#title Individualismo e Solidariedade #author Jean Grave #LISTtitle Individualismo e Solidariedade #SORTauthors Jean Grave #SORTtopics individualismo, solidariedade #date 1904 #source Almanach illustré de la révolution, páginas 58-59. [[https://nrs.lib.harvard.edu/urn-3:fhcl:3841636]] #lang pt #pubdate 2022-01-09T21:19:57 Há alguns anos, certos literatos deram-se conta de ter descoberto Nietzsche, Stirner e até Schopenhauer. Uma vez seguindo-lhes o rasto, eis que tomaram conhecimento de que havia pelo mundo um indivíduo — o Indivíduo! —, que esse indivíduo tinha primazia sobre tudo, tinha o direito de viver, desfrutar, desenvolver-se em toda a sua integralidade, segundo as suas faculdades e aptidões, sem ter que tomar em conta qualquer entrave, qualquer obstáculo, a não ser para o quebrar se o estorvasse, ou subjugá-los se lhe pudesse ser útil. E fabricou-se assim uma anarquiazinha que tendia a nada menos do que elevar uma nova artistocracia: a aristocracia intelectual, que, como as outras, desprezava profundamente o resto da massa, não vendo nela mais do que um rebanho de escravos bons para produzir e labutar para o «intelectual», que poderia assim desenvolver-se e crescer em força, inteligência e beleza! Esta concepção do indivíduo, do intelectual, adulava demasiado a vaidade de alguns falhados para que estes não se tornassem os seus defensores resolutos. É uma teoria demasiado cómoda para justificar os atos mais contraditórios, para que não fôssemos brindados com esta nova escola. A liberdade mais completa para o indivíduo, o seu direito à satisfação integral de todas as suas necessidades, são reclamações absolutamente legítimas, e não havia nenhuma necessidade de ir desenterrar Nietzsche e Stirner para lhes dar uma qualquer consagração. É o que o homem busca desde que está no mundo, é este instinto primordial que o fez tentar as diversas revoluções, mesmo as mais políticas, que ele realizou pelo caminho. E é o que nunca deixaram de reclamar os anarquistas comunistas. Simplesmente, os anarquistas comunistas, que não se satisfazem com palavras e abstrações, partidários do método científico, que requer que nos apoiemos em factos, não se contentaram com fazer metafísica, estudaram as condições de existência do indivíduo. E sem se gabarem de ter feito uma descoberta espantosa — pois salta à vista de todos —, viram que o indivíduo não era uma entidade única, vivendo nas nuvens da dialética, mas um ser de carne e osso, com uma tiragem de cerca de dois biliões de exemplares, e que o que era verdadeiro para um, era igualmente verdadeiro para cada um desses dois biliões. De resto, a necessidade de viver em sociedade não se discute. Foi porque se agrupou com os seus semelhantes que o homem adquiriu a faculdade da linguagem e de exprimir as suas ideias; foi na troca de ideias com os seus companheiros que ele conseguiu modificar e alargar as primeiras impressões, fazer delas tradições que as gerações se transmitiram, discutindo-as depois de as terem seguido cegamente, e das quais, de progresso em progresso, se constituiu a bagagem científica, artística e literária de hoje. O homem que quisesse completamente isolar-se dos seus semelhantes retornaria ao estado de bruto, se as espécies mais bem armadas não o tivessem eliminado antes. Então, aqui, o problema complica-se. Pelas necessidades dos seus organismos, e pela exiguidade do espaço em que estão contidos, que forçosamente limita o seu campo de evolução, já não basta aos indivíduos afirmar os seus direitos; importa sobretudo procurar as condições em que os poderão exercer, sem dano para si próprios e sem dano para os outros, o que poderia trazer represálias e limitar os direitos afirmados demasiado brutalmente. E a partir do momento em que o indivíduo não pode viver e desenvolver-se a não ser em sociedade, não lhe resta mais que dois modos de afirmar a sua liberdade: agindo ao sabor da sua vontade, se for suficientemente forte para se impor aos outros sem se preocupar com as suas reclamações quando os prejudica, ou fazendo-lhes crer, pela artimanha, que age assim no seu interesse, e então não é preciso reivindicar uma transformação social, pois temos a sociedade burguesa que nos fornece uma gama variada desses métodos e das suas diferentes combinações; ou então os indivíduos entender-se-ão entre si para encontrarem uma organização social que, trazendo-lhes o máximo bem-estar em troca do mínimo de esforços, lhes permita evoluir sem se estorvarem, conservando, por concessões recíprocas ou uma perfeita adaptação e combinação das aptidões, a maior soma de liberdade possível — ou seja, por uma inteligente prática da solidariedade.