#title O irracionalismo político: um condicionante fatal para os oprimidos #author Kauan Willian #LISTtitle irracionalismo político: um condicionante fatal para os oprimidos, O #SORTauthors Kauan Willian #SORTtopics racionalismo, pós-modernismo, identitarismo #date 07/06/2019 #source Adquirido em 19/06/2019 de http://elcoyote.org/o-irracionalismo-politico-um-condicionante-fatal-para-os-oprimidos-kauan-willian/ #lang pt #pubdate 2019-06-18T22:00:00 ** Uma origem do irracionalismo nos movimentos sociais e o paradoxo do “biopoder” Em um debate já clássico para historiadores, o intelectual italiano Carlo Ginzburg, discutindo com outros pesquisadores que afirmam que não há possibilidade de apreender a realidade nas interpretações históricas, e que as narrativas e discursos – com suas ideologias e pensamentos do seu tempo – são predominantes nas pesquisas, elabora uma hipótese muito interessante. Para ele, “por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos de presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, boiotas de esterco, tufos de pelo, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar e interpretar e classificar pistas infinitesimais com fios de barbas. Aprendeu a fazer operações com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas (GINZBURG, 1990, p.2).” O homo sapiens, assim como outros hominídeos, para o historiador, aprendeu a interpretar rastros para a sua sobrevivência. Assim, a pegada de um leão se diferencia de uma outra, de um humano ou predador. Seus rastros serviam para antecipar um ataque, uma caça ou uma defesa, não podendo seu discurso ser maior que a prova. A pegada de um leão sugere um leão e não um elefante, sua interpretação está baseada numa prova concreta, mesmo que o objeto não esteja lá. Desse modo, as pegadas, assim como o cheiro das plantas, faziam parte de um arcabouço de interpretação que sugeria pistas da realidade. É o chamado “paradigma indiciário”, o mesmo paradigma usado para interpretadores dos quadros de arte perceberem seus autores não assinados, ou mesmo a veracidade destes. Para ele, assim, citando também Freud, esse paradigma é inerente à própria sobrevivência e perpetuação da espécie humana, algo que forjou, na longa duração, toda a ciência, incluindo a história, a ciência política, e podemos dizer, até a política em si. Assim sendo, Ginzburg acha que os discursos que negam que existe uma realidade e até uma totalidade, o pós-estruturalismo, o pós-modernismo – e acho que podemos encaixar aqui parte do identitarismo – negam o próprio extinto de sobrevivência da espécie humana. Humanos e seus grupos sociais aprenderam a sistematizar a realidade para aprendê-la, assim dominando-a de certa maneira e garantindo a vivência do maior número de membros. Dessa maneira, os discursos historiográficos que negam a realidade, os revisionismos que sobrepõem narrativas a provas e outros – e, o que estou tentando tensionar aqui, os discursos políticos e de movimentos sociais que fazem o mesmo – na verdade tem uma origem e um objetivo. Para ele, esse pensamento vem muito antes da virada pós-moderna após a queda do muro de Berlim ou com a ascensão do neoliberalismo, mas com a critica à modernidade no próprio século XIX. Friedrich Nietszche, um dos representantes dessa crítica, foi um autor importante e influente após sua morte. A demolição da religião, a desconstrução do conceito moral do bem e do mal, a autoafirmação do ser na sociedade foram importantes conceitos ressignificados de acordo com o espectro político de variadas tendências e assumiu um lugar no arcabouço da leitura de liberais à extrema esquerda. No entanto, parte importante de seu pensamento era recusado para os racionalistas, especialmente os esquerda, era a negação da própria realidade, dando destaque para os subjetivismos do ser: “O que é então a verdade? Um exército móbil de metáforas, metonímias, antroporfismos, em resumo: uma suma de relações humanas que foram reforçadas poéticae retoricamente, que foram deslocadas e embelezadas e que após um longo uso, parecem a um dado povo, sólidas, canônicas e vinculatórias. As verdades são ilusões das quais se esqueceu a natureza evasiva, são metáforas que se esgarçaram e perderam toda forma sensível, são moedas cujas imagens se apagaram e são levadas em consideração apenas como metal e não mais como moedas (NIETZSCHE apud GINZBURG, 2002, p.24).” Para Amarildo Lemos (2015), “Nietszche reduz, portanto, a verdade a um conjunto de tropos – expressões que carregam significados: sentido figurado” (p.70). Para ele também, era a origem do “abandono da ideia da totalidade.” As ideias de Nietszche foram se infiltrando em correntes minoritárias da política como o individualismo e correntes antiorganizadoras (que negavam qualquer tipo de organização) como os insurrecionalistas anarquistas – em contraposição de correntes hegemônicas em ascensão entre o século XIX e começo do XX, como os anarquistas de massas (maioria sindicalistas), marxistas e republicanos, todos racionalistas. No entanto, a crítica à ciência enquanto espaço de poder e seus abusos, a noção de progresso usada para a dominação – de origem nietzschiana (mas não só) – era usada por muitos desses grupos contra grupos dominantes como os positivistas e monarquistas, por exemplo (com toda a razão), deixando infiltrar ideias pós-estruturalistas no progressismo. Estava ali – ainda mais depois do fim da URSS, provando que a ideia de poder podia ser usada em meio ao estruturalismo e ao progresso – a porta de entrada para Foucault recusar o estruturalismo, ao mesmo tempo em que se enxergava como progressista no campo da ciência. Nesse período, e depois nas manifestações de maio de 1968, o autonomismo teve uma ascensão nos movimentos sociais, eram grupos que se recusavam a se anexar a uma ideologia ou corrente política, mesmo movimentos antiestatistas históricos como o anarquismo ou socialismo libertário classista (LEFORT; CASTORIADIS; MORIN, 2018). Não obstante, o mesmo motivo que Nietszche foi muito influente e lido por nazistas – para negar a apreensão da realidade dos marxistas, colocando a identidade dos alemães em primeiro lugar em suas narrativas, assim como a ideia de superação de si subvertida – Foucault e seus derivados tiveram um lugar de destaque em interesses neoliberais, ainda mais aproveitando que algumas dessas ideias estavam infiltradas na esquerda. É por isso que para o intelectual Perry Anderson, o pós-modernismo tem sua ascensão justamente com o neoliberalismo. A ideia de biopoderes nos movimentos sociais, na verdade uma leitura rasa de Foucault (2008), que todos são oprimidos por outros grupos: negros por brancos, brancos gays por héteros, mulheres por homens, transgêneros por cis, etc – assim diluindo as classes sociais econômicas – caiu como uma luva para o discurso neoliberal capitalista de que a vitória depende de si e que todos apresentam dificuldades, algumas maiores e outras menores, para serem superadas, portanto, não necessária a intermediação do Estado, movimentos sociais, sindicatos e grupos para essa regulação. ** Nietzsche e sua ideia de “super-homem” Assim, é recusada a ideia de que a política deve ser um programa que une elementos díspares, mas, ao contrário, as diferenças se sobrepõem a interesses comuns. Um ideário irracionalista – que atribuí a verdade às sensações (“como sou negro, tenho sempre razão de racismo a um branco”) sobrepostos a teorias totalizantes, dados e pesquisas – necessárias inclusive para combater o racismo com mais efetividade, já que ele é totalmente apreensível na realidade –é totalmente visível em discursos e até teorias de “lugar de fala”, que inclusive recusam bibliografias e pesquisas, muitas vezes, feitas por brancos, que por sua posição enquanto ser branco supostamente reproduziriam um discurso nesses dados, mesmo inconsciente, enquanto “dominador”. O projeto (ou não-projeto) não seria um ataque fatal ao capitalismo, o patriarcado ou o racismo estrutural, com programas que incluam todos para essa destruição, mas ao meu vizinho, irmão, amigo, uma vigilância do ser individual e a superação do meu eu individual, numa vigilância eterna – já que para eles uma revolução não resolveria o problema dos biopoderes – que paradoxalmente foi combatida por Foucault, assim, um formidável “vigiar e punir.” Não atoa grupos “oprimidos” vem apoiando as prisões de seus “opressores”, não percebendo que a maioria das prisões são destinadas aos grupos oprimidos, portando construindo seus próprios muros. A extrema direita, para pesquisadores como Andrew Korybko (2019), ascende atualmente nesse bojo, ela usa as diferenças e a diluição de discursos para inflar manifestações de diversos tipos – já que não tem bandeira clara nem direcionamento – infiltrando interesses imperialistas e de desestabilização de um projeto nacional e até de uma esquerda com acordo tático. O discurso da “opressão do eu” caí como uma luva para o “racismo reverso” (“já que quem sente sou eu”), para discursos de disputa e crescimento individual, para a não aceitação de cotas para “indivíduos”. Os militantes de extrema direita também utilizam a narrativa inversa muito bem e fazem crer ao “homem branco” que os discursos pós-estruturalistas “são da esquerda” e que esses querem tirar tudo o que ele já tem, como o único emprego só por causa da sua posição de nascimento. Como os pós-estruturalistas não apresentam um projeto revolucionário em que todos vivam melhor quebrando esse sistema e sua posição é de disputa de vagas de emprego e de universidade entre esses brancos e negros (ou lgbtq, mulheres, etc), por exemplo, e que esses últimos agora é que merecem essas vagas, os homens (ou mulheres brancas diante de mulheres ou homens negros, negros heterossexuais diante de Lgbtqs, etc, o “bipoder”) destituídos dos meios de produção são obrigados a apostar num retorno do passado, um conservadorismo para a sua própria segurança, ou mesmo de discursos agressivos contra os “grupos minoritários.” ** O racionalismo como salvaguarda e vitória dos oprimidos É certo que a educação estatista foi usada para a legitimização do Estado Nacional desde Napoleão Bonaparte. A educação jesuítica ou imperialista também aumentou e legitimou o poder de grupos dominantes. Assim, as críticas a modelos rígidos e autoritários da educação são importantes e necessárias para a redenção de todos os subalternos e oprimidos. Mikhail Bakunin, um dos construtores do socialismo libertário no final do século XIX fazia uma crítica intensa a esses modelos de educação, o que foi chamado na tradição anarquista de “dominação ideológica”. Mas, o irracionalismo nietzchiano não era uma saída viável para o militante. Ao contrário, para ele, “Aquele que sabe mais dominará naturalmente aquele que sabe menos; ese existir entre duas classes apenas esta diferença de educação e de instrução, esta diferença produzirá em pouco tempo todas as outras, o mundo humano voltará ao seu estado atual, isto é, será dividido de novo numa massa de escravos e num pequeno número de dominadores, os primeiros trabalhando, como hoje, para os segundos (BAKUNIN, 2013, p.39).” Criticando os liberais, mas também os marxistas estatistas, ele dizia que era só uma educação de trabalhadores feita por trabalhadores, e oprimidos por oprimidos, pensando suas próprias teorias, estratégias e táticas seria possível tanto destruir o sistema dominante, mas qualquer outro governo, mesmo os ditos revolucionários que pudessem usar a alienação contra os grupos subalternos. Ademais, para ter autogestão e rotatividade nos cargos políticos, no emprego, em pesquisa – pensado pelos socialistas libertários – haveria que ter muita erudição e conhecimento de práticas diversas – a chamada “Instrução integral.” Não foi em vão a criação de inúmeras bibliotecas, traduções, grupos de estudos e de cultura, e escolas fora do espectro estatal por anarquistas, como no Brasil no começo do século XX – o nome bem sugestivo para a ocasião , as Escolas Modernas com ensino racionalista (CACCAVELI; SANTOS, 2016). A experiência socialista de Cuba após sua revolução, vendo as críticas à URSS a essa questão em seu endurecimento, usou também a educação como entrada para a continuação de seu governo mais igualitário em relação aos seus países vizinhos – embora com outros problemas à vista. Para Margarita López, “além, portanto, de constituir um dever elementar de humanidade e justiça social, a educação para Cuba também constitui um imperativo dessa época e a segurança de seu futuro na preparação das novas gerações, para garantir a continuidade da obra revolucionária empreendida há mais de meio século. Daí que no centro do trabalho educacional cubano apareça como objetivo principal seguir trabalhando em seu aperfeiçoamento permanente para atingir o cumprimento pleno de seus objetivos, o que leva na atualidade à aplicação de importantes transformações (LÓPEZ, 2011, p.56). ” A autora lista que, em Cuba, os principais pontos do seu sistema educativo são a “Abrangência da educação”, a “Combinação do estudo com o trabalho”, a “Coeducação”, a “Gratuidade” e o “Caráter democrático.” Ela defende que o que fez Cuba não findar, mesmo após várias crises, foi esse caráter educativo, avaliado por órgãos como a ONU e pelo Banco mundial como um dos melhores da América Latina. O caráter educativo e racionalista também tem um lugar de destaque no feminismo da Revolução Curda de Rojava, que estabeleceu um governo autônomo e democrático nessa região auto-organizado e socialista libertário. As mulheres revolucionárias, após combaterem o Estado Islâmico e imperialistas, matando muitos homens e pessoas contra-revolucionárias nos seus embates, educam os homens e crianças com uma perspectiva feminista. Para elas, “A perspectiva fundamental nesta educação está baseada no paradigma democrático, na economia-ecológica e na emancipação de gênero. Criamos um sistema diferente da educação desenvolvida pelo estado-nação, acreditamos que a produção de conhecimento deveria ser devolvida à sociedade. E isso mudará tudo, desde os métodos de educação, utilizando os edifícios e até a construção da vida diária na academia. Os diretores e professores nas escolas do estado ao invés de educar as pessoas foram sempre alguém de quem todos têm medo. Somos diferentes deles, estabeleceremos uma relação baseada na igualdade e na amizade (AKIF, N]D).” Para os revolucionários curdos o processo de educação é a base da autogestão e da democracia e a construção do conhecimento, assim das barreiras de gênero e outras são essenciais, em contraposição de uma educação fornecida pelo Estado-Nação já que “a mentalidade que se impõe aos meninos e meninas através do antigo sistema de educação deve mudar.” O patriarcado, para elas, portanto, não é algo apenas que se sente, mas que se aprende de cima para baixo, tendo então, que unir um projeto comum, que inclua homens e mulheres – e claro, nessa questão as mulheres na frente (sempre organizadas e não individualmente) – numa educação e numa política que destrua o patriarcado e esse sistema de opressão, enxergando-o atrelado ao capitalismo, ao imperialismo e ao Estado Nacional. Não é coincidência que um projeto político autoritário quando se estabelece faça exatamente o contrário – queime livros, feche universidades e tire dinheiro da educação, como foi no nazismo e com a ascensão da extrema-direita no Brasil desta vez. A única saída para a classe trabalhadora é defender a memória – toda a memória do mundo inteiro – a intelectualidade, a Universidade, o conhecimento, a teoria e a apreensão da realidade e da totalidade. ** Referências BAKUNIN, Mikhail. A Instrução Integral. São Paulo: Editora Imaginário, 2003. CACCAVELLI, Bruno; SANTOS, Kauan Willian dos. “Educação e Protesto: no rastro das escolas e grupos racionalistas e sindicais e as reivindicações operárias em São Paulo na segunda década do século XX.” ESPAÇO PLURAL, v. 17, p. 520-550, 2016. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Paz e Terra, 2008. GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ______. Relações de força: história, retórica e prova. São Paulo: Cia das Letras, 2002. LEMOS, Amarildo. “Carlo Ginzburg: O Conhecimento Histórico Frente Ao Discurso Pós-Moderno.” Revista Sinais, vol.2, n.1, 2015. LEFORT, Claude; CASTORIADIS, Cornelius; MORIN, Edgar. Maio de 1968: a brecha. Fundação Perseu Abramo, 2018. “O Sistema Educativo em Rojava: Uma entrevista com Dorsin Akif por Derya Aydin.” Biblioteca Terra Livre. Disponível em: https://bibliotecaterralivre.noblogs.org/o-sistema-educativo-em-rojava/