Lucien van der Walt
Anarquismo, sindicalismo de intenção revolucionária e anti-imperialismo (1860-2010)
Nota sobre a utilização terminológica e tradução deste artigo:
Norte da África e África do Sul
Nota sobre a utilização terminológica e tradução deste artigo:
Neste artigo, o termo “syndicalism” poderia ter sido traduzido simplesmente como “sindicalismo”. Entretanto, minha preferência, como editor e revisor, – foi traduzir “syndicalism” como “sindicalismo de intenção revolucionária”. Utilizo como justificativa para tanto um texto em que Kauan W. dos Santos e Rafael V. da Silva, citando um trecho meu, afirmaram: “Fazemos isso [traduzir ‘syndicalism’ como ‘sindicalismo de intenção revolucionária’] não no intuito de criar um novo conceito, nem de evitar a utilização do termo ‘sindicalismo revolucionário’, mas de dar uma solução a uma limitação concreta da língua portuguesa. [...] Nossos interlocutores que se comunicam em inglês possuem os termos ‘syndicalism’ e ‘unionism’ [...] para designar dois tipos distintos de sindicalismo. O primeiro refere-se às formas revolucionárias de sindicalismo (que incluem o sindicalismo revolucionário e o anarcossindicalismo) que, segundo entendemos, foram e são estratégias de massas da tradição anarquista. O segundo refere-se tanto ao sindicalismo anterior ao anarquismo, quanto ao sindicalismo reformista, desenvolvido em países como Inglaterra e Estados Unidos e que foi chamado, em algumas ocasiões, de ‘trade-unionismo’ ou simplesmente ‘unionismo’. Como em geral não há rigor nessa distinção no Brasil, onde se chama muitas vezes o ‘trade-unionismo’ ou ‘unionismo’ simplesmente de ‘sindicalismo’, e como entendemos ser muito substancial a distinção entre sindicalismo revolucionário e anarcossindicalismo, tentamos com essa expressão encontrar um sinônimo para o ‘syndicalism’ anglófono, que abarque tanto o sindicalismo revolucionário quanto o anarcossindicalismo. Escolhemos ‘sindicalismo de intenção revolucionária’, dando continuidade a utilizações anteriores de pesquisadores de nossa corrente, mas poderíamos ter escolhido ‘formas revolucionárias de sindicalismo’ ou outros termos.” Numa “Nota preliminar sobre os termos”, que abria originalmente o artigo “Anarquismo Global e Sindicalismo de Intenção Revolucionária: teoria, história e resistência”, Lucien van der Walt também discutiu a questão, colocando: “Deve-se observar que, quando uso o termo ‘sindicalismo de intenção revolucionária’ (syndicalism), eu o faço no sentido da língua inglesa, de acordo com o significado restrito de sindicalismo revolucionário e/ou de anarcossindicalismo; não na acepção das línguas românicas ou latinas, com o significado amplo de sindicalismo (unionism) [que inclui o sindicalismo reformista ou tradeunionismo]. Quando me refiro apenas ao ‘anarquismo’, quase sempre incluo o ‘sindicalismo de intenção revolucionária’ (tanto o sindicalismo revolucionário quanto o anarcossindicalismo) como variante dessa ideologia. O sindicalismo revolucionário e o anarcossindicalismo são formas específicas de sindicalismo (unionism), no sentido genérico, enraizadas na tradição anarquista, estratégias do anarquismo e não ideologias ou movimentos distintos.” Algumas vezes, por questão de forma, os termos “syndicalism” e “syndicalist(s)” são também traduzidos como “anarcossindicalismo e sindicalismo revolucionário” e “anarcossindicalista(s) e sindicalista(s) revolucionário(s)”. Não se trata de uma questão de preciosismo, mas, sem esse procedimento, e traduzindo “syndicalism” como “sindicalismo”, inúmeras afirmações do texto ficariam equivocadas, anacrônicas etc. (N. E.)
O movimento anarquista, anarcossindicalista e sindicalista revolucionário tem uma longa história de envolvimento com as lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional, desde seu surgimento, na Associação Internacional dos Trabalhadores – a “Primeira Internacional” (1864-1877).
Esse envolvimento inclui atividades em regiões coloniais e pós-coloniais, dentre as quais estão: partes do Caribe, da América Latina, da África, do Oriente Médio, da Europa, do Leste e do Sul da Ásia, e da região do Pacífico. Ele também abarca lutas anti-imperialistas e contra as guerras, levadas a cabo dentro dos próprios países imperialistas. Nessas lutas, houve também uma série de correntes “sincréticas” que, embora não totalmente – ou primordialmente – anarquistas, anarcossindicalistas ou sindicalistas revolucionárias, foram substancial e manifestamente influenciadas por posições e militantes dessa tradição. Essas correntes também fazem parte da história do anti-imperialismo anarquista, anarcossindicalista e sindicalista revolucionário.
Nessas lutas, houve também uma série de correntes “sincréticas” que, embora não totalmente – ou primordialmente – anarquistas, anarcossindicalistas ou sindicalistas revolucionárias, foram substancial e manifestamente influenciadas por posições e militantes dessa tradição. Essas correntes também fazem parte da história do anti-imperialismo anarquista, anarcossindicalista e sindicalista revolucionário.1
Na história
Na esquerda, boa parte da história do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária foi apagada, com o anti-imperialismo radical de esquerda sendo considerado, amplamente, apenas um campo do marxismo. Um resultado bastante irônico disso é que muitos anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários aparecem, com frequência, como heróis da independência em comemorações nacionalistas e nacionais, mas são excluídos das grandes narrativas da esquerda sobre a descolonização e o anti-imperialismo. No entanto, antes da década de 1920, os marxistas tinham – no máximo – uma presença marginal na maioria das regiões coloniais e pós-coloniais. Só com a Internacional Comunista – Comintern (1919-1943) – uma política anticolonial ativa tornou-se central ao marxismo. Esse anti-imperialismo marxista tinha seus próprios limites e contradições, especialmente sua coexistência com o imperialismo soviético – que incluía a ocupação forçada de partes da Europa e da Ásia, como a Polônia, a Ucrânia e a Bulgária. Anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários, em contraste, participaram ativamente das lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional, desde a década de 1860. Bem depois da fundação do Comintern, e apesar da ascensão do marxismo-leninismo, o anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária ainda desempenhariam um papel significativo nessas lutas.
Na teoria
Essa participação foi guiada pelo projeto do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária, isto é, o completo fim da desigualdade social e econômica, e da exploração, que exigia uma luta de classes revolucionária e o estabelecimento de uma ordem socialista, autogestionária, sem Estado e universal, na qual a liberdade individual se expressasse numa ordem social cooperativa e igualitária. “Levada a cabo de baixo para cima, por meio da livre associação”, como defendia Mikhail Bakunin (1814-1876), essa nova ordem seria construída a partir dos “sindicatos de trabalhadores e das localidades federadas em comunas, regiões e nações”, constituindo “enfim, uma grande federação universal e internacional”. Os diversos “povos” ou “nações” eram, em outras palavras, os tijolos para a construção do futuro anarquista. Essas “nações” não corresponderiam necessariamente a nenhuma fronteira estatista existente, que eram normalmente impostas de cima para baixo pelas classes dominantes. E, nessa “grande federação universal e internacional”, as “nações” – ou “povos” – constituintes não teriam classes, uma vez que, por meio da luta revolucionária das classes populares, as elites econômicas e políticas, assim como as hierarquias econômicas e sociais, teriam sido destruídas. Anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários enxergavam a diversidade cultural, nacional e racial como algo intrinsecamente valioso, com cada “povo”, ainda segundo Bakunin, tendo “o direito de ser quem é”, pois “ninguém” tinha o “direito de impor seus trajes, seus costumes, sua língua e suas leis”. E, uma vez que o “direito de livre união e separação” era “o primeiro e o mais importante de todos os direitos políticos”, essas “nações” – ou “povos” – tinham o direito de existir separadamente, inclusive de ser livres da assimilação forçada e da segregação controlada pelo Estado – e, implicitamente, do “multiculturalismo” oficial. Mas, embora uma grande ênfase tenha sido dada aos valores da diversidade de “costumes”, “leis” de “livre separação”, esses valores sempre estiveram sujeitos às normas universais da liberdade e da igualdade, sobre as quais os direitos de livre associação e autodeterminação se baseavam primordialmente. Isto é, o próprio princípio da liberdade, subjacente a esses direitos, também significava que práticas autoritárias, mesmo que fizessem parte dos “costumes”, eram intoleráveis na “grande federação universal e internacional”.
Assim, por questão de princípio, anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários opunham-se ao imperialismo e ao colonialismo, que se levavam a cabo pela coerção, pela discriminação, pela opressão e pela destruição cultural – tudo isso, obviamente, algo antitético às mais básicas posições libertárias.
Na estratégia
Porém, os maiores debates surgiram em torno do papel preciso – se houvesse algum – que as lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional desempenhariam na luta revolucionária do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária.
Tratava-se de um conjunto de considerações estratégicas: as lutas antiimperialistas, anticoloniais e de libertação nacional existentes tinham de ser avaliadas levando em conta sua possibilidade de contribuir para o projeto mais amplo de emancipação anarquista, anarcossindicalista e sindicalista revolucionário. E, se essas lutas pudessem contribuir, seriam necessárias outras considerações estratégicas: Mais precisamente, como os partidários do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária deveriam interagir com essas lutas?
O movimento concordou que a mera substituição de um Estado imperialista por um Estado nacional, ou de elites estrangeiras por elites locais, estava longe de ser uma revolução, conforme preconizada pelo próprio movimento. Isso foi evidente, como insistiu a primeira geração de anarquistas, nos decepcionantes resultados das primeiras lutas por independência, inclusive aquelas do Leste Europeu – onde Bakunin iniciou sua militância – e do Risorgimento na Itália – uma experiência que moldou muitos anarquistas italianos.
Essa primeira geração também concordou que esses problemáticos resultados eram, em grande medida, fruto da ideologia nacionalista: no intuito de unificar países desconsiderando as divisões de classe, e criando novos Estados nacionais, os projetos nacionalistas estavam fadados a reproduzir as mazelas das classes e dos Estados.
Mas, para além dessa concordância, surgiram três posições principais – e que competiam entre si – entre anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários, acerca das tarefas políticas do movimento relativas às lutas antiimperialistas, anticoloniais e de libertação nacional. Todas combatendo o nacionalismo, mas cada uma de maneira bastante diferente.
A primeira posição considerava que todas as lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional acabariam sendo capturadas pelos nacionalistas – no sentido preciso descrito acima: uma ideologia que sustentava o estatismo e a existência de classes –, que os nacionalistas apenas substituiriam os opressores estrangeiros pelos opressores locais e que, portanto, essas lutas não alcançariam nada de significativo para os camponeses e para a classe trabalhadora como um todo. Portanto, a primeira posição aconselhava a abstenção das lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional.
A segunda posição, em contraste, insistia que essas lutas eram intrinsecamente progressistas. Ela também considerava que essas lutas estavam fadadas a ser capturadas pelos nacionalistas, mas argumentava que, se o nacionalismo era o principal motor dessas lutas progressistas – apesar de suas limitações como ideologia apoiada no estatismo e nas classes –, então esse nacionalismo era, em si mesmo e intrinsecamente, progressista. A revolução anarquista e sindicalista precisaria esperar, e depois se desenvolver a partir das bases lançadas pelos nacionalistas. Portanto, a segunda posição defendia que a tarefa de anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários era apoiar os nacionalistas, isto é, efetivamente liquidar seu projeto em função do projeto do nacionalismo.
A terceira posição, que também era a de Bakunin, rejeitava a fusão das lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional com o nacionalismo, algo sustentado pelas abordagens anteriores. Seus proponentes insistiam que essas lutas tinham múltiplas correntes, indo do milenarismo religioso ao liberalismo moderado, e estavam sempre em ampla disputa. Não havia motivo para supor uma vitória necessária dos nacionalistas; não havia motivo para o anarquismo ou o sindicalismo de intenção revolucionária não assumir a liderança dessas lutas e utilizá-las diretamente para promover a revolução social. Nesse sentido, defendia Bakunin, a libertação poderia ser alcançada “tanto no interesse econômico quanto no interesse político das massas”.
Concretamente, essa abordagem preconiza que anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários participem dessas lutas, para levá-las o mais longe possível na direção de uma revolução social internacionalista, antiestatista e classista. Isso quase certamente exigiria alguma cooperação com os nacionalistas – e também outros –, e ao mesmo tempo, a admissão de uma luta política contínua para suplantá-los. Portanto, a terceira posição defendia um engajamento crítico nas lutas anti-imperialistas, anticoloniais e de libertação nacional.
Bakunin e o Leste Europeu
A abordagem do “engajamento crítico” marcou boa parte do envolvimento anarquista nas lutas de independência da Europa Oriental. Os anarquistas foram ativos nos levantes de 1875 na Bósnia e Herzegovina contra o Império Austro-Húngaro, e participaram dos movimentos na Bulgária e na Macedônia contra o Império Otomano (hoje Turquia).
O anarquismo no Império Otomano se baseava fundamentalmente na questão das nacionalidades. O armênio Alexandre Atabekian (1868-1933) publicou o jornal anarquista em armênio Hamaink (“Comunidade”), em 1894, associando a luta nacional armênia à revolução social. Ele também ajudou a fundar a Federação Armênia Revolucionária (Dashnaktsutiun), em 1890, na Georgia, de múltiplas tendências. Uma violenta ocupação do Banco Otomano em Istabul, feita pela Dashnaktsutiun em 1896, foi seguida pelo massacre dos armênios. Uma breve aliança posterior com o Comitê da União e do Progresso (“Jovens Turcos”) fracassou, e os anarquistas estavam entre as vítimas do genocídio armênio de 1915.
O anarquista búlgaro Hrìsto Bòtev (1848-1876) se tornaria, nos anos 1870, a principal figura do Comitê Central Revolucionário da Bulgária, associado à Organização Revolucionária Interna, que tentava coordenar grupos armados para lutar pela independência. Ele foi assassinado no Levante de Abril de 1876 contra o Império, que foi brutalmente reprimido.
Enquanto a Bulgária se tornava independente, em 1879, os anarquistas búlgaros continuaram ativos nas lutas de libertação regionais da região. Mikhail Gerdzhikov, por exemplo, estava entre os fundadores do Comitê Revolucionário Clandestino da Macedônia, em 1898, que publicou o jornal Otmustenie (“Vingança”). Em julho de 1903, essa organização, então favorável às alianças com muçulmanos comuns contra o sultanato, e também interessada em uma federação balcânica, começou uma revolta que os anarquistas viram como um passo para a revolução social. As sublevações na Trácia e na Macedônia, envolvendo algumas tentativas de implementar o programa anarquista, foram derrotadas depois de dois meses.
Na Ucrânia dos anos 1880, figuras influentes como Mikhailo Drahomanov e Ivan Franko foram influenciadas pelas posições de Bakunin sobre a libertação nacional e formularam programas que “se valiam consideravelmente das crenças bakuninianas”, distanciando-se do objetivo de um Estado ucraniano independente. O anarquismo reemergiu na Ucrânia no início dos anos 1900, especialmente depois de 1905, mas atingiria seu apogeu no final dos anos 1910, com a titânica revolta da revolução anarquista “makhnovista” de 1917-1921.
A maioria das apresentações da makhnovitchina nas histórias do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária tende a omitir o fato de que o movimento operava em um território longamente disputado, entre a Polônia e a Rússia, numa onda de lutas por independência pós-1917 na Europa Central e Oriental, e que contou com disputas e cooperações com os nacionalistas ucranianos. Tendo início em 1917, com a organização de sindicatos e camponeses, greves e ocupações de terra, e entrando em conflito com os nacionalistas ucranianos no início de 1918, ela viu a quantidade de terras sob controle dos camponeses subir bruscamente, de 56% para 96%, administradas pelo grupo tradicional da aldeia, o mir ou comuna.
As milícias anarquistas ucranianas desempenharam um papel fundamental na expulsão das forças alemãs que dominaram o território após o Tratado de BrestLitovski, e controlaram um território que se expandiu rapidamente, com uma revolução anarquista baseada na expropriação de terras, na formação de coletivos agrários e no estabelecimento da autogestão industrial. Isso era coordenado através de federações e congressos de sovietes, que também garantiam que a milícia – o então Exército Insurrecional Revolucionário da Ucrânia – permanecesse sob o controle de soldados, camponeses e trabalhadores. Opondo-se ao controle austríaco, alemão e russo, o movimento era, ao mesmo tempo, um movimento revolucionário das classes populares e um movimento que lutava pela independência da Ucrânia, mas essa libertação nacional era vista em termos revolucionários. Seu Conselho Militar Revolucionário afirmou em 1919: “Quando falamos da independência da Ucrânia, não estamos falando no sentido de Petliura, mas da independência social dos trabalhadores e camponeses”.
A nova Ucrânia devia ser livre dos invasores do Exército Branco, das incipientes organizações do Estado nacional ucraniano como a Rada e o Diretório, dos nacionalistas petliuranistas, e da “Ucrânia Soviética” apoiada por Moscou. A Ucrânia anarquista independente deveria ser multinacional e igualitária, com uma milícia orgulhosamente multiétnica e com o movimento makhnovista violentamente contrário aos pogroms antissemitas; tinha de promover a supressão das classes e do Estado. Esse movimento pode ser visto como um exemplo bem-sucedido de fusão de libertação nacional com revolução anarquista, de “engajamento crítico” acontecendo na prática.
Ela seria amplamente derrotada em 1921 pelos bolcheviques. Exilado, Nestor Makhno (1884-1934) então caracterizaria a Ucrânia como um território ocupado, governado pelos “fantoches ucranianos” de Moscou, e aconselharia que os “trabalhadores traçassem a própria linha da ideia de autodeterminação”. O movimento ucraniano conservaria uma presença clandestina e uma militância combativa: houve diversos destacamentos armados makhnovistas até meados dos anos 1920; centros de emigrados makhnovistas em Paris e Bucareste apoiaram ativamente ações clandestinas; diversos grupos urbanos de trabalhadores e marinheiros ilegais existiram ao longo dos anos 1920 e 1930, em condições cada vez mais difíceis; entre os grupos da resistência ativos durante a ocupação alemã a partir de 1942 havia alguns identificados com o anarquismo e/ou com Makhno.
O anarquismo se expandiu na Polônia a partir de 1905; o país vinha sendo dividido entre Áustria, Rússia e Alemanha desde o final do século XVII. Inicialmente uma corrente marginal diante do crescente nacionalismo polonês, especialmente em suas variantes mais conservadoras, e muitas vezes perseguido nos anos 1920 pelo governo nacionalista estabelecido em 1918 acusada de ser antinacional, sua influência cresceu rapidamente na década de 1930.
O anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária se tornaram uma força importante na União dos Sindicatos (ZZZ, formada em 1931) e, após a divisão entre alemães e russos em 1939, a União de Sindicalistas Poloneses, a organização sindicalista “Liberdade” e o Batalhão Sindical desempenharam um papel ativo nas atividades da Resistência, tendo relações ambíguas com o governo no exílio, e uma postura geral de “engajamento crítico”; as ações armadas incluíram a participação no Levante de Varsóvia, em 1944. O anarquismo conservou uma influência clandestina no período russo de 1946 a 1989, incluindo tentativas de trabalhar a partir de dentro do sistema no final dos anos 1940 e início dos 1950, e um papel na oposição nos anos 1980. Seria incorreto descrever o movimento Solidarność como “sindicalista revolucionário”, mas as ideias do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária tiveram influência em alguns círculos daquele movimento.
Nos territórios tchecos do Império Austro-Húngaro, o anarquismo surgiu nos anos 1880, parte de uma corrente anarquista mais ampla que se estendia pelo império, e foi ativo em sindicatos e em ações de propaganda. Na década de 1910, o anarquista Bohuslav Vrbensky (1882-1944) desenvolveu um programa que enfatizava a oposição ao Estado imperial e a ideia de uma Boêmia independente e sem Estado: esse programa seria aceito em 1914, com a formação da Federação dos Anarquistas Comunistas Tchecos.
Com a formação de um estado Tcheco-Eslovaco independente, em 1918, um setor de anarquistas e outros socialistas formaram o Partido Socialista. Um dos resultados disso foi Vrbensky ter assumido diversos cargos ministeriais entre 1919 e 1922, enquanto outros anarquistas, entre eles Stanislav Kostka Neumann (1875-1947), ocuparam cadeiras no parlamento – diante das posições críticas que esses dois assumiram, contudo, não se tratava exatamente de “liquidacionismo”.
Outro setor de anarquistas tchecos prontamente se opôs à república, mas sua associação às tentativas de assassinato altamente impopulares – inclusive contra Karel Kramár, o primeiro Primeiro-Ministro – apressou o enfraquecimento do movimento. Os desenvolvimentos na Tchéquia eram parte de uma turbulência maior nos territórios habsburgos no pós-guerra: na Hungria, por exemplo, os anarquistas adotaram uma posição anti-imperialista em oposição inclusive ao irredentismo húngaro.
Na Bulgária, nesse ínterim, o anarquismo manteve um papel importante nos movimentos populares, inclusive notáveis ações antifascistas em 1923 e 1925, lançando as bases para uma participação significativa no vitorioso movimento de resistência. O rápido crescimento dos anarquistas a partir de 1944 foi bloqueado pela crescente repressão por parte das autoridades apoiadas pelos russos, especialmente de 1946 em diante. Enquanto inúmeras pessoas eram levadas para os campos de concentração, houve relatos posteriores de atividade anarquista e prisões até 1974.
O anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária russos nos últimos anos se opuseram às guerras e ao militarismo russo, inclusive em relação à Chechênia, assim como às guerras do imperialismo do Ocidente, e promoveram festivais do “Dia do Desertor”. Na maioria dos territórios da Europa Oriental, o anarquismo reviveu, opondo-se ao imperialismo local e estrangeiro, inclusive aquele praticado pela União Europeia e pela OTAN.
Irlanda
Sob domínio britânico, a Irlanda viu o surgimento de uma significativa corrente sindicalista revolucionária nos anos 1910, que buscava unir os trabalhadores de diversas orientações em Um Grande Sindicato [“One Big Union”, lema dos IWW], o Sindicato Irlandês dos Trabalhadores do Transporte e Trabalhadores em Geral (ITGWU), visto como um passo decisivo nessa direção. O sindicalista James Connolly (1868-1916) vislumbrava um socialismo baseado no “controle democrático” por meio de “sindicatos industriais” sem o “Estado político e territorial da sociedade capitalista”, e combatia a tese nacionalista de que “o trabalho deve esperar”: “a antiga luta do povo irlandês contra seus opressores se resolve, em última análise, em uma luta pelo domínio dos meios de vida, das fontes da produção, na Irlanda”.
Ativamente envolvido no Levante da Páscoa de 1916, onde o Exército de Cidadãos Irlandeses, associado ao ITWGU, cooperou com os republicanos irlandeses, Connolly foi executado após sua prisão. Os sindicatos influenciados pelo sindicalismo revolucionário cresceram rapidamente durante a Guerra de Independência (1919- 1921), e havia uma série de ocupações de terra e sovietes, mas que enfrentavam uma oposição cada vez maior do Exército Republicano Irlandês e do partido nacionalista Sinn Féin; tais ações não seriam toleradas pelo Estado Livre Irlandês que se sucederia. Ironicamente, nos primeiros números do jornal Sinn Féin foi publicado, em capítulos, o clássico Campos, Fábricas e Oficinas do erudito anarquista Piotr Kropotkin (1842- 1921).
O anarquismo irlandês reviveu a partir dos anos 1960, e tem sido crítico tanto do imperialismo britânico quanto do republicanismo irlandês. Alguns anarquistas estiveram envolvidos, no início, com o movimento Democracia Popular, na Irlanda do Norte, defendendo o socialismo e os direitos civis dos católicos; alguns ex-membros no Exército Republicano Irlandês oficial também se aproximaram do anarquismo. O Workers Solidarity Movement (Movimento de Solidariedade dos Trabalhadores), um dos mais importantes grupos anarquistas do mundo anglófono, assume uma posição de “engajamento crítico” na questão nacional irlandesa.
Norte da África e África do Sul
O anarquismo no Egito surgiu na década de 1870, e foi representado no congresso de 1877 da Primeira Internacional e, novamente, no Congresso Internacional Social-Revolucionário, de 1881, que formaria a “Internacional Negra”. Embora os fundadores do movimento pertencessem à grande comunidade italiana, esforços bem-sucedidos foram feitos para recrutar trabalhadores árabes, como a propaganda multilíngue e, a partir da virada do século, as uniões sindicais “internacionais” e uma Universidade Popular Livre em Alexandria.
A oposição aos nacionalistas egípcios de orientação nativista e uma verdadeira rivalidade entre eles não impediram importantes momentos de cooperação, nem prejudicaram a oposição comum ao imperialismo. Anarquistas como Errico Malatesta (1853-1932) participaram da revolta de Ahmad Urabi, em 1882, buscando explorar possíveis oportunidades para a revolução social. A partir de 1881, o Egito passou efetivamente ao controle britânico, embora nominalmente fizesse parte do Império Otomano.
O nacionalista Ibrahim Nasif al-Wardani (1886-1910), que assassinou o primeiro-ministro egípcio Boutros Ghali em 1910, fora ativo nos círculos de anarquistas franceses fora do país. O trabalho, que contava com estrangeiros radicais, era cada vez mais cortejado pelos nacionalistas e desempenhou um papel importante na Revolução Egípcia de 1919. Havia anarquistas no Partido Socialista Egípcio em 1922, com sua posição anti-imperialista e anticapitalista. Após o autogoverno em 1922, o governo de Sa‘d Zaghlul perseguiu anarquistas e outros radicais. Os anarquistas mantiveram certa presença na década de 1940 e, recentemente, ressurgiram como uma força pública na “Primavera Árabe”.
Na Argélia Francesa, o anarquismo teve presença pelo menos desde os anos 1890, através da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), de orientação sindicalista revolucionária. O antimilitarismo foi central para a CGT na França, que produziu o subversivo Manuel du Soldat (“Manual do Soldado”) e, em 1913, realizou uma greve de 80 mil pessoas pela paz. Capturada em 1914 por reformistas, depois contestada pelos comunistas, a CGT se dividiu em 1920, levando à criação de uma CGT Sindicalista Revolucionária (CGT-SR) em 1926. Ativa na Argélia, ela se opôs ao colonialismo francês, à discriminação e às comemorações do centenário da colonização em 1930 – se valendo de uma longa tradição do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária franceses de crítica ao colonialismo na Argélia e em outras localidades.
Um notável membro da CGT-SR, o berbere Saïl Mohamed Ameriane ben Amerzaine (1894-1953), também era membro da União Anarquista. Ao lado de Sliman Kiounae, ele organizou de Paris o Comitê de Defesa Indígena Argelino em 1923 – três anos antes da famosa organização Étoile Nord-Africaine, de Messali Hadj. Saïl Mohamed também formou o Grupo Anarquista de Indígenas Argelinos, e trabalhou na edição norte-africana do jornal Terre Libre (“Terra Livre”), que se opunha à “aristocracia árabe e à plutocracia francesa”. O anarquista argelino Albert Guigui-Theral foi ativo nos maquis antinazistas e na CGT Clandestina na década de 1940, enquanto Saïl Mohamed vivia incógnito.
A CGT-SR tinha vínculos com o Marrocos Francês e, na Espanha, os anarquistas e socialistas do sindicato Solidariedad Obrera convocaram uma greve geral, em 1909, contra a mobilização pela guerra no Marrocos Espanhol. A Confederação Nacional do Trabalho (CNT) celebrou seu aniversário de 1911 com uma greve geral em apoio aos trabalhadores e em oposição à guerra no Marrocos; em 1922, ela estava envolvida em mais revoltas e protestos contra a guerra. Os anarquistas espanhóis desenvolveram um modelo que combinava a revolução na Espanha com a descolonização no Norte da África e, nos primeiros estágios da Revolução Espanhola (1936-1939), estavam trabalhando com grupos marroquinos para promover a independência do Marrocos. Enquanto isso, Saïl Mohamed estava entre os africanos, argelinos e árabes que lutaram com as forças anarquistas na revolução.
Desde a década de 1880, da mesma forma, os anarquistas e sindicalistas revolucionários italianos se opuseram abertamente às intervenções da Itália na Eritreia e na Etiópia. Quando a Itália invadiu a Líbia, em 1911, eles organizaram protestos massivos, uma greve parcial e mobilizações que foram reprimidas. Em 1914, uma frente antimilitarista de orientação anarquista organizou manifestações nacionais, levando a confrontos com soldados e a uma “Semana Vermelha” revolucionária. Mantendo em geral uma posição contrária à guerra depois que a Itália ingressou na Primeira Guerra Mundial, em 1915, o movimento lançou, em 1920, diversas ações contra a invasão da Albânia, e também contra as intervenções na Rússia.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o Movimento Libertário Norte-Africano (MLAN) foi ativo em seções na Argélia, no Marrocos e na Tunísia – com anarquistas ativos nesta última desde os anos 1880; o manifesto dos argelinos era abertamente anti-imperialista e esses grupos incluíam nativos norte-africanos.
Com o início da insurreição na Argélia, os anarquistas se dividiram. Favoráveis ao “engajamento crítico”, a Federação Comunista Libertária (FCL), na França e na Argélia, e o MLAN argelino trabalhavam com alguns nacionalistas argelinos, fornecendo recursos e auxílio – por exemplo, transportando armas e proporcionando refúgios seguros. Eles tentaram conquistar militantes para o anarquismo e uma linha classista e, por isso, sofreram pesada repressão, resultando na opção pela clandestinidade da FCL. A Federação Anarquista, na França, era maior e, da mesma forma, se opunha ao colonialismo, mas como “abstencionistas”, recusaramse a trabalhar com os nacionalistas ou a participar ativamente. O clima de intensa polarização política – e racial – e repressão, inclusive por parte dos nacionalistas argelinos, tornou difícil a militância anarquista, embora anarquistas como Serge Michel (1922-1997) desempenhassem um papel notável nos movimentos nacionalistas. A repressão pesada no período pós-independência prejudicou o anarquismo, embora hoje ele tenha certa influência junto aos trabalhadores, incluindo vínculos diretos com anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários franceses e espanhóis.
O caso sul-africano é um tanto peculiar. Embora, a partir de 1910, houvesse um autogoverno semelhante ao da Austrália e do Canadá, suas relações sociais internas, profundamente marcadas pelo colonialismo, eram semelhantes às da Argélia – além de haver, também, algum paralelismo com a Bolívia e o Peru, conforme será tratado adiante.
Sempre em oposição à segregação, o importante movimento anarquista e sindicalista revolucionário dos anos 1900 e 1910 se opôs ativamente à incapacitação civil e política imposta às pessoas de cor, que o movimento recrutaria para os sindicatos a partir de 1905 e organizaria em diversas uniões sindicais a partir de 1917. Estas incluíam os Trabalhadores Industriais da África (IWA); grupos políticos sindicalistas revolucionários como a Liga Socialista Internacional (ISL) – e sua dissidência, a Liga Socialista Industrial – tinham muitos negros, “pessoas de cor” (no sentido sul-africano, de pessoas de origem mestiça ou “pardos”) e militantes nativos, entre eles os militantes sindicalistas T.W. Thibedi (1888-1960), Johnny Gomas (1901- 1979) e Bernard Sigamoney (1888-1963).
A ISL e os IWA trabalharam, algumas vezes, com (e, também, como parte das) seções do Congresso Nacional de Nativos Sul-Africanos (hoje Congresso Nacional Africano), sustentando uma posição de “engajamento crítico”. Os militantes da ISL e dos IWA, também trabalhando desse modo, tiveram impacto significativo na União dos Trabalhadores Industriais e Comerciais da África (ICU) ampliada, formada em 1920, um sindicato massivo, mas frouxo e instável, influenciado por um perfil “sincrético” que se espalharia pelas colônias vizinhas, como a Rodésia do Norte (hoje Zâmbia), a Rodésia do Sul (hoje Zimbábue; onde foi ativa até os anos 1950), e o Sudoeste Africano (atual Namíbia).
A ISL e a Liga Socialista Industrial ajudaram a fundar o Partido Comunista, no qual o sindicalismo de intenção revolucionária desempenhou certo papel nos anos 1920; ao final dos anos 1920, esse setor sindicalista revolucionário se desintegrou, e a ICU na África do Sul foi extinta no início da década de 1930. Alguns poucos anarquistas estiveram envolvidos posteriormente na luta contra o apartheid, e o atual anarquismo sul-africano, em parte, se baseia no movimento estudantil radical do início dos anos 1990.
Hoje em dia, esse movimento caracteriza a transição de 1994 para a democracia como um grande avanço, mas defende “a libertação do proletariado nacional”, argumentando que uma transição revolucionária para o comunismo anarquista é a condição necessária para a completa libertação nacional dos negros, mestiços e nativos da classe trabalhadora.
Caribe e América Latina
Havia um importante movimento pela independência em Cuba na década de 1870, que era – assim como parte de Marrocos, Porto Rico e Filipinas – uma das últimas colônias espanholas. A partir da década de 1880, os anarquistas foram hegemônicos em diversos sindicatos cubanos, desempenhando um notável papel na organização dos trabalhadores, independentemente de sua cor, e se opondo à segregação. Desconfiados dos primeiros nacionalistas, muitos dos quais eram hostis aos anarquistas e à esquerda, os principais defensores do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária, como Enrique Roig de San Martín (1843- 1889), tendiam a uma posição “abstencionista” acerca da independência.
Essa posição seria substituída pelo “apoio crítico” no congresso de 1892 dos sindicatos vinculados à Aliança Operária, posição que seria mantida pela subsequente Federação de Trabalhadores de Cuba. Os anarquistas cubanos e seus sindicatos desempenharam um papel-chave nas forças separatistas durante a terceira guerra de independência (1895-1898), trabalhando com o Partido Revolucionário Cubano de José Martí (1853-1895). A visão de Martí, de independência com justiça social, impressionou favoravelmente os anarquistas: alguns como Ramón Rivero y Rivero passaram a uma posição praticamente “liquidacionista”; a maioria, contudo, como Enrique Creci, buscou uma perspectiva revolucionária – ele mesmo morreu, em 1896, graças a ferimentos sofridos em combate.
Os anarquistas eram ativos tanto em Cuba quanto nas comunidades de imigrantes nos Estados Unidos – especialmente em Tampa e Key West –, fazendo também propaganda junto aos soldados espanhóis. Os anarquistas espanhóis, da mesma forma, opunham-se ativamente às guerras coloniais em Cuba e nas Filipinas, incitando à desobediência e ao motim. Quando Michele Angiolillo Lombardi (1871- 1897) assassinou o primeiro-ministro espanhol Antonio Cánovas, em 1897, declarou que seu ato era uma vingança contra a repressão dentro da Espanha e contra as atrocidades coloniais do Estado espanhol.
A intervenção dos Estados Unidos a partir de 1898 presenciou uma república cubana semi-independente se estabelecer em 1902, enquanto Porto Rico se tornava território norte-americano. Anarquistas porto-riquenhos como Paca Escabí (1885-?) e Rafael Alfonso Torres criticavam o imperialismo dos EUA na região, assim como o governo nacional. No recém-criado Panamá – onde os EUA tinham domínio direto sobre a Zona do Canal – os anarquistas se opuseram à discriminação racial, assim como às ambições imperialistas e ao controle norte-americanos.
Embora esses movimentos enfrentassem dificuldades nos anos 1920, sobretudo devido às ações militares dos EUA, o movimento cubano, que entrava em conflitos constantes com a nova república, estava em ascensão, como se viu por sua participação na Confederação Nacional dos Trabalhadores de Cuba nos anos 1920. Apesar da repressão crescente, ele permaneceu significativo nas décadas de 1950 e 1960, desempenhando um papel no movimento contrário a Batista. Pesadamente reprimida pelo novo governo marxista, a maioria dos anarquistas passou a viver na clandestinidade ou no exílio; muitos sustentavam que Cuba havia simplesmente trocado o imperialismo dos EUA pelo imperialismo “soviético-chinês”.
Os relatos de repressão em Cuba nos anos 1980 indicam uma presença efetiva, embora fraca. Em Porto Rico, no entanto, existe hoje em dia um pequeno movimento anarquista, assim como certa influência anarquista em outros grupos de esquerda; esse movimento, em geral, continuou defendendo a independência e o socialismo libertário.
O México, sem dúvida, merece ser abordado por conta do papel do imperialismo dos EUA, assim como pela situação do campesinato indígena. O anarquismo surgiu ali em meados dos anos 1860, desempenhando um papel de liderança nos primeiros sindicatos, entre eles o Congresso Geral de Trabalhadores Mexicanos – um dos dois maiores filiados da “Internacional Negra”. Levantes de camponeses anarquistas, geralmente envolvendo campesinos indígenas, foram organizados por Julio Chávez López (1845-1869) a partir de 1867, e por Franciso Zalacosta (1844-1880) a partir de 1878; estes foram seguidos pelo movimento mais “sincrético” do general Miguel Negrete entre 1879 a 1881.
O anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária tiveram envolvimento na Revolução Mexicana (1910-1920), que teve como pano de fundo o porfiriato e sua massiva influência do capitalismo estrangeiro. O Partido Liberal Mexicano (PLM), de orientação anarquista, de Ricardo Flores Magón (1874-1922), foi ativo em diversas greves e sublevações anteriores a 1910, sendo uma das únicas formações de oposição em todo o país. Em 1911, o partido implementou parcialmente o programa anarquista na Baixa Califórnia, desempenhando também um papel no “Plan de San Diego”, de orientação separatista, em 1915 no Texas; dentro de sua zona de influência havia povos indígenas. De Morelos, veio o Exército Libertador do Sul – os zapatistas –, um movimento agrário “sincrético”: seu Plan de Ayala, de 1911, foi feito em coautoria entre o general zapatista anarquista Otilio Montaño Sánchez (1887- 1917) e Emiliano Zapata (1879-1919); seu governo, que contou com reforma agrária, propriedade comunitária e governo de base, era decididamente libertário.
Em contraste, a Casa do Trabalhador Mundial (COM), anarcossindicalista, entrou numa breve aliança armada com os constitucionalistas burgueses de Alvaro Obregón e Venustiano Carranza, na esperança de levar a revolução à esquerda. Os “Batalhões Vermelhos”, também adeptos do sindicalismo de intenção revolucionária, entraram tragicamente em conflito com os zapatistas em 1915, mas depois se lançaram nos grandes confrontos que se sucederiam com os constitucionalistas. Os anos 1920 viram esse sindicalismo anti-imperialista explodir novamente, assim como alguma participação anarquista nas rebeliões rurais, como a de Primo Tapia; correntes posteriores incluem a Federação Anarquista Mexicana, que atuou de 1945 até os anos 1980, e a influência do anarquismo de Magón em áreas como Oaxaca mais recentemente.
Nos Andes, o movimento anarquista surgiu em grande parte no século XX; ele desempenharia um papel importante nas lutas indígenas, embora também se opusesse à influência concedida às potências estrangeiras. Na Bolívia, a Federação Local de Trabalhadores – também adepta do sindicalismo de intenção revolucionária, formada em 1926, em La Paz – esteve envolvida nas lutas indígenas, inclusive vinculando-se à rebelião de Chayanta de 1927. O início da década de 1930 viu a oposição dos anarquistas à iminente guerra com o Paraguai, conquistando a Federação dos Trabalhadores em Oruro – que também organizava os trabalhadores das minas – e influenciando a Federação Agrícola Departamental de camponeses indígenas e agricultores.
Apesar da repressão e da Guerra do Chaco (1932-1935), a Federação Local de Trabalhadores durou até os anos 1950, e sua principal afiliada, a Federação Feminina de Trabalhadoras, esteve ativa até 1964. Contudo, a essa altura a maioria dessas organizações seria cooptada pelos sindicatos “oficiais”, criados pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (1952-1964) – dentro do qual um pequeno número de anarquistas permaneceu ativo até os anos 1980.
No Peru, anarquistas como Manuel González Prada (1844-1918) se opuseram à opressão racial e nacional, e o movimento sempre defendeu os direitos da população indígena. Um movimento relevante, incluindo uma Federação Peruana de Trabalhadores Regionais, surgiu não apenas em Lima-Callao, mas também na antiga capital inca, Cuzco, e em cidades litorâneas; um de seus mais notáveis militantes foi o anarcossindicalista indígena Ezequiel Urviola. Os sindicatos anarquistas trabalharam com o Comitê Central Pelos Direitos Indígenas Tahuantinsuyo, tiveram algum impacto na formação da Federação Regional Peruana de Trabalhadores Indígenas em 1923, mobilizaram-se contra práticas como o alistamento para trabalhar nas estradas, adotaram uma agenda de “libertação indígena” no Congresso dos Trabalhadores em 1927, e se opuseram ao imperialismo dos EUA.
Assim como na Bolívia, os anarquistas permaneceram ativos no Peru até hoje. Um movimento mais “sincrético” foi o de Augusto César Sandino (1895- 1934) na Nicarágua – regularmente ocupada por forças norte-americanas a partir de 1909. Exposto no México a ideias anarquistas, místicas e nacionalistas, Sandino organizou um Exército de Defesa da Soberania Nacional da Nicarágua de base camponesa entre 1927 e 1933. A revolta veria uma ênfase crescente nas cooperativas camponesas nas áreas libertadas, que formariam um grande território autônomo com a instauração da paz, e sua destruição após o assassinato de Sandino em 1934. Embora a Frente Sandinista de Libertação Nacional, formada em 1961, tivesse Sandino como seu ícone, e conservasse a bandeira vermelha e negra que ele adotara dos anarquistas mexicanos, sua perspectiva fundamental era marxista-leninista.
Sul da Ásia, Leste da Ásia e Pacífico
A anarquista e communarde francesa Louise Michel (1830-1905), deportada para Nova Caledônia, apoiou a luta da tribo Kanakas contra o colonialismo – inclusive orientando os rebeldes de 1878 a cortar os cabos telegráficos: “Os kanakas estavam lutando pela mesma liberdade que nós buscávamos na Comuna”. Mais tarde anistiada, ela voltou do exílio e continuou uma declarada opositora do colonialismo francês na Argélia.
Após a malsucedida revolta filipina contra a Espanha em 1896, Isabelo de los Reyes (1864-1938) estava entre os rebeldes presos em Barcelona: lá, ele foi influenciado pelo anarquismo. Voltando em 1901 a um país então dominado pelos EUA, ele organizou o Sindicato Democrático dos Trabalhadores, influenciado pelo sindicalismo de intenção revolucionária, que, apesar de ter durado pouco, logo chegou a ter 150 mil membros em oito regiões das Filipinas. Preso pelas autoridades coloniais, ele foi substituído por Hermenegildo Cruz, também influenciado pelo anarquismo.
Anarquistas chineses como Liu Sifu (“Shifu”, 1884-1915) auxiliaram militantes anticoloniais como o vietnamita Phan Bội Châu (1867-1940), promoveram iniciativas regionais anti-imperialistas e defenderam uma versão radical de independência. O anarquismo influenciou alguns militantes vietnamitas, especialmente Nguyễn An Ninh (1900-1943) e, de modo ainda mais decisivo, Trinh Hung Ngau – na Argélia, as lutas vietnamitas também tinham a solidariedade dos anarquistas franceses.
A maioria dos anarquistas chineses seguia Li Pei-Kan (“Ba Jin”, 1904-2005) em sua crítica do nacionalismo. Alguns deles trabalharam com o Partido Nacionalista (Kuomintang) para ter acesso a recursos, como no caso da busca de um papel mais relevante na Universidade Nacional dos Trabalhadores de Xangai, controlada pelo Kuomintang; de modo semelhante, os anarquistas usaram a bandeira do Kuomintang para assumir o controle de facto de Quanzhou, na província de Fujian. No entanto, outros, como Li Shizeng (1881-1973), efetivamente “liquidaram” suas visões políticas dentro do programa do Kuomintang.
As milícias formadas por anarquistas nos arredores de Quanzhou nos anos 1920 foram seguidas por ações de guerrilha contra o império japonês nos anos 1930 e 1940, como aquelas criadas por Chu Cha-Pei de Yunnan, que continuaria a enfrentar os marxistas nos anos 1950. Os anarquistas chineses também estiveram envolvidos em ações clandestinas de sindicatos na Malaia Britânica (atual Malásia) desde o final dos anos 1910, também lançando ataques – que foram, entretanto, malsucedidos – contra o alto comissário e governador britânico, sir Lawrence Guillemard, e contra o lorde protetor dos chineses para Selangor, Daniel Richards, em 1925.
O anarquismo coreano esteve, desde o início, intimamente associado ao movimento de independência, e cresceu rapidamente de 1919 em diante. O Bando dos Heróis (Ůiyŏltan) unia anarquistas e nacionalistas, influenciados por Yu Cha-myŏng (1891-1985) e Shin Ch’aeho (1880-1936), que escreveu, em 1923, o “Manifesto da Revolução Coreana”, de orientação anarquista. Organizações como a Federação Anarquista Coerana (KAF), a Aliança Bandeira Negra (Heuk Ki Yun Maeng) e a Federação Anarcocomunista Coreana (KACF) viriam em seguida.
Boa parte da atividade dos anarquistas coreanos se deu na China e na Manchúria, onde os anarquistas tiveram relevante influência no Exército Coreano de Independência (KIA) por meio do general anarquista Kim Jwa-Jin (1889-1930). Com o apoio de Kim, os anarquistas da KAF e da KACF ajudaram a estabelecer uma grande zona anarquista em Shimin de 1929 a 1932. Outra corrente no anarquismo coreano, no entanto, tendeu ao liquidacionismo, com figuras como Yu Rim (1894- 1961) concorrendo por um partido político na primeira eleição depois da independência.
A oposição ao imperialismo e o apoio à independência de Formosa (Taiwan) e da Coreia foram centrais para os anarquistas japoneses. Ōsugi Sakae (1885-1923), por exemplo, foi preso em 1907 por ações antimilitaristas, e a Liga Negra da Juventude e a Federação Nacional Libertária dos Sindicatos de Trabalhadores abertamente se opuseram ao expansionismo japonês nos anos 1920 e início dos anos 1930 com propostas de motins e greves. Elas também fizeram parte da Liga Anarquista Oriental formada em Nanjing, em 1927, unindo chineses, coreanos, taiwaneses e indianos.
O “sincrético” Partido Ghadar (ou “motim”), formado nos EUA em 1913 por radicais sikhs e hindus, foi influenciado pelo anarquismo, especialmente por meio de figuras como o anarquista Lala Har Dayal (1884-1939). Ele também tinha traços nacionalistas – e, mais tarde, marxistas – muito fortes. Grupos do Ghadar surgiram no Afeganistão, na China, no Japão e na África – especialmente no Quênia – e, em 1915, o partido lançou uma malsucedida rebelião armada na própria Índia, centrada no Punjab. Recriado nos anos 1920, com sua ideologia ainda eclética, o Ghadar influenciou radicais como o mártir anticolonial Bhagat Singh (1907-1931), que também demonstrava certa simpatia pelo anarquismo. Uma corrente anarquista mais explícita e consciente foi desenvolvida por Mandayam Parthasarathi Tirumal Acharya (1887-1951), que havia trabalhado com Har Dayal nos anos 1910, e que se aproximou do anarquismo depois de uma trajetória no comunismo indiano.
Embora os movimentos chinês, coreano, japonês e vietnamita sofressem forte repressão das forças imperialistas, dos rivais comunistas e dos governos posteriores a 1945, os movimentos indiano e filipino lutaram para estabelecer uma identidade distinta e popular.
Na maioria das áreas, o anarquismo é, hoje em dia, uma força crescente, embora opere à sombra dos movimentos – e Estados – marxistas, maiores e mais poderosos. As questões enfrentadas são um tanto diferentes daquelas propostas da era do domínio colonial direto, mas os anarquistas asiáticos de hoje em dia mantêm uma oposição aberta às guerras e intervenções imperialistas, inclusive econômicas.
1 Não incluo nessa categoria, nem tampouco discutirei, movimentos que tiveram paralelos com o anarquismo, o anarcossindicalismo e o sindicalismo revolucionário, mas sem nenhum vínculo demonstrável com essa tradição.
Conclusão
Um dos méritos de uma abordagem genuinamente global da história do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária é que ela revela padrões escamoteados nos panoramas “tradicionais”, cujo foco é o Atlântico Norte e que ignoram o oriente e o sul do mundo, apresentando um relato muito estreito e muitas vezes enganoso. Levar a sério a história do anti-imperialismo anarquista, anarcossindicalista e sindicalista revolucionário, vermelho e negro, por outro lado, sugere também a necessidade de fazer importantes revisões em muitos relatos da história e da política anti-imperialistas.
Sugestões de leitura (em outros idiomas)
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