Kauan Willian

A bandeira negra:

um breve balanço da história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no Brasil

2019

Desde os anos 1980, a atenção sobre a história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no Brasil se intensificou. Em grande medida pela Nova Esquerda e potencializada pelo Maio de 1968 e pelo fim das ditaduras militares em muitos países do cone sul, desenvolveram-se, nesse período, algumas das produções que constituem, até o presente, estudos de referência do anarquismo. O processo de globalização, fortalecido nos fins dos anos 1990 com o desenvolvimento e a difusão da internet, assim como o processo de globalização e o aumento da visibilidade dos anarquistas no último período, vêm contribuindo com uma mudança de contexto que oferece possibilidades imensas para as investigações em geral, e do anarquismo em particular.

Nesse viés, o anarquismo não é mais visto como uma corrente política embrionária do comunismo, como a bibliografia feita por alguns de seus concorrentes de esquerda afirmaram, nem apenas uma expressão cultural e social de imigrantes sem respaldo da classe trabalhadora brasileira como outros intelectuais liberais defenderam. De acordo com o debate historiográfico atual, o anarquismo foi um elemento legítimo da classe trabalhadora brasileira e o sindicalismo revolucionário - a principal estratégia de trabalhadores na Primeira República (continuando até depois) - agiu em defesa de interesses de oprimidos contra o Capital, o Estado nacional e um tipo de alienação cultural, como entendem os libertários.

No Brasil do início do século XX, as áreas rurais ainda representavam a grande maioria da concentração desses trabalhadores. Não obstante, o avanço industrial, atrelado à grande recepção de pessoas nesses ambientes, resultava o rápido crescimento dos centros urbanos. A República, proclama em 1889, recém-saída de um sistema fortemente ancorado no escravismo, se conectava aos ascendentes da produção cafeeira e industrial que começava a deter grande poder político. Aglutinados em regiões fortes na concentração dessa economia, como São Paulo, atraíam uma grande população de trabalhadores, majoritariamente composta por tais imigrantes, mas também com a presença da população nativa, junção que marcava a especificidade na identidade na formação da classe trabalhadora na cidade. Os grupos proletários e subalternos sofriam com as condições precárias de moradia e trabalho, acompanhados por mecanismos repressivos por parte das autoridades e pela exclusão das decisões do desenvolvimento político institucional, que barravam as tentativas de transformação dessas contradições.

Nesse período, a disseminação de livros, panfletos, símbolos e a circularidade personagens de orientação socialista ou práticas mutualistas de formas diversas, assinalavam a presença em diversas partes do país. Na capital paulista ou carioca, mas também em Porto Alegre, Recife e Alagoas, por exemplo, tais condições forneceram condições para a aparição e proliferação de ideias e propostas anarquistas e de sua estratégia principal, o sindicalismo revolucionário – principal método de luta da classe trabalhadora no mundo no período, como atestam os pesquisadores Eric Hobsbawm e Benedict Anderson.

Um dos primeiros periódicos de aproximação aos ideais libertários na cidade, o Gli Schiavi Bianchi, publicado desde 1892, conseguiu tiragens consideráveis e a consequente atenção dos aparatos repressivos do Estado. De acordo com a autora Claudia Leal, a preocupação das autoridades com a publicação do periódico, além do medo da “anarquia” assombrando outros países desde XIX e alertando a polícia de diversos destes, poderia ser derivada também da recepção de suas críticas dirigidas às situações degradantes que os trabalhadores, no campo e na cidade, passavam ao se estabelecer no Brasil. Após isso, outros jornais que faziam militância operária com orientação anarquista começavam a exercer forte influência entre trabalhadoras e trabalhadores. O Amigo do Povo, a partir de 1902, o primeiro periódico anarquista em língua portuguesa em São Paulo com regularidade considerável, estimulava os movimentos classistas e às associações de caráter sindical. Seus principais redatores, envolvidos também com atividades educativas, através dos anos, assumia também sua clara tática ligados à defesa do sindicalismo de orientação revolucionária e com a preocupação deste em aderir tradições combativas na cidade. Para eles,

"Devemos... favorecer todas as lutas por liberdades parciais: na luta aprende-se a lutar e quem começa a saborear um pouco de liberdade acaba por querê-la toda. Estejamos sempre com o povo, procuremos ao menos que pretenda alguma coisa e que esse pouco ou muito que queira, o queira conquistar por si mesmo. (...) Contra o governo, que tem exércitos e polícias, não se faz guerra de argumentos, que o não convencem: a luta é toda física, material.(...)"

Além dos instrumentos de comunicação, esses agentes estavam infiltrados nos ambientes de reclamação social, inclusive de envergadura nacional. Esse caráter foi demonstrado na construção da COB (Confederação Operária Brasileira), iniciativa altercada no Primeiro Congresso Operário Nacional, principalmente pela experiência das associações sindicais do Rio de Janeiro, entre eles a FORJ (Federação Operária do Rio de Janeiro), herdeira da Federação Operária Regional, também impulsionada por socialistas e anarquistas desde o fim do século XIX. A COB, com limitações para se constituir nacionalmente, se esforçava para coordenar e ligar as associações trabalhistas de várias regiões do Brasil, como São Paulo, antigo Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Ceará e Pernambuco. Para a autora Edilene Toledo, a confederação “era formada por federações nacionais de indústria ou de ofício, uniões locais e estaduais de sindicatos, sindicatos isolados em locais onde não existiam federações ou de industrias e ofícios não federados.”

Estiveram presentes nesse primeiro congresso quarenta e três delegados representando vinte e oito associações que apresentavam, no seu interior político, ativistas de orientações diversas, entre esses reformistas, socialistas e também muitos sindicalistas que se reivindicavam pragmáticos. Igualmente, não é difícil perceber a forte movimentação de personagens com clara posição libertária. Representando São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, estavam presentes Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, João Crispim, Luigi e Matilde Magrassi, Giullio Sorelli, Motta Assunção e outros, exercendo posições relevantes como organizadores. A confederação também, dessa maneira, estreitava as ligações de militantes no interior de famílias políticas, como os anarquistas de diversas regiões. Essa mesma sombra da atividade anarquista pairava sobre as publicações do jornal A Voz do Trabalhador, escolhido como porta-voz desse organismo.

Nas resoluções da COB, o projeto articulado e discutido por variadas redes militantes, parecia encaixar perfeitamente em uma tendência levado adiante e tencionado por diversos anarquistas no período. Longe de defender um vínculo explícito com a ideologia anarquista, a maioria dos agentes presentes defendia a ideia de um sindicato livre de conceitos partidários, com clara posição de ação direta, autogestão e federalismo, muito parecida com as resoluções o sindicalismo revolucionário francês. A COB e grupos anarquistas, sindicalistas e socialistas se uniam por meio dessa estratégia e agitaram grandes greves em 1906 e 1907, que entraram em refluxo no fim da década devido à inflação da Primeira Guerra Mundial e a instabilidade dos empregos nas indústrias e comércios.

Não obstante, no ano de 1917 um novo fôlego grevista tomou conta da cidade de São Paulo. As paralisações de duas fábricas têxteis do Cotonifício Rodolfo Crespi, buscando melhores condições de trabalho e salário, somado ao caráter repressivo das autoridades aos movimentos reivindicatórios urbanos que dariam fim à vida do militante anarquista e sapateiro José Martinez, representavam o início de uma onda reivindicativa de grande proporção. Na semana de 9 a 16 de julho, tais paralisações acompanhadas de intensas manifestações revelavam uma intensidade inédita, se alastrando posteriormente para cidades do interior paulista e outras regiões como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Esse novo caráter de combate marcava as falas dos militantes assíduos no interior desse movimento, experiência que foi condensada na criação do jornal A Plebe, escrito no calor das reivindicações de julho de 1917:

"O clarim da liberdade ressoa por toda a parte chamando a postos os defensores da causa libertaria, da causa do povo. Do norte ao sul do Brasil, o movimento operário esta em plena atividade, cresce o número de sindicatos e associações de classe, bem como o número de aderentes. São frutos das últimas agitações. [...] Proletários! Uni-vos,agrupai-vos todos sob a mesma bandeira, certos de que a união vos dará a força e a vitória com a qual podereis quebrar para sempre agrilheta da miséria que nos escraviza."

O periódico afirmava que a referida greve seria o resultado de eventos locais e conjunturais, como o crescimento das organizações sindicais a partir do início século XX – ações que tentavam se articular nacionalmente – e o aumento dos grupos militantes nesses, bem como a adesão de boa leva dos trabalhadores aos movimentos e associações que foram criadas.

Após a vitoriosa greve que conquistou a jornada de 8 horas de trabalho diárias, a igualdade de gênero e o fim do trabalho infantil em várias fábricas e categorias, a repressão ao anarquismo e a sua estratégia se intensificou. Muitos militantes e ativistas foram presos e, no mandado de Arthur Bernardes, outros foram deportados ou presos em colônias penais de repressão política. Com a ascensão do comunismo no país e a disputa de hegemonia da classe trabalhadora, a lei de sindicalização de Getúlio Vargas que atrelava os sindicatos ao aparato estatal e o aparecimento de movimentos de classe média e fascistas, o anarquismo e o sindicalismo revolucionário vão decair a partir do fim da década de 1930. Não obstante, estudos recentes evidenciam o caráter importante do anarquismo na esquerda brasileira ainda depois desse período, seja ainda impulsionando uma contracultura nos anos 1980, um sindicato e um movimento estudantil das bases no fim da Ditadura Militar e um protagonismo nas lutas antiglobalização no início dos anos 2000. Com isso em mente, não é nada espantoso ou estranho, como muitos comentaristas políticos apontaram, que nas recentes jornadas de junho de 2013 e nas ocupações das escolas depois, a bandeira negra esteve em destaque. Ela é uma cultua política legítima entre os oprimidos no Brasil, assim como em boa parte do mundo, enraizada nas expressões de classe, embora as vezes ofuscada da nossa história.

Referências

ANDERSON, Benedict. Sob três bandeiras: Anarquismo e Imaginação anticolonial. Campinas – São Paulo: Editora da Unicamp; Fortaleza – Ceará: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 2014.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Impérios: 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

LEAL, Claudia Baeta. Pensiero e Dinamite: Anarquismo e repressão em São Paulo nos anos de 1890. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2006.

SAMIS, Alexandre. Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé/Imaginário, 2002.

SANTOS, Kauan Willian dos; SILVA, Rafael Viada da (orgs.). História do Anarquismo e do Sindicalismo de Intenção Revolucionária no Brasil: novas perspectivas. Curitiba: Editora Prismas, 2018.

TOLEDO, Edilene. “Para a união do proletariado brasileiro”: a Confederação Operária Brasileira, o sindicalismo e a defesa da autonomia dos trabalhadores no Brasil da Primeira República.”Perseu: História, Memória e Política, v. 7, p. 10-31, 2013.


Capítulo da Revista COSTA, Jairo. Constantino Castellani. São Paulo: Estranhos Atratores, 2019.