José Oiticica
Contra o Sectarismo
O espírito anárquico é essencialmente avesso a quaisquer fanatismos. Sendo ânsia de liberdade, não pode querer dogmas, nem disciplinas, nem mandamentos humanos ou divinos e, muito menos, inquisições, santos-ofícios, índices e autos-de-fé. Pregando o trabalho livre, o pensamento livre, o amor livre, a ação livre, não aceita nenhuma limitação às faculdades intelectuais ou emotivas, nem reconhece bitolas, cremalheiras, pauta, à exteriorização de ideias ou sentimentos. Só o indivíduo tem o direito de dirigir seu raciocínio, regular sua linguagem, enfrentar seu estilo, moderar seu juízo, orientar sua ação. O anarquismo combate a todo transe o despotismo de qualquer feição, o feitorismo de toda casta, tudo quanto lembre mandonismo, chefia, canga, subserviência, dominação física, mental ou moral. Assim, repele o regime carcerário do capitalismo, condena as fábricas de doutores, padres, militares, homens vazados num molde único, manequins talhados num só modelo, manipanços cujo enchimento é a mesma palha seca. Só o indivíduo conhece os seus caminhos. Impor, ao que pende para o norte, a marcha para leste, é roubar-lhe o destino, a vida, a personalidade. Esses princípios, nós, anarquistas, aplicamo-los rigorosamente na luta pela emancipação dos homens. E, dizendo "dos homens", firo um ponto essencial do anarquismo. O anarquismo não visa apenas a emancipar os trabalhadores, pretende emancipar os homens. Seu problema é muito mais vasto que o dos políticos ou socialistas de qualquer feição.
Acima da mera emancipação econômica, está certamente a emancipação moral e mental. Além do trabalho livre, está o pensamento livre e a ação livre. Libertar os homens do patrão é muito, mas não é tudo. Cumpre arrancá-los à tutela dos guias, políticos ou religiosos; e à tirania das “morais”, criações de opressores para fanatizar escravos. Destarte, não compreendemos um revolucionário cuja ação promana de uma servidão. Como instituir um regime livre se não nos desvencilhamos das algemas tradicionais? Como pretender uma vida livre, se vivemos impondo regras e ouvindo ordens? Como desejar o homem “pôr si”, habituando-nos, a nós e aos outros, a disciplinas vexatórias, censuras obsoletas e punições degradantes? Mal compenetrados dessa concepção de liberdade, vários anarquistas lamentam as divergências de atuação entre anarquistas. Pior ainda, leem-se frequentemente acusações de anarquistas-individualistas a anarquistas-comunistas, de anarco-sindicalistas e extra-sindicalistas, etc., etc. Todos esses ataques e lamentações revelam a tendência sectarista milenarmente entranhada nos homens. Pôr mais que estudemos, aprendamos, eduquemos o espírito, a pressão tradicional é tão forte, o meio ambiente, todo dogmático, registra, engaiolante, é tão rígido, que dificilmente conseguimos nos safar dessas determinantes poderosas. Pessoalmente, ao contrário, vejo nessas várias tendências anárquicas o melhor sinal de vida do anarquismo. Todos os homens não podem ver as coisas do mesmo modo, nem resolver os problemas pelo mesmo processo. A transformação social é um problema com soluções múltiplas. Nós, anarquistas, apresentamos a nossa. Porém, não a apresentamos do mesmo modo. A beleza da nossa concepção e a superioridade do nosso método estão positivamente nessa multiplicidade de meios, todos conducentes a um mesmo fim. Seja, pois, cada tendência livre na execução do seu modo de entender a solução final. Todas as águas afluentes irão dar na mesma foz. O verdadeiro anarquista, penso eu, aquele que se libertou totalmente do preconceito sectarista, colabora em todos os grupos, atua em qualquer tendência. Mais ainda, coopera com os não-anarquistas onde quer que a ação deles incremente a oposição revolucionária.
Assim, é anticlerical com os anticlericais; é democrático na defesa dos princípios liberais contra os reacionários; está com os bolchevistas, sempre que estes reivindiquem direitos, reforça a ala antimilitarista, ainda que os antimilitaristas sejam burgueses; colabora com a escola moderna racionalista, conquanto não seja senão reformista; anima os teósofos na propaganda fraternista, os vegetarianos na extirpação dos vícios, o próprio Estado Liberal na sua luta contra o imperialismo vaticanista. Não proceder assim, seria confinar-se ao sectarismo e negar, nos atos, a doutrina anarquista, essencialmente anti-sectária.
Ação Direta. Rio, 10.01.1929