Kauan Willian
“Fazer sindicalismo não é crime”
Sindicalismo revolucionário, repressão política e a luta por um internacionalismo
Sindicalismo Revolucionário, repressão política e o avanço do Estado nacional
De volta para o presente: a classe trabalhadora, as ruas e o internacionalismo
No fim de junho de 2024, a CGT (Confederación General del Trabajo), em conjunto com CNT (Confederación Nacional del Trabajo) e outros sindicatos e organizações políticas da Espanha, lançaram a campanha “Hacer sindicalismo no es delito” (Fazer sindicalismo não é crime) (CGT, 2024). A campanha se refere à condenação de 6 mulheres militantes da CNT de Xixón pelo Supremo Tribunal, acusadas de caluniar um empresário em campanhas por greves. Meses antes, o sindicato dos Metroviários e Metroviárias de São Paulo lançou o “Manifesto contra a perseguição aos metroviários de São Paulo” – a perseguição, no caso, era feita pelo governo de extrema direita do governador Tarcísio de Freitas, por greves contra a precarização e a privatização do serviço público (Sindicato dos Metroviários e Metroviárias de São Paulo, 2024). Nas greves contra a privatização das gestões das escolas públicas do Paraná, ainda em junho, a Procuradoria também pediu a prisão da presidente do sindicato dos professores do Estado (Brasil de Fato, 2024).
Essa repressão tem um contexto evidente. Como em diversas ocasiões de crise do capital, ou mesmo de reação da classe dominante à emergência de revoluções, as organizações dos trabalhadores foram extremamente atacadas, desmontadas, desmobilizadas, isso quando não estavam enfrentando a tentativa de absorvê-las às instâncias administrativas oficiais. David Harvey (2011) analisa que um dos impactos da crise de 2008 foi a mutação do neoliberalismo em vertentes ainda mais agressivas e autoritárias, de forma parecida com as consequências da crise de 1929, que havia gestando os corporativismos e fascismos. Soma-se isso ao fato iminente da articulação transnacional e global das extremas direitas no mundo, obtendo alinhamentos.
Embora tenha havido a tendência do corporativismo sindical, após a Segunda Guerra Mundial, de ser diferenciado como “legal” em relação aos movimentos tidos como “espontâneos”, principalmente em movimentos sociais ou exteriores à organização do mundo do trabalho, vemos que a classe dominante e seus aparatos repressivos organizados pelo Estado, não hesitam em atacar ou destruir tentativas de organização dos trabalhadores. Sendo assim, o corporativismo sindical nascido em meio aos nacionais-estatismos e o atrelamento e reconhecimento de sindicatos nos Estados tidos como democráticos após as ditaduras militares (principalmente no caso sul-americano) não impediram uma repressão política contra trabalhadores que lutam por seus direitos, em espaços legalizados ou não (FONTES, 2014).
De outra maneira, consideramos equivocadas as ‘teorias do fim do trabalho’ que surgiram no período pós-fordista na Europa e foram adotadas por diversas correntes da esquerda. Para André Gorz, o desenvolvimento da automação e a descentralização dos polos industriais, agora voltados para o setor de serviços, desfiguraram o movimento operário e colocaram em xeque o conceito de centralidade da revolução entre os trabalhadores industriais. Segundo sua análise, a produção guiada pela racionalidade econômica capitalista tornou-se inapropriável por uma racionalidade socialista. Nessa perspectiva, a proposta era acelerar a tendência antitrabalho, acreditando que isso poderia desestabilizar o capitalismo ao gerar contradições difíceis de serem corrigidas. Além disso, Gorz defendia a luta por valores universais desvinculados da consciência proletária, como garantias de renda mínima para a subsistência, ocupações, entre outros (GORZ, 1980).
Trazendo ao debate a história do sindicalismo revolucionário, principalmente anteriormente à Segunda Guerra Mundial, mas também experiências importantes de um sindicalismo combativo após esse período, defendemos aqui a tradição de uma organização dos trabalhadores que pode ser classista, internacionalista, anti-imperialista e revolucionária. Defendemos que tanto a tendência corporativista ou reformista dos sindicatos não podem conter os ataques, a repressão ou mesmo o avanço da expropriação da força de trabalho, principalmente sob as reordenações das formas políticas para os interesses do capital, como o avanço das extremas direitas. Da mesma forma, ideias e práticas de organizações ou grupos que negam a importância do mundo do trabalho, também não foram efetivos em edificar processos revolucionários e transformações estruturais. Um sindicalismo revolucionário e combativo, portanto, transcende relações corporativas autocentradas em determinadas categorias ou aspectos regionais e nacionais (embora seja importante tais dimensões em um primeiro momento) e deve edificar uma luta por unidade dos trabalhadores formais e informais, assim como desenvolver questões de libertação nacional, anti-imperialistas e internacionalistas.
Sindicalismo Revolucionário, repressão política e o avanço do Estado nacional
Analisando as tendências revolucionárias contemporâneas, o historiador Eric Hobsbawm assinala que, “entre 1905 e 1914, o típico revolucionário ocidental era uma espécie de sindicalista revolucionário” (HOBSBAWM, 1988, p.194). Gestado sob uma forma embrionária ainda na década de 1860, na Associação Internacional dos Trabalhadores, o primeiro órgão internacionalista da classe trabalhadora que uniu “mazzinistas, blanquistas, proudhonianos, comunistas, social-democratas, bakuninistas, coletivistas, entre outros” (SILVA, 2017, p.17), representava um avanço significativo dos esforços organizativos desses militantes.
A partir de 1868, os agentes em torno da Aliança da Democracia Socialista (ADS), ala coletivista da associação, retomaram o federalismo dos mutualistas proudhonianos e, com base em experiências anteriores nas manifestações populares de diversas partes da Europa, extremaram seu caráter revolucionário. Eles primavam pela organização pelo método federalista, pelos métodos da greve e da ação direta (e não o uso do Parlamento) tendo em vista da tomada nos meios de produção e não apenas reformas. Além disso, almejavam a “unidade econômica do proletariado”, em “contraste com a corrente alemã que propunha uma orientação mais política – partidária” (SAMIS, 2007, p.10). Essa posição possuía representantes na Inglaterra, Rússia, Itália, França, Espanha, Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, e em pouco tempo chegava a Cuba, México, Argentina e Uruguai. Para Selmo Nascimento Silva, “apesar de chegar ao final da década de 1870 relativamente descaracterizada, a AIT forneceria, de um lado, os princípios e as concepções do sindicalismo revolucionário, especialmente o federalismo e a contestação da via eleitoral” (SILVA, 2017. p.281).
Em 1906, era assinada a Carta de Amiens da CGT (Confédération Générale Du Travail) na França. Para muitos pesquisadores, tal documento seria o modelo mais desenhado desta proposta que confrontava o sindicalismo trade-unionista e que primava pela ação direta e pelo federalismo (PEREIRA, 2008, p.13).
O sindicalismo revolucionário, hegemônico também no Brasil até a década de 1920, mostrava que trabalhadores podiam se organizar independente de religião, etnia, posição política, em torno de lutas de curto prazo apontando para uma perspectiva revolucionária (TOLEDO, 2013). Acreditavam e acreditam, os adeptos da estratégia do sindicalismo revolucionário, que a construção dos movimentos e a vivência dos explorados entre si, obtendo vitórias através das suas lutas, acumulando experiência, assim como desenvolvendo solidariedade nas derrotas, seria uma “ginástica revolucionária”. A pedagogia da ação direta orientaria os trabalhadores sobre os processos do trabalho e a exploração que decorre do mesmo. Refletindo sobre ganhos e perdas dentro dos processos das lutas imediatas, os trabalhadores fomentariam um movimento que surgisse desde as bases para o topo, da periferia para o centro. O objetivo seria conectar greves locais rumo a greves gerais, com um horizonte de deflagração de um processo revolucionário ou de transformação profunda da sociedade. Seriam assim criadas condições para a destituição dos donos dos meios de produção e, consequentemente, para a construção de novas estruturas de organização social pelas mãos de trabalhadoras e trabalhadores, tendo em vista a superação do Estado.
Na prática, havia ainda um debate intenso entre os sindicalistas revolucionários mais pragmáticos e seus principais promulgadores do período, os anarquistas. Para os socialistas libertários, embora o sindicalismo revolucionário fosse muito importante, ele não bastava: eram necessários outros meios de organização, como escolas populares, imprensa livre e operária, espaços culturais, redes de afinidade e outros organismos. Outros anarquistas, como o italiano Errico Malatesta, afirmavam que eram necessários organismos políticos anarquistas que, “tanto dentro como fora dos sindicatos, lutam pela realização integral do anarquismo e procuram esterilizar todos os germes da corrupção e da reação” (MALATESTA, 2000, p.164) influenciando os métodos de ação direta e impedindo seu corporativismo ou reformismo. Outros socialistas usavam a estratégia de ação direta do sindicalismo revolucionário sem deixar de se organizar em partidos que poderiam influenciar as posições do sindicato, mas também utilizando estratégias parlamentares ou representativas, como era o caso dos membros do PSI (Partido Socialista Italiano) no interior da USI (União Sindical Italiana) e na COB (Confederação Operária Brasileira) (BIONDI, 2011).
De todo modo, nas primeiras décadas do século XX podemos observar a construção de organismos potentes que uniam diversas tendências revolucionárias e a própria classe trabalhadora a partir de elementos econômicos concretos, independente de religião, crença ou ideário político prévio. Uma das características interessantes do sindicalismo revolucionário, especialmente no Sul global, é que sua organização não se limitava a organizar categorias profissionais, mas conseguia unir trabalhadores em seus próprios territórios, através de ligas de bairro e até mesmo por meio de conexões étnicas e transnacionais. Tanto no Peru quanto no México, o sindicalismo revolucionário unia trabalhadores camponeses e das cidades, muitos deles indígenas, ajudando a conquistar direitos e territórios dos povos originários e tradicionais (HIRSCH, 2020). No caso da África do Sul, Lucien Van der Walt mostra que, ao agregar também tais correntes políticas, mas, sobretudo, trabalhadores racializados e imigrantes, desenvolveu “um movimento multirracial e anticapitalista, […] e se centralizou, cada vez mais, em uma estratégia de Um Grande Sindicato (One Big Union) como instrumento de classe, bem como de liberação nacional” (VAN DER WALT, 2010, p.175). No Brasil, na América Latina e em outros lugares, estudos têm mostrado que muitos dos anarquistas e sindicalistas revolucionários eram pequenos proprietários, barbeiros, trabalhadoras de lares, trabalhadores de fábricas, camponeses e pessoas em situação de rua (SANTOS, 2021). Nesse sentido, sindicalistas revolucionários estavam envolvidos na construção de eventos que transcendiam o mundo específico do trabalho, como a Greve de Inquilinos em Buenos Aires, na Argentina, organizada na luta pelo direito à moradia em 1907 (SILVA, 2017). Na greve geral de 1917, em São Paulo, a Federação Operária de São Paulo (FOSP) unia as ligas de bairro, as escolas operárias, e os organismos sindicais por categoria, numa greve e manifestação de massas (TOLEDO, 2013). Assim, para Lucien Van der Walt,
enquanto a CNT espanhola representava apenas metade dos trabalhadores sindicalizados (a moderada Unión General de Trabajadores, UGT, representava a outra metade), os movimentos anarquistas e sindicalistas da Argentina, do Brasil, do Chile, de Cuba, da França, do México, do Peru e de Portugal representavam quase a totalidade do movimento sindical (VAN DER WALT, 2016, p.129).
Os esforços, contatos e redes transnacionais e internacionais, rompendo com a lógica de se limitar à organização de trabalhadores dentro dos limites nacionais, foram cruciais para campanhas e momentos revolucionários significativos. Em 1909, o sindicalismo revolucionário serviu de base para mobilizar a população em greves e manifestações massivas contra a ocupação espanhola no Marrocos. Entre 1912 e 1913, as redes sindicalistas, socialistas e anarquistas, em torno das comunidades italianas, denunciavam as guerras balcânicas em diversos países como na Argentina, no Brasil e nos E.U.A. Após o colapso da Segunda Internacional, podemos ver a influência das posições revolucionárias no Congresso de Zimmerwald, na Suíça, aprovando protestos massivos contra a Primeira Guerra Mundial.
Não era possível realizar greves e boicotar a guerra sem espaços e métodos que organizavam os trabalhadores massivamente. Por isso, foram essenciais os organismos sindicalistas revolucionários como a Federación Anarquista Regional Argentina (FORA) ou a Industrial Workers of the World (I.W.W.) nos E.U.A., na Austrália e em diversos outros lugares. (DAMIER, 2017). Em 1915 a Confederação Operária Brasileira (COB) organizou o Congresso Internacional da Paz, conectando Argentina, Chile, Uruguai, Portugal e outros países, influenciando as greves, paralisações e intentos revolucionários em diversas dessas regiões (SANTOS, 2018). Não é exagero dizer que a influência de um projeto que primava a ação direta, a organização de base, o anti-imperialismo e o internacionalismo forneceu um caldo para a cultura política radical da classe trabalhadora, influenciando a Revolução Mexicana (1911-1913), a Revolução Russa (1917-1921), a Revolução Makhnovtchina na Ucrânia (1918-1922), a Revolução Espanhola (1936-1939), entre outros processos insurrecionais ou revolucionários.
Visualizando isso, a estratégia da classe dominante, e mesmo das transformações do Estado nacional diante das guerras mundiais, foi dupla. De um lado, usavam os aparatos estatistas para uma intensa repressão contra os militantes sindicalistas, anarquistas e socialistas. O historiador Diego Galeano analisa magistralmente como, entre o século XIX e XX, as polícias e o aparato repressor do Estado também buscavam vínculos transnacionais, “cruzando fronteiras nacionais para enfrentar um conjunto de práticas criminais territorialmente elusivas” (GALEANO, 2016, p.16). No Brasil, após o ciclo insurrecional entre 1917-1920, Arthur Bernardes construiu uma espécie de campo de concentração no norte do país (Clevelândia do Norte), aproveitando para prender e assassinar diversos tenentistas, anarquistas e sindicalistas revolucionários (SAMIS, 2019). Além da repressão intensa, de outro lado, as mutações do Estado nacional, tanto no entreguerras quanto após a Segunda Guerra Mundial, usavam o corporativismo sindical absorvendo muitos organismos, métodos e a estrutura sindical para o funcionamento dessas sociedades.
Para António Costa Pinto “o corporativismo imprimiu uma marca indelével nas primeiras décadas do século XX, tanto como um conjunto de instituições criadas pela integração forçada de interesses organizados (principalmente sindicatos independentes no Estado), quanto como um tipo “orgânico-estatista” de representação política alternativa à democracia liberal” (PINTO, 2016, p.27). Nesse processo, é evidente que surgiram muitas contradições. Muitos trabalhadores e militantes sentiram que seus direitos poderiam ser reconhecidos pelo Estado e acabaram disputando essa estrutura sindical mais institucionalizada. No entanto, isso não ocorreu sem danos a longo prazo para a independência de classe e para os métodos transformadores que poderiam desafiar a lógica social e política burguesa-estatista.
Ainda assim, o avanço da exploração sobre os trabalhadores e as limitações dos chamados ‘socialismos reais’ na libertação da classe trabalhadora resultaram em momentos de ruptura com as lógicas impostas. Tanto o operaísmo na Itália quanto o ‘Maio de 1968’ na França são frequentemente vistos como movimentos que se opuseram aos sindicatos e partidos políticos, mas, na realidade, foram momentos de resistência à burocracia dessas organizações, que se mostraram inadequadas diante das transformações nos Estados-nacionais e no capitalismo.
Esses movimentos não estavam desvinculados do mundo do trabalho. Pelo contrário, o operaísmo italiano, por exemplo, teve suas raízes nas lutas dentro da fábrica da FIAT em Mirafiori e na revolta da Piazza Statuto. Da mesma forma, o ‘Maio de 1968’, além das manifestações de rua, foi marcado por greves massivas, algumas das maiores da história (BIRKE; HUTTNER; OY, 2009). Não é coincidência que o enfraquecimento da Ditadura Militar no Brasil tenha sido iniciado por greves em lugares como Osasco (SP) e Contagem (MG) em 1968, que posteriormente contribuíram para o surgimento de um sindicalismo de massa, como o Sindicalismo do ABC, capaz de mobilizações intensas nas ruas e de paralisar a produção (MATTOS, 2009, p. 117-153).
De volta para o presente: a classe trabalhadora, as ruas e o internacionalismo
Em 2016 ocorreu a maior greve da história da humanidade, na Índia. Para o governo, a greve e seus atos contaram com um milhão de pessoas, mas, para a imprensa, foram 150 milhões, mais próximo da contagem dos sindicatos, que marcou 180 milhões de trabalhadores. A greve foi convocada por dez sindicatos diferentes de funcionários públicos em protesto às políticas de privatização do primeiro-ministro Narendra Modi. Seu impacto econômico foi avaliado em cerca de dois bilhões de dólares (Brasil de Fato, 2010).
É emblemático tal caso, pois, ele aparece após diagnósticos de que instituições sindicais estariam falidas e que a organização do mundo do trabalho seria substituída pela tomada das ruas de forma espontânea, volátil e heterogênea, começando com Primavera Árabe em 2010, e tendo picos intensos como em Junho de 2013 no Brasil ou a no Chile entre 2019 e 2020 (CANETTIERI, 2023).
Para nós, o principal erro dessas hipóteses é ignorar que muitas greves sindicais e a organização no mundo do trabalho foram concomitantes a essas insurreições. Esse é o caso de organismos como o I.W.W. nos EUA, no Occupy Wall Street, ou da greve massiva de educadores pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), em 2014. Outro caso emblemático é que as hipóteses de espontaneísmo levam a ignorar que, em 2013, “greves atingiram recorde e mobilizaram 2 milhões de trabalhadores” (Rede Brasil Atual, 2015).
Vale notar, contudo, que também é equivocado ignorar o potencial dessas reivindicações e novos métodos que podem, inclusive, influenciar a radicalidade na base sindical dos trabalhadores. Esse foi o caso da greve dos garis em 2014, no Rio de Janeiro, atropelando a burocracia sindical e impondo uma vitória contra o Estado. Não podemos esquecer dos estudos que evidenciam que tais insurreições não contém apenas pessoas tão diferentes do ponto de vista econômico, mas apresentam o perfil de trabalhadores precarizados (BRAGA, 2015). Evidentemente, “corpos vulneráveis” e diversas opressões se relacionam e são potentes agentes nas tomadas das ruas, como aponta Judith Butler (2018), mas concordamos com a definição de Marcelo Badaró Mattos de que “a classe trabalhadora não é definida apenas pela posição em relação aos meios de produção, pois também define a si mesma, na medida em que desenvolve uma consciência de classe e apresenta um potencial de atuação como sujeito de transformação social” (MATTOS, 2019, p.145).
Um caso interessante de como a organização do mundo do trabalho, atualmente, se relaciona com outras questões, como a de gênero, étnica e de território, é o caso da Revolução Curda no norte da Síria, declarando um território autônomo a partir de 2011. Nesse processo, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) relaciona os sindicatos, ainda gestados na década de 1960, com os conselhos de bairro ou distrito, guerrilhas, grupos intelectuais, feministas, juventudes e movimentos anticoloniais na construção do Confederalismo Democrático, destaca Maria Florência Ribeiro (2015). Para Erick Eiglad, estudioso da ecologia social e do comunalismo:
É particularmente importante a necessidade de combinar os conhecimentos dos movimentos progressistas feministas e ecológicos com os novos movimentos urbanos e as iniciativas cidadãs, assim como sindicatos e cooperativas e coletivos locais (…) Acredita-se que as ideias comunalistas de uma democracia baseada em assembleias irão contribuir para tornar esta mudança progressiva de ideias possível em bases mais permanentes e com mais consequências políticas diretas. Ainda que o comunalismo não seja só um meio tático para unir estes movimentos radicais. Nosso chamado por uma democracia municipal é uma tentativa de dar razão e ética para a frente da discussão pública (EIGLAD citado em RIBEIRO, 2015, p.80).
Para Glaucia Sena (2022), uma das inspirações fortes nesse processo foi o anarcossindicalismo da Revolução Espanhola, uma vertente do sindicalismo revolucionário. As milícias feministas, famosas nas fotografias desse processo revolucionário, também têm paralelos com
a Federação Nacional de Mulheres Livres [que] foi um grupo independente e autônomo que se reuniu em 1937 [na Espanha] que no pouco tempo de atuação teve êxito em ajuntar as demandas comuns às mulheres trabalhadoras das fábricas, trabalhadoras domésticas e mulheres que tinham família, em um esforço para encaminhar essas demandas aos movimentos de trabalhadores anarquistas do movimento operário (SENA, 2022, p.72).
Outro caso emblemático é o de organismos sindicais que declararam apoio e greves diante do genocídio implicado pelo Estado de Israel, influenciado pelos E.U.A., contra a Palestina. A CNTTL (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística) em conjunto com a FUTAC (Federação Unitária do Transporte, Portos, Pesca e Comunicação da América e Caribe), FSM (Federação Sindical Mundial) e com a UIS (União Internacional dos Sindicatos), por exemplo, lançaram a campanha: “Chega de Guerra, Israel! Basta de Genocídio ao povo Palestino” e a Organização de Estivadores Portuários de Barcelona (OEPB) está se recusando a transportar armas para Israel e Ucrânia (CNTTL, 2024).
É evidente o porquê de a classe dominante continuar a almejar destruir a organização dos trabalhadores, como os sindicatos e outras formas de organização. Ao contrário do que se possa pensar, as crises do capital frequentemente resultam em um aumento na exploração da mais-valia para garantir lucro, mesmo durante esses períodos. O trabalho não desapareceu; ao contrário, novas formas de precarização e proletarização, como as relações de trabalho por meio de aplicativos, foram introduzidas. A organização sindical e dos trabalhadores, especialmente quando ameaça um corporativismo alinhado aos interesses do capital, representa a maior ameaça às narrativas individualistas e “empreendedoras” que caracterizam os defensores dessas formas de trabalho. Além disso, ao transcender as fronteiras nacionais, a classe trabalhadora ganha em potência. No entanto, para isso, é crucial não ignorar as questões nacionais; devemos seguir o exemplo dos trabalhadores que lideraram as revoluções do século passado sendo internacionalistas, buscando conexões transnacionais que possam culminar em uma unidade global, utilizando métodos históricos comprovados da classe trabalhadora, como a ação direta e a autogestão. Eles nos enfraquecem divididos, nós nos fortalecemos quando estamos unidos.
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