Título: O anarquismo durante a ditadura militar brasileira (1964-1985)
Autor: Libera
Data: 8/2024
Fonte: Originalmente na edição nº 180 do jornal Libera, de setembro de 2024. Adquirido em socialismolibertario.net

A história do anarquismo na ditadura militar é pouco conhecida, seja pelos próprios militantes, seja pela historiografia do tema. Devido a esforços de memória dos próprios anarquistas e/ou de investigações históricas, esse panorama vem se modificando. Hoje sabemos mais sobre a luta da militância anarquista após os golpes militares ocorridos no Brasil (1964), Uruguai (1973) e Argentina (1976). Ao contrário do Uruguai e da Argentina, não havia no Brasil uma organização política capaz de articular a militância anarquista daquele período. No final dos anos 1950, o anarquismo teve dificuldade de prosseguir com sua militância sindical (restrita a SP, RJ e RS) e o projeto de uma organização política nacional naufragou. O principal meio de articulação do anarquismo, além de reuniões formais, estava vinculado à produção dos jornais O Libertário, em SP, e Ação Direta, no RJ. Assim que o golpe militar estourou no país, o anarquismo possuía dois espaços culturais ativos, o Centro de Cultura Social (CCS), em São Paulo, e o Centro de Estudos Professor José Oititica (CEPJO), no Rio de Janeiro. Tais espaços, ao menos na década de 1950, não tinham o objetivo culturalista de serem espaços “fechados em si mesmos”, mas de se espalhar para bairros populares, a partir de uma estratégia classista de inserção nas classes oprimidas.

Com o golpe, os anarquistas paulistanos passaram a publicar um novo jornal, intitulado Dealbar, que usava uma linguagem mais prudente, evitando os olhares da repressão. Contudo, neste período, o anarquismo prosseguiu com iniciativas de militância no nível social. Diante a eferverscência da luta estudantil, jovens libertários impulsionaram a formação do Movimento Estudantil Libertário (MEL), uma organização que visava influenciar o movimento estudantil e coordenar os estudantes libertários, com o objetivo de criar uma organização local e, depois, nacional. O MEL chegou a atuar dentro da UNE (à época, uma organização com limites, mas de luta) e participou de inúmeras passeatas estudantis, muitas delas duramente reprimidas, nos estados do Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

A dificuldade de inserção social no sindicalismo e em movimentos populares fragilizou a base social do anarquismo naquele período, fato que se complicou ainda mais com a repressão sofrida pelo MEL e pelo CEPJO. Em outubro de 1969, já com o regime militar endurecido, 18 militantes libertários do Rio de Janeiro seriam presos/as e alguns destes/as torturados/as por agentes da Aeronáutica. Os/as militantes foram processados/as pela Procuradoria da Justiça Militar por acusação de desrespeito à Lei de Segurança Nacional. O processo durou até 1972, quando todos/as foram absolvidos depois de um grande esforço jurídico de articulação. Tal processo, entretanto, somado à falta de uma organização política que pudesse definir uma linha em um contexto ditatorial, terminou com quaisquer possibilidades de ação pública do anarquismo no auge da ditadura.

De 1972 a 1977, o anarquismo brasileiro passou, provavelmente, por sua mais difícil fase no século XX em termos de relevância social e atuação pública. A repressão contra a luta armada atingia não apenas seus integrantes, mas quaisquer opositores do regime. Durante esse período, os anarquistas se limitaram a fazer reuniões semiclandestinas (não estavam sendo procurados formalmente, mas não podiam fazer atividades públicas) e sua imprensa encontrava-se totalmente desbaratada. Foi apenas no contexto do início da transição pactuada e da completa derrota da luta armada pela repressão que o anarquismo voltou a se organizar com mais intensidade.

O surgimento do jornal O Inimigo do Rei em 1977, a partir da ação de estudantes baianos, passou a rearticular e difundir o anarquismo naquele período. O jornal passou a incorporar novas ferramentas teóricas e reflexões sobre questões raciais, de gênero, ecológicas, indígenas e sexuais que foram muito importantes para oxigenar a ideologia. Apesar das inovações, a falta de coesão interna, o espírito de síntese organizativa e a fragmentação teórica fizeram com que houvesse grandes divergências de linha política. A falta de uma organização política anarquista de cunho programático (tema aliás que sequer era abordado no jornal), também limitou o avanço da ideologia no período e o jornal transformou-se num espaço de articulação, quando deveria ser um meio.

A despeito disto, experiências sindicais importantes de inserção social foram tocadas, como a formação de coletivos sindicais atuando na categoria do funcionalismo público, jornalistas e a formação do Coletivo Oposição Sindical. No movimento estudantil, os anarquistas tentaram organizar a Federação Libertária Estudantil (FLE) e na luta comunitária, participaram de experiências de organização nos bairros ainda durante a ditadura. Todas essas ações, valorosas do ponto de vista político, foram, no entanto, solapadas não apenas pelas dificuldades vigentes naqueles tempos difíceis, mas por falta de um planejamento consistente, que só poderia ser realizado numa instância política específica, de anarquistas. Não à toa, o anarquismo brasileiro ao fim da ditadura teve enorme dificuldade em se reorganizar, enquanto no uruguaio, mesmo com mortos e desaparecidos em suas fileiras, contou com a experiência de uma organização política anarquista programática (Federação Anarquista Uruguaia) e classista, que permitiu acumular politicamente, o que facilitou sua reorganização.

Devemos ser generosos ao estudar o anarquismo em diferentes contextos históricos, mas também críticos e autocríticos, visando não repetir os erros do passado. Na história não existe “se” nem “talvez”, mas a falta de uma organização política, com uma linha em comum, classista e revolucionária, assim como o desenvolvimento de uma unidade teórica, política e prática, poderia ter acumulado, mesmo num contexto de uma ditadura militar. O anarquismo teria saído mais fortalecido durante a redemocratização, menos fragmentado e com mais capacidade política de intervenção nacionalmente. Independentemente da avaliação, precisamos resgatar a presença do anarquismo neste período, aprendendo com os acertos e erros do passado, rumo ao futuro socialista e libertário que tanto almejamos.