#title A Bandeira vermelha e negra: #subtitle Posições políticas e estratégias anarquistas frente à Revolução Russa no Brasil #author Kauan Willian, André Fernandes #LISTtitle Bandeira vermelha e negra: #SORTauthors Kauan Willian dos Santos; Kauan Willian; André Fernandes; André Santoro Fernandes #SORTtopics Anarquismo; Revolução Russa; Sindicalismo Revolucionário; Comunismo #date 2018 #source [[http://revistas.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/view/rlah.v7i19.895]] #lang pt #pubdate 2022-07-27T22:20:57 #notes Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as principais posições e debates dos militantes anarquistas no Brasil diante da Revolução Russa, evento que influenciou suas estratégias e táticas políticas, bem como sua inserção no movimento operário no país. Primeiramente, parte-se de um debate acerca do anarquismo no país em relação às propostas de alianças e partidos dentro do movimento libertário desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial, revelando também as tendências dos militantes em torno da Revolução Russa, principalmente através do jornal A Plebe, de São Paulo. Posteriormente, trazemos a trajetória política do jornal Spártacus, do Rio de Janeiro, a partir de 1919, a fim de exemplificar e complexificar o tema proposto. Palavras-chave: Anarquismo. Revolução Russa. Movimento operário-Brasil. Sindicalismo Revolucionário. *** Introdução: negro e vermelho "Na Rússia triunfou o princípio, a ideia, demonstrando ao mundo o que se pode fazer quando há uma vontade ao serviço da justiça. Não se apagou na Rússia o fogo sagrado, símbolo de reivindicações. Estrela fulgurante, raio vivíssimo de luz, porque os lutadores o alimentaram com a sua liberdade e com a sua vida, oferecendo o belo exemplo de serem mártires espontâneos. Um povo em revolta é um povo forte que nada e ninguém pode abater, sim as suas aspirações se baseiam nos princípios da equidade social. (A PLEBE, São Paulo, 28 de julho de 1917, p.1)" De maneira eloquente e com ar de ânimo a partir do título “A alvorada da esperança”, era assim que, em 1917, o jornal A Plebe, principalmente com o seu redator mais preeminente, Edgard Leuenroth (tido pelas autoridades e por outros militantes como um dos grandes articuladores da greve de 1917), noticiava o processo da Revolução Russa em solo brasileiro — sobretudo em São Paulo, mas também se estendendo ao Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul, principais pontos de contato do periódico. O exemplo da Rússia, que ulteriormente se alastraria por várias regiões do leste europeu, evidencia que as ações dos trabalhadores poderiam ter resultados efetivos, sendo utilizado pelos militantes anarquistas em várias regiões para dar potência às manifestações desencadeadas no fim da segunda década do século XX. Essa tática foi levada a cabo e incrementada até o ponto que fosse lançado em 1919, por Edgard Leuenroth e Hélio Negro, o livreto O que é o maximismo ou o bolchevismo, defendendo que tal processo revolucionário era o “caminho do almejado comunismo libertário, que trará para todos a paz, o bem-estar e a liberdade”. No mesmo período, anarquistas de todo o país lançavam o Partido Communista do Brazil, também chamado de “Partido Comunista Libertário”, tendo o jornal Spártacus, no Rio de Janeiro, um dos seus principais articuladores (RUDY, 2008). É interessante notar que tais anarquistas apoiavam um evento que se desenvolveu posteriormente com referências ideológicas marxistas, refletindo as propostas centralistas que também estavam nas discussões socialistas desde o final do século XIX, dividindo anarquistas e marxistas. Esses projetos, como o uso do Estado, que seria tomado e usado pela classe trabalhadora para estabelecer uma almejada igualdade social, sempre foram criticados desde as formulações iniciais do anarquismo (NETTLAU, 2008, p.139-188). O que fazia então os anarquistas proclamarem e utilizarem um evento dessa característica dentro de suas estratégias políticas a ponto, inclusive, de fomentarem um partido? Longe de fazer parte de um confucionismo ideológico, como apontaram autores do tema e posteriormente[1] , tentaremos evidenciar como tal evento estava dentro de uma discussão política ampla e complexa dentro do anarquismo global e brasileiro e suas propostas diante desses acontecimentos revolucionários eram consonantes com o desenvolvimento das práticas libertárias, embora apresentasse posteriormente problemas para a efetivação e longevidade do sindicalismo revolucionário, a principal estratégia anarquista no país. Ainda, a Revolução Russa se mostrava como um evento interessante para a propaganda do anarquismo no país bem como sua ação no movimento operário, desde que manejado nos veículos comunicacionais libertários. *** A Revolução em avanço e em xeque: anarquistas entre o vermelho e o negro Desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial, os anarquistas, em diversas partes do Brasil, contaram com uma dificuldade em organizar ambientes de resistência, como os sindicais. Sheldon Maram defende que o movimento operário sofreu um declínio evidente, resultado da repressão contínua da polícia às manifestações e organizações somado ao constante desemprego que varria os centros industriais, causando instabilidade na vida da população e, por consequência, a dificuldade de sindicalização pelas constantes demissões e mobilidade dos trabalhadores (MARAM, 1979, p.119-127). A repressão, por sua vez, teve alguns amparos legais em 1907, criados pelos governantes ao vislumbrarem o potencial perigo das agitações para o projeto republicano, sancionados pelo então presidente Rodrigues Alves (LEAL, 1999, p.52-53). Tais medidas se somaram posteriormente a uma grande crise econômica, decorrente dos efeitos das guerras balcânicas seguidas dos conflitos mundiais no período entre 1913 e 1916 — que inflacionou os preços de produtos de necessidade básica - afetando diversas partes do mundo resultando em severos danos também no mercado de trabalho dos polos industriais (SANTOS, 2016, p. 82-101). Anarquistas, que antes apostavam na pura militância sindical ou em grupos de afinidade, iniciaram esforços para a criação de órgãos políticos que dariam densidade e um tipo de organicidade para o movimento libertário em meio a tal contexto. Uma das primeiras propostas foi a Alliança Anarquista, planejada pelo grupo em torno do periódico Guerra Sociale — que contava com agentes como Gigi Damiani, Angelo Bandoni e Florentino de Carvalho. Para os militantes, essa união e organização, já discutida pela família anarquista como na Aliança da Democracia Socialista de Mikhail Bakunin ou o Partido Anarquista de Ancona de Malatesta, seria um meio de “reunir numerosos camaradas que se encontravam dispersos por todo o país” e tencionaria agir “por todos os meios ao seu alcance, a propaganda contra as causas fundamentais da conflagração atual e de todos os males sociais que tem como origem o Estado e a propriedade individual, de instituições particulares e públicas” (Guerra Sociale, Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1916, p.3). A Alliança Anarquista apostava em uma forma dupla de organização. De um lado, visava à luta gradual pela melhoria material dos grupos operários ou subalternos, adentrando e impulsionando os movimentos destes, desde que dentro do espectro internacionalista e classista e fora da esfera parlamentar ou estatal. Simultaneamente, defendia a própria organização dos anarquistas a partir de bases internas, definindo métodos para suas atuações nos respectivos ambientes essencialmente econômicos, transformando-os, ocasionalmente, em instrumentos também de reclamação política. No final de 1916, a tal aliança tinha adesões em diversas regiões, que vinham desde o interior de São Paulo pelas cidades de Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto; dos coletivos e apoiadores do estado de Minas Gerais pelas cidades de Guaxupé e Poços de Caldas; do Rio de Janeiro, e das regiões do norte como em Belém do Pará. O jornal A Plebe, em São Paulo, criado pouco antes da greve geral de 1917, sendo seu principal noticiador, seguia as instruções da Alliança Anarquista e além de objetivar a criação de uma densidade ao movimento libertário na cidade e no país, continuava a noticiar, como em outras oportunidades, os movimentos de outros países, exercitando o internacionalismo, ideário comum dentro do movimento. No início das notícias sobre o processo revolucionário na Rússia, percebemos que o grupo em torno de sua construção e divulgação viu o processo revolucionário como uma possível saída, no momento, contra a hegemonia capitalista industrial e a formação do Estado nacional. Contudo, entre as colunas, algumas calorosas, que tentavam convencer os trabalhadores a repetirem o exemplo da revolução em questão, também eram realizadas críticas aos métodos realizados pelas fileiras estatistas: "É evidente que o período revolucionário reconstrutivo será longo e espinhoso, cheio de perigos. Daí a necessidade da ditadura proletária: do terror vermelho, segundo os burgueses. Mas se o terror vermelho será uma triste necessidade salutar, a ditadura proletária pode vir a ser uma triste necessidade prejudicial, tanto mais que ela poderá ser exercida por um restrito povo de indivíduos, pelo governo do povo. Portanto, será bom que a concentração, possível e útil, não chegue a eliminação dos partidos. O anarquismo, no movimento socialista e mesmo no seio da sociedade atual, representou uma força propulsora, mesmo na sua parte negativa. O anarquismo é dinamismo social. Foi-o ontem e sê-lo á amanhã, mesmo vigorando a república dos sovietes. Isto não nos impede que hoje nos irmanemos, anarquistas e sindicalistas, para fazer a revolução e socializar a propriedade. (A PLEBE, São Paulo, 29 de março de 1919, p.4)" Nas palavras do redator Gigi Damiani, o apoio dado ao processo revolucionário soviético era essencial, no momento, para uma efetiva conquista da classe trabalhadora: “a socialização da propriedade”, também meta dos anarquistas. Todavia, a despeito do entusiasmo despertado, o novo sistema estabelecido seria infeliz ao instalar a chamada ditadura do proletariado e, consequentemente, acabar com os demais partidos — melhor dizendo, com outras correntes políticas e estratégias presentes entre os trabalhadores e o movimento operário. A mesma estagnação poderia cessar o dinamismo social, referência indireta à ação direta, e o federalismo, essenciais, na concepção do anarquista italiano, para a manutenção progressiva da igualdade. A união proposta pelo militante, assim, não era apoiar completamente, de forma acrítica, a corrente política que se sobressaiu na Revolução Soviética (o bolchevismo), mas incentivar o ataque ao sistema vigente e, desde que participantes do processo revolucionário, impedissem uma possível ditadura ou a estratificação de poderes a partir do processo de burocratização. É certo que esse apoio seria revisto assim que vazassem as notícias das atitudes repressivas, que assolavam também ativistas anarquistas, antes mesmo do estabelecimento da União Soviética. Em sua estada na Rússia, entre 1919 e 1921, Emma Goldman, uma das principais militantes anarquistas do período, criticou de maneira contundente os caminhos tomados pelos revolucionários, que teriam transformado os projetos em uma prática que “acorrentou a Revolução, bloqueando a participação do povo, centralizando o poder na máquina do partido, instaurando a repressão” (LOBO, 1989, p.34). No Brasil, A Plebe assumiria sua posição definitiva em 1922, veiculando um manifesto que reiterava sua simpatia ao movimento de caráter operário, expondo, porém, com clareza sua cisão entre as alianças de anarquistas e maximalistas[2] , pois estes últimos adotaram uma “engrenagem administrativa e política centralista, impondo autoritariamente as suas ordens à coletividade e impedindo pela força o desenvolvimento das tendências federalistas libertárias” (A PLEBE, São Paulo, 18 de março de 1922, p.4). Ainda assim, até esse período, o periódico preferia instrumentalizar as ações dos soviéticos para favorecer os órgãos operários e as reivindicações na cidade, destacando “com imenso jubilo, o alastrar-se do movimento maximalista” (A PLEBE, São Paulo, 29 de março de 1919, p.3). Para esses militantes, era necessário se ater aos movimentos sociais e revolucionários em geral, assim como o bolchevismo, alavancando de muitas maneiras uma transformação tanto gradual quanto drástica, uma vez que, no período, as medidas repressivas e as grandes greves pareciam bem próximas. A força da Revolução Russa, assim, parecia dar potência às greves e às práticas sindicais horizontais e de ação direta do sindicalismo revolucionário no Brasil como a greve geral de 1917 (SANTOS, 2016, p.123-142). Contudo, a forte repressão e o declínio do movimento após esse evento e com os desdobramentos da malfadada insurreição anarquista de 18 de novembro de 1818[3] , no Rio de Janeiro, instigaram os militantes libertários a incrementarem outros tipos de reunião de forças, além do propagandístico e dos órgãos políticos anarquistas como as alianças. A medida foi a citada criação, em 1919, do Partido Communista do Brazil ou "Partido Comunista Anarquista". Gestado na cidade do Rio de Janeiro, o partido foi fundado em março de 1919, admitindo “anarchistas, socialistas e todos que acceitarem o communismo social” (A PLEBE, São Paulo, 28 de junho de 1919, p.1) como programa. Entre as ações de maior destaque no período é possível salientar a organização do 1º de maio de 1919 e da Primeira Conferência Comunista do Brasil, perpetrada na então capital federal entre os dias 21 e 23 do mesmo ano. Objetivando uma presença difusa no território nacional, o partido contou com a fundação de núcleos em diferentes estados como Rio de Janeiro a partir do jornal Spártacus e A Plebe em São Paulo (DULLES, 1973, p.78-79). É certo que tal órgão, para autores como João Mateus, foi o resultado dos debates de organização interna do anarquismo — que já havia proposto alianças nas duas cidades como vimos — e, portanto, não representava um desvio ideológico, uma vez que seu programa repudiava, por exemplo, o parlamentarismo e o autoritarismo do Estado. Como podemos observar ainda em seu manifesto, a autogestão era difundida (MATEUS, 2013, p.134-154). Não obstante, mesmo favorecendo aspectos ideológicos libertários, o próprio uso do título “Comunista” em detrimento de “Anarquista” ou “Libertário”, anteriormente utilizado na nomenclatura de órgãos de aglutinação política no país, é um indício que tais militantes também consideravam expandir sua tentativa de congregação de forças militantes para além dos anarquistas. É evidente que o termo em questão, no período, era evocado por todos os ramos socialistas e normal na tradição libertária; exatamente por isso, sem desconhecer tal questão, os militantes ampliaram seus critérios de ingresso que anteriormente, na Alliança Anarquista, eram apenas de núcleos e grupos anarquistas já atuantes, passando para qualquer um que se reivindicasse comunista: "1- Podem fazer parte do Partido todos os homens e mulheres residentes do Brasil que estejam de acordo com o seu programa e meios de ação. 2 — O ingresso como sócio do Partido vale por um compromisso pessoal de defender e propagar o programa aceito. […] A ação do Partido consiste na propaganda sistemática, por todo o país, do socialismo integral ou comunismo e na arregimentação e educação do proletariado em geral para posse dos poderes públicos — único meio pelo qual poderá realizar o seu programa. (A PLEBE, São Paulo, 12 de abril de 1919, p.1)" Esse dualismo, portanto, na prática, possivelmente diferia das alianças anteriores. Por um lado propunha-se a organizar militantes diversos por meio de um programa coeso, mas geral e aglutinador, construindo uma força significativa para lidar com o refluxo do ativismo nas cidades, visando erguer novamente os movimentos sociais que estavam danificados, desde que ancorados em algumas propostas básicas libertárias; por outro — pessoalmente e mediante esse órgão e outros — alavancar os movimentos populares, instrumentalizando qualquer ideário desde que fosse minimamente progressista ou revolucionário. Não obstante, além dessa apropriação tática da Revolução Russa e de seus programas visando incrementar o movimento operário por parte dos anarquistas, existiram, de fato, outras tendências diante do evento — desde a recepção total dos ideários marxistas por alguns militantes que se tornaram ex-libertários ou mesmo a crítica de outros personagens aos caminhos revolucionários do leste europeu. Na pesquisa de Andreas Doeswijk sobre os anarquistas na região rioplatense, são apontadas três fases distintas dos militantes libertários diante do evento em questão em que podemos fazer paralelos com o caso estudado. A primeira consistiu no apoio majoritário de todos os anarquistas diante da Revolução Russa e do bolchevismo, acreditando que o evento era exemplar contra o sistema capitalista, minando também as práticas imperialistas dos conflitos mundiais. Os libertários que circulavam em torno dos jornais La Protesta e Tribuna Proletária já conheciam a existência de debates sobre o centralismo estatista, embora acreditassem que o apoio anarquista poderia desviar esse intuito. Na segunda fase, a partir de maio de 1919 em diante, foi iniciado um questionamento em alguns grupos anarquistas, ainda não homogêneo, sobre a ditadura proletária e o caráter do Partido Comunista, fato que acompanhou o Tribuna Proletária, diversamente dos grupos Bandera Roja e La Protesta — que até criticavam o primeiro jornal, chamando-o de purista. Tal aspecto mudou a partir de 1921, na terceira fase: após a volta de alguns anarquistas do leste europeu e a repressão na Ucrânia, foi realizado um intenso debate e até medidas contra os apoiadores do bolchevismo entre o anarquismo e no movimento operário, fato que pode ser exemplificado nas articulações militantes para a perpetuação do caráter anarquista dentro da Federação Operária Regional Argentina. Nessa fase também vão existir os militantes que transitaram da corrente política anarquista ao marxismo (DOESWIJK, 1998, p.62-65). O periódico paulista Alba Rossa, em 1919, intimamente preocupado em reestabelecer um poderoso laço internacionalista com outros grupos anarquistas, foi o primeiro a se manter mais cauteloso ao apoio concedido aos bolcheviques, apesar de que não faltasse, em suas colunas, o apoio a esse processo revolucionário. Análogo ao Tribuna Proletária na Argentina, o jornal ainda fez algumas ponderações sobre a construção do Partido Comunista, que estava sendo altercado em São Paulo e no Rio de Janeiro: "Outro ponto que se presta a equívocos graves é aquele em que se proclama a “arregimentação e educação do proletariado, em geral, para a conquista do poder pelo público - único meio pelo qual poderá realizar o seu programa” - conquista revolucionária, você vai dizer, e bem, nós concordamos. Mas, qual é o fim desta conquista? Para superar o poder? Para a divisão pública da Comuna e dos Sovietes? (ALBA ROSSA, São Paulo, 11 de março de 1919, p.1)". Para alguns redatores do Alba Rossa, o programa não tinha a menor proximidade com os ideais anarquistas, uma vez que não estaria claro, por exemplo, se a conquista do poder seria nos moldes soviéticos e do processo revolucionário socialista bolchevique ou por meio da divisão autogestionária, pensada pelos anarquistas. Assim, alguns dos próprios militantes libertários do período questionavam se o órgão e o programa eram consequência dos debates de organização anarquista ou mesmo como qualquer partido socialista, resultado do vislumbre do processo revolucionário soviético. De todo modo, pensando num vínculo mais íntimo, mais flexível ou mais crítico com o bolchevismo — fato que, como já apontamos, também estava em discussão —, percebemos que a maioria dos anarquistas, nunca se distanciaram dos ambientes e de órgãos sindicais ou associações operárias, inclusive rejeitando a socialdemocracia, mesmo que seu refluxo tenha produzido esses novos debates. Como antes, a preocupação grevista, que objetivava melhorias graduais exercitando uma prática revolucionária, prosseguia nos horizontes dos militantes libertários atuantes. A Plebe noticiou, entre 1919 e 1922, dezenas de greves, manifestações e boicotes na capital de São Paulo e no interior, que aumentavam suas organizações operárias potencialmente mediante a criação de órgãos sindicais apoiados e impulsionados pelos anarquistas (SANTOS, 2016, p.102-122). Ações como a criação do Partido Communista e as notícias da Revolução Soviética, portanto, faziam parte de medidas e táticas, muitas vezes complementares — embora essenciais no período — ao caráter de organização. Afirmamos que essa essência, íntima aos ambientes proletários e subalternos, apoiando o bolchevismo ou não, é que possibilitou a perpetuação do anarquismo mesmo quando, em 1922, A Plebe, análogo à terceira fase dos anarquistas na região rioplatense, declara seu repúdio ao processo revolucionário soviético e ao caráter autoritário que estava em desenvolvimento: "Aceitando o comunismo-anárquico, negação de todo o princípio de autoridade e expressão mais completa das aspirações de liberdade porque vem lutando a humanidade através dos séculos, e sendo seu objetivo extinguir a divisão da coletividade humana em classes antagônicas. [...] Não concordamos com o estabelecimento da ditadura do proletariado, repelimos, com muito mais razão, a ditadura de um partido, ainda que esse partido se apresente como a elite do elemento revolucionário e como a vanguarda da classe trabalhadora, pois julgamos que a missão dos organismos políticos - sociais deve ter por objetivo conseguir dar à organização obreira a indispensável eficiência de coesão, de capacidade administrativa, técnica e revolucionária.(A PLEBE, São Paulo, 18 de março de 1922, p.4)." Como é possível constatar, os libertários ainda evocavam o “comunismo”, mas divulgavam que não era possível, para a realização da igualdade, uma ditadura instaurada por um grupo político, que perpetuaria e reproduziria tipos de tiranias que supostamente eram derivadas do sistema capitalista, pois se transformariam em novas elites — ao contrário de dar apenas impulso ao processo revolucionário, verdadeiro caráter dos partidos para os redatores. Como resposta, propunha-se, em parte, a organização sindical internacionalista com base na ação direta, a partir de um apoio ideológico e político, como já haviam praticado na cidade: "Para ser alcançado esse objetivo, julgamos que a Internacional sindical, independente da política, deve reunir todas as organizações sindicalistas de acordo com as bases federativas, constituindo, assim o expoente da força organizadora do proletariado mundial em sua luta contra o salariato e o patronato. Com o mesmo critério, encaramos a organização da Internacional política, em cujo seio julgamos que devem ser reunidos federativamente os partidos político-sociais revolucionários de todos os países, respeitando a autonomia de cada um no desenvolvimento de seus programas específicos e estabelecendo-se um programa geral para a luta contra o domínio do capitalismo. (A PLEBE, São Paulo, 18 de março de 1922)". É interessante considerar, nesses trechos, que os redatores reconheciam, tal qual outros socialistas, a importância e a necessidade de uma organização política e outra, de caráter social, por meio das organizações sindicais e subalternas de reclamação econômica atuando conjuntamente, embora com “autonomia de ação, sem dependência uma da outra”. Essa citação faz referência direta à importância que tais militantes concediam à necessidade de formar partidos ou alianças anarquistas para atuar nessas esferas, relevando mais uma vez que a criação de órgãos como o Partido proposto pelos libertários não era exógeno a sua ideologia. Ainda assim, esse trecho revela a existência de um novo dilema que os militantes libertários encontravam no movimento operário. A partir de então, os anarquistas precisavam disputar espaço com um concorrente que eles mesmos ajudaram a alimentar nestes anos: o próprio comunismo, por meio de um partido orgânico, atuando com inserção considerável —o que, para os redatores, pelo próprio traço do bolchevismo, poderia resultar na sobreposição do nível ideológico e partidário em relação ao social. O Partido Comunista do Brasil, agora de clara orientação marxista, foi altercado após o Primeiro Congresso do PCB entre 23 e 25 de março de 1922, no Rio de Janeiro. O evento reuniu nove delegados, representando setenta e três militantes e seguiu um programa semelhante ao do Partido Comunista da Argentina. É certo que essa criação era o resultado da própria convergência dos grupos comunistas no país, que ganhavam força com a influência do bolchevismo, como a União Maximalista de Porto Alegre, fundada em 1919, que tinha militantes como Abílio de Nequete, principal articular do Partido. Não obstante, também apresentava militantes de relevo com tradição de profunda organização militante, provinda do anarquismo, como Astrojildo Pereira (DEL ROIO, 2007, p.223-248). Nesse período, enquanto alguns libertários utilizavam sua inserção no movimento operário para garantir a mínima influência do anarquismo nos espaços operários e subalternos, mesmo longe do bolchevismo, outros se pautaram nessa mesma tradição para que, em sua travessia revolucionária — dessa vez mudando de ideologia e não de estratégia — garantisse expressão considerável nesses ambientes com sua nova roupagem e órgão político. Esse Partido, portanto, já tinha uma base considerável oriunda das próprias articulações de esquerda construída desde 1917, como estamos observando. Contudo, anarquistas ainda manejavam e disputavam o conceito de “comunismo”, embora com conotações diferentes ao centralismo estatista do processo final da Revolução Russa. Visto isso, pretendemos analisar o programa e a trajetória do jornal Spártacus, que impulsionava uma visão mais íntima do que a do periódico A Plebe (ainda assim estratégica ao programa maximalista), simultaneamente apoiando o sindicalismo revolucionário e a ação direta. *** O jornal irredutível: dinâmicas de militância do jornal Spártacus O jornal libertário Spártacus, do Rio de Janeiro, foi um dos diversos expoentes da combatente e difusa imprensa operária. Anunciado como um periódico “modesto, mas irreductivel”, sua proposta remetia à defesa da “revolução social dos nossos dias” (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1919, p.1), pauta considerada particularmente factível pelos anarquistas na explosiva conjuntura entre 1917 e 1919. Publicado inicialmente em 02 de agosto de 1919, o jornal, considerado o veículo informativo do núcleo local do Partido Communista do Brazil, subsistiu por 24 edições: seus últimos exemplares foram publicados no dia 10 de janeiro de 1920. A responsabilidade pela publicação cabia a um grupo editor, “estando a sua redação e administração a cargo respectivamente dos camaradas Astrojildo Pereira e Santos Barbosa (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1919, p.4)”. Os militantes anarquistas José Oiticica, Urich D'Avila, Izauro Peixoto, Adolfo Busse, Salvador Alacid e Cruz Junior foram os demais integrantes do grupo. O periódico, vale frisar, também publicava contribuições textuais de militantes outros — seja nacionais, ou estrangeiros. No decorrer de sua trajetória, a periodicidade do periódico foi semanal, sendo publicado aos sábados. Entretanto, já na primeira edição o grupo editor manifestou o desejo de tornar a publicação diária, contando, para tanto, com o apoio e as subscrições da classe operária. Maria Nazareth Ferreira argumenta que o formato dos jornais da imprensa operária variava conforme o papel a ser utilizado e as máquinas disponíveis, tendo predominância do tabloide, com uma “nítida preocupação de ocupar todo o espaço” no que atine à diagramação (MARIA NAZARETH FERREIRA, 1988, p. 21). O jornal Spártacus, aliás, configurou-se no formato descrito. No que tange ao número de páginas, há uma evidente padronização, sendo o periódico composto por quatro páginas na maioria de suas edições. As exceções remetem às edições de nº 7, 17, 18 e 22, publicadas em duas páginas[4] , Ademais, no intuito de contribuir com a politização e a organização do operariado, o periódico investia no aspecto formativo, divulgando, na recorrente seção “Brochuras de propaganda”, a venda e a distribuição de livros e folhetos, como o já citado O que maximismo e bolchevismo, de Edgard Leuenroth e Hélio Negro; Luta sindicalista revolucionária de Carlos Dias e Dictadura policial, de Astrojildo Pereira. A presença de recursos imagéticos foi um instrumento pouco utilizado pelo jornal, com charges sendo publicadas de forma esparsa. Há de se destacar, ainda, a publicação, sem periodicidade definida, da seção “Administração”, que apresentava o balanço financeiro do jornal — com dados referentes aos valores angariados por meio das subscrições de operários, pela arrecadação no núcleo local do Partido Communista do Brazil, em festivais e afins, bem como despesas com a tipografia, o aluguel do espaço e a redação. Os pretextos utilizados para justificar o nome do semanário operário foram discorridos por José Oiticica na primeira edição. O militante procurou explicitar a trajetória do gladiador trácio Spartacus, utilizando-o como símbolo de grupos oprimidos em diferentes períodos históricos. Spartacus foi apropriado como representante dos grupos revoltosos e revolucionários, constituindo um símbolo histórico para exortar os “descontentes de toda a Terra para realizarem , de uma vez a obra antiga de Harmonia Humana” — podendo aludir, aqui, tanto à solidariedade internacional preconizada pelos anarquistas quanto à própria Revolução Social[5] , Outros elementos indicam que a inspiração para o nome do periódico transcendia a figura de Spartacus. Karl Liebknecht, mencionado no excerto, foi um dos artífices da Liga Spartacus — de orientação comunista —, grupo que participou ativamente do processo revolucionário da Alemanha entre 1918 e 1923 (LOUREIRO, 2005). Tais eventos não eram estranhos à militância anarquista brasileira — nas celebrações do 1º de Maio de 1919, capitaneadas pelo Partido Communista do Brazil, houve manifestações de solidariedade aos trabalhadores alemães. Os acontecimentos envolvendo a classe operária de outros países, portanto, eram acompanhados pela militância libertária local; nessa leitura, aliada à perspectiva internacionalista e à conjuntura revolucionária em diversos países, é possível traçar um paralelo entre o grupo editor e os espartaquistas alemães, apropriando-se de um mesmo símbolo (CAMPOS, 1983, p.62). A proposta política capitaneada pelos sujeitos históricos que compunham o Spártacus, a intencionalidade propagandística, a análise e apropriação da conjuntura internacional podem ser pensadas por meio de um documento publicado na edição de número 9, datada de 27 de setembro de 1919. No manifesto “Os anarquistas brasileiros: ao povo”, assinado por 60 militantes, os anarquistas intentaram expor sua proposta de subversão da ordem vigente na sociedade capitalista, assinalando a satisfação ante a reação burguesa, o que denotaria a “prova real da eficiência” da ação libertária. O Primeiro e o Segundo Congresso Operário Brasileiro (ocorridos, respectivamente, em 1906 e 1913), foram apontados como fulcrais na sistematização da propaganda, possibilitando “força de irradiação e homogeneidade.” Esses sustentáculos engendrariam, ainda, incriminações contra os anarquistas, tachando-os de “estrangeiros”, “estrangeiros indesejáveis”, “agitadores profissionais” e “exploradores do operariado” (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1919, p.1-2). Questionando tais incriminações, o argumento precípuo dos militantes remetia a, pelo menos, quatro pilares: desmistificar a concepção do anarquismo como uma “planta exótica”, uma ideologia estranha e nociva para o trabalhador brasileiro; realçar que o ideário libertário não congregava apenas imigrantes (que, ainda, não seriam “indesejáveis” e, tampouco, criminosos, estando, em contingente expressivo, estabelecidos no Brasil desde a infância); evidenciar que os propagandistas, nacionais ou estrangeiros, tinham “profissão declarada”, vivendo “exclusivamente do exercício dela” e, finalmente, pontuar que os burgueses representavam os “exploradores do proletariado” — os militantes libertários, outrossim explorados, sacrificavam-se em prol dos interesses de trabalhadores e trabalhadoras. O manifesto apresentava, vale assinalar, a criação do Centro de Defesa Libertária, cujo papel seria o combate aos “sinistros planos reacionários” que beneficiariam os “piratas da agiotagem internacional”, alusão aos agentes do capitalismo internacional instalados nos países para explorar a classe trabalhadora, representando, portanto, os verdadeiros “indesejáveis”. A perspectiva internacionalista é destacável no texto, com exemplos como a saudação ao povo russo por ter iniciado a “imensa batalha redentora”. Afirmando-se “conscientes e seguros” do “papel histórico”, neste momento grandiosos e decisivo da civilização”, os signatários, evidenciaram, outrossim, seus objetivos imediatos e de longo prazo rumo à socialização dos meios de produção e ao protagonismo dos trabalhadores, que se organizariam em uma “confederação nacional de todas as agrupações e federações profissionais”(SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1919, p.1-2). Entre as características mais significativas do periódico, salientamos a interlocução mantida com outros jornais direcionados à classe operária, como o já citado e expressivo A Plebe. Na edição de 23 de agosto de 1919, por exemplo, publicou-se uma nota celebrando o fato de que o jornal de São Paulo se tornaria diário a partir de setembro, algo que, como já exposto, ia ao encontro das aspirações do grupo editor do Spártacus; em 4 de outubro, por sua vez, em anúncio de artigo do anarquista francês Sebástian Faure, a ser publicado na edição posterior, destacou-se que uma cópia do texto fora remetida ao jornal A Plebe, que o publicaria no mesmo dia do Spártacus. Essa articulação desenvolvida pelos diferentes grupos que compunham a imprensa operária evidencia que o movimento operário transcendia as fronteiras estaduais, estabelecendo uma rede de circulação dos jornais para diferentes espaços no território nacional (PETERSEN, 1995, p.135). As redes translocais desenvolvidas, além do envio de jornais, também se expressavam por meio da publicação de questões pertinentes à classe operária de diferentes regiões do país. Além da preocupação com o desenvolvimento de colaborações no plano nacional, a concepção internacionalista se fez presente no semanário operário. A seção “boletim da guerra social”, relativamente constante publicava telegramas de países da América e da Europa. Distintos artigos, boletins ou cartas relacionadas à situação revolucionária ou às agitações em países e regiões como a Alemanha, a Catalunha, a Hungria, a Itália e, principalmente, a Rússia, por exemplo, foram publicados (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1919, p.2). Ao longo da breve trajetória do jornal, houve uma quantidade expressiva de publicações relacionadas aos eventos da Revolução Russa — no geral, celebrando o processo revolucionário e criticando veementemente as ações dos países que constituíram a “Entente” durante a Primeira Guerra Mundial, estando associados aos grupos dominantes. Publicou-se, por exemplo, textos de expoentes do anarquismo no estrangeiro, como Errico Malatesta e Piotr Kropotkin, além de material de expoentes do bolchevismo como Vladimir Lênin e Leon Trotsky. Nesse sentido, os eventos da Rússia revolucionária contribuíram para um farto material de propaganda e de discussão, difundido pelo grupo que compunha o Spártacus. Nesse sentido, verifica-se um esforço propagandístico no sentido de aglutinar a classe operária em prol da construção da revolução social, tendo como base o exemplo russo. Entre os documentos relacionados à Rússia publicados pelo periódico, destaca-se o “Um documento: O Primeiro Congresso da Internacional Comunista”, de 08 de novembro de 1919, discorrendo sobre o evento ocorrido em março do mesmo ano. Entre os expoentes do grupo editor, os textos de José Oiticica são de grande valia para se pensar questões pertinentes à apropriação do processo revolucionário russo então em curso. Um dos redatores mais ativos do jornal (contribuiu textualmente em 20 das 24 edições), seus principais textos, relativamente extensos, foram publicados na primeira página, geralmente no primeiro quadrante superior — o que poderia denotar um possível prestígio entre seus pares[6] , Em artigo sobre a Revolução Russa, o militante anarquista preconizou que "Não ha duvida. A obra da revolução franceza se completa. Para conseguir-se a fraternidade moral dos homens é forçoso obter não a igualdade política, mas a igualdade economica, segundo pretendiam os sans-culottes de 89. O comunismo anarquico nos vem trazer essa fraternidade, mudando o regimen da concorrencia em regimen da cooperação. Só um milagre poderia impedir hoje essa transformação. E os milagres são do tempo antigo. (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1919, p.1)." Oiticica apresentava, portanto, uma concepção otimista sobre a revolução em curso na Rússia, consagrando-a como a finalizadora da obra revolucionária de 1789. Tal perspectiva denota uma espécie de continuum, isto é, uma linha em processo de continuidade que se iniciou na Revolução Francesa, passou pelo surgimento e avanço da propaganda maciça no sentido de conscientizar o proletariado do século XIX e culminou, por fim, na Revolução Russa. No artigo, procurou salientar, também, a importância da formação do conselho de operários e soldados (os sovietes) e teceu acintosas críticas ao “financismo inglês”, que objetivava minar o processo revolucionário em curso. Para o autor, o comunismo anárquico, que seria resultante da revolução, traria a "fraternidade" almejada na França do final do século XVIII. Em um segundo artigo, publicado pouco menos de um mês depois, nuances são observáveis. Remetendo a uma carta de Kropotkin publicada no jornal francês L'Humanité, Oiticica ponderou que "[...] como todos os anarquistas, êle [Kropotkin] sabe muito bem que o bolchevismo está longe ainda de realizar a sociedade anárquica.[...] Percebese, todavia, a impossibilidade atual de proceder diversamente. O característico dos Estados guerreiros é a concentração de todas as vontades numa vontade unica de comando e de todos os recursos materiais e mentais nas mãos de um chefe onipotente. A descentralização num exército, é a derrota: numa nação em guerra, o suicídio. [...] a autonomia imediata das comunas teria sido a morte da revolução russa. [...] A organização verdadeiramente sovietista, anarquista, só virá depois da vitória decisiva do proletariado em toda a Terra. E todos os anarquistas estão de acôrdo nesse modo de encarar a formidavel obra da revolução russa. (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 06 de novembro de 1919, p.1)" Para o anarquista, o bolchevismo, portanto, ainda distava das aspirações anárquicas, uma vez que a “ação dirigente” se concentrou em um poder centralizado, com pouca deliberação nas comunas — o contrário do que os libertários defendiam. Todavia, as questões com que a Rússia lidava, como a necessidade de consolidação do processo revolucionário e as pressões interna e externa, não ofertavam opções que não a centralização — a descentralização militar poderia ser desastrosa. Dois pontos se sobressaem: para o militante, a verdadeira organização sovietista só viria após a vitória do proletariado em escala global; todos os anarquistas estariam de acordo em encarar as condições revolucionárias da Rússia, qualificando-a como “formidável”. A autonomia imediata poderia resultar no precoce fim da experiência revolucionária. No entendimento de Oiticica, a Revolução Russa, a despeito de não estar inteiramente de acordo com as aspirações libertárias, constituía um modelo a inspirar o operariado de outros países — inclusive o do Brasil. O protagonismo do soviete enquanto ferramenta para o exercício de uma organização social pautada pelos interesses dos trabalhadores fica evidente nos textos do militante anarquista. Em “Previsões práticas”, José Oiticica se propôs a delinear o esboço de uma “futura constituição” comunista — com um caráter mais norteador do que rígido. O texto, extenso, propunha uma divisão territorial de cada país por zonas federadas que seriam divididas em municípios, ao passo que estes seriam compostos por comunas. O critério primordial de divisão seria o geográfico. Os trabalhadores se organizariam conforme seus ofícios, arbitrando e debatendo questões em assembleia própria. A classe, em suma, teria protagonismo na organização e na administração de sua rotina de trabalho. No que diz respeito à maneira a ser adotada pela futura sociedade comunista para coordenar e executar o decidido entre os trabalhadores, o autor propôs a criação de conselhos comunais, municipais, federais e um internacional, cujas atribuições remetiam à organização da produção, a formação educacional e outras questões pertinentes à classe trabalhadora (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1919, p.1). A estrutura social proposta, organizada do menor para o maior (comunal-municipal-federal-internacional), apresentava coerência com a perspectiva federalista. O projeto de organização da futura sociedade comunista, ainda, evidencia substancial influência russa, concedendo maior papel organizacional aos conselhos nos moldes dos sovietes. Os conselhos propostos pelos anarquistas, portanto, encontrariam paralelo nos sovietes, conselhos autônomos que articulavam operários e soldados utilizados como ferramenta de autogoverno — ao menos até a centralização do Partido Comunista (GOMES, 2012, p.48-56). A utilização de aspectos concernentes à Rússia revolucionária como instrumentos de propaganda e de organização da classe trabalhadora eventualmente apresentava a tentativa de conciliar pontos aparentemente inconciliáveis num primeiro momento. Para Manuel Ribeiro, no artigo “Definições: bolchevismo, anarquismo, sindicalismo...”: "O anarquismo é a base, uma função doutrinaria, educadora e filosofica, actuando nos espiritos e nas consciências, quasi com fóros de religião. [...] O sindicalismo é a organização pratica, é o regimen economico e administrativo das coisas na sociedade comunista. Bolchevismo, maximismo, espartacismo, significam ação, preparação, organização revolucionaria para a destruição violenta da sociedade capitalista burguesa e a instituição dum poder proletariano, - a dictadura operaria. Sovietismo é a organização economica desta fase transitoria do governo dos proletarios. (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1919, p.1)." O autor vislumbrava, portanto, a existência de uma harmonia entre o anarquismo e o bolchevismo, concedendo um aspecto relativamente ideal ao primeiro, ao passo que o segundo seria sua expressão concreta. O sindicalismo, meio de atuação por excelência dos anarquistas do período, teria um papel econômico, voltado à organização da produção da “sociedade comunista-anarquista”. O bolchevismo, ademais, resultaria na “dictadura operaria”, um “poder proletariano”. Diferente de um confucionsimo ideológico, essa proposta se mostra articulada aos debates anarquistas em nível internacional. Na mesma edição, por exemplo, publicou-se “Os anarquistas italianos e a dictadura proletária”, nota que tornava explícita a posição de organizações italianas como a União Anarquista da Itália: uma espécie de “apoio crítico” à ditadura do proletariado. Basicamente, esse apoio se daria no sentido de defender o processo revolucionário da reação “do capitalismo e dos seus governos”, os “principaes inimigos” dos libertários. Os anarquistas italianos, porém, reiteraram sua posição de “extrema esquerda revolucionaria do movimento”, afirmando que combateriam quaisquer feições autoritárias nos rumos da revolução (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1919, p.1). Em termos práticos, as questões atinentes à luta de classes se fizeram presentes no periódico. A seção “Ação proletária” restringia-se à exposição e à discussão de organizações de trabalhadores e movimentos grevistas presentes no país — sobretudo no Rio de Janeiro.Defendendo, como de praxe, a ação direta e a autonomia organizativa da classe, o jornal dava voz a acontecimentos que acometiam diferentes categorias profissionais. Ao tratar dos trabalhadores gráficos, por exemplo, os redatores enalteceram a resistência da Associação Gráfica no combate à prática de lockout declarada pelo Centro dos Industriais (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1919, p.1). O lockout, instrumento utilizado pelo patronato no intuito de dificultar as reivindicações da classe trabalhadora, inclusive, já havia sido criticado em texto anterior, “aspectos da luta de classes”. Para o redator Antonio Fernandes, o patronato paulatinamente estava se organizando enquanto classe, afirmando o caráter aviltante do lockout, que apenas estimularia ainda mais o afã do operariado (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1919, p.1). Além disso, os militantes anarquistas do periódico reiteravam a necessidade da ação direta e da independência de classe em relação a intermediários, seja do Estado, seja de outras entidades. A inserção do operariado na máquina do Estado por meio do “sufrágio universal” — que, segundo Oiticica, nada tinha de universal, uma vez que excluía pessoas por gênero, renda e afins — foi particularmente rechaçada pelo periódico, duro crítico de candidaturas de indivíduos que se reivindicavam representantes do operariado — tanto oriundos da própria classe, quanto exteriores a ela (SPÁRTACUS, Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1919, p.1). *** Considerações finais A conjuntura conturbada do final da segunda década do século XX, cujos efeitos se manifestaram em escala global, foi um período propício para o fortalecimento da organização operária (no geral) e da militância anarquista (em particular). Os eventos revolucionários na Rússia, irrompidos a partir de 1917, estimularam otimismo e confiança na consumação da tão almejada Revolução Social, a vir complementar as conquistas iniciadas com a revolução política na França de 1789. No que concerne especificamente ao caso brasileiro, a Revolução Russa fomentou demandas interessantes no aspecto organizativo e propagandístico. A criação de partidos no intuito de promover a arregimentação política de maneira coerente, sem quaisquer pretensões eleitorais, não era uma novidade na ampla tradição anarquista. Ainda assim, utilização do epíteto “comunista” para nomear organizações hegemonizadas pela militância libertária, embora não fosse incomum, potencializou-se com os eventos revolucionários da Rússia, que possuía o seu Partido Comunista. A fundação, em 1919, do Partido Communista do Brazil atendia a uma demanda do período, propugnando o estabelecimento de uma organização coesa com outras tendências políticas, interligando distintas regiões do território nacional, sem negligenciar a atuação nos espaços sindicais, vetor de massas do anarquismo por excelência no período. A imprensa operária, no caso de vertente anarquista, teve um papel significativo na conformação de estratégias e na divulgação de ideias. É fundamental assinalar as redes de comunicação desenvolvidas pelo movimento operário de diferentes regiões, utilizando-se da imprensa como ferramenta propagandística das ações operárias e demais aspectos atinentes à luta de classes. O expressivo jornal A Plebe, por exemplo, cujo advento remonta ao período de greves do ano de 1917, foi mais do que noticiador das demandas materiais do operariado: havia a preocupação de fortalecer o movimento operário tanto na cidade de São Paulo quanto no país, utilizando-se, para tanto, da divulgação da atuação da classe trabalhadora em nível internacional. O semanário carioca Spártacus, efêmero e relacionado ao Partido Communista de feições anarquistas, apresentou papel semelhante, concedendo significativo espaço às questões pertinentes a outros países, sobretudo à Rússia. No decorrer de sua célere trajetória, diversas publicações procuraram defender a importância da Revolução Russa não apenas para a classe trabalhadora russa, mas para o operariado em escala global. Em meio às variadas questões expostas neste artigo, procuramos evidenciar que as leituras e apropriações da Revolução Russa perpetradas pela classe operária pouco ou nada têm a ver com um confucionismo ideológico”, estando relacionadas a um amplo debate - nacional e internacional - envolvendo a conformação de novas estratégias e tentativas de inserir de maneira mais incisiva, entre a classe operária, as demandas revolucionárias oriundas do campo libertário. O próprio Partido Communista do Brazil é um revelador dessa preocupação por uma maior inserção, permitindo, ao contrário da Alliança Anarquista, o ingresso de sujeitos históricos declaradamente comunistas. As tentativas de relacionar as concepções anarquistas com a atuação bolchevique são indícios de que a classe operária brasileira perpetrava uma apropriação das ocorrências de forma a insuflar o movimento operário local. Excetuando militantes que migraram, posteriormente, para o campo do marxismo, expressivo contingente de libertários manteve um apoio crítico à Revolução Russa, ponderando os limites da ditadura do proletariado e reavaliando suas concepções quando da difusão de informações referentes à sistemática perseguição de anarquistas e outros segmentos revolucionários, encampada pelos bolcheviques. As ressalvas com os rumos do processo revolucionário então em curso se acentuaram significativamente no início da década de 1920, resultando no rompimento entre militantes que se mantiveram anarquistas, como Edgard Leuenroth e José Oiticica, e os que migraram para o campo do comunismo, como Astrojildo Pereira. Tal aspecto denota também uma reavaliação e uma conformação de novas estratégias e correntes políticas que pautariam a classe operária doravante, como a disputa entre o sindicalismo revolucionário e o estabelecimento de um partido vinculado à Internacional Comunista, com uma proposta mais centralizadora e, distintamente do partido fundado em 1919, adepto das disputas eleitorais. Fontes Alba Rossa. São Paulo. 1919-1922. Arquivo Edgard Leuenroth — Universidade Estadual de Campinas. A Plebe. São Paulo. 1917-1920. Arquivo Edgard Leuenroth — Universidade Estadual de Campinas. Guerra Sociale. São Paulo. 1915-1917. Arquivo Edgard Leuenroth — Universidade Estadual de Campinas. Spártacus. Rio de Janeiro. 1919-1920. Arquivo Edgard Leuenroth — Universidade Estadual de Campinas. Referências bibliográficas ADDOR, Carlos Augusto. A Insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dois pontos, 1986. CAMPOS, Cristina Hebling. O Sonhar Libertário: o movimento operário nos anos de 1917 a 1920. 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[3] Engendrada pela militância libertária e inspirada na Revolução Russa, a insurreição objetivava a instauração de um "soviete" (conselho) no então Distrito Federal. Foi duramente reprimida. Consultar ADDOR (1986). [4] As exceções foram justificadas pelos redatores: no caso da edição de número 7 (13 set. 1919), as dificuldades se relacionam à apreensão da edição anterior; os números 17 e 18 (respectivamente, 22 e 29 nov. 1919), devido ao déficit orçamentário acumulado; o número 22 (27 dez. 1919), por fim, à súbita ausência, não explicada, de Astrojildo Pereira. [5] A abordagem ahistórica do anarquismo foi uma constante entre teóricos e militantes. Autores como Piotr Kropotkin, por exemplo, defendiam que as lutas em prol da liberdade e contra a dominação pautaram a história desde sempre, sendo parte da "natureza humana". Tal perspectiva deve ser analisada na chave de uma disputa política e de propaganda, visto que os detratores do anarquismo argumentavam que sua proposta era contrária a uma “essência humana”. (CORREA, 2012, p. 57; 211-221) [6] A abordagem ahistórica do anarquismo foi uma constante entre teóricos e militantes. Autores como Piotr Kropotkin, por exemplo, defendiam que as lutas em prol da liberdade e contra a dominação pautaram a história desde sempre, sendo parte da "natureza humana". Tal perspectiva deve ser analisada na chave de uma disputa política e de propaganda, visto que os detratores do anarquismo argumentavam que sua proposta era contrária a uma “essência humana”. (CORREA, 2012, p. 57; 211-221)