Marx como um desafio aos cristãos

      Diferenças e Conclusão

        Notas

A visão de Ellul da história e a sua interpretação da Bíblia foram bastante influenciados pela sua leitura de Karl Marx. Ellul teve seu primeiro contato com os escritos de Marx aos 18 anos de idade. Nessa época, seu pai estava desempregado e Ellul estava ajudando sua família enquanto cursava Direito. Ele escreveu:

Eu estava profundamente desesperado ... Eu peguei emprestado da biblioteca O Capital e comecei a ler ... Descobri uma interpretação global do mundo, a explicação para este drama de miséria e decadência que experimentava. A excelência do pensamento de Marx no domínio da teoria econômica me covenceu. [1]

Seria a partir deste momento que Ellul prossegueria em suas leituras de Marx e a engajar com seu pensamento pelo resto de sua vida. [2]

O sociólogo francês usaria regularmente coceitos marxistas em sua obra. Um dos mais claros exemplos desta apropriação é o uso de Ellul do conceito de alienação. Na obra inicial de Marx, especialmente nos seus Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844, o termo alienação é empregado. [3] Como uma consequência do capitalismo e do aumento do crescimento industrial, a alienação é um estado do ser em que indivíduos estão separados do seus estados naturais de existência. Para Marx, aqueles que vivem em uma sociedade capitalista são alienados dos seus entes queridos, passando longas horas nos locais de trabalho; alienados de si mesmos, perdendo seus senso de criatividade, propósito e sentido; alienados da natureza, passando a maior parte de suas vidas em uma linha de montagem de uma fábrica ou moinho; e alienados do fruto de seu trabalho, não podendo acessar os produtos ou lucro que eles geram através do trabalho.

Ellul concorda com a teoria da alienação de Marx, mas a vê com uma perspectiva diferente. Para Ellul é a técnica — e não o capitalismo — a causa primária da alienação no mundo moderno. Uma vez que alguém está continuamente envolvido no meio tecnológico, ele começa a espelhar os valores da técnica: eficiência, poder e violência, entre outros. Quando a vida de alguém é guiada por esses valores, ele se torna separado das relações autênticas com os outros, consigo mesmo, e com a natureza.

Junto com a técnica, a propaganda é outra causa primária da alienação atualmente, segundo Ellul. Marqueteiros, políticos e outros utilizam manipulação psicológica para controlar as massas. Um dos grandes componentes da propaganda envolce o apelo ao medo: medo de terrorismo, medo de insegurança financeira, e até mesmo de imigrantes ilegais, por exemplo, fazem com que grande parte da população vivam em ansiedade constante. Viver em um estado constante de alarme e preocupação, ano após ano, levam a alienação profunda. [4]

Marx como um desafio aos cristãos

Enquanto utiliza a teoria de alienação marxista como um componente de sua crítica social, Ellul também faz uso de cinco aspectos do pensamento de Marx como um desafio aos seus leitores cristãos. [5] O primeiro desses aspectos é a oposição à justiça social. Para Marx, o objetivo do capitalismo é lucrar de forma eficiente. Isso inevitavelmente leva ao culto ao dinheiro. Quando o capital é valorizado mais que a saúde e bem-estar dos indivíduos, necessariamente leva à injutiça. Não apenas a humanidade, mas a natureza também é explorada para ganhos monetários. Ellul acredita que os cristãos deveriam, assim como Marx, considerar essas injustiças seriamente e trabalhar para criar comunidades em que fossem abolidas a adoração ao dinheiro e seus efeitos perniciosos.

O segundo aspecto é que Marx sempre se posiciona ao lado dos pobres. Em sua obra, Marx defende ferozmente os oprimidos, os explorados e os marginalizados. Ellul concorda com Marx ao tomar partido dos oprimidos. Ele afirma: “O pobre é, de fato, uma pessoa que exige uma resposta; a sua própria existência interroga as nossas vidas.”[6] Além disso,

É desta forma que o poder do dinheiro funciona. Sua forma mais tangível é o que chamamos de escravidão, mas devemos perceber que a situação do pobre não é muito diferente da situação do escravo. De acordo com a Bíblia, é fácil tropeçar da pobreza para a escravidão. A compra de um escravo não é apenas a compra de um corpo, mas de uma pessoa inteira. A pobreza também leva à total alienação do pobre, uma alienação que coloca a força de trabalho à disposição dos ricos, permitindo a eles impor a sua própria lei, concepção de vida, pensamentos e religião. [7]

A adoração ao dinheiro em nossa sociedade moderna leva ao crescente egoísmo e ganância. A pobreza e escravidão também são resultados comuns. Ellul argumenta que muitos cristãos deixaram de servir aos pobres, mantendo apenas uma fachada de caridade. Cristãos devem lutar contra essas condições e agir como verdadeiros advogados dos pobres.

Além disso, Ellul acreditava que faltava aos cristãos coerência no que se refere à praxis — unindo teoria com prática concreta. Aqui ele se volta ao terceiro aspecto do pensamento de Marx: sua articulação da necessidade da praxis: “para Marx, uma ideologia sólida é apenas possível se ela é ligada à uma praxis sólida.”[8] Durante sua vida, Ellul lutou para viver sua fé cristã de forma prática e tangível. Por exemplo, começando em 1958, Ellul e seu colega Yves Charrier fundaram uma organização para jovens marginalizados, muitos dos quais vivivam na pobreza ou nas ruas. Esta organização dava aulas gratuitas de canoagem e caiaque, oficinas de metal e madeira, e até abriu um salão de beleza para jovens mulheres das ruas aprenderem a se tornarem esteticistas. [9] Ellul esteve ativamente envolvida neste trabalho por muitos anos, e este é apenas um exemplo de como os cristãos podem combinar pensamento e ação.[10]

O quarto conceito que Ellul defendia era a preocupação de Marx com o que é concreto em vez de teorias abstratas, o que é evidente pela sua conhecida frase: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” [11] Ellul concorda totalmente com esse sentimento. Na verdade, Ellul defende que muitos cristãos perderam a ênfase na base concreta da Bíblia. Ellul aponta para os profetas das Escrituras Hebraicas, que não estavam preocupados com crenças abstratas, mas em ajudar de verdade a viúva e o órfão. Ele escreveu: “O profeta é na realidade o homem que traz a Palavra de Deus para a situação real e concreta do homem, a sua situação política.” [12] E, “O Homem é assim convocado a participar em uma ou outra das ações do Espírito Santo, na totalidade da obra de Deus. Ele é convocado para prover as bases da eficiência divida.” [13]

Além disso, Ellul argumenta que existe uma forte ênfase no concreto no Novo Testamento, e aponta dois exemplos notáveis. Primeiro, é evidente que a vida e os milagres de Jesus eram de natureza material — curando doenças, restaurando a vida, multiplicando o pão etc. Em segundo lugar, Ellul defende que a encarnação é uma personificação material do amor de Deus pela humanidade e pela terra — não uma personificação abstrata. Ele explicou:

Quanto a Jesus, uma simples lembrança de Sua encarnação revela o terrível erro envolvido em um cristianismo desencarnado. Também é possível ver nos Evangelhos a importância da vida cotidiana, do corpo e da unidade indivisível do ser. Assim, o cristianismo [contemporâneo] traiu completamente a própria essência da revelação ao transformá-la em espiritualidade religiosa.[14]

Com outras ênfases no material presente na Bíblia, esta encarnação ilustra, como Marx enfatizou, envolvimento concreto em nossas comunidades dever ser levado à sério. Ellul clama aos cristãos para tomarem medidas concretas, mas, diferente de Marx, argumenta que eles deveriam evitar usar métodos violentos ou acreditar nos sucessos materiais. Em outras palavras, cristãos devem recusar engajar em técnicas propagandísticas (violência psicológica) ou violência física, e eles não devem jamais tentar calcular o sucesso de suas ações. Em vez disso, eles devem viver dia a dia, guiados pelo Espírito Santo, colocando o resultado final das suas ações nas mãos de Deus.[15]

O objetivo final de Marx era o bem-estar, a cooperação e a prosperidade da comunidade, e Ellul aponta isso como o quinto e último aspecto do pensamento de Marx para desafiar os cristãos. Ellul acreditava que o cristianismo de hoje é altamente individualista e perdeu de vista a ênfase comunitária na Bíblia. Ele escreveu: “O cristianismo perverteu a ação cristã, reduzindo-a a uma questão de conversão individual.”[16] Em vez do individualismo narcisista, Ellul nos exorta a retornar às Escrituras onde lemos: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum; vendiam suas posses e bens e distribuíam o dinheiro a todos, conforme a necessidade de cada um. Dia após dia, como passavam muito tempo juntos no templo, partiam o pão em casa e comiam com alegria e generosidade de coração,…” e “Todo o grupo dos que creram era de um só coração e alma, e ninguém reivindicava propriedade privada de quaisquer bens, mas tudo o que possuíam era mantido em comum.”[17] Estes são apenas alguns exemplos bíblicos da ênfase radical na comunidade que Ellul implora aos cristãos contemporâneos que relembrem e adotem.[18]

Para Ellul, Marx foi um profeta. Marx lutou contra a injustiça, enfatizou a práxis e lembrou seus seguidores de rejeitar o individualismo narcisista. Marx também — e talvez o mais importante para Ellul — nos incentivou a focar na direção da história e a entender que temos um papel a desempenhar nesse drama que se desenrola. Ellul acreditava que muitos cristãos perderam de vista o significado, e o propósito da história e a responsabilidade revolucionária que são chamados a assumir nesse processo. Ele enfatizou que Marx é crucial para recuperar esse foco.

Ao ler Marx, fui trazido de volta às proclamações sociais e políticas dos profetas. Foi Marx quem me convenceu de que as pessoas, nas diversas situações históricas em que se encontram, têm uma função revolucionária em relação à sua sociedade. Mas é preciso compreender exatamente qual é a revolução; e em cada período histórico é preciso mudar, é preciso redescobrir.[19]

Ao tomarmos consciência da história e do nosso lugar único nela, devemos nos tornar revolucionários. Para Ellul, isso pode implicar resistência não violenta contra um estado ou entidade política específica. No entanto, isso sempre envolverá uma luta contra os mitos e ídolos, os principados e poderes que continuam a desumanizar os indivíduos e a destruir a Terra.

Diferenças e Conclusão

Junto com Kierkegaard e [Karl] Barth, Marx foi uma das principais influências no pensamento de Ellul, como demonstrado acima. O pensador francês via Marx principalmente como um crítico social profético. Marx encorajou as pessoas a acordarem da escravidão e da idolatria do capitalismo. As várias formas de marxismo que evoluíriam no século XX (leninismo, stalinismo, maoísmo, etc.) não eram fiéis à visão de Marx, segundo Ellul. Esses “marxismos” eram principalmente formas ditatoriais de socialismo de cima para baixo, enquanto a visão de igualdade social de Marx era de baixo para cima, de base e democrática. Além disso, como mencionado anteriormente, Ellul acreditava que o próprio Marx errou algumas coisas. Por exemplo, em vez de o capitalismo levar à alienação, Ellul argumenta que é a técnica a força motriz. Além disso, Marx vê a natureza humana como fundamentalmente inclinada ao altruísmo, enquanto Ellul aceita a doutrina cristã do pecado original. Além disso, Marx era ateu, enquanto Ellul era um teísta convicto. E Marx via a história como um caminho em direção ao escaton do socialismo, enquanto Ellul acreditava que a história estava caminhando em direção à reconciliação com Deus.

Na análise final, Ellul claramente tinha uma relação dialética com Marx — concordando e apropriando-se de alguns pensamentos de Marx, e discordando e rejeitando alguns dos pensamentos de Marx. Ellul, no entanto, acreditava que Marx era um dos pensadores mais importantes da era moderna e que todos os indivíduos pensantes deveriam se envolver profundamente com os escritos de Marx.

Notas

Este ensaio foi retirado de “Oui et Non: Jacques Ellul’s Dialectical Engagement with Karl Marx” (um capítulo de Political Illusion and Reality: Engaging the Prophetic Insights of Jacques Ellul. Pickwick, 2018.

[1] Ellul, In Season, Out of Season, 10-11.

[2] Deve-se notar também que, segundo Patrick Chastenet, Ellul conheceu Karl Marx durante uma aula de economia na universidade, em 1929-1930. Ellul ficou bastante impressionado com Marx, mas “ficou extremamente decepcionado quando conheceu alguns trabalhadores comunistas que estavam muito mais preocupados em seguir a linha do partido do que com o marxismo hermenêutico”. Ellul and Troude-Chastenet, Jacques Ellul on Politics, Technology, and Christianity, pg. 4.

[3] Para algumas passagens-chave na obra de Ellul sobre alienação, ver The Ethics of Freedom, 23-47; Propaganda, 169-182; The Technological Society, 423; Money and Power, 20-21, 78; The Technological System, 18; The New Demons, 207; To Will and To Do, 14, 41.

[4] Ellul, Propaganda, 169-182.

[5] Frédéric Rognon explica estas características. Veja: Jacques Ellul: Une pensée en dialogue, 211-233. Geneva: Labor et Fides, 2013. Para informações mais precisas sobre as opiniões de Ellul sobre Marx, consulte a obra de Patrick Chastenet. Chastenet foi assistente de Ellul enquanto este ministrava cursos universitários sobre Marx. Consulte A Contre-Courant: Entretiens, conversas entre Ellul e Chastenet para obter detalhes esclarecedores sobre a relação de Ellul com Marx, os anarquistas e a política em geral.

[6] Ellul, Money and Power, 142.

[7] Ibid., 78.

[8] Ellul, Jesus and Marx, 115.

[9] Ellul, In Season, Out of Season, 119-120.

[10] Veja Ellul, “Un club de prévention”. Ao discutir seu tempo de trabalho com jovens marginalizados em Bordeaux, Ellul enfatiza que nunca tentou “moralizar” ou converter jovens, homens e mulheres, ao cristianismo. Ao oferecer moradia gratuita e instrução em uma variedade de assuntos práticos, os jovens conseguiam evitar problemas com a lei e se tornar menos autodestrutivos. Ellul escreve: “Na realidade, não são os jovens que estão desajustados à sociedade, mas a nossa sociedade que está desajustada aos seres humanos”. “Un club de prévention”, em Foi et Vie, 3-4, julho de 1989, p. 77.

[11] Marx, “Theses on Feuerbach,”. IN: The German Ideology, 123.

[12] Ellul, Politics of God, Politics of Man, 50.

[13] Ibid., 135.

[14] Ellul, Jesus and Marx, 8.

[15] Ellul, Politics of God, Politics of Man, 136.

[16] Ellul, Jesus and Marx, 8.

[17] Atos dos Apóstolos 2: 44-46; 4:32 NRSV.

[18] Para um comentário perspicaz sobre essas passagens em relação à comunidade na igreja primitiva, veja José Miranda, Communism in the Bible. Maryknoll, NY: Orbis, 1982.

[19] Ellul, Perspectives on Our Age, 13, 11. O profundo conhecimento de Ellul sobre Marx é melhor demonstrado em dois livros que ainda não foram traduzidos para o inglês. O primeiro, La pensée marxiste (2003), é uma apresentação do pensamento de Marx e inclui uma discussão detalhada sobre dialética, materialismo, trabalho e mais-valia, capital, ideologia, Estado e alienação. O segundo livro, Les successeurs de Marx (2007), é principalmente uma apresentação dos principais pensadores marxistas (Jean Jaurès, Georges Sorel, Eduard Bernstein, Karl Kautsky, Vladimir Lenin, Rosa Luxemburgo, Georgi Plekhanov, Radovan Richta e Ota Šik) e uma explicação dos caminhos divergentes do pensamento marxista. Ambos os livros foram compilados a partir de cursos que Ellul lecionou no Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux entre 1947 e 1979.