Jesús Sepúlveda
O jardim das peculiaridades
1
A ideologia se cristaliza como um mapa na memória. Ela se legitima propagando a falsa ideia de que o mundo em que vivemos é o melhor mundo possível, ou o sistema é o melhor sistema, independentemente de suas falhas. Por isso, é comum ouvir que o socialismo é melhor do que o capitalismo, o livre mercado é melhor do que o Estado proletário, a democracia é melhor do que o fascismo, a ditadura militar é melhor do que o comunismo, a república é melhor do que a monarquia, o feudalismo melhor do que a escravidão, a cidade melhor do que o campo, etc.
Por mais que muitos desses argumentos sejam lançados, todos eles são, em última análise, absurdos, porque tendem a justificar a repressão no altar de uma suposta ordem necessária. A ideologia demoniza sua oposição como partidários de um caos suposto e construído, louvando a moderação e promovendo a resignação. A ideologia contorna a lógica e persuade a população ingênua a aceitar o mal como inevitável, que carrega consigo o gosto residual da fatalidade ou da arrogância, mas sempre com rendição ou sacrifício. Nesse sentido, não é incomum ouvir dizer que mudar é impossível, ou que não há mais ideais pelos quais valha a pena lutar nem esperança para se ter. A ideologia programa o desespero coletivo. Ela aliena. É uma derrota. É tão recalcitrante quanto um dogma, porque seu objetivo final é a autoperpetuação. Ela usa todos os meios disponíveis para este fim: genocídio, ecocídio, eleições, ou simplesmente medo - medo que paralisa ou apaga a imaginação.
A ideologia opera como uma narrativa que domestica por meio de sua própria padronização sistêmica. Ela se expande como um vírus, ou peste transparente e mimética, que se expressa em tendências ou em identidades etiquetadas. Ninguém a vê, ninguém a sente, ninguém a toca, mas todos falam com sua língua. Ela estrangula a mente - que está conectada a um servidor ou mainframe - e se conecta aos olhos. Ela se reproduz mecanicamente e acumula desejos insatisfeitos em uma espiral oscilante. Essa espiral é como as pregas de um acordeão ou, melhor ainda, um coração artificial emitindo sua própria agonia. A batida desse falso coração continuará até que o império se rearme, o governo se reagrupe, as castas sejam revividas ou até que o sistema entre em colapso, vítima de sua própria decadência.
A ideologia se cristaliza como um mapa. Esse mapa, no entanto, é falso - ele retrata o mundo como uma criação mental, um palco construído sobre a base das engrenagens da produtividade: a engrenagem é a bolha material e ideológica na qual os chamados sistemas políticos e econômicos de eco-dominação social existem. A ideologia se justifica com a falsa ideia de que este é um mundo feliz e viável, e que, apesar de suas falhas, é melhor fechar os olhos para se acostumar à sobrevivência e evitar qualquer sonho. Quando uma pessoa sonha, os pesadelos cessam e a fantasia floresce. Isso pode ser, no entanto, altamente subversivo, pois além de dar asas à imaginação, os sonhos apagam narrativas e viram os mapas de cabeça para baixo, descartando-os em fétidos depósitos de lixo.
2
A domesticação é um processo que alguns animais sofrem neste planeta. Reduz o selvagem e acostuma o animal à ausência do estado natural dos seres vivos neste planeta. Ela elimina quaisquer características selvagens que naturalmente neguem a padronização em todo o planeta. Apaga o que é natural e espontâneo e que tornou possível a vida neste planeta. Ela homogeneiza todas as criaturas vivas e organiza a vida em unidades que categorizam tudo o que vive e respira no planeta. Ela coloca os seres humanos fora do reino animal, criando categorias de reinos e organizando plantas e insetos como objetos mortos neste planeta. A domesticação é um processo sofrido como uma doença estranha que pesa sobre a vida em todos os cantos do planeta, ameaçando destruir a existência de todos os que habitam sua magia.
3
O afeto inspira força. Sem ele, é quase impossível suportar experiências muito intensas e dolorosas. A ternura é um modo de vida oposto à automatização do relógio e ao trabalho forçado. A robotização é um caminho de morte, oposto à liberação do tempo e do lazer, que permite que a ternura cresça como um tronco saudável no jardim de todos e assim espalhe seu aroma entre todos os seres que habitam o jardim planetário.
Em contraste, a globalização impõe um molde padrão ao nosso jardim. Ela se manifesta em um processo triplo: expansão imperial do capital; padronização mundial por meio do controle econômico por empresas transnacionais e domesticação do solo por meio da monocultura, destruindo a variedade natural e pavimentando a terra. Sua avareza ameaça todos os ciclos naturais. O solo é a pele e a carne que cobre nosso planeta. O ar puro é a paisagem que nos dá oxigênio e nos protege da morte pela penetração dos raios ultravioleta. Os condores e ovelhas de Magalhães têm ficado cegos devido ao enfraquecimento da camada de ozônio. A água nos dá vida. Solo, ar e água fazem parte de um ciclo natural interrompido pela poluição. Então, o fogo nos dá a energia de que precisamos e o sol nos nutre com compaixão e ternura.
Certamente todos nós precisamos de ternura: o gato que se estica entre as panturrilhas dos convidados ou mia no colo; o cachorro que pula animado com a sua volta e busca o seu reconhecimento. A ternura nos reconecta a todas as coisas e nos faz bem. Quem não sentiu prazer em tocar o rosto de uma pessoa amada ou banhado no prazer do toque de uma pessoa amada?
As réplicas cibernéticas robóticas apenas trabalham. Elas percebem o tempo falsamente, elas o entendem como uma linha contínua onde o passado, o presente e o futuro se cruzam simultaneamente, mas de uma forma irreal. A noção de tempo é uma imposição autoritária da ordem social que se justifica com a falsa ideia de progresso, um modelo de legitimação da ordem dominante: industrialização, prisão e delimitação territorial. Materialmente, vivemos no presente, na própria existência.
“Hic et nunc”, assim diz o ditado latino: aqui e agora. Por causa disso, a memória - sempre ativa e arbitrária, mutante e seletiva - nos dá uma percepção de nossa própria experiência. A experiência amplifica a peculiaridade, um processo distinto da história, isto é, da padronização do oficial. O único fator comum a todas as peculiaridades que existem na terra é a ternura. O afeto é uma necessidade primária dos seres humanos. Saber, então, é entender que sem ternura e amor nenhuma revolução pode ser possível.
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A eficiência é inflexível. Um coletor automático no ônibus processa apenas o troco exato para imprimir uma passagem; caso contrário, não funciona e invalida a operação. O caixa automático zumbe quando o botão errado é pressionado e rejeita o cartão de plástico. Essa é a lógica da eficiência, ou a razão da inflexibilidade. Da mesma forma, ser indeciso é sinal de ineficiência, que marca e arde com a mancha do flexível.
A seiva que flui pela natureza se espalha sem uma base estável de identidade. Em vez disso, flui espontaneamente, precipitadamente. Não se reproduz de forma idêntica e rejeita os moldes da mecanização. Este fluido está em constante movimento. Enquanto o rio corre, suas partículas não têm réplica possível. Dessa forma, congelar uma única gota, isolando-a do fluxo geral, é um ato contra a natureza. Clonar a natureza para despejar sua cópia em um tubo de ensaio é um ato reificante, objetificador. A natureza é a própria peculiaridade e é frágil como todo floco de neve. Seu espírito é flexível. A lógica da padronização se articula, em vez disso, por meio dos mecanismos de eficiência. Um experimento não pode se tornar flexível; requer um padrão estável que deve ser testado sob condições e coordenadas inflexíveis. A vida flui de maneira orgânica, como a seiva das plantas; não é um experimento de laboratório sob controle científico. Pelo contrário, floresce com a flexibilidade de uma planta. A seiva rega o mundo através de cada uma de suas peculiaridades.
A eficiência nega a natureza, na medida em que ela tenta impor um painel de controle sobre o jardim, que brota espontânea e organicamente. A eficiência se expande e coloniza, ignorando todas as peculiaridades. Por isso, sua função é construir categorias que operem com a lógica da padronização taxonômica. Assim, diferencia e cria conjuntos, ao mesmo tempo que nega as diferenças desses mesmos conjuntos, que não resistem à luz e à organicidade de suas próprias peculiaridades.
A realidade é um jardim de peculiaridades plantado a partir de uma constelação de outras peculiaridades, que ao mesmo tempo se dispersam em seu próprio universo ao ritmo da seiva que flui e floresce. O fluido não se organiza nem se representa. É apenas um fluxo. Tudo o que o habita faz parte da sua própria organicidade, que cresce no movimento constante de cada constelação única e irrepetível. A organicidade da mudança - que às vezes se expressa como bolhas em água fervente - surge quando os humanos concentram sua energia - que se torna consciência auto-reflexiva - e corrige o curso dos eventos diários. Mas a organicidade também é natural e independente da consciência. Por exemplo, o aquecimento global, causado pela tecnologia humana, fará com que o planeta esfrie para neutralizar o calor assustador e artificial dos combustíveis fósseis. Isso causará inundações, tsunamis e até o desaparecimento de populações costeiras. Não entender isso é alienar-se do curso de vida que flui entre cada um de nós. É cair na reificação, ou seja, na lógica que situa os sujeitos como matéria morta em um painel de controle. É o painel que liga e desliga o sistema mecanizado, negando com seu tique-taque medido o curso permanente da vida.
5
Algumas coisas são certas ou, pelo menos, quase irrefutáveis. Uma delas é que a vida floresce ao redor das árvores. Outra, que as árvores não podem viver sem água. Caso contrário, elas secam. O corte raso e o represamento de rios não implicam apenas no domínio humano e corporativo sobre a natureza, mas também na destruição de todas as fontes das quais emana a vida. A defesa do planeta, por todos os meios possíveis, não é apenas uma questão de autodefesa, mas também de sobrevivência.
O instinto de autopreservação da espécie humana trouxe o domínio sobre a natureza. Mas esse mesmo domínio ameaça nossa autopreservação. É um círculo vicioso que mais cedo ou mais tarde se desintegrará. E qualquer colapso será um colapso total, um colapso mental e material, porque envolve necessariamente nossas formas de perceber e interagir com a natureza.
O domínio sobre o meio ambiente e as criaturas que o habitam não traz preservação, mas colonização. Seu efeito é concreto: a conquista do planeta, dos animais, das plantas, dos insetos e, claro, dos humanos. Pessoas reais, aquelas que ainda não foram alienadas de suas próprias naturezas - por sorte ou resistência - ainda sentem uma forte conexão com a terra e mantêm uma forte conexão com seus ancestrais. Os povos nativos têm uma sensação de bem-estar não vista nas culturas civilizadas. As populações primitivas ainda preservam uma sabedoria atávica. A seus olhos, a compreensão de que não somos nada além de natureza é um ato de simples lucidez.
Essa revelação radical desconstrói todas as taxonomias - e classificações epistemológicas - que tendem a justificar a objetificação das pessoas em categorias reificantes: reinos, classes, raças ou ordens de qualquer tipo. Os seres humanos nada mais são do que natureza. Cada criatura é singular e irrepetível. A clonagem colonizadora e a noção de uma identidade monolítica - como uma identidade subjetiva idêntica a todas as outras identidades e, portanto, petrificada - nega a peculiaridade de cada ser. A civilização - e, por extensão, sua expressão sublime, a cidade - incorpora essa negação. Sua tendência é de expansão e traz consigo o colonialismo e a guerra santa. As civilizações cristã, muçulmana, inca, asteca, japonesa, otomana, greco-latina e chinesa, entre outras, mostraram sua tendência à invasão e à conquista. Civilização, vista como uma segunda natureza, legitimou a destruição de qualquer coisa que não seja sua própria ordem civilizada. A negação do verdadeiramente natural é a base da ordem civilizada, que se expande como um conquistador e manifesta seus caminhos sanguinários no extermínio de comunidades indígenas e culturas originárias.
Para a civilização, todo ato de destruição de seus ícones é um ato iconoclasta ou terrorista. Quando a civilização destrói um modo de vida ou cultura diferente de sua ordem civilizada, isso se torna ação civilizadora. Essa é a lógica da colonização. O extermínio das comunidades colonizadas não se dá apenas com o estalar do chicote ou do tiro do canhão, mas também com o corte raso de matas e a construção de barragens.
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O indivíduo tende a se ver como um sujeito individual. Ou seja, como um ser indivisível, único e monolítico. Essa visão gerou uma falsa consciência do ser que justifica o individualismo pragmático tanto quanto a desencarnação cartesiana de si: “Cogito ergo sum”, mente sobre corpo, mundo virtual, espaço pessoal, etc. A propaganda institucional da escola e do o autoritarismo da voz científica de especialistas impeliu as populações civilizadas a internalizar a noção do sujeito monolítico cuja identidade incorpórea se reifica em um ego expansivo, reproduzindo assim a lógica instrumental do pensamento ocidental colonizador. O expansivo “eu” torna-se um indivíduo único e indivisível, negando assim sua própria multiplicidade, pluralidade e flexibilidade, tudo o que constitui sua própria peculiaridade. Assim, enquanto a identidade monolítica nega a multiplicidade, a desencarnação rejeita a realidade. Assim, a identidade indivisível se reifica por meio da consciência desencarnada do “eu”. E essa consciência se alimenta e se forma por meio das mecanizações padronizadoras do conhecimento taxonômico.
O indivíduo não é um ser separado de sua totalidade, nem está fragmentado entre o corpo e a consciência. O indivíduo faz parte de sua totalidade e seu corpo interage com a realidade. Negar isso é justificar a alienação. Sentir o vento, por exemplo, que atravessa nossos poros quando paramos à noite para olhar as estrelas, é prova suficiente de que essa totalidade existe. Acreditar no oposto é estar tristemente alienado.
Poesia e arte impedem a padronização da peculiaridade. A linguagem artística sugere, em vez de descrever de forma abrangente, a presença imediata do ser. A arte e a poesia desmantelam a redução impulsionada pelo controle intelectual, permitindo que seus praticantes se tornem parte da totalidade. Essa transformação se chama autenticidade ou voz própria, ou seja, o genuíno que existe em todos.
Essa autenticidade nada mais é do que a peculiaridade de cada ser: aquilo que se opõe à padronização expressa - entre outras coisas - pela reificação do “eu”. Pensar, por exemplo, que se é uma imagem projetada em um espelho, ou acreditar na combinação formal e pictórica de um retrato, ou em uma imagem reproduzida mecanicamente - fotografia, vídeo ou filme - representa uma distância alienante entre a realidade de um ser e a consciência cartesiana reificadora a que o mundo civilizado se submete. As imagens como construções ideológicas mediadoras das relações humanas constituem o que Guy Debord denominou anteriormente de "A sociedade do espetáculo". Desde então, o mundo se conglomerou como um enxame de abelhas em torno de centros panóticos de domesticação: televisão, Hollywood, o culto à celebridade. Isso sem levar em consideração a vigilância e o controle. As imagens levam maciçamente os indivíduos a se verem como sujeitos individuais, ou seja, como seres indivisíveis, únicos e monolíticos, ignorando sua flexibilidade, pluralidade e multiplicidade. Essa última trilogia é o material de que é feita a peculiaridade inata do ser.
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As mônadas, segundo o sistema filosófico de Leibniz, são substâncias indivisíveis de diferentes naturezas que compõem o universo. O neutrino, segundo as ciências físicas que especulam sobre buracos negros e universos paralelos, é uma partícula eletricamente neutra de massa desprezível. Os seres humanos fazem parte do universo e somos todos diferentes uns dos outros. A personalidade não é reproduzida; ele cresce constantemente dentro de nós. Isso ocorre porque somos seres divisíveis, múltiplos e flexíveis - a criança que era não é a pessoa idosa que será em breve. A personalidade obstinada também varia. É única e polidimensional. Cada dimensão do ser é divisível por tudo o que o constitui: mente, corpo, experiência, memória, etc. Inclinar-se para a neutralidade também é negar uma parte do ser. Irradiamos vibrações positivas e negativas. Também podemos ser magnéticos e arbitrários.
Nossa massa corporal é visível, palpável e agradável. Isso pode ser apreciado. O corpo é real. Nem o neutrino nem as mônadas podem descrever com precisão o ser humano por completo. A multiplicidade que nos pressiona ou nos preenche descreve, em escala humana, a multiplicidade do universo, a multidão dos múltiplos universos. Na verdade, tudo habita em tudo, embora não sem contradições. Universos múltiplos são uma realidade. É como ir a uma festa e conhecer várias pessoas paralelas a elas mesmas.
Provavelmente, da colisão desses dois universos, outros universos nasceram, cresceram, se desenvolveram, amadureceram, envelheceram e morreram com o tempo. Em algum ponto desse enigma, nos encontramos, assim como os organismos microscópicos que hospedamos dentro de nossos corpos. A expansão do universo representa seu crescimento e envelhecimento. E terá a idade certa no momento de sua morte ou concentração de sua totalidade múltipla no buraco vazio. Não podemos fazer nada a respeito porque não existe máquina que nos leve deste universo a outro, embora, é claro, seja possível que a morte nada mais seja do que uma viagem a outras coordenadas onde a debandada de energia que nos mantém vivo ainda está fluindo.
Retomar o caminho da vida para corrigi-lo é o que os sábios nativo-americanos acreditam ser necessário. Talvez isso significasse retornar a um estágio pré-neolítico, sabendo o que já sabemos. Seria isso um dilema? Não há drama em nascer, desenvolver, amadurecer, envelhecer ou talvez morrer. O importante é que, nesse ínterim, possamos viver em estado de celebração permanente. A vida organizada como um ato carnavalesco e prolongado de ser é uma forma inteligente de aliviar a dor. A celebração de nosso tempo neste orbe giratório estimula nosso sentimento de comunidade. Todos nós temos que viver com todos e ao redor de todos. Não temos outra escolha. O estado de festa permanente leva à alegria de ser e tem um movimento libertador. Por isso, o impulso revelador desierarquiza e nos faz felizes.
E em momentos de tranquilidade, silêncio e lazer, é bom apreciar a expansão infinita da noite e nosso crescimento entre a maturidade de tudo que habita o planeta: a cúpula astral que nos dá cobertura e nos deixa viver.
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A beleza é frágil. Esta é outra verdade quase irrefutável. As orquídeas calipso que crescem ao longo dos caminhos da floresta temperada levam pelo menos nove anos para se reproduzir. Este é um ato heróico de palingenesia que ocorre no meio da floresta. Na primavera, sua cor rosa enfeita as saias dos pinheiros. Mas se um intruso tocar seu caule, a orquídea eventualmente morre. Não é assim se apenas as pétalas são tocadas. Essa é a beleza da vida, frágil e delicada, como tudo que passa por nossas mãos. Os seres humanos nada mais são do que natureza. Fingir diferente é cair na alienação. É esquecer a beleza. Normalmente as crianças vão ao zoológico. Essa experiência faz parte do nosso treinamento inicial - ela nos distancia do resto dos animais. Todos nós habitamos este planeta, que alimenta e abriga todos os seres vivos.O equilíbrio entre tudo e o planeta é tão frágil quanto uma orquídea. Olhar para além da função da natureza, o desejo de encontrar sua utilidade e controlá-la e dominá-la, é um desafio central. Por outro lado, observar a natureza para apreciá-la é encontrar plenitude. Nossa existência e a existência de tudo o mais neste planeta dependem desse desafio. Por isso, desaprender o condicionamento da nossa infância para poder apreciar a beleza da natureza é uma necessidade primordial.
Os seres humanos podem ser criaturas lindas. Mas, para que isso aconteça, precisamos mudar nossa percepção da realidade de utilitária para uma de apreciação. Em outras palavras, precisamos substituir o instrumental pelo estético. O paradigma ideológico dominante que cria o presente dá rédea solta à razão tecnológica, mas desloca a criação. Heidegger chama esta última agitação mental de "poiesis". Mas para substituir o impulso de dominar, expandir e colonizar - a fim de desmantelar radicalmente as economias com base na competição e na comparação - é absolutamente necessário mudar as lentes através das quais vemos a realidade. Ou seja, refazer sua perspectiva para apreciar o dia, a noite, as estações, as ondas, a potência dos rios, o canto dos pássaros, o movimento dos animais, as matas, as abelhas, as mulheres, homens e todas as constelações de peculiaridades que formam outras constelações de peculiaridades e que brotam selvagemente como orquídeas na floresta.
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O Estado existe porque se territorializa. Ela se constrói por meio da expansão territorial colonizadora. Essa expansão se dá pela desterritorialização forçada dos habitantes originais das terras de que o Estado se apropriou. Essa apropriação implica a mobilização de forças militares que o Estado pode utilizar para expandir ou manter seu território. Isso significou guerras e genocídio. Mas o estado também tem seus especialistas para escrever a história; eles invertem os fatos para justificar suas atrocidades e obrigam as gerações seguintes a repetir as ladainhas oficiais sem sentido escritas pelos especialistas.
A educação, então, nada mais é do que a institucionalização de disciplinas de treinamento e domesticação, um campo de treinamento onde crianças e adolescentes são ensinados a perpetuar o sistema dominante. Lá elas aprendem a ceder à ordem dominante e iniciam o processo de reificação. Nesses campos ou escolas de doutrinação social, reproduz-se a ideologia que legitima o sistema. Os novos membros da sociedade internalizam uma falsa consciência, que se infla neles como um pulmão até que todos repitam com mais ou menos sucesso o mesmo discurso. Sua ideia é que todo mundo diga, sonhe e pense que este é o melhor de todos os mundos possíveis. E se tiver seus defeitos, não importa, porque eles podem ser consertados. Pensar diferente é fazer parte das fileiras anarquistas, enlouquecer ou convocar a insurreição. Segundo Adorno, a padronização obriga o sujeito a escolher entre a mercantilização ou a esquizofrenia. Não há saída desse molde binário. Nesta sociedade, preferir o jardim ao cimento é visto com desconfiança. E dependendo do vento político do momento, essa preferência pode custar a vida. Quando o sistema quebra e as ovelhas escapam do rebanho, as prisões crescem com eficiência criminosa, bem como golpes de estado, gás lacrimogêneo, medidas repressivas, guerra, etc. Enquanto tudo isso está ocorrendo, o Estado reforça sua propaganda através do rádio, televisão e jornais. E assim o Estado se materializa nas mentes dos indivíduos.
Os estados nacionais montam seus aparatos repressivos - policiais e militares - para proteger as transnacionais e expandir um estilo de vida de padronização baseado na redução dos humanos em unidades econômicas de produção e consumo. Com isso, produz-se um novo tipo de territorialização e escravidão do trabalho. A tecnologia e os bens que a minoria global, a classe dominante, utiliza são fabricados em fábricas que operam com a lógica da exploração. Escolas e fábricas são centros de controle impostos pelo Estado. Para abolir o Estado, é necessário abolir as fábricas e as escolas. O autoritarismo que a ordem civilizada reproduz nessas instituições é responsável pela limpeza étnica, genocídio político e exploração social. Para construir uma obra sem hierarquias, prisões, propaganda ou golpes, é necessário varrer, afastar o Estado. E depende de nós limpá-lo da face da terra.
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Qualquer tentativa de padronizar a vida é uma forma de dominação que impõe às pessoas um modelo alienante. A colonização européia e a transnacionalização americana impõem padrões sobre as diferenças e peculiaridades do planeta e de seu povo. Todo padrão é um subproduto do Estado e do planejamento de negócios, que opera em termos lineares temporais: a progressão em direção a metas de macro padronização que tiram todas as liberdades. A colonização promovida pelo chamado mundo civilizado nega a peculiaridade da natureza - pessoas, animais, vegetação, solo, etc. - e destrói a liberdade da vida. Defender-se contra essas perpetrações é um tipo vital de vontade que requer pensar - com imaginação e audácia - em um mundo diferente. Por esta razão, na ausência de centros educativos é absolutamente necessário abraçar a educação personalizada, cada um ensinando ao outro, todos ao mesmo tempo. Se metade do mundo transfere seu conhecimento para a outra metade, não há necessidade de campos autoritários de padronização.
A educação institucional reproduz a cada geração a falsa ideia de que este é o melhor de todos os mundos possíveis, ou, pelo menos, o que melhor funciona, sem dar demasiada importância às suas carências. Assim, o processo de normalização do conhecimento por meio de textos escritos - em detrimento da oralidade - nada mais é do que o processo de padronização de uma determinada percepção do mundo. Nesse sentido, a educação tem uma função ideológica: reproduzir um discurso padronizador regulado pelo Estado. Ele se legitima pela intersecção fabricada entre poder e saber, ou seja, entre o controle do Estado e os campos profissionais dos especialistas.
Por isso, não existe apropriação de um sem apropriação do outro. Somente quando grupos de humanos vivem organicamente em comunidades e cultivam seus próprios alimentos com o objetivo de desfrutar do prazer libertador de um estado carnavalesco permanente e de uma apreciação estética prolongada, a educação formal, bem como a exploração de 90% da população humana e a destruição do planeta, não caberão mais na percepção da realidade.
O fiador da repressão destrutiva é o Estado, e cabe a nós desmantelá-lo.
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A noção de raça está ligada às práticas coloniais. O mundo ocidental é construído com base na distinção entre um "nós" e um "eles". Ou melhor, entre o que constitui a própria etnia - como que por mágica, a etnia se torna um padrão racialmente neutro - e “os outros”: o que está associado aos bárbaros, ou ao étnico, na terminologia moderna.
O etnocentrismo se manifestou na lógica escravista, impondo categorias eurocêntricas e supremacistas. O conceito maquiavélico de superioridade racial perpetuou-se através da equiparação do caucasiano-europeu com o civilizado. Assim, a noção de raça justificou - e justifica - a colonização, que nada mais é do que domínio etnocêntrico sobre a natureza e outras etnias. A expansão colonial do Ocidente classificou e categorizou os colonizados: grupos de pessoas, animais, plantas, solo, etc., por meio de suas taxonomias tecnicamente autojustificativas. Desta forma, o Ocidente marchou impondo a racionalidade instrumental científica que justifica as práticas coloniais e os modelos universais.
O capitalismo mercantil desenrolou os mapas e imprimiu os dicionários, acelerando a marcha do rolo compressor. Essa expansão étnica foi a expansão do ego colonizador legitimando-se em diversas narrativas históricas sob a bandeira da civilização. Em nome da civilização, a noção de raça foi construída. Essa noção é a consequência direta do mecanismo instrumental do pensamento tecnológico que categoriza a experiência humana e padroniza a realidade.
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A noção de humanidade está ligada à noção de mundo. Sua origem é religiosa. No Ocidente, por exemplo, Deus criou o homem e mais tarde a mulher. Ao comerem do fruto da árvore do conhecimento, um Deus enraivecido os expulsou do paraíso, obrigando a humanidade a viver fora do Jardim do Éden e a buscar incessantemente um salário e um teto para abrigo. Esta é a narrativa que justifica a domesticação. Assim, Deus colocou a humanidade no mundo. Da mesma forma, o mundo europeu foi caracterizado pela presença humana. Essa narrativa foi chamada de Palavra Sagrada ou Bíblia. Os textos sagrados do Oriente Médio tinham outros nomes: Alcorão, Talmud ou Torá. Nessas narrativas, a correspondência entre a humanidade e o mundo foi construída sobre o conceito de povo eleito: os filhos de Allah ou Jeová. Essa visão religiosa também é encontrada em algumas cosmologias indígenas. Por exemplo, no texto sagrado maia-quiche Popol Vuh, os criadores colocaram os “homens de milho” na terra. Desta forma, o triunvirato da criação, humanidade e mundo formam um triângulo discursivo - ideológico e religioso - que explica a vida por meio de fantasias e mitos fundadores.
Essas noções entraram em crise com a conquista europeia. Para os conquistadores, a possibilidade de outros seres humanos existirem em terras desconhecidas complicou suas visões de mundo tradicionais, visto que refutou suas doutrinas teológicas da criação e desconstruiu a visão oficial imposta pelo clero. Para os indígenas, os barbudos do outro lado do mar eram semideuses. Lamentavelmente, os indígenas descobriram a verdadeira natureza de seus invasores tarde demais.
Nesse contexto de conflito ideológico, a ideia do Novo Mundo resolveu a crise ideológica europeia e deu início à longa e triste crise cosmogônica, social e vital dos povos indígenas. A colonização começa com as noções de humanidade e de mundo. E essas mesmas noções galvanizaram o impulso para a modernidade que, entre outras coisas, humanizou a natureza ao mesmo tempo que naturalizou o controle sobre a natureza.
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A colonização nada mais foi do que a expansão do capital e do pensamento tecnológico por meio da cultura de padronização em escala mundial. Essa prática atingiu seu ápice com a expansão europeia. A partir do início do século XX, desencadeou seu poder destrutivo com o surgimento do imperialismo: a fase oligopolística do capitalismo. Este não é, entretanto, um fenômeno vinculado exclusivamente à construção de nação e etnia (pelo menos não nesta fase da chamada “globalização”). Pela primeira vez na história registrada ou lembrada, um único grupo de indivíduos controla em escala transnacional uma máquina mundial capaz de aniquilar o planeta e extinguir a vida de muitas de suas criaturas, entre elas, os seres humanos. Essa fase colonial tem um impulso monetário de base ideológica. O capital precisa padronizar estilos de vida, valores culturais, arquitetura, linguagem, paisagem, pensamento etc. Procura, em suma, uniformizar a percepção da realidade, garantindo assim sua própria expansão permanente. Seu fundamento ideológico, que racionaliza a conquista como índice de crescimento, atribui um valor positivo ao impulso expansionista. O crescimento pelo crescimento, a invasão para invadir e a expansão eterna são os eixos que fundamentam a expansão. Eles também constituem a lógica do capital, que cresce e se espalha até consumir e destruir todos os organismos hospedeiros que permitem e abrigam a vida no planeta. A expansão é, sem dúvida, a ideologia do câncer, que não vai parar até atingir uma metástase implacável.
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No panfleto “Reforma ou Revolução”, escrito no final do século 19, Rosa Luxemburgo defendia o fim do sistema salarial, em oposição ao programa reformista de Bernstein, que estava centrado nas lutas trabalhistas por melhores salários por meio de reformas sistêmicas. A história da luta social nos últimos séculos foi dividida em dois campos com diferentes tendências totalitárias: aqueles que preferem os fins aos meios ou vice-versa. Isso levou a uma política sectária ou ingênua, que por sua vez levou, dependendo das particularidades do caso, ao fanatismo ou vacilação. O curso radical certamente é abolir o sistema salarial. Porém, diante de uma situação de subsistência ou carência material, cada centavo significa uma diferença substancial na sobrevivência diária dos despossuídos. Negar esse centavo àqueles que morrem de fome todos os dias é cair na justiça própria da vanguarda. É negar a solidariedade.
O capitalismo, seja estatal ou privado, tirou proveito da redução da vida humana ao reino material. Ao elevar os padrões de vida, destruiu a qualidade da existência e destruiu em terrível escala nossos recursos naturais. Em sociedades que dependem da produção em massa, a noção de um bom padrão de vida funciona como um contrapeso para compensar a alienação produzida pelo modo de vida industrial e, ao mesmo tempo, essa noção cria a fantasia de consumo. Poder escolher entre produtos manufaturados - produzidos por trabalho forçado em uma economia dependente - é visto como um exercício de liberdade. Esta é claramente uma estratégia de padronização.
No modelo atual, o papel do trabalhador é fazer parte das engrenagens sistêmicas que limitam as possibilidades da imaginação e escravizam a vida humana por meio da dependência salarial. O salário é uma quantificação do valor que o sistema atribui a cada vida humana. Sua função última é a mercantilização do ser humano. Cada indivíduo neste processo é reduzido a uma unidade econômica - ou mercadoria - cujo trabalho é produzir e consumir. Dessa forma, o sujeito atua como mais um insumo para a parafernália produtiva imposta pela máquina social. As diferenças estabelecidas entre grupos e classes não estão apenas relacionadas com a posição e função atribuída nesta parafernália, mas também com a capacidade de consumo e aquisição de bens e serviços. Esse consumismo está destinado a descomprimir a pressão trabalhista, a loucura burocrático-administrativa, e as injustiças do processo de venda da força de trabalho. Dois elementos garantem a submissão ao sistema social.
Por um lado, a dependência forçada de populações inteiras das empresas que fabricam e distribuem produtos de consumo de massa. Por outro lado, a manutenção de um elevado número de marginalizados, trabalhadores sazonais e desempregados permanentes, que funcionam, segundo Marx, como um “exército de reserva”. Nesse caso, conseguir um emprego muitas vezes é um privilégio que permite a subsistência, apagando e escondendo seu caráter escravizador e domesticador. É reforçado pelo sedentarismo e pela subjugação a um horário rígido, simbolizado pelo ato de “bater o relógio”, ou o apito da fábrica que anuncia a volta da hora do almoço. Nas línguas românicas, a palavra trabalho vem da raiz latina “tripalium”: nome dado a um instrumento de tortura usado pelos romanos que consistia em uma estrutura de três varas. No mundo anglo-saxão, a palavra “trabalho” vem do escocês “weorc”, um termo teológico que se refere a todas as atividades morais que podem ser consideradas justificativas da vida. Normalmente, seu uso está em contraste com a ideia de "destino" ou "graça". A imposição do trabalho como uma atividade torturante, ou ação justificadora do pragmatismo hipócrita e farisaico, é uma forma de assegurar a domesticação. O trabalho assalariado garante a territorialização de populações inteiras em zonas delimitadas por instituições autoritárias. Dessa forma, o Estado garante o sedentarismo e o controle social necessários para administrar a produção.
O latim “domus” significa casa, raiz etimológica da domesticação e domiciliação - dois processos que se articulam no sentido de que o Estado estende sua presença material para estabelecer seu domínio. Um exemplo claro de territorialização pode ser encontrado nas reservas indígenas, que emulam abertamente campos de concentração ou centros de realocação estatais.
Os guetos são outro exemplo. Há também uma repressão constante aos que estão em movimento permanente: nômades, ciganos, vagabundos, etc. Nas atuais circunstâncias, a legalidade dominante não dá espaço aos sem-teto: indigentes que o sistema rejeita e ignora porque alteram o processo de domiciliação. O toque de recolher e o estado de sítio são duas manifestações grosseiramente repressivas criadas por esse processo. Certamente, junto com a domiciliação vem a numeração. Primeiro foram os números das casas, depois dos indivíduos: números de telefone, senhas de computador, números de identificação nacional, seguro social ou cartão do sindicato, etc. É assim que a ideologia constrói seus métodos de identificação e insere a noção de identidade ao mesmo tempo em que fomenta a mercantilização humana. Cada criatura é convertida em um dígito facilmente arquivado, categorizado e reificado. Os animais domésticos são numerados e se tornam fetiches domésticos. As pessoas são transformadas em mercadoria pura de identidade numerada. Esse papel social numérico é mediado pelo mercado, por meio da atribuição de dígitos que classificam a todos como tal e tal unidade de produção, consumo, lucro ou prejuízo. Este é o verdadeiro salário. E, por isso, o sistema salarial e o valor monetário são inerentes ao sistema. Para desfazer um é preciso destruir o outro.
A ideologia utilitarista que reduz a vida humana ao reino material e econômico é a matriz do sistema. Sua base teórica faz parte das diferentes narrativas elaboradas pela razão instrumental. A sua prática política é a domesticação, que é apoiada pelos esquadrões da repressão estatal e pelo corpo jurídico auto-justificado. Seu objetivo é a perpetuação da ordem civilizada. Isso falsifica o mundo, promovendo uma percepção da realidade distante da verdadeira totalidade e reduzindo a vida a números artificialmente construídos (por exemplo, gráficos e estatísticas). Para desmontar essa ideologia é necessário evitar a redução padronizada e fomentar o florescimento das peculiaridades de cada criatura que habita o planeta.
Talvez o primeiro passo seja aprender a valorizar tudo o que se encontra fora da ordem civilizada, escapando aos gestos civilizatórios tantas vezes ensinados no lar e na escola. Talvez seja necessário imaginar uma existência cheia de fins e meios, que se cruzam - como diz Octavio Paz - em um “presente perpétuo”. Talvez não seja tão difícil reconhecer a necessidade de lazer. Talvez a solidariedade seja possível sem ter que escolher a, b, c ou d, base da lógica cretinizante da múltipla escolha. A contradição entre revolução e reforma não é muito precisa; certamente varia de acordo com o estado do presente perpétuo. Um indivíduo é revolucionário apenas quando há revolução; no resto do tempo, ele resiste ou provoca autoridade. E em nenhum dos casos a solidariedade deve retrair os fins ou os meios. Se fosse assim, significaria que tudo o que é humano e natural foi reduzido à zona econômica. Significaria também que nada mudou, exceto o jargão que acelera ou retarda a retórica do atrito que atua ao longo da parede do carrasco durante a guerra ou a luta de classes.
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O patriarcado se manifesta claramente na interação humana diária. Se um homem tem uma personalidade forte, ele é considerado carismático. Mas, para a mulher, o sistema atribui as marcas pejorativas de vadia, sapatão ou intrometida. O patriarcado é uma realidade de opressão e controle. Ela se reafirma com estupro e violência física. E existe no sentido de que os gêneros são separados em categorias cuja essência ideológica reside na presunção de certas características físicas: psicológicas, sociais, emocionais, intelectuais, morais, etc., diferenciadas por gênero. Pensar, por exemplo, que as mulheres são em geral para um lado e os homens, para outro, pressupõe a existência de perfis determinados categoricamente pelo sexo: homens de um lado, mulheres do outro. O patriarcado é, por um lado, um discurso escrito por homens para justificar o privilégio masculino e, de outro, uma prática política repressiva. É ideologia e poder. E isso depende da separação de gênero. Caso contrário, o mundo inteiro se degeneraria. Para desmantelar o patriarcado, é necessário criar outro discurso, um discurso que não só degenere a ideologia, mas também estabeleça uma nova forma de relações políticas.
Política é uma noção proveniente do conceito de “polis”: a antiga cidade grega, que foi o germe da civilização ocidental. A sua organização configura-se definitivamente pela ideia romana de “coisa pública” (do latim “res publicus”). Na Roma antiga, os assuntos públicos - ou comuns - estavam nas mãos dos patrícios. No início, eles escreveram a lei que relegou as mulheres a outro espaço, fora do espaço público. Na Grécia, os poetas também foram expulsos deste espaço público. O projeto platônico da “República” não considerava que artistas ou poetas tivessem mérito suficiente para integrar as questões de Estado. Claro, as mulheres foram relegadas para casa. Na realidade, todos, exceto os patrícios, foram expulsos dos assuntos públicos. Para justificar a expulsão da estética da matéria pública, Platão repetia com insistência “os poetas eram mentirosos”, visto que não se encaixavam em sua lógica sofista. Da mesma forma, também eram considerados afeminados e sentimentais. Isso é algo que ainda se repete e se pensa em vários círculos, principalmente no que se refere ao poder. A infantilização de mulheres, poetas e artistas, de povos indígenas, minorias, culturas primitivas, etc. foi realizada através do exílio para a esfera feminina. Ela está associada pejorativamente com o que é fraco, emocional e ilógico. Essa noção foi aprendida à força desde cedo pelas comunidades colonizadas e posteriormente universalizada pelo logos civilizador: o pensamento lógico instrumental. Assim, a coisa pública (res publicus) reifica a interação social e intersubjetiva entre os humanos e acelera o processo de reificação.
Em espanhol, falar de “reses” (vacas) - referir-se a gado - é falar de coisas. Para o logos, a natureza é algo instrumentalizado. O patriarcado instrumentalizou não só as mulheres, mas também os homens. É, com certeza, uma ramificação ideológica da razão instrumental, porque constrói categorias genéricas entre homens e mulheres para suprimir e controlar.
A peculiaridade desmonta essas categorias. A mulher é uma criatura peculiar e irrepetível. Um homem é outra criatura peculiar e irrepetível.
As categorias “mulher” e “homem” tendem a anular essa peculiaridade ao mesmo tempo que engendram separatismo. Talvez a única política possível que realmente destrua as formas hierárquicas de inter-relação social e intersubjetiva seja através do carnaval. É uma festa em que todas as pétalas da peculiaridade humana se desdobram sem bases sistêmicas, exceto aquelas ordenadas pela própria natureza. E deve ser comemorado todos os dias. Todos nós temos um lugar no jardim planetário: homens e mulheres, meninos e meninas, idosos. Nossas diferenças biológicas ou preferências sexuais não precisam significar que alguns foram banidos do jardim planetário. A distinção entre privado e público foi construída artificialmente para garantir o funcionamento repressivo do controle patriarcal. Abolir essa distinção significaria também abolir as noções de gênero que marcaram o início da civilização ocidental.
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A divisão do trabalho não é em si a noção que produziu o pensamento tecnológico-instrumental. Era uma espécie de divisão do trabalho, organizada de forma que uns começassem a se beneficiar da força de trabalho de outros. A divisão do trabalho nada mais é do que uma prática. Em contraste, a razão instrumental é o produto da prática de controle que gera formas sofisticadas de divisão do trabalho, postas em prática em sociedades de produção em massa nas quais a padronização do mundo se cristaliza: nas cidades. Em comunidades construídas em escala humana, com relações sociais diretas e pessoais, face a face, as práticas de controle instrumental não se enquadram. O que se aplica são as práticas de cooperação mútua. Por exemplo, enquanto alguém cozinha, outro prepara os canteiros para cultivar hortaliças, ou trabalha o solo da parcela, onde as camas serão criadas. Outros recolhem lenha ou recolhem os frutos do pomar. Quando uma mulher dá à luz, outras pessoas ajudam com água e cuidados. Enquanto alguns têm mais energia, outros, como os idosos, caminham mais devagar. Este é o modo de vida e o movimento orgânico da natureza, dividido em estações, dias e noites. Existe uma temporalidade pendular. A divisão do trabalho pode ser um comportamento orgânico da atividade social em vez de uma imposição assalariada que condiciona a vida. Em uma comunidade construída em escala humana, é impossível fazer tudo. A ubiquidade nos foi negada. Quando todos fizerem de tudo um pouco, simultaneamente, ou em ritmos paralelos, sem especialização, será possível viver no presente perpétuo. Só assim podemos transgredir a noção linear de tempo planejado. Quando nossa existência atingir a possibilidade de se expressar no presente progressivo, estaremos vivendo no aqui e agora. Isso implicará em afrouxar as algemas da padronização.
O carnaval é um “memento vivere”: nos lembra que precisamos viver e celebrar a viagem da vida com dignidade, integridade, solidariedade, amor e ternura. É também uma prática que pode se transformar em uma política do bem comum.
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A arte funciona como uma apropriação simbólica da realidade. O ato de representar a realidade ou mediar nossa relação com o mundo - por meio de um objeto ou produto da arte simbólica - reforça o processo de reificação. A arte é uma representação que substitui a realidade. Da mesma forma, é uma forma de mediação das relações sociais e intersubjetivas. A referida mediação é produzida por meio da razão cognitiva, que filtra os modos de apreciação da realidade. Ao se familiarizar com a realidade, o sujeito a internaliza. Essa é uma apropriação que ocorre, forçando a realidade por meio de uma peneira utilitária e funcional. Os códigos do filtro são os códigos da racionalidade instrumental, que projetam a expansão da interioridade do sujeito sobre a exterioridade do mundo. Isso desenvolve os mecanismos cognitivos de apropriação, categorização, e controle do outro - aquilo que é sempre desconhecido e não familiar. Esses mecanismos são produto do medo do exterior. Por isso, a projeção da interioridade sobre o mundo exterior produz um zelo expansivo e colonizador. Esse zelo, por sua vez, projeta o ego sobre o outro: o mundo externo (natureza) e as criaturas que o habitam (seres humanos, animais, plantas e o solo). A projeção expansiva do “eu” sobre a natureza acelera o processo de reificação.
Kant ficou extasiado com o majestoso espetáculo da natureza. Essa emoção produziu nele uma espécie de “agitação mental”, que chamou de “sublime”. Mas essa emoção é também a vivência do pavor que se sublima pela arte, a petrificação do espetáculo natural do mundo. Quando a arte é uma instituição ou um mero objeto - simbólico e separado da vida - converte-se em símbolo do processo de reificação. A meta-arte sofisticada nada mais é do que um símbolo do símbolo, uma reificação da reificação. Esse processo aguça o mecanismo ideológico de reificação do próprio sujeito, que, ao ser mercantilizado, se aliena da realidade e perde a perspectiva.
Substituir a razão instrumental pela razão estética não significa simplesmente substituir os mecanismos de reificação. A reificação na arte existe porque a arte simboliza aquilo que foi tirado da vida - a experiência da beleza. Arte e vida foram divididas em dois planos separados, sem qualquer interconexão real. Isso faz da arte uma instituição do sublime, enquanto a vida é a práxis da escravidão. A arte tem sido a válvula de escape da alienação. Tradicionalmente tem abrigado aqueles valores e energias distantes da vida, permitindo a manutenção ao longo da “história” da ilusão de humanidade. A separação entre arte e realidade criou uma situação em que ambos os planos de experiência são vividos como esferas isoladas, sem espírito ou emoção. A arte fica petrificada em museus, galerias, salões e bibliotecas, enquanto a existência continua ao ritmo do ponteiro dos minutos que subjuga o trabalho assalariado. Lá, a beleza é suprimida, a alegria domesticada, o prazer escravizado e a peculiaridade uniformizada. A arte é o espelho negativo da realidade que compensa as misérias da vida com a ilusão de liberdade. Retirar a arte da esfera da instituição significa viver a arte na vida e vice-versa. Significa destruir a alienação que implica a distinção entre o artístico e o intelectual, o vulgar e o manual. Significa embelezar a vida e animar a arte, tanto como um todo unificado quanto orgânico. Significa também criar uma humanidade de artistas e humanizar os artistas que já existem.
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Em todas as épocas, os militantes se perguntam como será a revolução e o que acontecerá depois que ela acontecer. Talvez este futuro - próximo ou imediato - não seja tão sangrento e implacável como alguns profetas o imaginaram. Talvez seja tão calmo como um riacho fértil e fresco, como um prado. Talvez seja como um jardim cultivado com paciência e mãos que distinguem as peculiaridades de cada linhagem de planta.
O jardim das peculiaridades se manifesta de uma forma que alguns confundem com identidade. A identidade se conforma de forma reflexiva e reativa em relação aos modelos que integram categorias identificadoras dominantes. Essas categorias fazem parte de um mapa: o eixo Norte-Sul, América Latina, África, Primeiro Mundo, etc. Essas são as categorias simbólicas da ordem civilizadora. Da mesma forma, essas categorias são construídas de acordo com padrões estruturais. É assim que a padronização funciona. A identidade, então, reflete uma série de outras identidades que são erigidas como paradigmas, mas que na prática são impostas ao sujeito sem prévio aviso: nacionalidade, raça, classe, sexualidade, ideologia, língua, mãe, pai, etc. Essas noções - geralmente aceitas como garantidas e que o indivíduo aprende quase por osmose - são os rótulos de padronização.
Identidade é o ato de se identificar com algo, tornando-se idêntico, seja um tipo, modelo, norma, padrão, nível ou referência. A padronização se ajusta ao modelo; ela tipifica. A peculiaridade, por outro lado, aprofunda-se nas zonas subjetivas que situam o sujeito como um todo que habita a totalidade e se relaciona com tantos outros sujeitos quantas sejam as peculiaridades. A noção de peculiaridade desmonta a estrutura de poder, que promove a homogeneização e o autoritarismo por não se enquadrar na ordem hierárquica ou no mal da competição. O sujeito é capaz de se relacionar com todas as outras criaturas do planeta sem a necessidade de padronização de ninguém. Reconhecer peculiaridades em outras criaturas permite a coexistência. Dissipa o módulo mental moldado pela máscara de ferro da razão instrumental. Se alguém observa atentamente a peculiaridade do outro, o sujeito não completa o processo de alterização porque se revela a compreensão de que o outro é tão peculiar quanto ele próprio, que constitui o sujeito e a totalidade. Reconhecer que o outro nada mais é do que um eu, outro ser peculiar que também existe no mundo, é libertador.
Por meio da alterização, o outro é reificado, seja o ser humano, seja o meio ambiente. Esse mecanismo de reificação fragmenta o sujeito interno, deslocado de sua totalidade desde o nascimento. Quando o eu e tudo se conformam em uma totalidade, a reificação desaparece. Então, o sujeito que constitui a peculiaridade de um ser aprende a magia da apreciação artística. Isso substitui o módulo da razão instrumental e apresenta um novo desafio: a razão estética.
Isso não nega a necessidade de criar blocos de identidade para resistir à penetração cultural, econômica e militar da ordem civilizadora. Na verdade - do ponto de vista político - existem identidades subordinadas e movimentos de libertação. Exemplos claros são os movimentos das minorias étnicas no Primeiro Mundo, o movimento indígena na América Latina, os movimentos pela liberdade de escolha sexual, o movimento feminista, o movimento operário, os movimentos separatistas e anti-neocoloniais, a resistência anarquista urbana, a movimento das okupas, movimentos contra a globalização neoliberal, o movimento ecológico e verde, organizações de direitos humanos, movimentos artísticos, movimentos rebeldes, etc. Problematizar a identidade como noção é discutível do ponto de vista de movimentos anti-autoritários que se opõem à resistência ao processo de padronização. Porém, também do ponto de vista político, é preferível entender esses movimentos como constelações de peculiaridades que habitam o jardim da realidade e resistir aos ataques do rolo compressor instrumental. A máquina ideológica de padronização homogeneiza-se com seus títulos de identidade.
Quando o jardim desmonta a hierarquia, cada aroma, cada cor, cada forma, cada sabor e cada ondulação criam uma paisagem cujo impulso único e irrepetível abre as portas para a apreciação da beleza. Substitui o módulo da razão instrumental por uma visão estética que desloca radicalmente a lógica utilitária e funcional do sistema. É o primeiro passo para a peculiarização do mundo. E não só abre a mente e desconecta o cérebro humano da máquina da ideologia, mas também quebra as vitrines de todas as redes comerciais, nega autoridade e grita com uma voz nítida e desobstruída: Basta!
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O "instrumentum" é um dispositivo mental que modula o pensamento tecnológico. Funciona como uma ferramenta e viabiliza os mecanismos de operação técnica. Em grego, a palavra “téchne” tem um duplo significado: manufatura e revelação. Este último é a capacidade de tornar o presente aparente. Para Heidegger, "téchne" leva em duas direções: em direção à tecnologia ou em direção à “poiesis”. A arte também evidencia o presente, mas sem a lógica instrumental da eficiência, nem a ideologia econômica da competição e da comparação, cujo cerne está nas transações.
Quando a arte for retirada da esfera institucional para ser reinstalada na práxis da vida, não haverá mais separação entre vida e arte. Claro, a vida deve ser vivida como se fosse uma obra de arte. E a arte deve ser experimentada na vida: não em salões, bibliotecas, museus ou nas casas-mausoléu dos ultra-ricos. Quando a arte é praticada na vida - e vice-versa - não há necessidade de desenvolver um mercado de arte “sui generis” que promova a produção em massa de arte por meios mecânicos. A arte é realizada de forma artesanal e implica uma apreciação estética genuína. Essa apreciação nada mais é do que a manifestação de um módulo mental diferente da instrumentalização que, em certo sentido, ainda pode ressuscitar a ilusão de humanidade. Da mesma forma, a razão estética pode ser uma esperança. De outra forma, todos os outros caminhos - sejam as vias expressas da razão instrumental ou as cavernas pré-históricas, locais de nascimento da arte simbólica e representacional - levam à destruição total; evitar a reificação é desejar vida. A representação da realidade - como mediação entre natureza e consciência - produz um efeito reificante. A reificação total ocorre quando essa representação substitui a realidade. E assim inicia uma escalada infinitamente reificante que só é interrompida pela morte.
A arte simbólica transformou a prática estética artesanal em fetiche, criando distância entre a “poiesis” (ato de criação da aparência do presente) e a vida (onde o ato criativo se expressa). Ao manter a arte e a vida em esferas diferentes, o pensamento instrumental despoja a vida de certos valores básicos como solidariedade, integridade, dignidade, ternura, etc. De fato, às vezes só é possível encontrar esses valores na arte ou na práxis vital da vida não alienada, fragmentando de forma radical a vida humana e criando as bases para a produção de um lucrativo mercado artístico. Desse modo, a alienação da vida humana moderna se justifica e desnaturaliza tudo o que vem da natureza, naturalizando - como contraponto - o duto da alienação.
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Para desterritorializar o estado, é imperativo se opor ao militarismo e sua base ideológica - a ideia do Estado-nação. Se fosse possível suprimir o imaginário da comunidade imaginada, aquele existente nos diversos projetos de construção nacional, a comunidade se tornaria um verdadeiro grupo de pessoas com rostos e nomes identificáveis. Sua interação diária seria em escala humana, e a comunidade realmente existiria. Dessa forma, o estado seria desterritorializado.
A ideia de Estado-nação está ligada à ideia de raça: o fundamento da xenofobia e do racismo. O Estado nunca deixou de ser um instrumento classista e racista de controle e opressão. Sua territorialização se dá por meio da movimentação e implantação das Forças Armadas. Para dissolver o Estado é necessário desmantelar o militarismo e a indústria de armamentos. O estado funciona como se fosse um grande armazém nacional que investe em poderio bélico: guerras. Com a dissolução do Estado, a nação se desterritorializa e as fronteiras perdem sua realidade, tornando-se o que realmente são: limites artificiais construídos pelos sumos sacerdotes de todas as espécies de nacionalismos e regionalismos. Esses limites são os laços políticos impostos pelo Estado a seus súditos. O nacionalismo continua a subjugar as pessoas por meio de práticas sedentárias derivadas tanto do controle urbano quanto da economia territorial da agricultura. O efeito dessas práticas é a domiciliação, que se vincula à ação domesticadora do Estado. Não obstante, quando se desfaz o aparelho promotor do conceito de território nacional, um dos mecanismos de normalização também deixa de funcionar. Mudar-se livremente de uma zona para outra - de comunidade para comunidade - sem estar sujeito aos costumes ou controles policiais, traz consigo uma liberdade que está incorporada na prática diária. O movimento constante é uma força incontrolável. Seu caráter libertário encontra-se em sua capacidade de abolir o sedentarismo e a domiciliação, destruindo todo o controle estatal. Deslocar-se é se desdomesticar. Ir de um lugar para outro, conhecer pessoas, aprender suas línguas e compreender diferentes visões de mundo é uma práxis libertadora. Essa práxis aguça peculiaridades.
O fascismo é fomentado pelo nacionalismo: um sentimento de propriedade nacional exacerbado pelas classes proprietárias e endinheiradas. Esse sentimento é transferido para os despossuídos e pobres das cidades através dos mecanismos de propaganda e doutrinação cívica, oficial e nacional. Algumas pessoas, por exemplo, repetem discursos que se propagam por ideologia na primeira pessoa do plural. O verbo é conjugado como “nós”, promovendo um controle idiomático e reforçando as identificações entre país, bandeira, governo e povo. Dizer, por exemplo, “temos um parque, uma cordilheira, um bom time esportivo ou uma economia estável”, implica uma espécie de aceitação linguística de uma identidade nacional coletiva imposta e/ou atribuída. Este é o real nós, adaptado aos tempos modernos para fazer as pessoas pensarem que o governo e suas instituições financeiras representam o indivíduo comum.
As pessoas falam das ações do governo como se tivessem alguma participação nas decisões governamentais ou no uso da repressão militar. Essa é a alienação nacionalista que facilita o surgimento do fascismo. A doutrinação é reproduzida por meio de escolas, esportes, valores tradicionais, regras, narrativas oficiais e meios de controle. A propaganda ganha vida por meio de telas luminosas (televisão, cinema, informática, etc.), da imprensa, do rádio, da educação etc. O fascismo se cristaliza na noção de nação.
Por causa disso, todas as noções atribuídas e/ou impostas de identidade comunitária tendem a reforçar essas noções: nacionalidade, regionalismo, idioma, papel social, relações profissionais, crenças religiosas, clãs familiares, irmandades e ordens, relações de trabalho ou profissão, etc.
A comunidade real não segue o caminho dessas identidades atribuídas. A verdadeira comunidade tem a ver com camaradagem e amizade. E não é difícil imaginar. Quem o constitui são aqueles familiares e amigos que vemos diariamente e com quem preferimos nos relacionar e desfrutar todos os dias. Lá, a solidariedade cotidiana é vivida e a presença do Estado é negada. Lá, o reconhecimento mútuo e o verdadeiro respeito existem. Lá também, as fronteiras são desterritorializadas e os estandartes da xenofobia são corajosamente repelidos.
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As drogas são a única taxonomia possível. Existem dois tipos de drogas: químicas e naturais. As primeiras dependem da produção industrial em massa. As últimas fazem parte da natureza. Elas são cultivadas, colhidas ou encontradas em campo aberto (planícies, montanhas ou deserto). Com o uso de drogas naturais, o ser humano pode revisitar uma época de sabedoria ancestral em que se praticava a medicina natural e holística. O uso de drogas químicas, por outro lado, cresceu com a revolução industrial e com a ascensão dos médicos científicos ao poder. Este foi o início da tirania dos homens de jaleco branco. Drogas químicas controlam a paciência, o ritmo e a paixão. Seu objetivo é fazer com que o sujeito disfuncional se reajuste ao sistema para continuar produzindo de forma submissa. Se por acaso os padres de toga branca fracassam nessa tentativa e perdem o controle do paciente, seu último recurso é jogar o paciente nesses centros ideológicos de reclusão social: hospitais psiquiátricos, hospícios, abrigos, lares de idosos, etc. Esses centros são os depósitos de lixo de doenças terminais.
As drogas químicas legais - administradas pelo Estado por meio de seus ministérios da saúde - têm como gêmeos as drogas químicas ilegais. Além de ser um negócio lucrativo, essas drogas permitem ao Estado justificar a repressão em zonas consideradas pelo Estado como fora de controle: guetos urbanos, bairros marginais ou selva da guerrilha. Em outros casos, drogas pesadas ilegais são usadas como pretextos quando a “justiça” e sua Guarda Pretoriana perseguem indivíduos que estão subvertendo a ordem dominante.
É exatamente a ilegalidade dessas drogas que gera grandes lucros e racionaliza o autoritarismo.
As drogas naturais, por outro lado, libertam porque permitem ver na escuridão da alienação. Eles ajudam o corpo. Eles são biodegradáveis e são fontes de energia. O cânhamo, por exemplo, é fonte de rebelião contra as próprias indústrias que exercem controle ideológico e energético. A indústria farmacológica impõe uma visão da realidade. Depois, as indústrias do petróleo, da mineração e da silvicultura - triunvirato da sociedade de produção e consumo de massa - realizam a concretização material desta visão da realidade. As drogas naturais, por outro lado, são curativas. Embora qualquer alteração na consciência em sociedades altamente alienadas fornece uma saída de emergência que permite aos indivíduos apreciar a natureza. Nas sociedades primitivas - nem alienadas nem alienantes - as drogas naturais são uma ratificação do fato de que a realidade não é linear, nem se manifesta em apenas um plano.
Com efeito, por meio das drogas naturais, as comunidades primitivas experimentaram o caráter múltiplo da realidade. Como a terra não é plana, tampouco a realidade é singular. Em vez disso, é povoada por tantas dobras e multiplicidades quantas forem as peculiaridades da natureza. Os surrealistas apontaram que o mundo dos sonhos também faz parte da realidade, tanto quanto o mundo da vigília. A possibilidade de que existam outros mundos, sem lógica linear tridimensional, foi comprovada pelo uso de psicodélicos. Os especialistas e médicos - aqueles que trabalham para a sociedade de produção e consumo de massa - convocam qualquer tentativa de alterar a percepção da realidade por meio do escapismo das drogas naturais. Quando a fuga para a valorização da natureza se torna uma força energética, os especialistas e médicos deixam seu trabalho nas mãos do exército ou da polícia. Esta é a chamada guerra às drogas.
As drogas naturais são altamente subversivas. Cada folha e caule que libera e alivia já existe no jardim planetário. Assim, não há razão para fabricá-las. É fato que a sabedoria ancestral está relacionada à medicina natural. Muitas mulheres foram acusadas de serem bruxas - pelos médicos e especialistas de sua época - e queimadas vivas nas estacas da Inquisição Católica, Protestante e Patriarcal. Isso é civilização.
Comer, fumar, ferver e engolir drogas naturais são atos de solidariedade compartilhada. A ocorrência desses atos depende da saúde das pessoas. Quando o ritmo de vida é controlado pelo tic-tac automatizado da máquina padronizadora, o nível geral de saúde diminui. A alienação e a ideologia são uma doença. As drogas naturais eliminam as ervas daninhas do jardim e trabalham o solo. Cada vez que drogas naturais - orgânicas como nós - são ingeridas, nos recuperamos das doenças biológicas e sociais produzidas pela alienação e pela ideologia. A humanidade precisa se recuperar do trauma da civilização. Para Chellis Glendinning, a civilização é um estado do qual é preciso se recuperar. O trauma do primeiro dia de aula, o nervosismo provocado pela ameaça de expulsão da escola, dores de estômago, castigos irracionais, ou o impacto da repressão institucional contra a manifestação libertária do ser que quer fugir da alienação e da ideologia, são consequências de uma experiência traumática que tentamos ignorar dia após dia. A civilização é o alicerce da formação forçada que privilegia o simbólico sobre o imaginário para quebrar o estado de “selvageria” natural que todos habitamos.
As drogas naturais revelam as pétalas da imaginação. Este pode ser o efeito que produzimos cada vez que interagimos organicamente com o meio ambiente e expandimos nosso universo em direção ao que ainda não sonhamos, mas podemos imaginar. Nossa presença tem um efeito alucinógeno. Na verdade, somos uma droga poderosa que pode iluminar tudo o que imaginamos. E uma vez que somos libertados, não há nenhuma droga química, nem tela, nem exército que possa impedir o efeito sedutor e opiáceo de nossa própria presença. Para construir um novo mundo é preciso imaginá-lo. E para imaginar é preciso se libertar. Essa libertação implica a criação de uma nova humanidade. Essa é a importância das drogas naturais.
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O impacto da vida humana no planeta e em todas as outras criaturas vivas é inevitável. As consequências de cada vida são inevitáveis: caminhamos e destruímos. O efeito destrutivo produzido por nossa existência é amplificado pela razão instrumental. A razão instrumental nada mais é do que um módulo mental que opera como uma ideologia desconcertante: não permite sentir nem compreender. Uma vez presa nesta estrutura, a consciência se enrola como tecido petrificado. Para se sensibilizar, é preciso explorar a estética. A arte e a poesia nos ajudam a enxergar no meio da alienação. Abolir a razão instrumental não significa abolir o pensamento lógico ou analógico, muito menos a inteligência e a capacidade prática. Analogia e lógica coexistem na natureza e na mente humana como um todo inseparável. Associar, por exemplo, o chilrear dos grilos com o ronronar da natureza, como um gato feliz e satisfeito, faz parte do pensamento estético. A analogia se manifesta por meio de procedimentos lógicos, intelectuais e linguísticos, mas sua abordagem é estética antes de ser instrumental, privilegiando a valorização do mundo natural e de sua beleza em vez da funcionalidade do que pode ser extraído da natureza. Para abolir a razão instrumental, é necessário desalienar-se e desaprender a formação ideológica e social. Este é um desafio que deve ser focado em desmontar a ferramenta que permite essa formação: a linguagem que constitui o sujeito.
Sem linguagem, a noção de sujeito desaparece. A razão instrumental, estética e ética - dividida em esferas separadas entre economia e política, arte e poesia, ética e religião - permitiu o surgimento da linguagem. A razão instrumental, entretanto, assumiu o controle da linguagem, gerando as formas de exploração do homem e da natureza impostas pela civilização por meio de um sofisticado sistema de divisão do trabalho. Os antropólogos acreditam que aquele momento foi o início da história, da agricultura e do sedentarismo. Pode ter sido também o início do lento processo de objetificação do sujeito e da aceleração do movimento expansivo da civilização racionalizado pela noção de progresso. A máxima socrática “conhece-te a ti mesmo”, fez com que o sujeito se reificasse filosoficamente para se transformar em seu próprio objeto de estudo. Além disso, isso significou a dissecção e separação do sujeito da realidade; ela se converteu em uma entidade à parte, diferente e alheia ao todo formado pela natureza.
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John Zerzan argumenta que a linguagem se apropria da realidade para posteriormente substituí-la. Segundo o pensamento anarco-primitivista, a divisão do trabalho produz uma sequência reificadora que termina com a criação do simbólico. Para Zerzan, o simbólico não só representa a realidade, mas também a substitui. Essa substituição é uma forma de alienação e constitui o início da civilização, onde a razão instrumental amplia os mecanismos de controle da linguagem, padronizando absolutamente tudo e rejeitando completamente qualquer peculiaridade. Desse modo, a realidade se transforma em um conjunto de objetos, sendo o sujeito mais um objeto que cabe na caixa de uma categoria. Civilização e alienação são, então, dois cistos da mesma natureza que devem ser removidos.
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Em 1987, J.A. Lagos Nilsson publicou em Buenos Aires o manifesto anarquista “Contracultura y provocatión” (Contracultura e Provocação), em oposição aos termos banais cultura e civilização, termos que foram utilizados pelas ditaduras da Argentina e do Chile para se justificar e racionalizar suas práticas genocidas. Para Lagos Nilsson, o mundo cultural é um modelo, um padrão, um quadro ou uma referência: é o que padroniza. Desse modo, a cultura padronizadora e a civilização são um produto da expansão da razão instrumental, que se manifesta psicologicamente como a projeção do ego sobre a natureza. A alienação produz o afastamento do sujeito do mundo, fazendo com que o sujeito se torne estranho ao mundo externo e a si mesmo. Essa é a doença que é transmitida no encanamento da ideologia. Nesse redemoinho, só a arte e a poesia liberam e desalienam. Esta ação libertadora está enraizada na contracultura, que nada mais é do que uma forma de provocação significativa. Por razões óbvias, a contracultura nega a cultura oficial e defende o direito à peculiaridade. É claro, então, que a contracultura não faz pactos nem convive com o poder, embora este tente cooptar o primeiro. Se alcança a cooptação, a contracultura se torna nada mais do que um fetiche de consumo, ou uma peça de museu cujo poder fica pendurado na lapela de sua jaqueta como uma medalha militar.
O poder se perpetua por meio da prática da repressão e da doença da alienação. Se é verdade que a alienação é uma prática do simbólico, ainda não é necessariamente uma expressão da cultura simbólica. A distinção entre a cultura simbólica e o simbólico permite distinguir entre a representação e a substituição reificadora da realidade, e a manifestação estética do ser. Confundir civilização com cultura significa misturar duas manifestações equidistantes. Civilização é a projeção da razão instrumental. Sua expressão mais sublime está embutida nas cidades, que, legitimadas como uma segunda natureza, organizam o processo de formação ideológica e social nos modernos campos de concentração subliminares. A cultura, ao contrário, quando emana do sujeito, é uma forma de ser ou uma contracultura. A cultura se regula por meio da interação do ser. Já na civilização, cujo tabuleiro de interação é o mercado, não existem verdadeiros mecanismos de autorregulação, pois sua base de sustentação é a utilidade, o lucro e a usura. A civilização é, portanto, unidimensional. Em contraste, a cultura é múltipla, peculiar e multifacetada. O que orienta as formas de manifestação cultural é o ser. Fazer está relacionado à manipulação e à produção. E embora isso possa ser um ato criativo, está profundamente ligado à funcionalidade instrumental. Ser e criação entrelaçam o fio da cultura. Na verdade, todos nós temos cultura, ou seja, uma forma de ser. E se é verdade que a cultura media nossa experiência, então nosso ser é cultural.
As lutas das comunidades indígenas na América Latina nada mais são do que a batalha pela defesa de sua cultura contra a penetração da máquina civilizadora e da cultura padronizadora. A cultura de uma comunidade é a manifestação estética de seu ser comunitário. Esta é uma cultura simbólica.
Homens e mulheres neandertais, desaparecidos há cerca de trinta mil anos, criaram estatuetas de rocha polida e construíram flautas com ossos de urso capazes de tocar até três notas musicais: dó, ré, mi. Eles também tinham uma forma de comunicação e atividades espirituais e artísticas. A cultura simbólica não conduz necessariamente por uma estrada civilizadora sem saída. Os maias, por exemplo, abandonaram suas cidades sem qualquer explicação. É provável que tenham entendido em algum momento que sua civilização não era sustentável, embora não haja prova concreta disso. Também é possível que eles tivessem um entendimento de que a tecnologia que desenvolveram seria tão drástica que eles não seriam capazes de devolver à terra o que haviam tirado dela. Essa cosmologia da retribuição ainda faz parte da cultura simbólica dos maias, cuja compreensão da natureza ultrapassa facilmente as cosmologias ocidentais modernas.
Em contraste com a cultura maia, a civilização ocidental e suas réplicas não provocaram nada além da destruição acelerada da natureza. Quando Marcuse propõe que a história nega a natureza, ele se refere à cultura civilizadora - padronização - e não à cultura humana como a expressão do ser. A manifestação do ser é estética e cultural. Essa manifestação torna-se radical quando se torna a expressão peculiar do ser. Por isso, negar o modo de ser de uma pessoa é colonizá-la. Essa prática reproduz o impulso expansivo da civilização, que nada mais é do que a destruição da natureza e do ser humano.
A civilização, portanto, coloniza e domestica a cultura, reduzindo-a a uma categoria padrão - a cultura oficial. Não reconhecer que toda criatura do planeta tem uma maneira de ser - todo gato, pássaro, planta, flor, nós mesmos - é negar a peculiaridade da natureza. Negar a cultura é padronizar. Os seres humanos têm diferentes maneiras de ser. Todos veem, sentem e valorizam o mundo culturalmente. Cada cultura é peculiar. Constelações de peculiaridades são formas culturais que se transformam em idiossincrasias de sujeitos.
Os genocídios e ecocídios dos continentes da América do Norte e do Sul se moveram em uma direção principal: negar a cultura indígena. A cultura, de fato, é contra a civilização. Não são sinônimos, mas territórios distintos. Civilização implica padronização; cultura, peculiaridade.
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A linguagem cumpre uma dupla função: padroniza e impõe sentido, mas também liberta. Por meio da linguagem, o sujeito resiste à objetivação produzida pela razão instrumental por meio de suas práticas padronizadoras: categorias ideológicas, monocultura industrial, pecuária, etc.
A conversa desaliena e congrega, desmontando a política sistêmica que tende ao isolamento individual. A padronização, ao contrário, cretiniza. Para isso, simplifica a linguagem, reduzindo nossa capacidade de reconhecer a realidade. Essa simplificação se reduz à novilíngua orwelliana, que reduz a consciência e atrofia a imaginação. O sujeito não é a consciência em si, assim como a linguagem não é em si comunicação. Se confiarmos nos resultados da ciência, é possível estabelecer que a escrita surgiu há sessenta mil anos ou mais. As marcas calcárias deixadas pelos aborígenes australianos nas rochas são prova disso.
Obviamente, não se trata de uma escrita ocidental, mas as marcas são inscrições gráficas que carregam um significado. Também é provável que a linguagem sempre tenha acompanhado o ser humano, seja como uma forma de verbalização gutural, que aos poucos foi se articulando de forma mais nítida, seja como simples comunicação gestual. Alguns textos antropológicos argumentam que a linguagem e o pensamento simbólico existem há milhões de anos. As ferramentas de pedra, que podem ser datadas de dois milhões e meio de anos, evidenciam a existência de mecanismos racionais não apenas relacionados ao simbólico, mas também à evolução biológica bípede, ao uso do polegar e à organização do grupo. Marcel Griaule mostra que para os membros da comunidade Dogon Africana, do Mali, a primeira palavra enunciada pelo ser humano foi “sopro”. Isso sugere que a origem da linguagem não foi a articulação, mas a própria respiração. Com efeito, a peculiaridade de falar é caracterizada pelo biorritmo de inspiração e expiração em cada corpo humano. Falar é tão adequado e único quanto o sotaque que cada um de nós tem em sua língua.
O sujeito organiza sua personalidade estruturalmente. Desse modo, o sujeito anula a consciência, embora também possa amplificá-la por meio da linguagem. Criar consciência, portanto, significa realizar nossa existência na totalidade do cosmos. Por meio da consciência, criamos o mundo. Ou seja, marcamos e apontamos eventos ou questões que, de outra forma, permaneceriam na escuridão ou no silêncio. A alienação, pelo contrário, cega, fazendo com que os indivíduos sigam a estrada com cabrestos ou sejam aprisionados em cubículos.
A linguagem é, portanto, uma ferramenta de doutrinação, mas também uma arma de libertação. Nas atuais condições de domesticação humana, animal e ecológica, a separação alienante do sujeito da totalidade pode ser vista como um processo irreversível.
Retornar a um estado primitivo anterior à linguagem articulada implica desaprender línguas (isso é praticamente impossível sem eliminar os seres humanos da face do planeta). Abolir a noção de linguagem, mesmo sem um genocídio exaustivo de toda a humanidade, é um projeto irrealizável e sinistro. Além do mais, não há garantia de que o aspecto instrumental do pensamento simbólico não reapareceria em algum momento do desenvolvimento da vida. E com isso ressurgiriam novas formas de alienação e dominação funcional sobre a natureza e o controle normalizador dos seres humanos. Esperar, assim, uma construção utópica e sintética de uma ordem comunista primitiva baseada na caça e na coleta, que por extensão garanta a sobrevivência apenas dos mais fortes e substitua a linguagem pela telepatia, também parece improvável.
A vida perdeu seu valor por meio do controle simbólico da razão instrumental. Nas sociedades alienadas e alienantes, só a arte e a poesia podem devolver o valor original da vida, visto que a esfera estética foi separada do âmbito do vital. Essa separação nada mais é do que uma estratégia de compensação pelo que foi perdido. Para que a arte devolva valor à vida, é necessário destruir a linha divisória entre a criação simbólica e a existência, misturando vida e estética em um único ciclo.
Assim, combater o simbólico com o simbólico implica uma contradição, mas também a possibilidade de emancipação ideológica e a abolição da razão instrumental. Orientar as atividades humanas para a razão estética pode corrigir o curso da vida em todo o planeta e salvar muitas criaturas - e a nós mesmos - da extinção total.
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O eslovaco Slavoj Zizek afirma que todo projeto ecológico orientado para a mudança da tecnologia para melhorar o estado de nosso ambiente natural é ilegítimo, na medida em que toda iniciativa deste tipo confia na própria origem do problema - o modo tecnológico de nos relacionarmos com outras entidades em nosso entorno. É a mesma contradição que se repete no combate ao simbólico com o simbólico: escrita, pensamento articulado, linguagem. Ambas as contradições, no entanto, são falsas porque atuam como armadilhas sistêmicas que promovem a inação: silêncio em um caso, complacência no outro. Na verdade, os efeitos da vida humana no planeta são inevitáveis: caminhamos e destruímos, respiramos e aniquilamos. Este impacto destrutivo é amplificado pela razão instrumental: o modo tecnológico de nos relacionarmos com as outras entidades ao nosso redor. E é multiplicado pelos mecanismos de produção em massa e reprodução mecânica. A razão instrumental é, portanto, uma ideologia funcional e desconcertante que arranca a estética da vida em virtude de impor um projeto civilizador ao planeta. Este projeto media a vida social, humana e animal por meio da domesticação. A razão instrumental é uma domesticação ideológica que adormece, apaga a imaginação e atrofia os sentidos. Quando os animais selvagens são domesticados, eles deixam de ser animais e se tornam seres domésticos - animais de estimação. Ser domesticado e dominado é estar aprisionado na domus: uma repetição arquitetônica que padroniza a paisagem. O domus dos animais selvagens é o curral, o rancho, o estábulo e o chiqueiro. O domus humano é uma sala solitária ou um conjunto de quartos compartilhados por companheiros de quarto que desenha o panorama cinzento da cidade.
A alienação nas cidades - espaços sociais à beira de um colapso fatal - e a destruição engendrada pela produção em massa são características definidoras da vida sob o controle da ação domesticadora da razão instrumental. A razão estética não propõe o domínio humano sobre a natureza. Ao contrário, prevê a existência humana de um modo que é interdependente com e na natureza, sem qualquer controle. A vida é uma rede flexível e orgânica de eventos diários. A razão estética amplia a consciência, amplia a imaginação e promove a integridade e a responsabilidade como ética necessária. É um projeto a que não falta elasticidade, nem sentido prático, nem inteligência. Mas privilegia o artístico sobre o funcional. Seu propósito, então, é o desdobramento radical de todas as peculiaridades antiautoritárias que habitam o planeta.
Um mundo voltado para a razão estética sugere um estilo de vida comunitário e artesanal. A cosmovisão que integra tal razão é biocêntrica. Ele elimina o antropocentrismo do jardim planetário e deposita o humanismo esclarecido na lata de compostagem. O biocentrismo nada mais é do que a compreensão de que a vida é a esfera que inclui a realidade, sem descartar que outras realidades e percepções da realidade existem. O jardim das peculiaridades é um projeto de humanidade: construir a vida em um jardim planetário povoado por comunidades não hierárquicas, autônomas e libertárias que operam com base no pensamento analógico e estético. A analogia permite o estabelecimento de associações e conexões de formas simultâneas, múltiplas, flexíveis, transparentes e interdependentes, desmantela a lógica linear e o isolamento - tudo no mesmo flanco - para combater todas as formas perversas de alienação. Talvez neste jardim seja possível comunicarmo-nos plenamente por meio de certas faculdades que se perderam e atrofiaram pela domesticação. Talvez desenvolvamos outros sentidos.
As galinhas, por exemplo, são capazes de reconhecer até cinquenta membros de sua comunidade. Seu sistema organizacional é baseado no reconhecimento mútuo. Desta forma, evitam conflitos pela alimentação e estabelecem uma dinâmica social baseada na empatia com as outras galinhas, dando preferência às aves mais velhas ao bicar. Com a domesticação industrial, as granjas se encheram de centenas de galinhas que foram obrigadas a esquecer sua sabedoria natural e não reconhecer os demais membros de sua espécie, despertando violência, senão loucura. Nós, seres humanos, perdemos e esquecemos nossa sabedoria natural. Os aborígenes australianos que ainda andam pelo deserto são capazes de se comunicar telepaticamente a distâncias de até vários quilômetros. Quando a poesia e a arte se tornam uma contra-ideologia assistêmica, nossas faculdades despertam. Então, somos capazes de criar o mundo e expressar livremente a peculiaridade que o sistema nega. Algumas peculiaridades têm pétalas mais abertas do que outras. Isso não tem importância. A uniformização é um truque socioliberal que cinicamente nega o igualitarismo social, visto que existe em virtude das diferenças hierárquicas. O importante é que cada pétala se abra, no seu ritmo e nas suas próprias condições, estabelecendo uma sincronicidade íntima com o mundo dos seres vivos. A máquina de equalização é injusta com a peculiaridade. A vida é uma energia que permite a recriação do mundo em diferentes mundos peculiares. A livre criação de constelações de peculiaridades - associação livre, na linguagem socioliberal - é uma noção que pode ajudar a descrever melhor as condições de vida sob a influência do movimento orgânico de comunidades autossuficientes. Essas comunidades florescem na convivência gregária - socialidade, em termos sócio-liberais - e permitem que a peculiaridade de cada criatura floresça. Este florescimento é o desabrochar total e libertador de nosso ser e permite uma interação orgânica entre o ser humano e o planeta.
No jardim das peculiaridades, flores e plantas realizam o processo de fotossíntese ao ritmo da própria seiva. Ninguém as impede. Ninguém as atrasa. Ninguém as acelera ou controla. Animais e insetos que se esgueiram pelo jardim atravessam o batimento cardíaco efêmero do presente. E assim o movimento perpétuo da terra é mantido vivo. E assim persiste o planeta: o domus astral que nos abriga e nos mantém vivos.
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Houve práticas antropófagas durante o estágio de caça-coleta do desenvolvimento humano ou mesmo antes? A carne humana tem sido comida para outros humanos? Temos um passado canibal? Parece que a resposta é sim, embora não saibamos se o canibalismo foi praticado até o fim da sobrevivência humana ou como uma prática puramente simbólica.
O estudo de molares em crânios humanos e marcas de dentes em ossos humanos encontrados em cavernas na Grã-Bretanha demonstra que os ancestrais dos ingleses eram canibais. Nos séculos XVII e XVIII, os médicos de alguns tribunais europeus prescreveram uma dieta de órgãos humanos para curar certas doenças. Bancos de órgãos não eram incomuns naquela época, nem tampouco as execuções necessárias para encher os depósitos de rins, fígados, intestinos e outras partes humanas necessárias para satisfazer o apetite de cortesãos famintos por curar o que os afligia. O uso da guilhotina desacelerou no mesmo momento em que a Europa apagou sua história antropofágica e iniciou uma nova etapa: atribuir canibalismo a povos conquistados, que eram vistos como nobres selvagens ou perigosos "comedores de homens" barbáricos.
No romance “El Entenado”, baseado nas memórias do espanhol Francisco del Puerto (que chegou à costa leste do Cone Sul com a expedição de Diaz de Soils em 1516), Juan José Saer narra em bela prosa a experiência de um prisioneiro em território Guarani. O canibalismo indo-americano não se sustentava na necessidade de sobrevivência, mas como um ritual simbólico: distinguir o outro de “nós” e assim afirmar a precária ordem do universo. Cada vez que os tupis guaranis realizavam uma “festa da carne” - ou carnaval - reafirmavam seu papel na preservação do frágil equilíbrio cósmico. Essa visão étnica e antropocêntrica, filtrada pela prática canibal, não tinha nada mais do que um propósito simbólico e cerimonial - afirmar que as pessoas verdadeiras não comiam umas às outras. De fato, os canibais só provavam estranhos ou outros que, aos olhos da aldeia etnocêntrica, não existiam ou não faziam parte do povo verdadeiro. A dialética exercida entre o canibalismo e a auto-identificação do grupo, como estratégia de construção da identidade, teria sido a base de toda expressão simbólica. A noção de "nós" é diferenciada, desta forma, da noção de "eles". E essa distinção é ratificada no ritual por meio da prática canibal. É, de certa forma, uma mitologia que explica o cosmos e fixa uma convicção de pertença, que de outra forma não é articulada. Isso pode ser o que Francisco del Puerto testemunhou durante os quase dez anos que passou no cativeiro. E é por isso que os Charruas (os Guarani) do Rio da Prata o mantiveram em cativeiro. Uma testemunha do ato canibal foi necessária para ratificar a existência dos Guaranis entre os habitantes de outras aldeias. Mas para o império espanhol, o canibalismo foi usado como um argumento para demonizar as culturas indígenas e assim justificar seu genocídio encharcado de sangue.
A noção de "nós" procede de outra noção anterior - o "eu". A noção do “eu” nasce da consciência de nossa própria condição mortal, que prevê uma situação hipotética, futura e sem medo: a morte. Essa visualização do futuro é aquela que separa a consciência humana do instinto de sobrevivência, ou da hipersensibilidade ao risco, ou de qualquer outra consciência animal.
Quando o soldado espanhol Bernal Díaz del Castillo entrou sob as ordens de Hernán Cortés na cidade de Tenochtitlán, construída no Lago Texcoco, seu espanto com a grandeza marcante e imperial dos astecas foi diminuído pelo terror que sentiu na presença de cadáveres humanos empilhados dentro do Templos sagrados dos astecas. Os astecas não praticavam apenas sacrifícios humanos; eles também eram canibais. Em sua narrativa, Bernal Diaz se lembra de quando Moctezuma é servido em seu prato real a humanos minúsculos, nada mais do que crianças e bebês. Desta forma, Bernal Diaz demoniza o outro e escandaliza os espanhóis, cujo medo ganha voz no discurso religioso. A distinção que os europeus fizeram estabelece a diferença entre “eles” e “nós”. Ou seja, entre a barbárie - ateia ou endemoniada, fomentando a antropofagia - e a civilização católica. Não obstante, os católicos também comem e bebem simbolicamente o corpo de Cristo. Esse raciocínio é utilizado pelo império para justificar o genocídio ocorrido nas Américas e, assim, reafirmar o suposto direito de conquista. A cruz cristã e a liturgia ainda são formas simbólicas de sacrifício e canibalismo. Os sacrifícios e práticas antropofágicas dos astecas eram formas simbólicas de identidade, cultura e reafirmação coletiva e eram uma consequência direta de sua cosmovisão.
Outros povos sul-americanos também praticavam sacrifícios rituais, embora ainda seja uma questão em aberto se eram ou não canibais. Esses sacrifícios eram ofertas aos deuses. Seu objetivo era dar sustento ao espírito dos elementos em troca de proteção. Os mapuches do sul do Chile - um dos poucos povos não conquistados pelos espanhóis - sacrificavam cordeiros em cerimônias rituais de cura. O feiticeiro - ou machi - extraia o coração do animal e banhava-se em seu sangue. Isso nada mais foi do que um ato simbólico de redenção diante das forças da natureza. O simbólico surge com a ascensão da consciência, representada pela morte. O reconhecimento de nossa condição mortal seria o impulso gerador na criação de nossa noção do humano e do não-humano, do animado e do inanimado, do cru e cozido. Em tal contexto, o canibalismo e o sacrifício de animais eram a reafirmação do humano. Comer o outro, humano ou animal, era ratificar a existência de um “nós”: a horda primitiva ou a tribo originária.
Freud sugere que a civilização se baseia no reprimido, nos tabus do canibalismo e do incesto. Essa repressão está na origem das bases da civilização ocidental. O civilizado é o reprimido. A cultura também reprime, visto que deve ocultar seu caráter antropófago: plágio, citação e mera referência. Simbolicamente, a cultura se engole em uma rede de conexões que se expande em uma reação em cadeia. O vampirismo mercantil e escravizador é culturalmente baseado em um impulso canibal, cuja representação mais apropriada é encontrada na expressão popular, “sugar o sangue dos outros”, isto é, dos dominados. Claro, quando a cultura representa o canibalismo, o faz com o filtro do espetáculo. Torna o canibalismo uma caricatura ou confere-lhe características aberrantes. É um “tango nu” ou a distorção de um indivíduo que perdeu todo o sentido de humanidade. No primeiro caso, o canibalismo é um espetáculo que contradiz a dança da carne. Quando os Guaranis encenavam suas bacanais, eles o faziam ao ritmo da dança e dos tambores, e era para ser uma lembrança comemorativa de sua própria humanidade. Enquanto os cristãos aguardavam a Quaresma, eles encenavam o carnaval, outra forma de “festa da carne”, mas que era sublimada pelo simbólico. O “tango nu” é um drama estilizado, mas também cru, do ato antropófago. É manifestado por fascismo, tortura e humilhação. Por outro lado, a imagem do canibal como aberração individual é um truque ideológico que reforça a propaganda que fomenta o autocontrole, a autocensura e a força opressora. Em ambos os casos, reprime a múltipla peculiaridade que habita a natureza. Esse é o véu que nega a origem da ideia de humanidade.
É provável que a cultura simbólica e suas ramificações reificantes tenham vindo de uma consciência primeira, a certeza da morte. Essa certeza gera, por meio dos mecanismos autorreflexivos da consciência, o reconhecimento da nossa própria existência. Isso carrega consigo uma visão de um "eu-nós", em oposição a um "outro-eles". Nesse sentido, o canibalismo foi a afirmação simbólica da cosmovisão beligerante entre as noções de “nós” e “eles”.
A antropofagia seletiva (comer o estranho, mas não o vizinho) é o estabelecimento primordial de uma repulsa autoconsciente diferenciadora e racionalizada que media a noção do humano e do não humano. Não é certo, em qualquer caso, que os humanos sejam carnívoros. Na verdade, todas as indicações apontam para o contrário. Somos herbívoros, vegetarianos ou vegans que ainda comem carne ou fazem churrasco como forma de inércia metabólica devido a uma dieta imposta ancestralmente por motivos simbólicos. Quando o comedor come carne não humana, a recompensa é o status de humano.
As variantes geográficas também influenciaram as dietas regionais. O suprimento de comida dos esquimós, por exemplo, é quase cem por cento carnívoro. Porém, sua localização em uma região onde a sobrevivência é difícil se deve a um deslocamento anterior, determinando sua dieta. Muitos povos nômades se mantiveram em movimento seguindo as rotas de búfalos ou outros animais. Os recursos marítimos fizeram com que muitos grupos tribais se instalassem nas áreas polares e se dedicassem à pesca como um prolongamento de uma antiga prática carnívora. Este também foi o caso dos Alacalufes ou Selknam na América do Sul. Hoje eles desapareceram totalmente.
Assumir nossa natureza animal implica compreender que a sociedade moderna está reproduzindo uma forma ancestral de canibalismo. Somos animais que comem outros animais. Somos animais herbívoros que comem a carne de outras pessoas. É claro que as tribos de caça e pesca do Paleolítico e do Neolítico comiam carne. Mas essas sociedades já haviam trabalhado e polido pedra, o que implica o uso de certo pensamento técnico-instrumental para a construção de ferramentas. Também é provável que essa aplicação incipiente da razão instrumental tenha ocorrido depois do surgimento da consciência - a realização de nossa própria morte. Também é provável que a instrumentalidade tenha surgido após o surgimento das noções de um "eu" coletivo e um "você" coletivo. Essas noções são as formas embrionárias de canibalismo, que nada mais é do que um símbolo da ratificação da identidade comunitária na horda primitiva, no clã e na tribo. Nesse sentido, é provável que o consumo de carne não humana tenha perpetuado um mecanismo simbólico de autoafirmação que foi impondo, aos poucos - e talvez por uma questão de sobrevivência - a dieta carnívora em seres de dentes planos e pele porosa.
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Fisiologicamente, os humanos são seres herbívoros. Não temos garras e suamos pelos poros - ao contrário dos carnívoros, que transpiram pela língua - e nossos pequenos incisivos não são pontiagudos como os dos animais carnívoros. Além do mais, temos molares planos para mastigar e triturar e nossos intestinos têm doze vezes o comprimento do nosso corpo, semelhante a outros herbívoros, cuja longitude dos intestinos oscila entre dez e doze vezes o comprimento do corpo. Se compararmos isso com os intestinos dos carnívoros, cuja extensão dos intestinos é apenas três vezes o comprimento do corpo - o que permite o rápido processamento da carne em decomposição através do sistema digestivo - e a presença de ácidos estomacais fortes que ajudam a digerir a carne, ácidos que são vinte vezes mais potentes que os ácidos presentes no estômago de humanos e herbívoros, então vemos que não há razões fisiológicas para supor que os humanos precisam comer carne. As razões do nosso carnivorismo são ideológicas. E elas tendem a justificar a supremacia humana sobre o mundo animal.
Michael Klaper afirma que os humanos não são carnívoros, seja por anatomia ou natureza. Em um de seus livros sobre dieta vegana, ele mostra que os seres humanos não podem comer carne crua com prazer - no caso de fazermos isso - e ele compara o prazer de comer uma maçã, melancia ou salada com o ato carnívoro, que geralmente requer tempero e cozimento para torná-lo o mais distante possível de sua natureza real: carne morta e nervos. Nesse sentido, a dieta carnívora é uma espécie de necrofagia, que foi socialmente imposta e que deriva da prática antropófaga. Ambas as dietas nada mais são do que atos de ritual simbólico. O canibalismo servia como um rito de distinção entre a identidade tribal e a identidade dos outros, enquanto o carnivorismo era uma cerimônia necessária para distanciar os humanos dos animais. Com efeito, por meio do carnivorismo, perpetuou-se uma visão antropocêntrica que ideologicamente garante a “superioridade” dos humanos sobre os animais e justifica moralmente o controle humano sobre a natureza. Em ambos os casos, o que é comido é objetificado. E em ambos os casos existem símbolos e reificação.
Tribos caçadoras pré-históricas expandiram seu território em busca de animais para caçar. Eles criaram e poliram pedras como armas de defesa e ataque. Eles projetaram táticas de perseguição, controle territorial e assalto. Essa foi a base do desenvolvimento da lógica da agressão instrumental que deu origem ao combate e ao acúmulo. Mas não foi um processo homogêneo. Os indígenas das planícies norte-americanas, por exemplo, respeitaram o búfalo - sagrado em suas culturas - e não o mutilaram em grande escala, nem o domesticaram. Nas civilizações carnívoras, entretanto, esse primeiro movimento expansivo ainda persiste. É fato que a caça é uma das pedras angulares sobre as quais foram erguidos os alicerces da civilização carnívora. A irracionalidade assassina da civilização opera em paralelo com a irracionalidade humana. Com efeito, somos a única espécie de animais que, sendo herbívora, prefere alimentar-se de criaturas mortas. Isso é uma loucura total.
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A ciência atual e a cosmologia dominante não procuram apenas submergir totalmente - por meios representacionais - o passado canibalístico dos humanos, mas também têm um ingrediente funcional instrumentalizador. O uso de embriões e fetos humanos na medicina genética, o uso de órgãos animais e artificiais em implantes humanos, a crescente “McDonaldização” da dieta carnívora, a produção biotecnológica de alimentos transgênicos, biopirataria, caça esportiva, compra e venda de recém-nascidos, etc. são todos modos ideológicos de reconstrução simbólica de uma nova noção de sujeito: os ciborgues.
Ciborgues são seres robotizados que ficam conectados durante grande parte do dia a diferentes tipos de máquinas (computadores, televisores, telefones celulares, secretárias eletrônicas, carros, fones de ouvido, escadas rolantes, marcapassos, relógios, alarmes etc.).
Ciborgues e autômatos são uma consequência direta da ciência atual e da cosmologia moderna. Eles não têm memória porque seu pensamento segue a rota programada pela ideia de tempo linear. Eles carecem de espontaneidade, embora improvisem. A espontaneidade interrompe sua programação porque prioriza o presente orgânico e natural. Assim, prevê o decurso da vida.
A improvisação, por outro lado, está centrada na ação imediata e não antecipa as consequências. É a lógica lucrativa, a urgência cibernética e o desejo de lucro.
O ciborgue é chato e insincero. Falta transparência e responsabilidade. Sua alimentação é baseada na pura ciência que fabrica organismos geneticamente manipulados e modificados, ocultando o que realmente são com sua aparência: leguminosas falsas, vegetais que não são mais vegetais, alimentos de plástico, frutas enlatadas e assim por diante. Tudo isso responde a um plano estritamente regulado de futuro e de vida que segue modelos e objetivos também estritamente traçados. Na mesma linha, o ciborgue é incapaz de discernir o efeito destrutivo e violento de suas ações. Em vez disso, ele o nega.
Da mesma forma que a dieta carnívora e a religião foram intervenções culturais naturalizadas - intervenções que simbolicamente representam uma forma de repressão causada por uma ação civilizadora cujo fim é nada menos que a construção da identidade humana - assim também as ciências e as máquinas modernas são intervenções culturais naturalizadas que representam a repressão da noção de humanidade e cujo fim é nada menos que a construção de um mundo de ciborgues. O ciborgue é o modelo de padronização moderna. Sua integridade é um padrão duplo: defende a violência exercida pelos opressores e ataca a autodefesa dos oprimidos. Sua dieta ideal consiste em comprimidos. E sua ideologia é a alienação.
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Qualquer tentativa de padronização é uma forma de dominação porque impõe um único modo de ser sobre a peculiaridade. Toda matriz valorativa ou ideológica é um exemplo desse domínio, visto que a única integridade possível está ligada ao florescimento múltiplo, simultâneo e peculiar da natureza. A padronização é uma forma de colonização que impõe um padrão unificador sobre as diferenças e peculiaridades de cada um. Cada modelo esconde um sistema de planejamento que organiza o próprio modelo. Todo plano requer temporalidade linear para “progredir” e promover o movimento de desenvolvimento. A ciência atual e a cosmologia dominante moderna justificam a colonização da peculiaridade da natureza - pessoas, florestas, plantas, animais, pássaros, solo, etc. - por meio dos índices do chamado “padrão de vida”. Aqueles que se acostumam com os vários padrões de vida tornam-se autômatos. O autômato se opõe à natureza, perdendo sua humanidade - talvez construída pelo canibalismo na horda primitiva - e enrola sua memória como uma fita de vídeo a ser reprogramada pela máquina padronizadora. Mais tarde, ele sobrevive reproduzindo a mesma fita. Isso é o tédio. Da mesma forma, o autômato apaga seu passado, fica cego ao presente e perde sua história, que teria sido, em outras circunstâncias, ancestral, como acontece com outros humanos. O autômato valoriza apenas o que lembra: suas senhas eletrônicas, sua matrícula e códigos de barras atribuídos a ele pela grande máquina-mãe etc. Falta, portanto, história. Este é seu orgulho e sua perfídia.
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Em um lugar no noroeste americano, nos arredores de Eugene, Oregon, um festival hippie (Beanfest) é celebrado anualmente. Essa feira não é bem um quilombo, embora pudesse ser. Os quilombos são desordenados, rebeldes, turbulentos e dionisíacos. Eles permitem que peculiaridades se encontrem em um estado natural de anarquia que se manifesta no presente perpétuo. Não obstante, o festival do Noroeste induz cada participante a destacar um aspecto de sua individualidade, normatizada por uma gama variada de tipos culturais previamente conformados: moda, fetiche, aparência. Isso padroniza a folia e impede uma verdadeira celebração, uniformizando a diversão. Em contraste, o verdadeiro carnaval é um ritual de lembrança, faz soar os sinos de alerta sobre nossa própria realidade e compreende um conhecimento primordial - que os seres humanos nada mais são do que natureza. A morte é uma demonstração suficiente disso. A feira, por outro lado, precisa de regras, sistemas de segurança, guardas, polícia disfarçada, tudo isso é contra a natureza, o planeta e a expressão alegre do ser. Hoje, por exemplo, é ilegal fumar maconha na feira. Mas nem sempre foi assim. Na verdade, a Oregon Country Fair começou como um festival dos anos 60 que pretendia emular os carnavais da Idade Média e era altamente anti-autoritária no início. Estiveram presentes hippies e floristas de todo o mundo, desdobrando suas cores e sorrisos rebeldes contra a uniformidade.
Os habitantes locais formam grupos musicais e tocam uma espécie de longa canção folclórica associada à música country. O curioso é que às vezes cantam canções que podem parecer ter muito em comum com a vida de seus ouvintes. Na realidade, isso não é estranho. É um produto da padronização. Os heróis e personagens das canções tornam-se estereótipos produzidos, massificados e administrados pela cultura simbólica que reproduz o controle por meio da imagem. Dessa forma, a padronização se apropria da peculiaridade e a transforma em uma tipologia reconhecível: arquétipos, tipos de fisiologia, estereótipos, etc.
Os estereótipos são formas vulgares de compreensão da padronização e existem apenas em virtude dela. Por exemplo, os motoristas de ônibus sempre acenam uns para os outros quando passam. Isso acontece onde quer que a civilização tenha um impacto uniformizador e homogeneizador. Quanto mais estereótipos uma sociedade possui, maior seu nível de padronização e alienação. O estereótipo é uma imagem carregada semiótica e semanticamente por categorias. Sua ação - projetada na realidade - é imposta aos grupos oprimidos nas formas de exotismo ou demonização. O exótico é uma categoria construída pela ordem dominante para infantilizar o outro e se apropriar dele. A demonização fornece uma autojustificação para a agressão contra o outro.
Sem categorias, as tipologias e imagens coletivas não podem ser amplamente reconhecidas.
Os estereótipos espetacularizam a uniformidade. Isso é óbvio na cultura de massa: na cultura da mídia de massa de comunicação audiovisual ou cultura americana “mainstream”, por exemplo. Sua ideologia é a mediocridade e seu objetivo é garantir que todos os seres humanos se encaixem como engrenagens em uma máquina grande e incompreensível. Para esse fim, a padronização é um processo de cretinização humana por meio dos formatos padrão médios. Esses formatos contêm os valores da democracia plutocrática que sustentam a linha por trás dos ganhos das “mediocracias”. Ou seja, o governo e as ideologias padronizadoras: conceitos democráticos que são abertamente encarnados pelo fascismo. Para que o Beanfest volte a ser uma espécie de quilombo, é necessário que todas as penas selvagens da peculiaridade sejam desfraldadas. Se não, a festa se transforma em campo de concentração com confete e balões, mas sem compartilhamento, nem riso, nem companheirismo. Isso não é muito diferente do que acontece em eventos oficiais, que se repetem continuamente em escolas e instituições públicas e privadas, cerimônias de trabalho e assim por diante. Na verdade, o objetivo dessas pseudo-celebrações é preparar a base ideológica e emocional para a doutrinação propagandística e o controle repressivo: as armas gêmeas que o sistema usa para manter a imobilidade. Já o quilombo - como verdadeiro carnaval - é uma forma de encenação social da consciência, cuja prática dionisíaca liberta e separa o folião da máquina de treinar e controlar a conduta. Aquilo que é dionisíaco, neste caso, não só perturba a cultura da “razão”. Ao se opor antiteticamente ao apolíneo, também dissipa as normas instrumentais ao desmantelar a dualidade entre Baco e Apolo, que se desvanece no caráter rebelde da celebração.
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Toda revolução tem reformas, enquanto, sem revolução, as reformas nunca realmente acontecem. Os meios e os fins se encontram em um presente perpétuo em que realidade, imaginação, desejo e sua realização, arte e vida coincidem. Da mesma forma, apaga-se a linha divisória que limita o imaginário e as ordens simbólicas, o orgânico e o estruturado, o animado e a totalidade. Essa combinação binária de diferentes assuntos - que geralmente impõe uma cobertura sobre a consciência da compreensão do mundo - se desfaz quando se percebe a tática do imediatismo como parte de uma estratégia global. Da mesma forma, a compreensão da totalidade como um todo interdependente apaga a linha divisória entre liberdade e medo, e arranca a casca que separa os seres humanos do mundo natural.
A noção de liberdade é encontrada na terra. E por trás das barras de aço surge a experiência infeliz do prisioneiro enjaulado. A revolução deve transformar os acontecimentos diários em uma forma de ética realizada em um presente perene. Isso é um tanto especulativo, na medida em que se baseia na urgência ética da transformação. A imobilidade, em todo caso, é uma homenagem à repressão. Só o movimento liberta.
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O sistema de padronização domestica. A domesticação é uma forma de domínio que transforma criaturas vivas em ser caseiros que vagueiam em seus domus. Desse modo, a padronização força a domiciliação, cuja expressão culminante se encontra no toque de recolher. Como todos os sistemas, isso gera seus anticorpos: os desempregados, que agem como um exército de reserva de trabalho, e os sem-teto, que o sistema joga fora.
A produção em massa gera uma crise de superprodução e estagnação: desemprego, pobreza, distinções de classe social e assim por diante. Além disso, galvaniza a lógica da acumulação e reificação da racionalidade por meio do controle da mídia de massa, produzindo como consequência uma espécie de agregação massiva de imagens que reforçam o consumo e aceleram a própria acumulação.
Para desmantelar o sistema padronizador e a produção industrial em massa é necessário conciliar dois pontos radicais: os meios de relações sociais e as formas de alimentação e produção dos itens necessários. É claro que, para construir um jardim planetário, é necessário promover formas não hierárquicas de relações sociais que se propagam organicamente como uma rede de constelações de peculiaridades. Ou seja, como um conjunto de comunidades ou agrupamentos semelhantes a bandos tribais.
A base de um sistema de alimentação deve ser a horticultura e a permacultura, praticada em parcelas comunitárias autossustentáveis e mantida única e exclusivamente para a satisfação local e imediata da comunidade (não para venda, nem para acúmulo de bens ou dinheiro). Nem é preciso dizer que ninguém deve regulamentar o trabalho do outro e que todas as decisões devem ser tomadas em grupo. A responsabilidade é um ato consciente de solidariedade. O tempo de lazer deve ser muito valorizado, assim como a capacidade de apreciar a natureza e o universo, que são, afinal, fontes de energia vital. Com efeito, o coração do planeta e do cosmos merece ser celebrado no dia a dia e também no coletivo. Desta forma, o lazer, a estética e a vida social podem ser entrelaçadas fora de toda hierarquia, construindo uma política baseada na celebração e na convivência carnavalesca e ritualística.
O consumo pode ser mediado por meio de uma espécie de cooperativa na qual os associados contribuem como podem. Obviamente, no jardim planetário não haverá dinheiro ou qualquer tipo de negociação comercial que irá alimentar o valor da troca. No entanto, a produção de artigos manufaturados é inevitável. Nós, seres humanos, manipulamos e fabricamos ferramentas. Essa é a natureza do nosso polegar opositor. Era assim no Paleolítico e é assim hoje. A função de nossa capacidade de agarrar objetos e criar beleza é representada em duas práticas vitais: a coleta de alimentos e a partilha do amor quando damos e recebemos carícias. Nesse sentido, a utilização de tecnologia apropriada independente dos processos de produção industrial em massa pode ser chave na hora da sobrevivência. Engenharia baseada no coração humano, como bicicletas ou energia eólica ou solar são alternativas concretas à poluição industrial. Se a vida social for visualizada em comunidades abertas - no contato diário com a natureza - o risco de reificação se dissipa. A natureza não apenas cuida de nós, mas também nos liberta e nos torna saudáveis, ajudando-nos a evitar as armadilhas da alienação.
A palavra floresta vem do latim “foris”, que significa “portal para o ar livre”. A desdomesticação implica o abandono da domus para ir profundamente ao ar livre - na selva ou na floresta. Esse abandono é a quintessência de toda libertação. Assim, cruzar a soleira da imobilidade significa quebrar as portas da domus e varrer todas as calçadas, eliminando o concreto. Também requer nos desfazer de tudo o que nos amarra ao poste da civilização, e que não apenas nega a animalidade humana, mas também nega sua natureza doadora de prazer e rebelde.
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John Trudell propõe a distinção entre autoridade e poder para aludir, por um lado, à natureza do sistema padronizador corporificado na civilização e suas práticas domesticadoras, e, por outro, à capacidade de resistência contra esse sistema. Na verdade, toda prática autoritária tem suas raízes na noção de autoridade, que nada mais é do que o exercício do poder para subordinar e forçar a obediência à hierarquia. O poder é um meio de repressão que perpetra o autoritarismo.
A autoridade submete por meio do poder. Portanto, o poder autoritário nada mais é do que a força que ilusoriamente tenta utilizar a energia vital contra a vida. Autoridade carece de poder, mas utiliza força. O poder, por outro lado, pode ser autoritário ou libertador.
A estrutura de poder perpetua a autoridade e neutraliza irremediavelmente os controles, os doma e os corrompe. Por causa disso, a resistência contra o poder usando os mesmos mecanismos do poder pode ser desastrosa para os movimentos de resistência. Esta tem sido a história verdadeira e triste das revoluções nacionais de independência política, social ou econômica. Autoridade e poder estão presos em um círculo vicioso que enreda todas as tentativas de passar ao ar livre. Curiosamente, na corrupção do poder e na perda da autoridade está a força da energia. A corrupção do poder permite que a resistência rompa a cerca desconcertante da autoridade, que se materializa por meio da arbitrariedade do discurso, das leis e das regras. Sua falta de consistência é sua fraqueza. Por causa disso, em uma sociedade liberada, o exercício da autoridade social deve ser evitado a todo custo. Qualquer punição ou sentença que culmina em prisão e privação de liberdade de um indivíduo tende a construir novamente aquela cerca autoritária que o sistema padronizador aperfeiçoou por meio de suas técnicas repressivas ultrassofisticadas e da qual se originou a sociedade panóptica de controle atual.
Nas comunidades - ou constelações de peculiaridades - dispersas ao ar livre, o poder se dissipa em força, tornando-se meio de ação e mobilidade. É a energia ou matéria escura que, segundo a física quântica, não emite nenhum tipo de radiação e se distribui de maneira semelhante à matéria visível - cada um sabendo da presença do outro. Poder e autoridade são inúteis em face dessa força de energia cósmica. O dilema consiste em não reproduzir a lógica dominante. Assim, o ostracismo é uma defesa coletiva que não prejudica a integridade da livre criação de constelações de peculiaridades. A decisão de expulsar por um período ou permanentemente - no caso de conflitos insolúveis - um membro da comunidade é muito mais saudável e menos ameaçadora para a práxis vital do que qualquer outro tipo de punição. Há um contraste óbvio entre ostracismo e a aberração das execuções - uma prática institucional horrível de extermínio, genocídio e repressão.
Os meios de ação e mobilidade em que se situa a força energética vêm da vitalidade que emana do planeta e dos seres vivos. Sua fonte é a mesma natureza que mantém todas as criaturas que habitam o jardim terrestre. É, além do mais, uma energia magnética, concentrada e indestrutível, e pode desmantelar a autoridade e a estrutura de poder sem grande esforço. Da mesma forma, pensar no sistema como algo poderoso é ridículo. A capacidade de depor está em nosso espírito. E nem mesmo todo o seu aparato técnico de intimidação, controle e morte pode impedir a avalanche de força energizante quando ela irrompe. Este é o verdadeiro poder humano. É desnecessário dizer que antes que a vida neste planeta seja extinta por meio da poluição e da irresponsabilidade do modelo autodestrutivo atual, todos os vestígios humanos - e certamente a própria civilização - desaparecerão da face da terra. Isso acontecerá inexoravelmente se não corrigirmos com absoluta urgência a direção sinistra atribuída pelo leme da padronização. Caso contrário, nada restará, exceto um par de crânios em cujos molares será encontrada uma natureza herbívora com um passado carnívoro.
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Não ser civilizado significa estar fora da padronização. Por exemplo, pronunciar uma palavra erroneamente de acordo com o dicionário, em oposição ao bom senso e ao ritmo fonético da língua, ou ir contra o uso dado de uma comunidade linguística particular é jogar uma pedra no tirânico ponteiro dos minutos da uniformidade. A televisão foi, nos últimos quarenta anos, o sinistro veículo de padronização. Não só impôs uma forma de falar, mas também de ver e de sonhar. Não civilizar a si mesmo significa romper com a homogeneidade mediocrática. Para se libertar é preciso apreender a unicidade de cada um, o que constitui a peculiaridade inata do ser. A pobreza do progresso é um produto da auto-padronização. Ideologicamente, auto-padronização significa aprender com sucesso o treinamento moderno para pensar durante todo o curso de uma vida em termos lineares e progressivos.
Essa visão do tempo, que determina a percepção moderna da realidade, faz com que cada sujeito viva a vida de acordo com metas planejadas e promessas que nunca acabam acontecendo. Isso gera ansiedade: o primeiro passo em direção à alienação e ao vazio pós-moderno que se lança no abismo do absurdo. Outra forma de auto-padronização é internalizar o controle do poder autoritário por meio de um comportamento paranóico e auto-repressivo. Isso reforça a autocensura e nega a espontaneidade, classificando-a como nociva e inconveniente. Em contrapartida, oferece a improvisação, que é uma conduta que não pondera os efeitos da ação humana sobre o planeta e todos os demais seres vivos, negando assim a eterna inalação e exalação do ritmo da vida. “Selvageria” é libertar-se da pobreza do progresso, que nada mais é do que a mistura simbiótica de "progresso", a marca registrada do produto civilizador, cujo carimbo postal e código de barras foram carimbados no escritório de padronização. A “selvageria” é, entre outras coisas, a única riqueza possível, porque transborda de paz, é abundante no tempo e tem vida e espontaneidade de sobra. A selvageria enriquece o espírito.
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O mundo é a projeção da consciência; um mundo sem consciência é unidimensional. A máquina padronizadora tende a homogeneizar a consciência na tentativa de eliminá-la.
O autômato carece de consciência porque carece de realidade. Quando todas as consciências projetam suas peculiaridades na realidade, a noção e a sensação do mundo são criadas. Dado que a linguagem configura a consciência, a consciência se projeta por meio da linguagem. A importância da linguagem reside em sua capacidade de construir o mundo, bem como em seu talento para verbalizar a experiência. Assim, é inútil argumentar contra a linguística generativa, que preconiza uma “estrutura profunda” em todas as línguas para comprovar a existência de um mecanismo inato no cérebro humano que permite a cada sujeito aprender línguas e criar neologismos. Se a linguagem é inata ou não, não tem relevância. O importante é que por meio da linguagem o sujeito pode se libertar, pois assim consegue verbalizar e construir sua experiência de acordo com sua imagem de mundo. Este texto é prova suficiente disso. Outros textos que o refutarão também são prova. O oposto seria mudez, censura, silenciamento, perseguição e prisão, prova suficiente de que a verdadeira linguagem desafia o controle.
Quando a máquina padronizadora entra em ação, ela impõe uma linguagem sem sentido - a novilíngua orwelliana - e uma consciência e um mundo irreal. Nessa realidade padronizada, a linguagem, assim como a consciência e o mundo, parecem ser entidades alienantes e reflexos da padronização. Essa é a armadilha preparada pela ideologia. Seu objetivo é nos manter tensos, nervosos e inseguros, bem como nos negar o amor e a esperança. Assim, eles atingirão seu objetivo se nos mantiverem mudos e incapazes de articular nossa experiência. A autocensura e a língua emaranhada, que tropeça em sua ineloquência, têm origem na ação de controle.
As palavras podem ser sérias - e também mágicas - porque concentram a energia que permite o movimento do mundo, como o vento que dança nas folhas das árvores. Isso é arte e poesia - a dança da paisagem que ilumina nossos olhos e a nós mesmos quando dançamos na folhagem.
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Se a identidade separa o sujeito de outros sujeitos e da natureza, a consciência o reconecta. Claramente, sem consciência, não há mudança possível. Clareza e bom senso são atos de consciência porque permitem uma compreensão da própria existência dentro da estrutura da totalidade da vida. A consciência alimenta a imaginação que opera sob processos criativos. A inteligência, por outro lado, atua de forma racional na medida em que armazena dados, processa informações, estabelece associações, é autoconsciente, problematiza e dá respostas. Também se adapta, questiona e fantasia. A fantasia é o produto de um tipo peculiar de criação: Alice no País das Maravilhas, por exemplo. A imaginação, no entanto, abre as possibilidades para o eterno leque da criação.
A consciência também pode ser autodestrutiva e levar ao suicídio. O fim da vida por ação própria só é possível por meio de um ato de consciência. É, segundo Albert Camus, um ato de liberdade absoluta. Isso geralmente ocorre quando a consciência é paralisada pela ação padronizadora que dispersa a imaginação. Quando a consciência não imagina - que é, afinal, como ela se expressa - ela se autodestrói. A manifestação estética do ser é impossível quando a imaginação é anulada.
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Os aparelhos tecnológicos parecem neutros. Mas, na realidade, não são porque têm um propósito. Com efeito, se forem usados, causam um impacto indelével na consciência. Assim, também tornam o usuário dependente: dominado, cretinizado, infantilizado e amarrado ao jogo da alienação. No entanto, se os aparelhos não forem usados, eles se deterioram, enferrujam, ficam infestados de formigas ou simplesmente desaparecem da consciência. Em um sentido semelhante, todos os artefatos tecnológicos dividem os humanos em usuários e não usuários. Aqueles que defendem seu uso não hesitarão em usar suas armas tecnológicas de destruição e guerra para dominar aqueles que não têm contato com a tecnologia. É assim que tem sido e é assim que é agora.
A tecnologia também se divide por meio de seu efeito domesticador. As pessoas trabalham para comprar aparelhos eletrônicos ou outros artigos que promovam a tecnologia, ou simplesmente para ter acesso aos serviços oferecidos pela tecnologia que geralmente prometem entretenimento ou conforto, bem como maior capacidade para realizar determinadas ações (voar, por exemplo, de um continente para outro, colar documentos em um processador de texto, usar uma câmera de vídeo para registrar eventos diários ou documentar e denunciar a brutalidade policial). A tecnologia media as relações humanas. Leva à loucura, isola ou conecta, dando uma referência cultural comum a muitas pessoas que falam, vivem e se comunicam por meio da cultura tecnológica. Desse modo, a realidade e o mundo se homogeneizam de acordo com os diferentes programas da agenda padronizadora.
Essa uniformidade é reforçada pelo corte raso de florestas, construção de shoppings, discriminação racial e assim por diante. A tecnologia intervém em todos esses processos, o que não seria possível sem a destruição acelerada do meio ambiente. Isso parece indiscutível: tecnologia é um aparelho que se usa, se joga fora, se esquece ou ao qual nunca se tem acesso. A tecnologia aliena. A tecnologia consome e media a vida humana. Mas a tecnologia também é uma forma de aproximação da realidade filtrada por um módulo mental funcional que surge na ideologia. Essa é a razão tecnológica.
A peneira que separa o sujeito de seu entorno e rompe o casulo da consciência constrói a racionalidade humana. A estagnação da razão em suas práticas instrumentais desenvolve o filtro tecnológico. E isso petrifica a consciência. A consciência tem um efeito imediato que afeta outras consciências, produzindo uma consciência geral ou social. Desse modo, não há consciências isoladas, pois quando uma interage com a outra, a consciência de ambas se modifica, alterando, ao mesmo tempo, a consciência global.
A razão tecnológica fez com que a consciência começasse a se padronizar, padronizando tudo simultaneamente. Para se auto-peculiarizar - e também peculiarizar tudo - e para criar uma melhor compreensão da totalidade e do self, é necessário direcionar a consciência para a razão estética. Em uma realidade estética, todas as possibilidades da imaginação se abririam e a consciência social seria criada de uma forma distinta da forma cega e desconcertante como é estimulada pela sociedade de massa. Isso levaria ao restabelecimento das relações sociais por meio do raciocínio lógico e analógico que já existe em todas as peculiaridades da natureza. Para tanto, é fundamental darmos rédea solta ao nosso ser e deixá-lo se expressar no presente perene como uma simples expressão estética. Cada peculiaridade brilha com sua própria luz em seu encontro com todos os outros seres que se conectam com tudo e com a vida.
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Todas as criaturas vivas têm impacto na natureza, incluindo as plantas e árvores, que se calam diante da noite e do dia pendular. As formigas não afetam apenas a natureza, também afetam os humanos. Das 7.600 espécies classificadas, um pequeno número causa uma infinidade de danos tanto pela mordida, mastigação e invasão do habitat humano quanto pela perfuração de jardins, desfolhamento de árvores e plantas, destruição de construções, tecidos, madeira, instalações elétricas, eletrodomésticos e etc.
As formigas escravizam outros insetos e atacam violentamente seus inimigos. Cada formigueiro funciona coletivamente - as formigas trabalham em harmonia, alimentando a formiga rainha e defendendo-a contra a agressão estrangeira. A natureza guerreira das formigas é o produto de uma estrutura organizacional altamente sofisticada que as faz ir tão longe a ponto de travar guerras contra outros formigueiros. No decorrer da guerra das formigas, as formigas operárias abrem caminhos para permitir a passagem das formigas-soldado, enquanto as formigas-soldado levantam galhos e gravetos que interrompem a fuga ou o retorno triunfal com cupins ou outras criaturas que as formigas armazenam como alimento ou fonte de energia para o inverno (quando as formigas hibernam). Algumas espécies de formigas soldados possuem um tamanho corporal superior ao do resto da colônia, o que provoca uma divisão clara de funções e tarefas.
O sistema de castas é tremendamente inflexível e eficientemente rígido. Não há mobilidade. Desse modo, a hierarquia começa com a formiga-mãe, cujo matriarcado domina as operárias e os soldados. As formigas menores e mais ágeis são normalmente as operárias e elas fazem a maior parte do trabalho. Em geral, as operárias são fêmeas atrofiadas que, por vezes, crescem mandíbulas maiores que o normal e também se dedicam à defesa do formigueiro.
As formigas surgiram no período Cretáceo, há mais ou menos cem milhões de anos. Elas habitam todos os continentes nas mais diversas condições climáticas. Elas são essencialmente insetos sociais e se comunicam com as outras formigas usando feromônios. Essa forma de comunicação - ou transferência de informações - que funciona como a linguagem, é realizada por meio do atrito de suas antenas ou da troca de comida ou outros objetos. O toque é muito importante, visto que a visão das formigas é limitada. Sua visão não atinge mais do que alguns centímetros, mas seu olfato é altamente desenvolvido. Segundo entomologistas, o vocabulário das formigas compreende até dez ou vinte signos químicos (os feromônios). Usando esses sinais, as formigas são capazes de distinguir as castas de suas companheiras, alertar sobre o perigo, conduzir de um lugar para outro, manter a unidade da colônia e reconhecer inimigos, alimentos ou situações inesperadas. Muitas colônias de formigas vivem em ninhos feitos de terra ou madeira. Desta forma, eles se protegem de seus inimigos e das inclemências do tempo. Além do mais, as formigas armazenam alimentos e outros recursos energéticos, por exemplo, outros insetos que elas capturam e mantêm em cativeiro.
Thomas Belt estudou um tipo de formiga na Nicarágua que saqueia completamente as plantações de café e os laranjais. Outras formigas fermentam as folhas e prendem os pulgões em currais. Esta prática é a característica definidora de sua civilização. Segundo Belt, “algumas [formigas] ficam encarregadas de cortar os pedaços das folhas com suas mandíbulas em forma de tesoura, enquanto outras no solo transportam os fragmentos das folhas para o formigueiro. Mas esses fragmentos de folhas não são alimento para as formigas; em vez disso, eles os deixam apodrecer e fermentar para formar uma base fértil na qual inserem cuidadosamente pedaços de fibras de micélio. Assim, eles cultivam os cogumelos que as alimentam. Mas ainda mais surpreendente é o caso das chamadas formigas rancheiras. Cuidam e protegem as populações de pulgões para que se reproduzam em ritmos vertiginosos até cobrir inteiramente as plantas às quais se fixaram. As formigas acariciam e alvoroçam os pulgões e são recompensadas com um líquido doce que é, para as formigas, uma iguaria deliciosa. Às vezes, eles até constroem pequenos currais na colônia de formigas, onde engordam os pulgões e suas crias, que elas observam com muito cuidado”. Esta prática é muito semelhante à civilização humana.
As formigas são predatórias. Pragas de formigas, por exemplo, atacarão qualquer organismo vivo que encontrarem em seu caminho. As formigas de fogo atacam e matam outros insetos ou pequenos animais e tendem a se alimentar de animais mortos. Existem outras formigas que são nômades e habitam o deserto. Na floresta, são encontradas espécies de formigas jardineiras. Na verdade, metade das florestas do continente americano foram plantadas por essas formigas. Elas protegem certas plantas e árvores de certos insetos e doenças prejudiciais. Às margens do rio Amazonas, por exemplo, os chamados jardins suspensos nos galhos das árvores nada mais são do que uma maravilha natural criada inteiramente por formigas jardineiras, que transportam folhas e flores até os galhos e troncos mais altos para construir seus ninhos. Esta modificação da paisagem tem, sem dúvida, um impacto positivo na natureza.
O domus das formigas é conhecido como formigueiro. Centenas de milhares de formigas podem viver ali. No entanto, quando duas delas se encontram, elas só precisam tocar em suas antenas para se identificarem. As formigas acumulam ovos, que as formigas férteis colocam em um local designado dentro do formigueiro. Algumas operárias atuam como babás, alimentando larvas que se cobrem de seda para se transformarem em ninfas e terminarem seu desenvolvimento em completa imobilidade. Quando as ninfas saem de seus casulos, já são formigas totalmente formadas que em poucas horas irão ingressar no trabalho comum e social da colônia. Os formigueiros são formados por túneis e passagens que se comunicam, indicando uma consciência arquitetônica que lembra as cidades humanas. Se o formigueiro for encontrado em zonas áridas, algumas formigas se sacrificam na estação das chuvas, inchando-se com a água. Assim, elas mantêm - por meses, até um ano - as necessidades de água da comunidade. Se seus companheiros vão em busca de água, eles próprios a servem delicadamente, boca a boca.
Em uma conferência realizada em agosto de 2001 na África do Sul, o antropólogo Richard Leakey apontou que o mundo está sofrendo com a perda de cerca de cinquenta a cem mil espécies todos os anos devido à atividade humana, o que põe seriamente em risco o equilíbrio do ecossistema planetário. Essa extinção em massa é comparável à que afetou os dinossauros há 65 milhões de anos. Claramente, todas as criaturas vivas têm um impacto na natureza, mas o impacto da civilização humana no planeta é altamente destrutivo. Calcula-se que o peso das formigas no planeta é igual ao peso dos seis bilhões de humanos que também habitam a Terra. Mas o impacto da civilização humana é radicalmente distinto do efeito que as formigas produzem. Na verdade, se os seres humanos desapareceram do planeta neste momento, é provável que as formigas e muitas outras espécies que são exterminadas todos os anos sobrevivam.
Por outro lado, se as formigas desaparecessem, a vida na terra não seria possível. A atividade das formigas é essencial para a saúde do planeta. Eles não apenas trabalham e arejam o solo, mas também o movem e fertilizam, desempenhando um papel ainda mais importante do que as minhocas. As formigas podem mover até vinte toneladas de solo durante toda a vida de uma colônia. Em contraste, os efeitos insanos, destrutivos e contaminantes de uma única cidade em sua vida total ainda são incomensuráveis.
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Os cupins - também conhecidos como formigas brancas - são os inimigos mortais das formigas. As formigas os capturam e mantêm uma guerra até a morte contra eles. Ambas as espécies competem pelo mesmo espaço vital. Os cupins roem madeira e outros materiais orgânicos. As formigas podem ser carnívoras e até comerem outras de sua espécie, se houver necessidade. Durante o verão, as formigas armazenam grãos e sementes como provisões de inverno.
Os cupins descendem de uma família distinta da das formigas (os cupins são parentes distantes da barata), mas possuem um sistema de organização social muito semelhante ao de seus inimigos. Ambas as espécies constroem ninhos para habitar e desenvolver modos de vida social, modificando a natureza. Algumas espécies de formigas constroem seus ninhos em troncos de árvores, outras juntando e dobrando folhas para viver dentro. A maioria das formigas escava o solo para formar galerias e salas perfeitamente organizadas. Esta é a terra modificada onde elas criam sua civilização. Os cupins também constroem suas colônias - que são semelhantes aos domos isotópicos - em vigas ou no solo. As colônias de cupins no solo são outeiros que podem atingir grandes alturas e assumir formas que estimulam a imaginação. Na verdade, as colônias de cupins parecem desenhos artificiais que nos fazem perceber que a melhor arte paisagística se encontra na própria natureza. Basta aprender a olhar.
Isso apaga a linha divisória entre o mundo e a arte, uma linha criada desde cedo pela instrumentalização ideológica e suas metodologias taxonômicas. A natureza é estética em si mesma.
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Vamos especular por um momento. Além da hipótese atual sobre a extinção dos neandertais como uma linhagem separada dos sapiens há cerca de trinta mil anos, existem duas outras hipóteses. Uma delas argumenta que, na realidade, houve um processo de miscigenação entre os neandertais e os sapiens, o que significaria um desaparecimento gradual dos neandertais devido a um lento hibridismo hegemonizado pelos sapiens. A outra hipótese, um pouco menos otimista, argumenta que os neandertais desapareceram quando lhes foi negado o acesso aos seus territórios tradicionais de caça e coleta. É possível que ambas as hipóteses estejam corretas. Nos dias de hoje é quase impossível sustentar posições de pureza racial ou evolutiva das espécies humanóides que um dia habitaram o planeta e que, ao que parece, apareceram com o Australopithecus, que apareceu há cinco milhões de anos na África. É lógico pensar então que os seres humanos estão completamente misturados.
O rosto de uma criança de Neandertal, recriado como um modelo de computador pelos paleoantropólogos Marcia Ponce de Leon e Christoph Zollikofer da Universidade de Zurique, ilumina alguns fatos sobre essa espécie humanóide que supostamente habitou o norte da Europa, o Oriente Próximo, Ásia Central e, com toda a probabilidade, a Sibéria Ocidental. As mandíbulas dos neandertais - que quase não tinham queixo e dentes molares fortes, bem equipados para rasgar carne e moer raízes - demonstram que a dieta desses humanóides era carnívora. É provável que, devido às suas características maxilofaciais, não possuíssem uma linguagem verbal rica, mas possuíam outras formas de comunicação, além de rituais espirituais e artísticos. Em contraste com as formigas e cupins, que mantêm uma guerra implacável, ou outras espécies beligerantes como varejeira, que deixam de sugar o néctar das flores e polinizar em favor de atacar as abelhas e comer flores, é bem possível que de fato houvesse uma espécie de hibridismo entre sapiens e neandertais.
Também é possível que essa primeira mistura tenha provocado uma transformação genética que criou um novo grupo de seres híbridos que não só adotaram a dieta carnívora como forma de subsistência, mas também desempenharam um papel crucial na mudança para a agricultura. Sabemos que isso significou sedentarismo e domesticação, processos que posteriormente se desdobraram em todas as formas homogeneizantes de organização da vida coletiva. E embora os seres humanos sejam seres sociais, também precisamos de solidão e lazer.
Em contraste com as formigas e cupins, o mundo humano não é construído apenas em relação ao trabalho. Nem gastamos todo o nosso tempo em busca de comida. Em vez disso, às vezes descansamos, rimos ou brincamos. Precisamos de diversão, folga e ociosidade. No mundo dos himenópteros, ao contrário, o rígido sistema de castas garante que cada membro ativo da colônia esteja sempre executando sua tarefa: a rainha-mãe (como a máquina-mãe), as operárias, os soldados e os escravos.
Este sistema ultra-hierárquico de organização social carece de imaginação. E as sociedades inflexíveis e eficientes de padronização se aproximam dele, garantindo que o trabalho atribuído a cada membro mantenha a vida das engrenagens tremendas e incompreensíveis. Lá a máquina-mãe incuba seus ovos e o sistema se perpetua.
Por esse motivo, slogans como “O poder da imaginação”, “Imagine o impossível” ou a máxima einsteiniana “A imaginação é mais importante do que o conhecimento” mantêm sua validade mesmo enquanto a repressão ideológica e o painel de controle continuam dominando a raça humana. Embora, claramente, isso seja pura especulação.
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O jardim burguês se expandiu como uma praga sob o colonialismo. É bonito, mas falso. Os cenários instalados pela civilização, por mais artísticos que sejam, carecem de realidade. Requerem espaço e a erradicação de espécies indesejáveis, transformando o mundo vivo em um pano de fundo sobre o qual o jardim pode ser imposto instantaneamente, como uma Polaroid.
O jardim civilizador escraviza, atormenta e, mais cedo ou mais tarde, morrerá. Isso porque o jardim burguês padroniza o terreno, ao invés de desdobrá-lo para ter um espaço aberto e horizontal. Além do mais, seu objetivo é o luxo, negligenciando o jardim comestível e autossustentável.
O jardim burguês é cercado. Além disso, pela ilusão de iluminar o espaço civilizado, mata a noite. O jardim de peculiaridades desterritorializa e derruba hierarquias. Essa é a sua natureza. Permite que o jardim cresça, de forma orgânica, sob o conceito de reconhecimento mútuo entre o jardineiro e o jardim. Não tenta controlar a paisagem tornando-a uniforme.
Ao contrário, trata-se de aprender a conviver com a natureza e em meio à natureza, orientando o efeito humano mais para a prática estética do que para a padronização. Essa lição começa reconhecendo a alteridade da natureza como nossa própria alteridade. Só assim é possível dissipar o ego entre a folhagem sempre crescente em busca de abrigo em vez de conquista.
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A noção de peculiaridade se opõe à padronização e ao dualismo. A padronização nivela e apaga a biodiversidade. Nas palavras de César Vallejo, é o “lomismo [mesmice] que carece de nome”. O dualismo por si só sustentou a genealogia do pensamento cognitivo que construiu disciplinas e metodologias por meio da oposição de termos que são aparentemente contraditórios ou equidistantemente opostos entre si: A ou B, bom ou mau, claro ou escuro, concreto ou abstrato, geral ou particular, burguês ou proletário, bárbaro ou civilizado, etc.
Na verdade, o papel do dualismo é simplificar, embora nenhuma de suas oposições possa ser considerada completamente verdadeira, uma vez que são meras representações abstratas de pedaços da realidade e da natureza. Da mesma forma, não há oposições mais radicais que outras, ou menos radicais, visto que o próprio procedimento racional é um erro desde o início. O que existe são oposições mais claras do que outras, porque nos ajudam a compreender completamente certos processos relativamente complexos.
Pelo exposto e seguindo o modelo dualista lacaniano, que contrapõe o imaginário ao simbólico, ou seja, o mundo não estruturado de uma criança que projeta imagens sobre a realidade - que é um universo libertado e ainda não estruturado pelo processo formal de repressão simbólica - é possível distinguir o seguinte caminho. Os símbolos decorrem do simbólico, cuja órbita inclui a ordem civilizada - a gramática patriarcal imposta pela sociedade. Seguindo esse paralelo, as imagens derivam do imaginário, a projeção da interioridade no mundo. Assim, as imagens levam à imaginação e os símbolos levam à simbolização, que por sua vez se manifesta nos ritos. O ritual instrumentaliza a natureza, a fim de dominá-la por meio da magia ou da representação. Essa instrumentalidade é funcional e coercitiva porque estrutura e manipula. Com efeito, os diferentes instrumentos do simbólico tendem a representar a realidade em vez de permitir que ela seja totalmente compreendida. As imagens, por outro lado, criam as percepções do mundo que são expressas culturalmente por meio da cultura estética e subjacente. Quando isso ocorre, o ser se manifesta esteticamente e desdobra todas as suas peculiaridades. Porém, a instrumentalização traz a padronização, que esconde em suas entranhas uma batida controladora que tudo categoriza por meio das variadas metodologias de classificação taxonômica. Este processo de padronização produz fetiche, que nada mais é do que uma falsa consciência da realidade. Esse fundamento da falsa consciência é tanto a espetacularização da vida quanto a alienação.
Existem dois tipos distintos de insanidade. Um é material e reduz a vida à sobrevivência econômica. O outro é ideológico e gera desumanização e robotização do sujeito. Sob o feitiço do automatismo, o ser humano se separa da natureza e de sua condição natural. Com peculiaridade, cria-se a consciência, re-humanizando e reconectando integralmente o ser humano consigo mesmo e com a natureza. A consciência não é inteligência nem conhecimento. É o reconhecimento do outro, e o reconhecimento de que a relação com o outro não existe apenas em termos dialéticos exclusivos, hegelianos, do senhor e do escravo. O reconhecimento também pode ser inclusivo. A consciência permite a coexistência baseada no respeito mútuo e no reconhecimento recíproco dos outros, que são nada menos que nossos homólogos: o meio ambiente e as criaturas que o habitam e que constituem a totalidade. A convivência só é possível por meio de uma compreensão correspondente da peculiaridade de todos os seres, a fim de estabelecer uma empatia radical pelo direito de todos os seres à vida.
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A imagem que nossa inferioridade projeta no mundo mantém seu caráter estético. A imagem refletida reforça o processo de reificação. Por si mesmas, todas as imagens que nos separam nos alienam. Cada imagem é um ato de reificação, visto que essas imagens representam a realidade, estabelecendo uma mediação entre os seres humanos e entre o sujeito e o entorno natural. Essa mediação substitui a realidade. Quando a criança pré-histórica viu seu próprio rosto no reflexo da água - em um lago, uma piscina ou no gelo - ela não viu nada além de uma imagem. Essa equação a levou a se identificar com o que estava vendo, despertando assim a noção de identidade. Essa noção levou à separação entre o indivíduo e a natureza e alimentou a fratura entre o sujeito e o objeto - o fundamento da consciência humana. Desta maneira, a consciência dá origem à alienação e torna-se metaconsciência: autorreflexão sobre si mesma. Porém, sem consciência auto-reflexiva, o ser humano fica indefeso contra o controle imperial da padronização e da máquina de propaganda que falsifica a realidade e fabrica uma consciência falsa e ideológica.
A alienação industrial moderna funciona negando o presente e forçando o sujeito a viver em uma espécie de realidade virtual que atende pelo nome de “futuro”. A mentalidade moderna é caracterizada pelo planejamento para o futuro. Essa noção penetra a mente humana como uma barra de aço que atravessa uma fila de indivíduos que trabalham na linha de montagem. O horizonte do futuro é vivido como um tempo ilimitado que avança progressivamente numa raça cega sem sentido nem fim. Para a mentalidade religiosa pré-moderna, o futuro é finito e termina no juízo final ou na ascensão do crente a qualquer paraíso que venha a ser promovido por uma narrativa mítico-religiosa particular. Desse modo, tanto o moderno quanto o pré-moderno fixam uma temporalidade que está fora do presente perpétuo, inscrevendo assim a mentalidade humana no campo da domesticação. Experimentar o presente, no aqui e agora, leva a um estado pré-doméstico e se revolta contra as ideias de planejamento e desenvolvimento. A noção de futuro é, portanto, uma imagem que reflete a ideologia. E não é mistério para ninguém que a fruição do futuro habite a arena do impossível, embora sua chegada possa ser inevitável.
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A diferença homogeneíza e uniformiza a experiência em dois blocos supostamente diferentes. Isso faz parte do dualismo. Beta é diferente de alfa e vice-versa. De acordo com essa prática binomial, a diferença determina a identidade. Mas essa é a armadilha da categorização, uma estratégia do império padronizador. Compreender a identidade dessa maneira é concebê-la em termos beligerantes, antagônicos e opostos. Assim, a peculiaridade de cada ser é negada. Cada criatura é peculiar e diferente de todas as outras criaturas, que são peculiares e diferentes entre si. A diferença reduz a identidade a apenas dois blocos de identificação: alfa ou beta, gama ou épsilon ou qualquer outro par. A peculiaridade do binário auto desata-se e amplia nossa consciência auto-reflexiva, a ponte necessária para compreender a experiência do ser na totalidade. Essa compreensão requer necessariamente uma "nova humanidade". Este é o “novo mundo” que construímos cada vez que nos desligamos das máquinas padronizadoras e vivemos nossas vidas de uma forma diferente e mais natural para nos desalienarmos e nos curarmos da doença da ideologia, injetada pela seringa de propaganda. E a diferença é mais uma armadilha de propaganda.
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Barbara Ehrenreich propõe que as guerras, como o sacrifício ritual, são práticas celebratórias que reconstroem a transição do animal humano de presa para predador. Pode ser que a violência humana seja a memória residual da experiência reprimida de ter sido uma presa, nosso lugar original na cadeia alimentar. Por meio da socialização e da cooperação, os bandos primitivos conseguiram sobreviver aos ataques de predadores. Não obstante, os mais fracos, lentos e indefesos foram abandonados pelo bem de todo o clã primitivo. Assim que os membros mais jovens e saudáveis puderam fugir, os animais fizeram uma festa, devorando os que ficaram para trás. Isso despertou uma sensação de perigo e terror que engendrou a consciência da morte. A sociabilidade foi um primeiro passo para a sobrevivência, dando origem a sentimentos de solidariedade e cooperação comunitária. A experiência de ser presa é anterior à de ser caçador. Foi apenas a fabricação de ferramentas e sua manipulação que permitiu aos humanos caçar outros animais para alimentação e autodefesa. Dessa forma, eles também aprimoraram as práticas de domesticação. O cão, por exemplo, foi domesticado principalmente como um animal para a caça. É provável, entretanto, que os humanos tenham se engajado primeiro na carniçaria, o que deu origem à prática carnívora. Com o trabalho e o polimento da pedra - a fabricação de ferramentas e armas para a caça - os seres humanos desviaram o curso da natureza e se converteram em predadores. Isso originou o pensamento guerreiro e, ao mesmo tempo, estabeleceu a base do desenvolvimento instrumental e evolutivo do raciocínio. Neste processo, os animais carnívoros eram vistos como divindades, representados muitas vezes em pinturas rupestres pré-históricas e ritos simbólicos. Essa representação está ligada à prática do sacrifício, que, por exemplo, os antigos gregos transformaram em hecatombes.
As guerras nada mais são do que ritos belicosos de sacrifício humano realizados em nome de “pais políticos” que projetaram a megamáquina padronizadora e entorpecente. As guerras revivem o horror de ser uma presa e estimulam a adrenalina de lutar ou fugir; enquanto isso, elas também aumentam o espírito de conquista do predador. Nas sociedades modernas, os antidepressivos suprimiram a adrenalina, reprimindo a capacidade de experimentar riscos e subjugando o instinto à frustração auto-repressiva e estressante. A megamáquina cretiniza a população, que se torna um grupo de indivíduos supérfluos facilmente manipulados por slogans nacionalistas, derivados talvez de um sentimento original socializante e arraigado. O militarismo leva os soldados a uma hecatombe moderna, cujo único efeito é o terror. Diante desse terror, subir em árvores para defendê-las, libertar animais de suas gaiolas, deixar cervos pastar em paz, organizar refeições comunitárias, abraçar amigos etc., são atos de amor que frustram a lógica da presa e do caçador. A guerra é a reconstituição material e simbólica da transição para a predação e se cristaliza na revivência “terrorista” do horror. O máximo respeito por todas as criaturas vivas é a única ética possível que pode se opor à agressão depredadora. A sobrevivência não se sustenta na arte de matar, na política ou na guerra. Pelo contrário, a cooperação responsável e a comunidade são essenciais para a convivência humana e planetária. Predação, terror e guerra são o tridente sanguíneo da razão instrumental, e sua lógica auto-racionalizadora é a tolice que aniquila a consciência e embebe a imaginação de medo. Para ampliar a consciência em detrimento do determinismo genético, é preciso banir o paradigma da presa-predador. A oposição à guerra é o primeiro passo.
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Segundo o pensamento anarco-primitivista, a divisão do trabalho produziu uma sequência reificadora que levou à construção do simbólico com todas as suas ramificações: numeração, arte, tecnologia, agricultura, linguagem, cultura etc. Portanto, o símbolo é a linha divisória entre a vida pré-histórica, cheia de vitalidade sensual, e a vida histórica atual, mediada pela reificação e delirando com a alienação. Segundo o marxismo, essa divisão foi produzida quando a sociedade foi estratificada em classes que foram cimentadas pela apropriação da terra e do conhecimento por um grupo de sacerdotes que desenrolaram o mapa da petrificação social em classes dominantes e dominadas: senhores e escravos, lordes e servos, burguês e proletário, etc. Em qualquer das interpretações, reconhece-se que houve uma fratura entre os tempos pré-históricos e históricos: primitivismo selvagem em contraste com a civilização e domesticação, ou comunismo primitivo em oposição à sociedade de classes e exploração social. A datação precisa dessa ruptura varia de acordo com a fonte antropológica consultada, bem como as perspectivas das diferentes agendas subscritas pelos crentes na “ciência”, mas é geralmente aceito que a adoção da agricultura foi o momento crucial na grande virada para vida sedentária, hierárquica e repressiva.
Não obstante, e apesar do consenso estabelecido, é muito mais provável que a “expulsão” do paraíso primitivo remonte a um momento anterior do que os dados geralmente sustentam. Foi aquele momento em que nós, seres humanos, começamos a nos distinguir da natureza: o ponto em que consciência, identidade e linguagem formaram o triângulo que simultaneamente nos separou do mundo natural e criou a noção de humanidade.
A consciência humana surge precisamente de sua separação da consciência maior da natureza e do cosmos, à qual animais, insetos, vegetais, ainda estão conectados. Nossa consciência nos separa da natureza, produzindo uma divisão inevitável. Surge de dois processos que têm a ver com identificação e verbalização. O primeiro refere-se à noção de identidade produzida pelo reconhecimento da própria morte. A consciência da própria mortalidade gera a ideia de um “eu” formado em oposição à identidade do outro: todos os outros, a natureza, o mundo animal etc. Essa oposição básica entre interioridade e exterioridade se torna compreensível por meio da verbalização. O sujeito enuncia - mental ou foneticamente - o “eu” em forma de signo, e leva à noção do externo e do outro - sou o que o outro não é. Isso começa na sujeição aos signos e sinais arbitrários que são representados a posteriori na forma de uma gramática e que tendem a revelar o sentido de um "eu" e um "não-eu", a base psicológica da projeção de si mesmo sobre a natureza. Esse processo de autocompreensão da identidade por meio da linguagem leva à experiência animista da natureza. Portanto, um espírito ou “ânima” que habita todos os elementos do mundo, pode ser percebido. É provável que nesse momento os humanos fossem coletores herbívoros, cujos processos de identificação e verbalização em desenvolvimento lento os levaram a iniciar práticas canibais, como uma ratificação ritual de suas identidades coletivas, que mais tarde foram transformadas em carnivorismo. Esta é a era da caça, pesca e coleta - além da mudança em nossa posição na cadeia alimentar.
O rito leva ao simbólico porque através dele surge o impulso de dominar os “poderes” da natureza. Isso acontece por meio das práticas cerimoniais que são codificadas em atos simbólicos de origem ritualística. No símbolo encontra-se o germe de todas as práticas reificantes que derivam do divórcio entre a apreciação da natureza e a convivência prática dentro da natureza. Essa separação favorece a instrumentalização do ambiente, cuja primeira manifestação se encontra na magia xamânica que aspira a modificar a natureza por meio do poder sobrenatural. O xamanismo é a prática da invocação do espírito dos elementos - percebidos na fase animista - para ordenar o curso da natureza de acordo com a vontade do xamã ou da bruxa. Assim, a instrumentalidade simbólica representa o mundo material da natureza, que, aos poucos, é substituído pelo próprio símbolo.
Os neandertais desenvolveram figuras e instrumentos musicais e de caça há trinta mil anos, pelo menos. E certos grupos aborígenes australianos desenvolveram ornamentos simbólicos há mais de cinquenta mil anos. Essa mediação por instrumentos simbólicos modificou o pensamento e impôs um módulo mental racional, lógico e funcional que se expandiu sem controle sobre o intuitivo e o estético. Essa razão instrumental gerou o pensamento tecnológico, que levou à categorização, base de toda prática padronizadora. Assim, a divisão do trabalho tornou-se mais complexa, dando origem às sociedades de classe e à civilização: a história. Arte, Estado, linguagem, economia, dinheiro, raças, tecnologia, colonização, etc. estão embutidos ali. Da mesma forma, a domesticação também começou sua realização final na história, tanto por meio da agricultura e da cultura simbólica quanto por meio da pecuária e da normatização da selva, que leva ao desmatamento. O lucro e a alienação modernos são formas de domesticação social em grande escala por meio da expansão da linha de produção. O instrumental, portanto, é a fonte de todas as entidades hierárquicas e categóricas, que nada mais são em si mesmas do que um conjunto de ideias sobre a realidade acumuladas ao longo do tempo. Essas são as ideias que constituem a ideologia do progresso e da história. Na verdade, essa ideologia alimentou o império da padronização e do pensamento dualista.
A noção do peculiar desmonta radicalmente o dualismo e a padronização, na medida em que permite ao ser humano se reconectar com o mundo natural por meio da apreciação e da interação estética com a natureza. Isso não só desmascara a falsa divisão entre arte e realidade que arranca toda a beleza da vida, mas também destrói a razão instrumental, que dá origem a todas as noções alienantes que perpetuam o simbólico. A valorização da natureza implica também sua defesa no curso de uma prática ativa de convivência orgânica. Isso inclui um respeito total por todas as criaturas vivas do planeta e uma coabitação social que garante a retribuição ritual de todo material primitivo extraído da terra e da floresta.
Começar hoje a cultivar o próprio sustento em hortas orgânicas que respeitem o ecossistema é uma necessidade vital. A vida em comunidade garante independência e autonomia do sistema corporativo e estatal.
A vida comunitária valoriza as relações pessoais sem mediação hierárquica ou burocrática e estimula o companheirismo e a irmandade com base no princípio da cooperação. Realizações disso foram alcançadas em diferentes comunidades ao redor do globo, como Christiania (Dinamarca), Aprovecho e Alpha Farm (ambos em Oregon, EUA), Solentiname (Nicarágua), Gaviotas (Colômbia), GAIA (Costa Rica), etc. Só na América do Norte existem cerca de quatro mil experimentos comunitários, sem contar as comunidades indígenas ancestrais das Américas que continuam resistindo à invasão colonizadora ocidental.
A solução geral no que diz respeito à agricultura industrial e monocultura é a permacultura, que não esbanja recursos naturais e permite modos de vida sustentáveis em harmonia com o meio ambiente e seus diversos microclimas. O planeta é uma constelação de microclimas ou peculiaridades meteorológicas onde o florescimento de comunidades humanas rotativas e móveis é possível. A noção de um clima ideal e exclusivo para a sobrevivência é um sofisma de padronização. Assim como os humanos são um gênero peculiar da natureza, também o são os climas, vales, montanhas, costas, florestas, planícies, etc. Sentir para compreender é uma tática de auto-sensibilização. A sensibilidade nos reconecta à terra e nos torna sábios. Viver em comunidade implica viver em harmonia com o solo que pisamos, o ar que respiramos, a brisa que nos limpa, a floresta que nos alimenta, a água que nos dá vida, etc.
Viver em comunidade é viver com outras pessoas. Mas também é viver dentro de um ambiente e clima peculiares. Sentir essa peculiaridade é garantir a sobrevivência.
A sabotagem contra a máquina infantilizante e contra o complexo agroindustrial - que lucra às custas da saúde do solo e das pessoas - também tem sido uma tática de autodefesa atual em algumas comunidades do planeta. A resistência à invasão de madeireiras e à construção de hidrelétricas tem sido o catalisador para uma nova consciência biocêntrica. Considere, por exemplo, os casos de comunidades Mapuche no sul do Chile e ativistas verdes no noroeste do Pacífico que literalmente vivem nas árvores - construindo plataformas na copa das árvores para bloquear o desmatamento de florestas antigas. Esses exemplos de integridade despertam a consciência adormecida reprimida pelo império da padronização. Quando essa consciência floresce, ela se opõe à agenda monetarista dos oligopólios, restabelecendo assim a imaginação e abrindo as portas para um novo mundo.
A consciência criativa do século XXI começou a se expressar em 1999 com a greve estudantil na Universidade Nacional Autônoma da Cidade do México e a luta em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio. Nesse mesmo ano, no dia 18 de junho, ocorreu um protesto anarquista em Eugene, Oregon. Enquanto isso, as ações camponesas, notadamente o ataque no sul da França a um restaurante fast-food e outro contra as empresas transnacionais produtoras de alimentos geneticamente modificados no Brasil, despertaram a consciência criativa ecossocial para uma gama maior de preocupações. Isso gerou um movimento de resistência que cresceu organicamente a cada protesto contra a chamada globalização, obrigando os agentes corporativos a se barricar dentro das cercas de proteção erguidas e guardadas pelos batalhões pretorianos do império padronizador. Isso aconteceu em Praga, em Quebec e em Gênova, e continuará acontecendo. É precisamente essa parede que isola o sistema e faz com que ele tombe com o seu próprio peso, levando à autodestruição. Assim, a destruição em 11 de setembro de 2001 dos pilares do capitalismo global, simbolizado pelo número onze que formava as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, abriu um rasgo irreparável na bolha de plástico do império da padronização. Este é o começo do fim e inaugura uma nova era na busca pela sabedoria ancestral encontrada no jardim de cada peculiaridade.
Com a chegada de Colombo ao continente “americano”, o empreendimento colonizador europeu iniciou sua marcha e, com ela, a padronização. Em quinhentos anos, 75% das plantas comestíveis nativas das Américas desapareceram - entre elas, muitos legumes com proteínas semelhantes às da soja. Como extensão do genocídio dos invasores, muitas plantas europeias foram transportadas para o continente, invadindo o solo e destruindo a biodiversidade dos ecossistemas nativos.
Na verdade, o conhecimento racional europeu era muito mais limitado do que o conhecimento ancestral das comunidades nativas do continente, que entendiam muito melhor os ciclos naturais. No século XV, os europeus conheciam apenas dezessete variedades de vegetais comestíveis, enquanto no século IV, os Hohokam - habitantes da região agora abrangida pelo Novo México, cultivavam cerca de duzentas variedades de vegetais. Na América do Sul, os Incas projetaram um sistema de cultivo em terraço que se estendeu ao longo da Cordilheira dos Andes e aproveitou os microclimas locais e as qualidades de húmus variadas, colhendo algo como seiscentas variedades diferentes de batata. Isso prova que a horticultura nada tem a ver com o impulso padronizador da civilização. Em vez de tentar fazer com que todos os ambientes estejam em conformidade com um padrão, a horticultura busca se adaptar às características peculiares do solo e do microclima, mantendo intactos o ecossistema e a biodiversidade.
As peculiaridades estéticas dos diferentes tipos de resistência - cada um peculiar por si mesmo - elevaram as batalhas seculares das comunidades indígenas, cujas formas mais eloquentes de autodefesa se manifestaram no estado de Chiapas (sul do México), na Araucania, Território Mapuche (sul do Chile), em Salta (norte da Argentina), além de Bolívia, Equador, Colômbia e assim por diante. A consciência da espécie humana desperta e começa a sacudir a razão instrumental, ao mesmo tempo em que encontra um caminho para o mundo da peculiaridade, para o próprio mundo natural. Em contraste com a consciência primitiva que provocou essa fragmentação em primeiro lugar, a consciência coletiva atual busca a conexão com o outro dissipando o ego na totalidade orgânica do planeta. A diluição do “eu” no espírito da natureza permite que o ser se manifeste plenamente. Essa manifestação é a expressão estética da peculiaridade e por meio dela se cria uma cultura que desfaz a padronização e arranca todos os rótulos criados pelo sistema de categorização. Na verdade, quando o ser desdobra todas as pétalas de sua peculiaridade para se expressar esteticamente, ele é capaz de melhorar a si mesmo, bem como ao mundo e à humanidade. Esse processo se aproxima da autenticidade - a condição do "genuíno" que nas sociedades altamente alienadas e alienantes é um privilégio quase inteiramente exclusivo de artistas e outras personalidades excêntricas. Da mesma forma, a verbalização criativa subverte o dualismo e reconstrói a noção de humanidade. E é por isso que uma conversa real não é bem-vinda no mundo robótico do paradigma pós-moderno dos autômatos. Assim, expressões como “feral” em inglês e "bárbaro" em espanhol passaram a adquirir conotações positivas que desmembram, via linguagem, o modelo patriarcal baseado no sistema dualista de selvageria versus civilização.
Pensar em um mundo remodelado que permita uma convivência baseada no respeito total e mútuo por todas as criaturas que habitam o planeta é vital. Cada peculiaridade é uma pétala que é preciso cuidar. Um modelo horizontal e não hierárquico é fundamental, pois ninguém gosta de ser ordenado, controlado ou detido. Ao contrário, essas situações parecem ser uma punição. A verdadeira liberdade depende da demolição de toda autoridade. O estado natural do ser humano é a anarquia, que nada mais é do que um amplo jardim libertário onde o espírito se expressa. Contra o painel de controle do império padronizador, o jardim de peculiaridades permanece saudável. E dado que na terra reside o verdadeiro poder, o desafio deste século é um retorno à interação diária com a natureza para se curar do trauma da civilização. Isso é, para nos remodelar para a melhoria de nossa condição humana. Somente com a construção de uma nova humanidade será possível habitar um novo mundo, a partir do raciocínio estético e da sensibilidade. E embora este seja apenas um ponto de partida, o resto permanece um mistério. Não há panaceia para o futuro.
Assim como nos últimos cem anos a população global explodiu a uma taxa assustadora, ela também pode diminuir em cem anos. Uma relação sensata com a terra que estabeleça a coerência perdida entre nossas tendências reprodutivas e a disponibilidade de recursos locais pode reduzir muito o número de seres humanos no planeta. E isso pode ser feito sem planos sanguinários.
Saber onde estamos, como vivemos e como sobrevivemos expandirá a consciência global. Além disso, nos torna participantes ativos e responsáveis no processo de continuidade humana, devolvendo ao povo sua independência ancestral - liberdade tanto da produção em massa quanto da medicina industrial. No início e meados do século XX, os casais geralmente tinham cinco ou mais filhos. Nos países colonizados, e principalmente no campo e em outras zonas totalmente abandonadas, essa tendência continua como estratégia de sobrevivência. Quando roupas, alimentos e abrigo são arrancados do controle monopolista das cadeias comerciais e da produção em massa e devolvidos às mãos da comunidade, a responsabilidade e a autonomia da comunidade transformarão a consciência humana em uma consciência integral, reunindo assim o ser com a comunidade e o meio ambiente. E isso vai transformar as tendências reprodutivas dos dias atuais. E vai garantir que em uma ou duas gerações a superpopulação não passará de um “problema” do passado industrial.
O jardim das peculiaridades é um projeto de humanidade. Sua visualização consiste em perceber a peculiaridade da natureza. Se a consciência original cresceu como resultado do reconhecimento de sua própria morte, a consciência libertadora crescerá como resultado do reconhecimento de sua própria peculiaridade. A vida como a concebemos hoje não será apagada do planeta enquanto não dermos trégua ao império da "mesmice". O objetivo é aprender a viver no jardim planetário sem controle ou autoridade. E se a vida é uma viagem, é preciso deixar-se levar pela corrente do rio sem impor um controle para detê-la. A corrente do rio é a corrente da natureza. A corrente social, padronizadora e “mediocrática”, é a eletricidade do controle. Continuar nessa linha é morrer de estresse, alienação, ansiedade, insanidade, fome, exploração, repressão e miséria. Para correr as corredeiras é preciso aprender a viver.
Quando se segue o movimento prateado de cada gota d'água tumultuada e selvagem, está-se criando contato com o ritmo do mundo natural. Para seguir essa cadência, evitar as pedras é um ato sábio. Cair da balsa é uma prova de desconforto. Esse desconforto é a incompatibilidade entre controle e vida. O controle gera medo e impede a vida. Isso desencadeia paranoia. A vida, por outro lado, oferece beleza e engenhosidade como frutos nativos. Depende de nós morder a maçã e aprender a sonhar.
A viagem ao jardim das peculiaridades é sem volta. Ouvir o murmúrio da civilização, uma vez no caminho correto, é cair na armadilha do medo. Significa perder o rumo, pois a única saída é a escotilha para a rodovia que leva ao asfalto da padronização. E embora toda criatura precise de uma habitação, ela não precisa ser feita de concreto. O verdadeiro covil humano pode ser uma cabana na floresta que junto com outras cabanas formam uma comunidade de peculiaridades. Ou pode ser um bairro que destrói a calçada da idiotice e do isolamento, deixando uma ou duas rotas entre outros bairros. Cada constelação de peculiaridades será uma espécie de comuna que garante a autonomia horizontal de cada comunidade. Só assim a hierarquia pode ser abolida. E como prática social entre seres sociais, os festejos rituais e as celebrações comunitárias farão parte integrante da estratégia de combate à acumulação. Dessa forma, todo o excedente que venha a ser gerado será aproveitado como parte do carnaval coletivo.
O jardim das peculiaridades é uma aposta feita pela preservação do meio ambiente e pela sobrevivência da humanidade. Nesse caso, a intuição deve iluminar o caminho. Não ser desviado depende de nós. Existe apenas um caminho que leva ao coração da vida.