Lima Barreto
Carta de Lima Barreto a Célestin Bouglé
Escrevo-lhe, Sr., cheio de audácia, após terminar a leitura de seu livro – “A Democracia diante da ciência”. Peço que perdoes meus erros de francês. Envio esta carta para ofececer-lhe apontamentos sobre a atividade dos mulatos em meu país. Antes de mais nada, preciso dizer que sou mulato, jovem também, 25 anos, e que fiz meus estudos na Escola Politécnica do Rio, tendo deixado de continuar o curso (engenharia) para me entregar à literatura e ao estudo das questões sociais. Atualmente, sou redator em duas pequenas revistas do Rio, onde nasci, e trabalho no Ministério da Guerra.
Ao ler seu livro, observei que o Sr. é um amante dos [ilegível], e que pode servir-lhe a respeito dos mulatos do Brasil. Nas já notáveis letras brasileiras, os mulatos estiveram sempre bem representados. O maior de nossos poetas vicinais, Gonçalves Dias, era mulato; o mais estudado de nossos músicos, um Palestrina, José Maurício [Nunes Garcia], era mulato; os grandes nomes atuais da literatura, Olavo Bilac, Machado de Assis e Coelho Neto, são mulatos. A corrente mulata dura já um século e meio, desde Caldas Barbosa (1740-1800) e Silva Alvarenga (1749-1814) até Bilac, Neto e M. de Assis. Tivemos grandes jornalistas mulatos: José do Patrocínio (também farmacêutico), Ferreira de Menezes e Ferreira de Araújo, sábios, escritores, médicos, eruditos, etc.
Se quiser apontamentos mais elaborados, posso enviá-los em uma outra carta. Peço-lhe perdão por escrever tão mal na sua bela língua, mas me vi forçado a dissipar certas opiniões falsas que o mundo civilizado tem sobre as pessoas de cor.
Faço votos, sr. Bouglé, de que o sr. saiba ver nesta carta um desejo muito puro de verdade e de justiça, saído de uma pequena alma vibrante.