Título: Carta de Lima Barreto a Célestin Bouglé
Data: 1905/1906
Notas: A Série Documentos Literários, colaboração da Divisão de Manuscritos, apresenta a tradução do rascunho de uma carta enviada por Lima Barreto ao sociólogo e filósofo francês Célestin Bouglé, um republicano e positivista militante próximo de Émile Durkheim. A data provável de envio da carta (não há data, já que é um rascunho) é 1905 ou 1906. O mote para o envio da carta é o livro “La démocratie devant la science. Études critiques sur l’hérédité, la concurrence et la différenciation”, publicado em Paris em 1904. Lima, após a leitura do livro, sentiu-se impelido a entrar em contato com o autor e ressaltar as contribuições dos mulatos (termo utilizado por Lima Barreto) para a vida cultural e científica do Brasil. Segundo ele, tratava-se de “dissipar certas opiniões falsas que o mundo civilizado tem sobre as pessoas de cor”. Lima apresenta-se ao francês, repassa sua origem e suas atividades então correntes, e esboça uma linhagem de intelectuais “mulatos” que começa no período colonial e vai até o início do séc. XX. A carta, com muitas rasuras e que não está assinada, integra o Arquivo Lima Barreto, que está sob a guarda da Divisão de Manuscritos e recebeu o Registro Memória do Mundo da UNESCO em 2017. Encontra-se em exposição na mostra “130 anos de Abolição: Luta, Resistência e Consciência”, que ficará até agosto na sala da Divisão de Manuscritos, no 3º. Andar do prédio sede da Fundação Biblioteca Nacional. Segue a tradução feita por Hudson Rabelo, da Divisão de Manuscritos:

Escrevo-lhe, Sr., cheio de audácia, após terminar a leitura de seu livro – “A Democracia diante da ciência”. Peço que perdoes meus erros de francês. Envio esta carta para ofececer-lhe apontamentos sobre a atividade dos mulatos em meu país. Antes de mais nada, preciso dizer que sou mulato, jovem também, 25 anos, e que fiz meus estudos na Escola Politécnica do Rio, tendo deixado de continuar o curso (engenharia) para me entregar à literatura e ao estudo das questões sociais. Atualmente, sou redator em duas pequenas revistas do Rio, onde nasci, e trabalho no Ministério da Guerra.

Ao ler seu livro, observei que o Sr. é um amante dos [ilegível], e que pode servir-lhe a respeito dos mulatos do Brasil. Nas já notáveis letras brasileiras, os mulatos estiveram sempre bem representados. O maior de nossos poetas vicinais, Gonçalves Dias, era mulato; o mais estudado de nossos músicos, um Palestrina, José Maurício [Nunes Garcia], era mulato; os grandes nomes atuais da literatura, Olavo Bilac, Machado de Assis e Coelho Neto, são mulatos. A corrente mulata dura já um século e meio, desde Caldas Barbosa (1740-1800) e Silva Alvarenga (1749-1814) até Bilac, Neto e M. de Assis. Tivemos grandes jornalistas mulatos: José do Patrocínio (também farmacêutico), Ferreira de Menezes e Ferreira de Araújo, sábios, escritores, médicos, eruditos, etc.

Se quiser apontamentos mais elaborados, posso enviá-los em uma outra carta. Peço-lhe perdão por escrever tão mal na sua bela língua, mas me vi forçado a dissipar certas opiniões falsas que o mundo civilizado tem sobre as pessoas de cor.

Faço votos, sr. Bouglé, de que o sr. saiba ver nesta carta um desejo muito puro de verdade e de justiça, saído de uma pequena alma vibrante.