. Ele fez um mea-culpa pela sua primeira análise errada e reconheceu a coragem dos jovens de irem às ruas protestarem contra a “paralisia política brasileira” e propôs uma pauta concreta. Sua sugestão foi que os manifestantes deveriam se opor à Proposta de Emenda Constitucional – PEC 37 (que buscava retirar poder de investigação do Ministério Público). Jabor chegou a falar que as manifestações estavam indo para um “vazio” ou “violência”, caminhando para “batalhas campais” ou “abstração política”.[12] De acordo com Adriano Freixo: Neste sentido, a proposição de novas pautas – majoritariamente críticas ao governo – às manifestações de 2013 ressaltam esse papel de grupos da mídia brasileiros como atores políticos relevantes no cenário nacional, através da sua capacidade de influenciar – e mesmo moldar – as percepções da sociedade sobre determinados eventos e processos através do gatekeeper e da agenda-setting. […] nos parece inquestionável a importância da mídia convencional na mudança do caráter – e da narrativa – das manifestações de junho de 2013” (Freixo, 2016, p. 18). O comentário do Jabor foi uma violência cultural, pois busca, aos poucos, deslegitimar a pauta das manifestações e a introduzir uma nova pauta. Havia sim propostas concretas, não era somente abstração política. Por parte do MPL havia a proposta de criação de um Fundo de Transporte para pagar as concessionárias que fariam a gestão do transporte público na cidade, extinguindo o pagamento direto da tarifa. Era algo pontual, não um discurso de reformas estruturais. Esse quem possuía eram alguns manifestantes anarquistas. Eram deles também que foram coletados, nas entrevistas, os discursos políticos abstratos de que Jabour referiu-se. Embora os anarquistas tivessem uma presença determinante em virtude das performances Black Blocs, a pesquisa permitiu constatar que eles eram a minoria desde o inicio das manifestações. Em relação à pauta, Marco Aurélio Nogueira também observa que ela era concreta e não mera abstração. Segundo autor: A palavra de ordem emitida pelas ruas não foi genérica ou alienada. Foi clara: queremos um Estado aberto para as pessoas, menos dependente do capital, desvinculado de multinacionais, bancos e empresários. Mais social e menos econômico. Os jovens que protestaram, no fundo, pediram coisas simples: circulação urbana livre, ampla e irrestrita, “mais parques e menos shoppings”; megaeventos só quando indispensáveis, autossustentáveis e culturalmente densos, internet livre, respeito aos direitos de todos e especialmente das minorias, polícia civilizada, perspectiva ambiental, serviços públicos de qualidade e universais” (Nogueira, 2013, p. 59-60). A coleta de dados conseguiu perceber que os manifestantes anarquistas possuíam um discurso anticapitalista, que defendia a autogestão, o cooperativismo, a associação dos trabalhadores de forma horizontalizada, o mutualismo econômico, a democracia direita, o fim da polícia. Além de um antifascismo e um antinacionalismo. Muitos manifestantes anarquistas não apresentaram um projeto concreto. Nas entrevistas falavam em coisas como: “fim do Estado”, “revolução social”, “fim de todos partidos”, “fim dos bancos”, ou seja, algo vago. Em 17 de junho de 2013, a pesquisa de campo concentrou-se na cidade do Rio de Janeiro. A concentração das manifestações cariocas foi marcada na Candelária, mais de 100.000 ativistas percorreram a Avenida Rio Branco naquele dia. Nessa ocasião, notava-se uma diversidade maior de participantes, porém, em sua maioria, jovens universitários de classe média. A influência da mídia na população e a imposição da nova pauta para as manifestações já se faziam sentir. Chuva de papel picado caiu dos prédios, cartazes dos mais diversificados apareceram entre os manifestantes, desde “não é apenas pelos 0,20”, “cadê Amarildo[13]” “estamos reformando o Brasil”, “saúde padrão Fifa”, até “+ amor por favor”. Uma característica interessante de analisar, os movimentos de massas de junho de 2013, desde o inicio, não utilizaram faixas graficamente produzidas e nem de carros de som, demonstrando sua espontaneidade. Alguns anarquistas organizaram-se em tática Black Blocs e foram para frente da manifestação, no entanto já era perceptível a presença, entre eles, de nacionalistas, alguns portando a bandeira do Brasil. A diversificação de pauta não criava uma uniformidade entre os manifestantes. As entrevistas e a observação direta permitiram averiguar que havia desde pessoas anti-PT, militaristas, socialistas, anarquistas e vários que se declaravam sem partido, sem ideologia e apolítico. Alguns militantes de bandeiras de movimentos sociais e de partidos (sobretudo de esquerda) estavam presentes com relativa tranquilidade, ouvindo somente isoladas vaias. Em virtude da magnitude da manifestação a pesquisa sofreu dificuldade para se chegar à linha de frente. Todavia, pode-se inferir que os anarquistas eram sem dúvidas a minoria na manifestação. A grande maioria era de uma população insatisfeita com os serviços públicos e com o sistema partidário como um todo, porém com predomínio, ainda, de progressistas. A dedução de que a maioria ainda era de progressistas e de democratas, neste ato do dia 17 de junho de 2013 no Rio de Janeiro, é possível por alguns pontos, como: leituras de cartazes, bandeiras de partidos de esquerda sendo toleradas com relativa tranquilidade e uma grande parcela hostilizando a mídia corporativa. Por exemplo, frases de ordem como: “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura” foi ouvida na concentração ou quando se via algum veículo da emissora carioca, que não conseguiu cobrir, naquele dia, as manifestações no chão, somente por helicóptero e em cima de edifícios. Em frente à Biblioteca Nacional um grupo de manifestantes distribuiu flores aos policiais. Enquanto um grupo de Black Blocs, com a clara presença e iniciativa de anarquistas, começou a atacar bancos, depredar vidraças de lojas, a jogar coquetéis molotov e rojões contra as forças policiais na frente da Assembleia Legislativa. Outros manifestantes começaram a entoar as frases: “sem violência, sem violência”, um desses já estava com a camiseta da seleção brasileira de futebol em mãos. Os policiais tiveram que se refugiar dentro do prédio a Assembleia. Houve fogo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em lixeiras, em ônibus e em outros pontos. Após esse dia, a cobertura da grande mídia brasileira categorizou os manifestantes em dois grupos distintos: a) os pacíficos defensores da democracia; b) os vândalos e propagadores do caos. Em um processo de generalização e de violência cultural, os principais meios de comunicação intensificaram o apoio às manifestações realizadas pelo primeiro grupo, os supostos “defensores da democracia”. A mídia, ademais, começou a federalizar as causas dos protestos com nítido objetivo de atingir a figura da Presidenta Dilma Rousseff e o seu partido. As grandes obras para Copa do Mundo e para as Olimpíadas ganharam destaque, o tema de anticorrupção, reforma política e críticas diretas ao PT começaram a aparecer cada vez mais nos meios de comunicação. Incontestável que setores de direita da sociedade civil juntamente com apoio midiático, que vinham tentando articular protestos contra os governos petistas desde o fracassado Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros (Cansei) 2007[14], encontraram uma oportunidade nas manifestações (Freixo, 2016). Em 20 de junho de 2013, ocorreu a maior manifestação do mês, mais de 300.000 pessoas participaram no Rio de Janeiro. O roteiro foi pela Avenida Presidente Vargas. A influência de grupos nacionalistas, anti-esquerda, anti-petista, anticorrupção, militaristas, grupos religiosos aumentaram na mesma proporção que avolumaram as pessoas portando bandeiras do Brasil e/ou vestindo camisetas da seleção brasileira de futebol. Neste ato, os pesquisadores colheram, também, diversas reclamações de pessoas que foram furtadas. Os anarquistas eram um número pequeno e mais raro de se encontrar para realização da pesquisa. Os cartazes caseiros agora disputavam espaços com faixas pré-confeccionas. A observação direta permitiu assinalar menos pautas progressistas e mais pautas anti-esquerda e nacionalistas. Foram registrados cartazes e faixas com frases como: “corruPTos”, “ou pare a roubalheira, ou paramos o Brasil”, “Brasil acima de tudo” e “saímos do Facebook”. Se nas manifestações de 17 de junho havia tímidas vaias contra bandeiras de movimentos sociais e de partidos de esquerda. No dia 20 de junho, os militantes da esquerda partidária foram agredidos, as bandeiras foram rasgadas e camisetas retiradas à força. As manifestações, que anteriormente eram multicoloridas e espontâneas, tornavam-se aos poucos verde-amarelas e organizadas. Em relação a essas novas forças, Nogueira relata: A movimentação desencadeou forças que não conseguiu direcionar. Houve ingenuidade nas ruas, mas não falta de seriedade ou burrice. Lançada a semente, à árvore cresceu. E dela saíram múltiplos frutos, democráticos na maioria, podres e reacionários outros poucos. [...] Em manifestações horizontais, multicêntricas, com baixo poder de agenda, há sempre uma tendência de risco: provocadores e gente politicamente desqualificada, movidos por um tipo de ódio social e ressentimento que não se compõe com democracia” (Nogueira, 2013, p.58). A partir desse dia, as pesquisas nas manifestações se encerraram. Percebeu-se que os anarquistas estavam aos poucos se retirando, pelo menos naquele momento, das manifestações de ruas como forma de luta em virtude da violência cultural que a mídia, por meio de um discurso refalsado de imparcialidade e de apartidarismo, conseguiu moldar um nova pauta dos movimentos de massas de rua no Brasil recente. À medida que as manifestações foram modificando os grandes meios de comunicação voltaram a conseguir cobri-los do chão, no meio da população e não mais de cima de prédios e de helicópteros, como era antes. Muitos anarquistas voltaram de onde saíram: às universidades, aos grupos de estudos e aos coletivos. Adotaram outras táticas de ação diretas, por exemplo, a ocupação. ** CONSIDERAÇÕES FINAIS O relato teórico-historiográfico da ideologia anarquista e sua presença no Brasil, nas Grandes Greves de 1917 e nas Jornadas de junho de 2013, como afirmado no início do artigo, não teve a pretensão de exaurir a temática teórica do anarquismo e nem sua organização e atuação no Brasil. O escopo foi muito mais de apresentar um alicerce para futuros trabalhos desse ciclo contencioso anti-estado e anticapitalista que se desperta na contemporaneidade. As Jornadas de junho de 2013, as maiores desde a redemocratização do país, tiveram um caráter de movimento de massa espontâneo. Elas foram as primeiras, da história recente do Brasil, que não contaram com a organização e com a atuação de partidos, nem da sociedade civil organizada, isto é, não foram divididas entre direção e base. A esquerda – tradicionalmente organizada, que dominou as manifestações de ruas no Brasil nos últimos anos, como: PT, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), CUT, Partido Comunista do Brasil (PC do B), União Nacional dos Estudantes (UNE), entre outros – tiveram que se contentar, em um primeiro momento, com o papel de meros espectadores. Apenas o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) teve maior protagonismo nas Jornadas de junho de 2013. Nas primeiras manifestações em São Paulo e nas do Rio de Janeiro haviam alguns manifestantes militantes de partidos da esquerda crítica ao PT. Foi possível colher por meio de entrevistas e observação direta (bandeiras e camisetas) a presença do: Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido da Causa Operária (PCO), todos críticos ao pragmatismo político e a assimilação petista ao estamento-burocrático. A presença de militantes desses partidos, historicamente influenciados pela visão marxista, fez com que, não raramente, houvesse debates com os anarquistas, que sempre questionaram o centralismo, o estadismo e o autoritarismo dos marxistas. No entanto, não haviam conflitos diretos. Nas conversas, em São Paulo e no Rio de Janeiro, conseguiu-se verificar que alguns militantes anarquistas frequentavam grupos organizados como: Movimento Autônomo Libertário (MAL), Confederação do Anarquismo Organizado Socialmente, Juventude Anarquista, Organização Anarquista Socialismo Libertário, Utopia e Luta, Resistência Popular, Frente Independente Popular, Federação Anarquista do Rio de Janeiro, além de pessoas que participavam de coletivos menores e de grupos de estudos em universidades, ou acompanhavam grupos de estudos e de debates em redes sociais. Os anarquistas, porém, pertencentes ou não de grupos organizados, eram minorias nas manifestações. Contudo estavam, nos protestos aqui relatados, sempre na frente de ações diretas mais radicais em virtude de muitos adotarem a tática Black Blocs. As performances chamavam atenção. Ressalta-se que a Teoria Anarquista não é monobloca. As várias correntes, apesar de defenderem um mesmo fim, isto é, a superação do modelo capitalista e a emancipação do homem por meio da anarquia, diferem em suas estratégias de ação e de organização para chegar a essa etapa. No Brasil, evidenciou-se que as correntes anarco-sindicalistas e anarco-comunistas foram as mais atuantes no inicio do século XX. Entretanto, nas pesquisas realizadas nas Jornadas de junho de 2013 notou-se que há uma diversificação de correntes ou até mesmo grande desconhecimento dessas pelos auto declarados anarquistas. Alguns manifestantes simplesmente se diziam anarquistas, todavia quando indagados sobre linha ou pensamento que seguiam não conseguiam explanar precisamente sua visão e sua estratégia de anarquismo, demonstrando, claramente, pouco conhecimento da literatura. Não se pode negar, portanto, que, em conversas realizadas com alguns anarquistas durante as Jornadas de junho de 2013, bem como posteriormente, verificou-se que eles sabem onde querem chegar, mas, muitos não sabem como. Indagados sobre a participação partidária, muitos são completamente contra e não tardam em usar a palavra “vendido” para designarem companheiros que colaboram com partidos. Em conversas em um pequeno grupo o termo “peleguismo” apareceu mais de uma vez para atacar determinados sindicatos. Em certa medida, os anarquistas brasileiros do século XXI estão rejeitando e lutando contra espaços de atuação políticos históricos e tradicionais importantes (partidos, alguns sindicatos e movimentos sociais). Além de atacarem a política tradicional e as instituições do Estado, contudo, não estão conseguindo colocar outros modelos concretos no lugar. Por outro lado, como se mostrou na primeira seção da pesquisa, os anarquistas brasileiros da primeira parte do século XX tinham um projeto mais claro e estruturado de organização, de atuação e de estratégia para emancipação do proletariado e para superação do sistema capitalista. Portanto, em certa medida, Jabor não estava totalmente errado, havia sim muita abstração política e muita agressividade desnecessária nas manifestações, particularmente entre os anarquistas. Essa agressividade desorientada causou, posteriormente, a morte do cinegrafista Santiago Andrade da Rede de Televisão Bandeirante, que fora atingido por um rojão em 06 de janeiro de 2014 no Rio de Janeiro. A destruição despropositada – confundido violência com agressividade – ou a filosofia utópica abstrata parecem ainda reinar nos jovens anarquistas brasileiros, não conseguindo caminharem para uma utopia concreta e para uma resistência combativa tática. Destaca-se, ademais, que houve pela mídia, cada vez mais colocada como sujeito político (ser de poder), o redirecionamento do que a Contentious Politics denomina de ciclo de protesto. A interferência da mídia fez com que as Jornadas de junho de 2013 tivessem sua pauta progressista modificada. Ela se locomoveu de um discurso por mais democracia e mais inclusão social para uma nova pauta imposta, reacionária, anti-petista e detentora de falso moralismo social. As manifestações não levaram a melhorias sociais, mas a ascensão de setores reacionários e a um golpe estamental brando contra a Presidenta Dilma.[15] Quando grupos como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e Revoltados On-line (que após o golpe estamental brando se institucionalizaram) tomam contam das ruas, os cartazes feitos à mão são substituídos por faixas customizadas e os grandes carros de som retornam. Com eles surgem os líderes que dirigem, moldam e controlam de certo modo os manifestantes – a multidão deixa de ser multicolorida e passa a ser verde-amarela. As performances dos Black Blocs cedem lugares para atuações performáticas de homens fantasiados de super-herói, bonecos inflados, danças e brindes com taças de champanhe. Os militantes partidários são novamente aceitos, no entanto somente àqueles anti-PT e anti-esquerda. Várias frases de ordem presentes, nessa fase, são claramente fascistas e sexistas. A cor vermelha é praticamente proibida nas novas manifestações. O ciclo de protestos dos anarquistas, que se iniciou no Brasil nas Grandes Greves de 1917 e vinha permanecendo letárgico por um longo período, acordou nas Jornadas de junho de 2013 e continua ressoando nas recentes manifestações de 2017. Conforme visto na Contentious Politics, um dos grupos envolvidos nessa interação conflitiva é o Estado, estabelecido em um território definido e controlando os meios de coerção. Desse modo, como a Teoria Anarquista prega o fim do Estado-Nação, o ciclo de conflito desse movimento social só acabará quando o Estado deixar de existir ou a Teoria Anarquista cair no ostracismo e se esvaziar. Infere-se que a escolha dessa temática procurou respeitar critérios metodológicos e teóricos, buscando mecanismos para melhor compreender as transformações que estão ocorrendo no ativismo social brasileiro da atualidade. Como pronunciado na introdução, antes de ter o pretexto de buscar respostas, a pesquisa visou lançar luzes sobre um fenômeno social contemporâneo e que, ainda, carece de estudos mais aprofundados. Há um despertar de correntes anarquistas no Brasil e no mundo em virtude de uma insatisfação com a ordem estabelecida, porém como superar esse sistema vigente sem levar ao caos ou a regimes reacionários autoritários? A história já mostrou que nem sempre boas intenções geram bons frutos e saber cadenciar os processos de mudanças é fundamental. O presente trabalho se encerra com essa indagação que procurará ser respondida em futuras pesquisas. REFERÊNCIAS ALANIZ, A. G. G. A sementeira de idéias: Edgar Rodrigues, uma vida dedicada à memória anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2009. AMARAL, R. A. D. Considerações sobre a violência pela ótica de Johan Galtung: alguns aspectos do terrorismo e o advento da intolerância. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, nº. 19, pp. 101116, 2015. Disponível em: . BEIRÃO, N. Procura-se Bakunin. Revista Carta Capital. Disponível em: . Acesso em 10 de mai. 2016. CHOMSKY, N. Notas sobre o Anarquismo. São Paulo: Hedra, 2015. DÉRI-DUPUIS, F. Black Blocs. São Paulo: Veneta, 2014. DRAGO, F. Autogestão na produção habitacional: Programa crédito solidário entre a institucionalização e o confronto político. 2011. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional). Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Disponível em: . Acesso em 15 de abri, 2017. DUARTE, R. H. A imagem rebelde: a trajetória libertária de Avelino Fóscolo. Campinas: Unicamp, 1991. DULLES, J. W. F. Anarquistas e Comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1973. DO CARMO, P. S. A ideologia do trabalho. Rio de Janeiro: Moderna, 1992. FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social (1890 – 1920). Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. FELICI, I. A verdadeira história da Colônia Cecília de Giovanni Rossi. Campinas: Cad. AEL, nº. 8/9, pp. 10 – 61, 1998. Disponível em: . Acesso em 15 de abri. 2017. FREIXO, A. de. Tudo à frente, nada à frente: protestos de rua e crise política no Brasil (2013 – 2016). In: FREIXO, A. de (Org.). Manifestações no Brasil as ruas em disputa. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2016. GOHN, M. da G. Movimentos Sociais na Atualidade. In: GOHN, M. da G. (Org.) Movimentos Sociais no início do Século XXI. Antigos e novos atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2003. _________. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praça dos indignados no Mundo. Petrópolis: Vozes, 2014. _________. Manifestações e Protestos no Brasil: correntes contracorrentes na atualidade. São Paulo: Cortez, 2017. GUÉRIN, D. O Anarquismo. Da doutrina à ação. Rio de Janeiro: Germinal, 1968. KELLING, G. & COLES, C. Fixing Broken Windows: Restoring Order and Reducing Crime in Our Communities. New York: Free Press, 1996. KROPOTKIN, P. Ajuda Mútua: um Fator de Evolução. São Sebastião: Ed. A Senhora, 2009. KOVAL, B. História do Proletariado Brasileiro. São Paulo: Alfa Omega, 1982. LOPREATO, C. S. R. A semana trágica: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Museu da Imigração, 1997. MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. McADAM, D.; TARROW, S. & TILLY, C. To Map Contentious Politics. Mobilization: An International Quarterly. March, Vol. 1, nº. 1, pp. 17-34, 1996. Disponível em: Acesso em 10 de abri. 2017. NETTLAU, M. História da Anarquia: das origens ao anarco-comunismo. São Paulo: Hedra, 2004. NOGUEIRA, M. A. As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. OLIVEIRA, J. H. de C. Vozes libertárias em tempos sombrios – Imprensa anarquista no período de ditadura civil-militar no Brasil (19641985). Trabalho apresentado no 3º Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Mídia e Memórias do Autoritarismo, realizado nos dias 14 e 15 de abril de 2014, na Escola de Comunicação da UFRJ. Disponível em: >. Acesso em 18 de abri. 2017. PINHEIRO, P. S. & HALL, M. A classe operária no Brasil: 1889 – 1930: documentos. São Paulo: Alfa-Omega, 1979. Vol. 1: O movimento operário. PROUDHON, P.-J. O que é propriedade? Lisboa: Estampa, 1975. ROCKER, R. A ideologia do Anarquismo. São Paulo: Faísca, 2005. RODRIGUES, E. História do Movimento Anarquista no Brasil. Piracicaba: Ateneu Diego Giménez, 2010. _________. Pequena história da imprensa social no Brasil. Rio de Janeiro: Insular, 1997. _________. Trabalho e conflito (1906 – 1937). Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1977. ROSCOCHE, L. F. O Anarquismo da Colônia Cecília: Uma jornada do sonho a desilusão. Revista de Geografia (UFPE) Vol. 28, nº 1, pp. 25-39, 2011. Disponível em . Acesso em 20 de abri, 2017. ROMANI, C. M. Clevelândia. Oiapoque – aqui começa o Brasil!: trânsito e confinamentos na fronteira com Guiana Francesa (19001927). Tese (Doutorado em História Cultural), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. Disponível em: . Acesso em 20 de abri. 2017. SOLANO, E.; MANSO, B. P. & NOVAES, W. Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática Black Blocs. São Paulo: Geração, 2014. SPARROW, R. Política Anarquista e ação direta. São Paulo: Faísca, 2009. SOUZA, J. de. A Radiografia do Golpe: Entenda como e por que você foi enganado. São Paulo: Leya, 2016. WALTER, N. O que é anarquismo? São Paulo: Faísca, 2009. WOODCOCK, G. História das Idéias e Movimentos Anarquistas. Vol. 1 e 2. Porto Alegre: LP&M, 2002. VIANNA, N. A Aurora do Anarquismo. In: DEMINICIS, R. B. & FILHO, D. A. R. (Orgs). História do Anarquismo no Brasil. Vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. Vídeos Arnaldo Jabor fala sobre onda de protestos contra aumento nas tarifas de ônibus. Disponível em . Acesso em: 01 de mai. 2017. Datena surpreendido em pesquisa! Passe Livre. Disponível em . Acesso em: 01 de mai. 2016 Foi um Golpe Brando que derrubou Dilma Rousseff Noam Chomsky. Disponível em . Acesso em 01 de mai. 2017. Manifestações de Junho - Arnaldo Jabor, “de crítico a apoiador”. Disponível em . Acesso em 01 de mai. 2017. Repórter Brasil – Anarquismo no Brasil. Disponível em: Acesso em 01 de mai. 2017. [1] O artigo optou em utilizar o vocábulo em inglês em razão de que, para os autores, há uma diferença entre confronto e conflito na política. No confronto existe um inimigo a ser eliminado enquanto no conflito há um adversário a ser superado. Uma melhor tradução seria o literal: Teoria do Contencioso Político. [2] Infraestrutura, segundo Marx (2008), seria o conjunto das relações de produção; enquanto a superestrutura corresponderia às formas de consciência social em geral, como a política, a filosofia, a cultura, as ciências, as religiões, as artes, etc. [3] Há um movimento ideológico mais recente, datado da década de 1940, intitulado anarco- capitalismo. O conceito estruturado pelo economista Murray Rothbard é uma anomalia metodológica operacional. Percebe-se que em sua essência fundadora, a ideologia anarquista tem como premissa básica sempre a superação do capitalismo e não sua manutenção ou intensificação. Na verdade, autores como: Rothbard, Gustave de Molinari, David Friedman, Hans-Hermann Hoppe, entre outros, que fazem parte ou sofreram influências da Escola Austríaca de economia, pregam um culto a economia de mercado e ao sistema capitalista. Uma operacionalização conceitual mais eficaz para esses autores seria o conceito de ultraliberalismo. [4] A mídia brasileira divulgou amplamente inquérito elaborado, no ano de 2013, pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, de mais de 2 mil páginas, que responsabilizava 23 pessoas pela organização de ações violentas em manifestações de rua na cidade e apontava o filósofo russo Bakunin como um dos suspeitos. Ver: BEIRÃO, Nirlando. Procura-se Bakunin. São Paulo: Revista Carta Capital. Disponível em: . Acesso em 10 de mai. 2016. [5] Os números de participantes nas Jornadas de junho apresentados na pesquisa foram obtidos por análise de diversas referências, como Datafolha, Polícia Militar e triangulado com dados vinculados pela grande mídia. [6] O estudo adota a conceituação de violência elaborada por Johan Galtung. Esse categoriza a violência em três: violência direta, violência cultural e violência estrutural. Para conhecer melhor o debate sobre violência e suas três formas na sociedade ver os diversos trabalhos de Johan Galtung. Uma introdução a sua vasta obra pode ser lido em: AMARAL, Rodrigo Augusto Duarte. Considerações sobre a violência pela ótica de Johan Galtung: alguns aspectos do terrorismo e o advento da intolerância. Revista Cadernos de Campo, nº. 19, pp. 101-116. Disponível em: . [7] Há um estudo que tenta explicar a razão das pessoas depredarem bens públicos que elas necessitam, como ônibus, trens, praças, etc. Elaborados por George Kelling e Catherine Coles, chama-se a Teoria da Janela Quebrada. Ver: (Kelling & Coles, 1996). [8] Ver: Arnaldo Jabor fala sobre onda de protestos contra aumento nas tarifas de ônibus. Disponível em . Acesso em: 01 de mai. 2017. [9] Ver: Datena surpreendido em pesquisa! Passe Livre. Disponível em . Acesso em: 01 de mai. 2016. [10] Uma exceção da cobertura rasa e tendenciosa da grande mídia foi uma série de reportagens divididas em quatro dias vinculadas na TV Brasil (canal público). Repórter Brasil – Anarquismo no Brasil. Disponível em: Acesso em 01 de mai. 2017. [11] Ver: Repórter da 'Folha' atingida por bala diz que óculos salvaram seu olho. Disponível em: . Acesso em 01 mai. 2014 [12] Manifestações de Junho - Arnaldo Jabor, "de crítico a apoiador". Disponível em . Acesso em 01 de mai. 2017. [13] Amarildo Dias de Souza, ajudante de pedreiro e morador da favela da Rocinha, desapareceu no dia 14 de junho após ser abordado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). [14] O Cansei foi uma iniciativa de parte da elite brasileira opositora ao governo petista. Criado em 2007 e encabeçado pelo empresário João Dória Júnior, o executivo Paulo Zottolo e o advogado Luiz Flávio Borges D'Urso, não alcançou sucesso naquele momento. [15] A pesquisa concorda com a avaliação feita por Noam Chomsky em 17 de maio de 2016. Em entrevista Chomsky afirmou que o suposto impeachment da Presidenta Dilma Rousseff foi, de fato, um golpe brando. No entanto, Chomsky não operacionalizou o conceito. Brevemente, o estudo ousa em operacionalizar o conceito golpe-brando como um processo que utiliza da violência estrutural (no caso do brasileiro realizado pelo estamento-burocrático que utiliza e reestrutura as leis para seu benéfico e contra seus opositores) aliado com a violência cultural (capitaneado pelos meios de comunicação). Ele é brando, pois a única violência que não ocorre é a direta (militar). A entrevista do Chomsky pode ser vista aqui: Foi um Golpe Brando que derrubou Dilma Rousseff Noam Chomsky. Disponível em . Acesso em 01 de mai. 2017.