Kauan Willian
Piotr Kropotkin.
Aspectos do pensamento social do revolucionário russo: sincronia desde baixo, ecologia, internacionalismo e sindicalismo combativo
“Nada esperes da humanidade se tu próprio paralisas tua força de ação” (Piotr Kropotkin).
Era uma congelante madrugada, no dia 8 de fevereiro de 1921, quando um dos mais influentes anarquistas e socialistas de todos os tempos faleceu. Seu funeral na Rússia soviética foi massivo, mais de 100 mil pessoas desfilaram em um cortejo de 8 km na cidade de Moscou até o cemitério de Cemitério Novodevichy. Centenas de bandeiras de organizações políticas, grupos científicos, sindicatos e organizações estudantis estavam hasteadas, não só anarquistas. O comitê central soviético, nesse período reprimindo libertários, não conseguiria barrar a homenagem a um militante, teórico e pessoa tão bem quista diante dos trabalhadores e outros oprimidos naquele país e no mundo. Não só autorizaram a organização desse grande evento, mas também libertaram alguns detidos políticos para participarem dele (MORRIS, 2007).
No mundo inteiro, o movimento operário de diversas matizes, entre China, Itália, Espanha, Argentina, Estados Unidos e muitos outros, prestaram homenagens, ou mesmo atos e greves diante da morte do anarquista russo Piotr Kropotkin. Muitos revolucionários, mesmo posteriormente comunistas, como Astrojildo Pereira, por exemplo, diziam que entre suas obras iniciadoras no campo socialista estavam “A Conquista do Pão” (1892). Mais do que isso, suas obras como essa e “Mutualismo: um fator da evolução” (1902), seus escritos no periódico La Revolté, assim como suas cartas para sindicatos, grupos revolucionários e associações diversas, circularam em grandes eventos como a Revolução Mexicana, sendo veiculados pelos irmãos Ricardo e Enrique Flores Mágon, e a própria Revolução Russa, por Volín, e outros socialistas (HIRSH; VAN DER WALT, 2010). A influência do revolucionário russo vai além das primeiras décadas do século XX, e foi retomada pelas ideias da ecologia social de Murray Bookchin nos anos 1960, e citado por Abdullah Öcalan, influenciando a Revolução Curda (2013).
Não obstante, a perseguição contra ideias e práticas socialistas libertárias, tanto de governos liberais, fascistas e até mesmo dos “socialismos reais”, fizeram propositalmente as ideias e influências de Kropotkin e outros revolucionários serem apagadas, invisibilizadas ou mal interpretadas, até mesmo caluniadas. Projetos que acompanham uma retomada de leituras socialistas e de estudos libertários e anarquistas para além dos propagandeados pelos Estados-nacionais estão sendo reconstruídos mais fortemente nas últimas duas décadas, muito influenciado pela decadência da esquerda estatista em vários países, assim como a partir da influência das lutas antiglobalização e da propagação de redes móveis, de tradução e divulgação pela internet.
No centenário de sua morte, esse ano, diversos pesquisadores, grupos educativos, organizações políticas e outros, tentaram evidenciar um pouco de suas obras, seus pensamentos e práticas, como o Colóquio Internacional Piotr Kropotkin, organizado pelo departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, em Julho. Além disso, tivemos livros de textos inéditos em português da Biblioteca Terra Livre e pela editora Intermezzo como a obra “Socialismo” e excertos de seus debates pelo Instituto de Teoria e História Anarquista, entre outros.
Acompanhando esse caminho, nesse breve texto mostraremos, a partir de alguns debates atuais da esquerda, como alguns caminhos que Piotr Kropotkin apontavam, podem ser ainda ótimas ferramentas de luta e reflexão. Muito do que está sendo retomado e debatido pode encontrar, como fizeram os trabalhadores e oprimidos do século passado, uma fonte de reflexões, debates e caminhos.
Socialismo em sincronia e ecologia
Nas últimas décadas, a força dos povos originários, indígenas e camponeses contra o neoliberalismo, como na América Latina, forçaram ainda mais a esquerda a se ater, em seus programas, teorias e na própria práxis, na questão de terras, ecologia e em um socialismo sincrônico, decolonial e que retira suas premissas eurocêntricas. O peruano José Carlos Mariátegui é um pensador lembrado na tradição marxista por colocar várias dessas questões, escritas entre 1923 e 1930 e publicadas apenas depois de 1950 (TRIBLE, 2020).
Ainda assim, Piotr Kropotkin, que influenciou, por exemplo, o anarcossindicalismo peruano e a Revolução Mexicana, dois fenômenos que evidenciavam a questão indígena e de terras, assim como um socialismo adaptado à questão de povos originários, colocava muitas questões interessantes sobre o assunto, ainda no final do século XIX (HIRSH; VAN DER WALT, 2010).
Em A Conquista do Pão (1892), ao contrário da maioria dos panfletos europeus socialistas que privilegiarem o trabalhador-fabril e uma conquista de poder político no molde europeu, Kropotkin lançava as bases para o direito “ao bem-estar para todos”, incluindo uma expropriação contra o capitalismo e o latifundiarismo que contemplava “cidades, casas, campos, oficinas, vias de comunicação” retornando “à comunidade tudo o que servir para se obter o bem-estar (KROPOTKIN, 2011, p.27)”. Sua teoria, ancorada como geógrafo, não só observando o mundo industrial, mas, por exemplo, a Sibéria, onde constatou a vida dos camponeses e caçadores, presenciando formas diretas de cooperação e sociedades mais igualitárias, o fez expandir uma proposta que englobasse oprimidos de diferentes sistemas econômicos, políticos e sociais.
Nesse sentido, olhando para a história europeia, ele defendia em 1890 que “os últimos 50 anos forneciam a prova viva da impotência do governo representativo” que apenas serviu como uma forma de subjulgar a liberdade social e econômica, e centralizar o poder político em apenas classes abastadas. Ao contrário, “uma sociedade livre, reentrando na posse da herança comum, e na livre federação (KROPOTKIN, 2011, p.24)” era o projeto colocado pelo teórico e militante Russo. Não era o caso de simplesmente voltar à Idade Média, como acusavam socialistas e republicanos estadistas contra anarquistas e socialistas libertários, mas de encontrar um molde que, vendo a falência do Estado, serviu e serve historicamente e que pode, sem opressão, ligar, modelos políticos e econômicos de todo o mundo. A forma comuna era, assim, um modelo sincrônico político e econômico que ligava as Américas, o Oriente e o Ocidente.
Isso nos leva a pensar a emergência das questões ambientais e ecológicas, que desde 1960 causou debates acirrados em vários grupos e tendências da esquerda global, tanto preocupados com o extrativismo do capital, gerando riscos sérios e irreversíveis para o planeta, ou mesmo de modelos socialistas que ignoraram tais questões, causando danos ambientais ou reproduzindo tal forma de extração (LOWY, 2014). O socialismo de Piotr Kropotkin, antes disso, dava pistas da necessidade de se atentar ao ritmo da terra e da natureza, aos modelos sustentáveis de produção e da necessidade para a descentralização industrial. Nesse sentido acreditava que não era necessário recuar a tecnologia, mas usá-la para diminuir as horas de trabalho. Com a forma de consumo e organização social apenas atendendo as necessidades, a combinação de agricultura e fábricas poderia ser totalmente viável de maneira sustentável já que “o comunismo, isto é, uma visão sintética do consumo, de produção e de troca, […] torna-se assim a consequência lógica dessa compreensão das coisas” (KROPOTKIN, 2011, p.124). Para ele, “uma comuna que praticar em grande escala os processos de pequena cultura, terá todos os produtos possíveis” (KROPOTKIN, 2011, p.124). Isso nos lembra movimentos de pequenos agricultores contemporâneos, que, a partir da policultura e da variedade produtiva, criam uma forma de produção mais sustentável em relação à monocultura e o latifundiarismo.
Além disso, a visão biológica e científica de Kropotkin em “Ajuda Mútua” de que “à concepção de uma solidariedade superior que englobe a espécie como um todo” (KROPOTKIN, 2009, p.29) se contrapondo à Darwin, onde a competição tinha uma predominância maior, parece que teve efeitos nos níveis de organização de classe, na leitura de diversos movimentos sociais, sociedades de socorro mútuo, cooperativas e sindicatos que, além da luta contra a classe dominante, precisavam de estratégias e concepções que os auxiliassem para a construção de projetos coletivos de combate à pobreza e carestia entre os próprios oprimidos e trabalhadores. Não é nenhum exagero falar que tal visão era mais sincrônica com as cosmovisões indígenas e do pensamento originário americano de integração e contato com a os ciclos da natureza, o que levou, entre outros motivos, sua divulgação e reprodução, no início do século XX, em periódicos libertários do México, Cuba, Bolívia, Perú e outras regiões onde proletariado de origem indígena era majoritário.
O próprio Kropotkin dizia que “todos os movimentos tiveram esse caráter de universalidade e variedade, é necessário reconhecer a variedade: é a própria vida. (KROPOTKIN, 2021, p.21).”
Internacionalismo
Concordamos aqui com o pesquisador sul-africano Lucien Van der Walt quando defende que “a crise das grandes tradições “progressistas” do final do século XX – o marxismo clássico, a socialdemocracia e o nacionalismo anti-imperialista – diante da crise econômica global, da globalização do capital, da inquietação popular, e de uma ordem geopolítica em transformação, é, fundamentalmente, uma crise de projetos construídos em torno de um Estado capacitador” (WALT, 2017, p.1-2). De fato, as tradições socialistas, principalmente hegemônicas após a segunda metade do século XX, com certeza aumentaram sua simbiose com o projeto de Estado-nação e foram diluindo seu internacionalismo ou transnacionalismo prático (LINDEN, 2013)
Piotr Kropotkin, embora assumindo uma posição em favor dos aliancistas no período da Primeira Guerra Mundial, o que parecia estranho para o movimento anarquista global ( antimilitarista e contrário à Guerra), foi, paradoxalmente, por vezes, inspiração para esse internacionalismo libertário, nesse período e depois (SANTOS, 2015). Sua visão não provinha de um internacionalismo abstrato ou de apelo à necessidade, mas primeiramente pela constatação que a disputa do “Estado burguês” pela social-democracia ou por sua tomada se transformaria “numa reação contra outros povos sem Estado”. Nesse sentido também, “sem falar do futuro, da revolução, cada benefício obtido pelo Estado, pela via legislativa, traz consigo uma submissão a mais do operário ao Estado” (KROPOTKIN, 2021, p.87). Para provar isso polemizava com Bernstein, social-democrata que chegou a defender formas de colonialismo, mas principalmente mostrando como as posições estatistas e de disputa pelo poder político iam contra o projeto original da Primeira Internacional dos Trabalhadores, onde a luta econômica e a diluição de interesses nacionais estava em sintonia com as categorias trabalhistas e demandas internacionais, criando “uma luta direta entre assalariados e capitalistas” (KROPOTKIN, 2021, p.127).
Para o militante e teórico russo, ainda, o internacionalismo, por meio da estratégia sindical, era tanto a luta que atravessava fronteiras criadas para favorecer a burguesia, mas também a forma de organização futura. Por isso ele dizia que “o objetivo da internacional era a revolução”, não a “revolução política […] mas a revolução social, que permitiria aos trabalhadores das cidades e aos camponeses apoderar-se de tudo o que é necessário para produzir, e proceder à organização do comunismo.” (KROPOTKIN, 2021, p.126).
Outra constatação sua era que o próprio modelo comunal, e nisso a experiência da Comuna de Paris havia mostrado, era o melhor modelo para o internacionalismo. Primeiramente ela deveria ser “organizada não por cima, por um poder qualquer […] mas de livres acordos, elaborados pelos próprios produtores e consumidores, em suas comunas livres e suas federações de produção.” Esse modelo seria “o despedaçamento do Estado centralizado”, ou seja, “um ponto de partida de uma república diferentemente da republicana” (KROPOTKIN, 2021, p.167) onde se buscaria a diluição da centralização, buscando a igualdade e liberdade pela descentralização. A forma comuna ainda, descentralista como os sindicatos revolucionários e suas categorias e entidades internacionalistas, teriam o mesmo molde e práxis, para lutarem conjuntamente, contra os Estados centralizados, que seriam usados pela burguesia para reprimir tais projetos.
Sindicalismo Combativo
Em países que tiveram seus direitos trabalhistas forjados pelo cultura do sindicalismo revolucionário, como o Brasil, vemos que seu atrelamento ao Estado-Nacional (o corporativismo), ou mesmo seu uso pela social-democracia não conseguiram barrar os projetos de precarização das relações de trabalho que avançam nesse século.
Piotr Kropotkin, assim como outros companheiros que militavam nos sindicatos revolucionários do século passado, tinham uma outra visão desses organismos de luta. Primeiramente, na visão deles, esse método de luta econômica, construído de baixo para cima, do regional, da categoria do trabalho, para o nacional e internacional, não poderia ser misturado com a tentativa de tomada do poder político, pois se definharia, já que essa conquista “era organizar o proletariado, para levar a burguesia a partilhar o poder com alguns representantes operários” enquanto “as massas operárias renunciavam doravante a atacar a burguesia” (KROPOTKIN, 2021, p.150).
Não só desatrelado ao Estado, mas contra ele, essa estratégia era “o uso da ação direta pelo Trabalho contra o Capital” criando a “necessidade de que os próprios trabalhadores desenvolvam as formas de organização econômica com as quais seja eliminada a exploração capitalista” (KROPOTKIN, 2020), ou seja, os meios iguais aos fins que se quer obter.
Através das greves parciais, greves gerais, boicotes e outros, além do apoio mútuo nos sindicatos, treinando o trabalhador para a Revolução (a ginástica revolucionária), ao reconhecer que tais vitórias parciais foram obras de seus organismos e de sua participação ativa, e não do Estado, ele depositará sua força e suas esperanças nesse projeto, e não mais na melhoria (e no fortalecimento) do próprio Estado burguês. Para Kropotkin, “nada de liberdade política enquanto a liberação econômica do explorado não caminhar junto com a libertação política (KROPOTKIN, 2021, p.153).”
“Nada de sociedade livre até que o indivíduo seja livre”
O neoliberalismo e o neofascismo apostam em seus discursos na defesa da liberdade, fazendo contraposição às ditaduras e a presença do Estado, nesse ideário algo opressivo. Com isso jogam o socialismo – que nesse momento de ataque neoliberal defende os direitos mínimos do Estado de bem-estar social – como inimigos da liberdade. Essa é uma ótima estratégia já que não há ser social que não busque ser livre de alguma forma.
Precisamos defender, como socialistas, que também somos extremamente à favor da liberdade. Mas essa liberdade não é falsa como esse discurso, ela vem caminhando junto com a igualdade – é a liberdade de todos em conjunto. E isso é uma valiosa lição que libertários (verdadeiros libertários, os socialistas libertários) como Piotr Kropotkin, acreditavam e lutavam. O historiador Rudolf Rocker acertava ao falar que “o socialismo de Kropotkin é uma espécie de síntese em que o anseio por liberdade pessoal e igualdade social se unem” (KROPOTKIN, 2021, p.16)
Nesses tempos onde a “liberdade” que os poderosos pregam virou sinônimo de trabalhar em aplicativos mais de 12 horas por dia para sobreviver, acharemos valiosas lições em Piotr Kropotkin, não só 100 anos depois de sua morte, mas enquanto durar qualquer dominação.
Referências
HIRSCH, Steven; VAN DER WALT, Lucien (Org.).Anarchism and Syndicalism in the Colonial and Postcolonial World, 1870-1940: The praxis of national liberation, internationalism and social revolution. Leiden, Brill, 2010.
KROPOTKIN, Piotr. A Conquista do Pão. Achiamé, 2011.
KROPOTKIN, Piotr. Ajuda Mútua: um fator de evolução. A Senhora, 2009.
KROPOTKIN, Piotr. Socialismo. Intermezzo/ Biblioteca Terra Libre, 2021.
KROPOTKIN, Piotr. Sindicalismo e Anarquismo. Instituto de Teoria e História Anarquista, 2020.
LOWY, Michael. O que é ecosocialismo? Editora Cortez, 2014.
MORRIS, Brian. The anarchist-geographer: an introduction to the life of Peter Kropotkin. Genge Press, 2007.
SANTOS, Kauan Willian dos. “Paz entre nós, guerra aos senhores”: anarquistas diante da Primeira Guerra Mundial. Prismas, 2015.
TIBLE, Jean. Marx Selvagem. Autonomia Literária, 2020.
VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Unicamp, 2013.
VAN DER WALT, Lucien. “De Volta para o Futuro: a retomada e a relevância do anarquismo, do anarcossindicalismo e do sindicalismo revolucionário para a esquerda e os movimentos de trabalhadores do século XXI”. ITHA, 2016.