Título: O golpe de Estado de Outubro
Data: 192?
Fonte: MAKHAISKI, Jan Waclav; et al. Marxismo e ditadura. Tradução: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Intermezzo, 2014. pp. 37-46.

Durante todos os períodos de desenvolvimento do marxismo, a tese afirmando que o primeiro passo da emancipação da classe operária consistia na conquista do poder permaneceu inabalável e inalterada. A social-democracia banalizou um pouco essa tese por sua política, pregando, como único meio de conquista do poder de Estado, a luta pacífica do parlamentarismo. Doravante, qualquer bolchevique reconhecerá, verdadeiramente sem dificuldade, que a “dominação do proletariado” não é obtida pela luta pacífica lega, que isso só tem por resultado tornar a própria social-democracia pacífica e legalista, e conduz-na atualmente a ajudar em toda parte os governos a conduzirem uma guerra de pilhagem e a empurrar as massas operárias de diferentes países a entrematar-se. O bolchevismo restaurou a “pureza” original da fórmula de conquista do poder de Marx, não só em sua propaganda mas igualmente nos fatos.

O poder não pode ser conquistado por uma via pacífica, mas pela violência, por meio de insurreições gerais do povo. Eis o que demonstrou o bolchevismo perante o mundo socialista; ele demonstrou-o, ninguém negará, com uma evidência e uma certeza das mais brilhantes. Todavia, a afirmação dos bolcheviques tendendo a apresentar sua conquista do poder como a ditadura, a dominação da classe operária, não é, de fato, senão uma das fábulas que o socialismo inventa ao longo de sua história.

Embora os bolcheviques tivessem renegado o espírito de conciliação da social-democracia, a dominação da classe operária obtém-se neles, tão rápida e simplesmente quanto a dominação parlamentar nos Schneidemann. Uns e outros prometem à classe operária sua dominação, mas a deixando nas mesmas condições de servidão, e fazendo-a coexistir com a burguesia que sempre possui todas as riquezas.

Às vésperas do ano 1903, o bolchevismo, que, ele próprio, era tão conciliador quanto o conjunto da confraria socialista e democrática, assegurava que a derrubada da autocracia tornaria a classe operária senhora do país. Em 1917, apenas alguns dias após o golpe de Estado de Outubro, tão logo os bolcheviques ocuparam, nos sovietes, os lugares deixados vazios pelos mencheviques e pelos socialistas-revolucionários –, Lênin, tomando o lugar de Kerensi, e Chliapnikov o de Gvozdiev – considerou-se que a classe operária, por esse único fato, detinha todas as riquezas do Estado russo. “A terra, as ferrovias, as fábricas – tudo isso, operários, é doravante de vocês”, proclama um dos primeiros apelos do Soviete dos comissários do povo.

O marxismo, pretensamente depurado do oportunismo da social-democracia, revela, contudo, seu velho pendor, próprio a todos os peroradores socialistas, a nutrir os operários com fábulas e não com pão. O marxismo revolucionário, comunista, retirado da poeira acumulada desde longas décadas, defende sempre a mesma utopia democrática: o poder absoluto do povo, conquanto este esteja mergulhado na servidão, na ignorância e na escravidão econômica.

Tendo obtido sua ditadura e decidido a realizar um regime socialista, o marxismo bolchevista não se desfez do velho costume marxista de sufocar a “economia” operária pela “política”, distrair os operários da luta econômica e subordinar os problemas econômicos às questões políticas. Bem ao contrário, tendo felizmente criado sua “obra-prima”, os bolcheviques não deixaram de desgarrar as massas operárias, prodigalizando elogios sem moderação ao “governo operário-camponês”.

Seria apenas porque os bolcheviques apoderaram-se do poder, que a Rússia burguesa deveria imediatamente desaparecer e deveria nascer a Rússia socialista, a “pátria socialista” russa, e isso a despeito do fato de até ao presente a “ditadura do proletariado” não ter conseguido – e nem mesmo pensa nisso, aparentemente – socializar as usinas e as fábricas?

Os capitalistas perderam suas fábricas, ainda que nem todas tivessem-lhes sido retiradas; já não possuem seus capitais, conquanto vivam quase na mesma condição de antes. Desde Outubro é o operário que seria o senhor de todas as riquezas, aquele mesmo cujo salário, tendo em vista a alta contínua do custo de vida, torna-se um salário de fome; aquele mesmo “proprietário das fábricas” que, na mínima greve dos transportes, encontra-se condenado ao pavor de um desemprego como nunca se viu na Rússia.

Sim, a ditadura bolchevique é verdadeiramente miraculosa! Ela dá o poder ao operário, dá-lhe a emancipação e a dominação, ao mesmo tempo conservando à sociedade burguesa todas as suas riquezas.

Todavia, afirma a ciência comunista-marxista, a história não conhece outro meio de emancipação; até ao presente todas as classes liberavam-se por meio da conquista do poder de Estado. É assim que a burguesia teria obtido sua hegemonia na época da Revolução Francesa.

Os eruditos comunistas negligenciaram um pequeno detalhe: todas as classes que se liberaram na história eram classes possuidoras, enquanto a revolução operária deveria garantir a hegemonia de uma classe de não-possuidores. A burguesia só se apoderou do poder de Estado depois de ter acumulado, no transcurso dos séculos, riquezas cuja amplitude nada devia àquelas de seu opressor, a nobreza; e é apenas por essa razão que a conquista direta do poder aparecia-lhe como a instituição efetiva de sua dominação, como o fortalecimento de seu império.

A classe operária não pode seguir o caminho que liberou a burguesia. Para ela, a acumulação das riquezas é impensável; nesse terreno, ela não pode superar a força da burguesia. A classe operária não pode tornar-se proprietária das riquezas antes de realizar sua revolução. É por isso que a conquista do poder de Estado, conduzida por qualquer partido, por mais revolucionário e arquicomunista que ele seja, nada pode dar por si mesma aos operários, fora do poder fictício da dominação ilusória que a ditadura bolchevique não cessou de simbolizar até agora.

Os bolcheviques não avançam na resolução desse problema essencial, e as massas operárias, que começaram desde há muito a perder suas ilusões em relação a isso, reconhecem doravante que a ditadura bolchevique é completamente inútil para elas, e afastam-se deles, assim como o fizeram com os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Revela-se que esse poder não é aquele da classe operária, que ele não defende senão os interesses da “democracia”, das camadas inferiores da sociedade burguesa: da pequena burguesia citadina e rural, da intelligentsia, qualificada de “popular”, bem como de desclassificados do meio burguês e operário, convocados pela república soviética à direção do Estado, da produção e de toda a vida do país. Revela-se que a ditadura bolchevique não terá sido senão um meio revolucionário extremo, indispensável para esmagar a contrarrevolução e para instaurar as conquistas democráticas. Revelar-se-á igualmente que os bolcheviques suscitaram a insurreição de Outubro a fim de salvar da completa ruína o Estado burguês deliquescente pela criação de uma “pátria operária e camponesa”, a fim de salvaguardar da devastação não mais as moradas senhoriais, mas cidades e regiões inteiras ameaçadas, de um lado, pelas massas famintas da cidade e do campo, e do outro, pelos milhões de soldados que fugiam do front.

Tudo o que resta da revolução bolchevique pouco difere dos modestos planos elaborados pelos bolcheviques dois a três meses antes do golpe de estado de Outubro. Em sua brochura, As lições da revolução, Lênin declara várias vezes que a tarefa dos bolcheviques consiste em realizar o que querem, mas não sabem pôr em prática, os ministros socialistas-revolucionários: salvar a Rússia do desastre – e que só os caluniadores burgueses podem atribuir aos bolcheviques a aspiração a instaurar na Rússia uma ditadura socialista e operária.

Em suas brochuras, escritas posteriormente, Os bolcheviques conservarão o poder? e A catástrofe que ameaça, Lênin explica que a tarefa da ditadura bolchevique e do controle operário será substituir o velho mecanismo burocrático por um novo aparelho popular de Estado; ele também preconiza modos de emprego dos mais fantásticos, como, por exemplo, obrigar a burguesia a submeter-se e a servir o novo Estado popular, sem contudo retirar-lhe suas riquezas!

A ditadura bolchevique foi concebida como uma ditadura democrática que não devia de modo algum solapar os fundamentos da sociedade burguesa. Após Outubro, várias empresas foram declaradas nacionalizadas por um decreto cuja execução, sabemo-lo, não é garantida. Várias dezenas de banqueiros foram privadas de suas riquezas, mas em geral as riquezas da Rússia permanecem com a burguesia, e fundam sua força e sua dominação.

Acantonados atrás das posições conquistadas, os comunistas, recém-chegados, desempenharão o papel dos democratas franceses da época da Grande Revolução, o papel dos célebres jacobinos, cuja carreira seduz tanto os dirigentes bolcheviques, a ponto de eles não se oporem absolutamente a copiá-los, seja em suas pessoas, seja em suas instituições.

Os jacobinos franceses haviam instaurado uma “ditadura dos pobres” tão ilusória quanto aquela dos bolcheviques russos. A fim de assegurar ao povo o esmagamento dos “aristocratas” e outros “contrarrevolucionários”, a fim de mostrar que a capital e o Estado encontravam-se nas mãos dos pobres, os jacobinos haviam colocado os ricos e os aristocratas sob a vigilância das massas, e haviam eles próprios organizado repressões sangrentas contra os inimigos do povo.

Os “tribunais revolucionários” dos sans-culottes parisienses condenavam cotidianamente à morte várias dezenas de inimigos do povo, e desviavam a atenção dos pobres pelo espetáculo das cabeças tombando do cadafalso enquanto estes estavam sempre tão famintos e subjugados; da mesma forma, hoje, na Rússia, adormecem as massas operárias com as prisões de burgueses, sabotadores, com o confisco de palácios, com o estrangulamento da imprensa burguesa e os espetáculos terroristas semelhantes àqueles dos jacobinos.

A despeito dos horrores do terror jacobino, a burguesia instruída havia muito rápido compreendido que era precisamente esse rigor extremo que a havia salvado, que ela havia consolidado as conquistas da burguesia revolucionária, salvando a revolução burguesa e o Estado da pressão da Europa contrarrevolucionária, e ao mesmo tempo inspirado um devotamento a toda prova do povo à “pátria da liberdade, da igualdade e da fraternidade”.

Será inútil os bolcheviques glorificarem a “pátria socialista” e inventarem formas de governo as mais populares possíveis; enquanto as riquezas permanecerem nas mãos da burguesia, a Rússia não cessará de ser um Estado burguês.

Tudo o que realizaram até aqui é só um trabalho de jacobinos: o reforço do Estado democrático, a tentativa de impor às massas a grande mentira segundo a qual desde Outubro teria sido posto fim à dominação dos exploradores, e que todas as riquezas doravante pertenceriam ao povo laborioso; além disso, eles suscitaram na Rússia democrática o patriotismo dos sans-culottes franceses.

É com isso que sonhavam os bolcheviques antes de Outubro, enquanto ainda estavam vencidos, quando declaravam que eram os únicos a poder provocar o entusiasmo necessário à defesa da pátria (Lênin, A catástrofe iminente). Eles não cessaram de pensar nisso, uma vez no poder, conquanto não tivessem podido conseguir fazer flamejar o fogo patriótico no seio do exército “enfermo”; eles ainda pensam nisso agora, proclamando uma nova “guerra patriótica”.