Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1963, pp. 54-58.
(2) “Ação Direta”, Rio de Janeiro (nota do Autor).
José Oiticica, Pedro Catallo, Edgard Leuenroth, Neno Vasco, etc.
Por Que os Anarquistas não Aceitam a Ação Político-Eleitoral
Apresentação
O saque ao Moinho Santista, perpetrado por grevistas paulistanos, em 11 de julho de 1917, foi mote utilizado pelas autoridades estaduais para decretar a prisão de Edgard Leuenroth. A acusação: autoria psíquico-intelectual do roubo de 600 sacas de farinha. Mesmo com a incerteza sobre a presença do militante anarquista durante o incidente, a ordem de prisão foi cumprida. Leuenroth alcançara, com as insurreições operárias de julho de 1917, grande destaque no meio anarquista brasileiro; proeminência adquirida pelo envolvimento, ao longo dos anos precedentes, na divulgação do libertarismo e na participação ativa nas práticas de organização autogestionária das mais diversas categorias de trabalhadores. Filho de um médico alemão e uma brasileira, Leuenroth iniciara-se muito jovem no ativismo político através de jornais de intervenção, primeiro como republicano e, a partir de 1904, como anarquista. Acompanhou e foi agente importante do crescimento do anarquismo entre os trabalhadores paulistanos, defendendo a construção de instrumentos de organização próprios e descentralizados pelo operariado.
A importância das táticas de mobilização anarco-sindicalistas, na década de 1910, culminou com a irrupção dos protestos de 1917; contestações de trabalhadores ao regime salarial e às condições de vida nos bairros operários que não seguiram direção centralizada e perduraram de maio a outubro daquele ano, atingindo seu ápice em julho, mês em que foram registrados inúmeras manifestações populares e conflitos entre trabalhadores e forças policiais. Dentre os eventos, a invasão ao Moinho Santista. Edgard Leuenroth, uma vez mais em evidência nas agitações reivindicatórias, era responsável pela coordenação dos protestos junto ao Comitê de Defesa Proletária, associação organizada por representantes de 36 ligas operárias da cidade de São Paulo com o objetivo de aglutinar esforços dos trabalhadores em greve. A posição de Leuenroth no Comitê de Defesa Proletária tornou possível que a acusação de incitador ou mentor do saque ao moinho pudesse ser formalizada.
Sendo brasileiro, apesar da ascendência estrangeira, Edgard Leuenroth não poderia ser expulso do país, como foram libertários espanhóis, italianos e portugueses; poderia, contudo, ser processado — explicitamente — pelo assalto à empresa e — veladamente — pela condição de “indesejável” e “desviante”. O processo desenrola-se até março de 1918. Em fevereiro, contudo, um grupo de simpatizantes socialistas lança à revelia o nome de Leuenroth a uma vaga de deputado federal nas eleições que viriam a seguir. Do cárcere, Leuenroth redige, no dia 19 daquele mês, uma carta aberta, publicada em O Combate, na qual explicita os motivos que, por ser anarquista, não pode aceitar sua indicação ao cargo parlamentar. Optou-se, aqui, em reproduzir a carta na versão organizada pelo próprio Leuenroth para a edição de seu livro Anarquismo: roteiro de libertação social, na qual o autor apresenta a situação em que escreveu a carta, frisando o tema da não delegação de poderes. A seção é completada com o trecho “Em síntese” que, segundo Leuenroth, foi publicada no periódico carioca Ação Direta (s/d). Em tempos de eleições em que o abstencionismo é estigmatizado como comportamento apolítico, coloca-se em discussão temas caros ao libertarismo, como o rechaço à representação política, pela voz de um dos mais importantes anarquistas brasileiros do século XX.
Thiago Rodrigues
Ainda há, mesmo entre pessoas letradas ou que se têm nessa conta, quem faça essa indagação. Destinando-se esse livro à conduta dos anarquistas, torna-se necessário falarmos, embora sumariamente, sobre as razões pelas quais os libertários não aceitam a ação parlamentar, abstendo-se, conseqüentemente, de vo tar para a escolha de representantes junto às várias casas legislativas, na base da política partidária. Para esse fim, são aproveitadas as considerações contidas na carta com que o autor deste livro se pronunciou sobre a apresentação de seu nome como candidato a deputado, por ocasião das eleições realizadas no começo de 1918, quando se encontrava preso na Casa de Detenção (então Cadeia Pública), processado como “autor psico-intelectual” da greve geral de 1917, que paralisou toda a vida produtiva de São Paulo:
“Não hesito em tornar pública a minha conseqüente resolução, já manifestada a amigos junto às grades do cárcere, de me opor terminantemente à apresentação da minha candidatura, lançada por amigos, talvez alheios à inteireza doutrinária dos princípios libertários, de seus métodos de ação e das normas de coerência a que necessariamente estão adstritos todos quantos os professam.
Não posso, não devo e não quero aceitar a indicação de meu nome para candidato a deputado, embora isso seja feito como uma manifestação de protesto contra uma violência, de repulsa contra a iniqüidade com que, através da minha pessoa, se pretende ferir a classe trabalhadora, da qual sou obscuro militante.
Como libertário, não aceito a ação parlamentar, que implica na delegação de poderes, o que constitui séria divergência doutrinária com o anarquismo. É em obediência a este sábio critério que os libertários, arrostando dificuldades sem conta, lutam incessantemente no sentido de conseguir que cada elemento do povo, libertando-se da mentalidade messiânica imperante, tornando se senhor de si mesmo, constitua uma unidade ativa na vida social, agindo em causa própria no patrocínio dos interesses que, sendo seus, estão, em harmonia com os da coletividade. Entendem os anarquistas, abroquelados em exemplos, de ontem e de hoje, que não seria decoroso contar com a votação de descontentes ocasionais das várias capelinhas políticas em desarmonia, e bem pouco numerosos seriam os homens animados de espírito liberal que, embora alheios à classe obreira, se sintam revoltados contra as injustiças com ela praticadas e, por isso, poderiam acorrer às urnas, conclui-se, logicamente, que o protesto teria resultado contraproducente.
Vê-se, pois, que, mesmo sob esse aspecto, a candidatura como protesto é desaconselhável. Tem-se tentado esse ato em outros países, é certo, mais em meios socialmente trabalhados aonde a parte dos socialistas concorde com o parlamentarismo se acha fortemente organizada.
Necessário se torna, entretanto, dizer que embora os beneficiados por essas manifestações sui generis de protesto pertencessem aos seus, os anarquistas sempre se lhes opuseram, conservando-se fiéis aos seus princípios, abstendo-se, assim, de contribuir, embora de maneira indireta, para alimentar no povo a confiança em uma instituição por eles condenada.
Sou, portanto, consequente com a minha condição de libertário não querendo intervir nas próximas eleições. Os amigos autores dessa iniciativa, a cujos bons intuitos presto homenagem, estou certo, não me quererão mal por isso, pois que é justamente à firmeza com que me tenho esforçado para sustentar as minhas convicções que atribuo a sua confortadora manifestação de simpatia. E tão eloqüentes são as lições dos acontecimentos desenrolados neste excepcional momento histórico que os exemplos de épocas anteriores são dispensáveis para que o ponto de vista libertário, evidenciando chocantemente o seu acerto, se imponha ao critério de quantos se preocupam com o problema da questão social.
De fato, se das plagas lusitanas às estepes russas algo de valia se verifica contra a hediondez da guerra e os pruridos de tirania, isso tem partido da ação direta do povo oprimido e explorado em desespero. Em tão tremenda conjuntura, a ação parlamentar, quando deixa de ser inócua, passa a ser danosa ou contraproducente. Por que, pois, reincidir numa experiência já eficientemente realizada, com resultados negativos, em meios que oferecem todas as circunstâncias julgadas necessárias para o desejado bom êxito?
Considerações sem conta poderia ainda aduzir em abono da minha maneira de encarar a ação parlamentar. Julgo-me, porém, dispensado de o fazer, por me parecer ter dito o suficiente para que se possa concordar ou, quando menos, respeitar a resolução por mim, tomada de não aceitar a inclusão de meu nome na lista, já bastante longa, daqueles que, por ambição pessoal, por interesses subalternos da politicagem ou também, segundo os libertários, por um critério político social, pretendem conseguir das poltronas do Parlamento o que só será conquistado pela ação decidida do povo, que, dos seringais da Amazônia às coxilhas sulinas, suporta o jugo de um regime revoltantemente opressivo.
Nem por se tratar de uma votação de protesto poderse-á desprezar a repulsa doutrinária do anarquismo à minha participação, como candidato, na eleição de 1° de março. Baseados na história e na experiência de muitas décadas de ação eleitoral, o que urge é intensificar a obra de educação social do povo, fazendo com que ele chegue a ter consciência dos seus direitos e adquira confiança na sua força para deixar de confiar a uns tantos indivíduos guindados às casas legislativas pelo seu voto e pelos seus conchavos politiqueiros – indivíduos esses nem sempre bem intencionados e sempre sujeitos à corrupção imanente do fastígio do poder – aquilo que só ele, em luta perene, poderá e deverá conseguir.
Seria ocioso, e mesmo foge aos limites desta carta, a demonstração da inanidade e até da influência danosa exercida pela ficção parlamentar da luta popular para a conquista de mais elevados estágios sociais. A experiência é grande mestra, e esta nos ensina que o Parlamento, instituição essencialmente burguesa, nunca agiu e jamais poderá agir em detrimento da vigente ordem de coisas, o que corresponde a nada fazer em proveito do povo e da causa pública.
Qualquer melhoria na situação da plebe, por insignificante que seja, representa o resultado de sua própria ação exercida fora das esferas parlamentares. As resoluções dos chamados representantes populares só são efetivadas quando representam o reflexo das conquistas feitas pela pressão partida de baixo, do povo em movimento. De maneira diversa, os seus decretos e suas leis têm sido e continuarão a ser meros farrapos de papel.
Farta messe de exemplos poderia robustecer estas asserções. Sem termos em conta o que se passa entre nós, onde o Parlamento é essa coisa dispendiosa e improdutiva que todas as pessoas de bom senso reconhecem, não poderemos desprezar os ensinamentos que nos vêm de países nos quais a vida parlamentar se desenvolve ao redor de partidos com cronogramas políticos e sociais definidos e sujeitos ao influxo permanente da opinião pública, que aqui, desgraçadamente, por causas múltiplas, ainda não exerce a necessária influência.”
Em síntese: - Repudiamos o parlamentarismo e a ação eleitoral, não só pela razão teórica de ser o Parlamento uma instituição autoritária, incumbida de forjar leis obrigatórias, mas ainda por outros motivos teóricos e práticos. Eis alguns:
Quanto ao Parlamento:
1° – A assembléia parlamentar é incompetente para decidir sobre qualquer dos assuntos da vida social. Um congresso de técnicos (médicos, engenheiros, sapateiros, etc.), discute com conhecimento de causa o que é de seu ofício; num Parlamento, cada ponto de vista, cada ramo de saber tem sempre para o tratar uma minoria, sendo, no entanto, a maioria que decide.
2° – O seu poder limita-se a formular leis, sendo impotente para as fazer aplicar, quando porventura cheguem a contrariar os interesses das classes dominantes, dos proprietários, que têm nas suas mãos as autoridades, e os próprios favorecidos, seus dependentes, por meio dos salários.
3° – Ambiente burguês e politicamente dominado pelos interesses capitalistas e financeiros exerce uma inevitável corrupção sobre os que para lá entram, vindos do seio do povo trabalhador e animados das melhores intenções.
4° – Dispensa o povo de agir diretamente e entretém as impaciências populares tanto mais eficazmente quanto mais atroadores e “revolucionários” forem os discursos ali proferidos.
Quanto à ação eleitoral:
1° – Trata-se de obter número, e para isso fazem-se apenas vagas afirmações, esconde-se o ideal revolucionário e entra-se em combinações e intrigas.
2° – A ação eleitoral e parlamentar chama ao socialismo uma chusma de aventureiros da pequena burguesia, de profissionais da política e do intelectualismo, etc., que corrompem e desviam o movimento. Querendo uma revolução profunda, verdadeiramente social, em que o povo espoliado e oprimido desaproprie o capitalismo e socialize os bens sociais; sabendo que essa revolução não pode ser decretada do alto de seus privilégios, que a emancipação do povo há de ser obra dele próprio, como é lição da História, os anarquistas querem que o povo se habitue, desde já, a agir e associar se, sem confiar em criaturas providenciais, guias ou dirigentes, líderes ou messias, e sem delegar poderes a pretensos defensores ou protetores.²
RESUMO
Na prisão, Edgard Leuenroth escreveu uma declaração em que recusava sua indicação como candidato ao Parlamento nas eleições de 1918. Leuenroth havia sido preso em agosto de 1917, acusado de ser um dos líderes das greves anarquistas em São Paulo. Em sua carta, condensam-se os princípios anarquistas referentes ao autogoverno e à rejeição libertária à democracia burguesa.
ABSTRACT
In prison, Edgard Leuenroth wrote a statement in which he refused to run for the Parliament. He was arrested in august 1917, charged of being one of the leaders of the anarchical strike in Sao Paulo. His letter of denial condensed the anarchical principles of self-government and the libertarian rejection of the bourgeois democracy.