Título: Pequenas intuições para uma ecologia amatória libertária
Subtítulo: A alcateia em constante devir
Assunto: amor livre
Data: 2013
Fonte: SEXXXUALES, Ludditas. Ética amatoria del deseo libertario y las afectaciones libres y alegres. Distribuidora Peligrosidad Social, 2015, p. 95-106
Notas: Tradução: Contraciv.

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    III

    IV

    V

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    VII

    VIII

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    X

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    XII

    XIII

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    XVI

    XVII

Dizer sim ao sexo não é dizer não ao poder.

Michel Foucault

I

Como putas maravilhosas, acreditamos que o sexo e o afeto sexual são forças fundamentais, atividades com o potencial de fortalecer vínculos, melhorar nossas vidas, abrir a consciência do espírito e até mudar o mundo. Acreditamos que o uso reflexivo dos prazeres é uma potência afirmativa, ativa e criativa na vida dos corpos e seus

ecossistemas. O sexo torna o mundo um lugar mais emocionante.

II

Somos aventureiras e nos perguntamos: será que ter menos sexo e com menos pessoas é mais virtuoso do que muito sexo com muitas? Nossa ética tortamarica não é medida pelo número de pessoas com quem fizemos sexo, mas pelo cuidado com que as tratamos e nos deixamos tratar. Nos julgamos por nossas tentativas (muitas falhas) de viver

hoje de forma mais ética e mais livre.

III

A economia que move o mundo nos faz acreditar que não há o suficiente para todas. Nos faz crer que, se algo é muito bom – como o sexo com alguém –, devo guardá-lo só para mim, porque depois não haverá mais. Que, se compartilho o que tenho, subtraio algo da minha economia individual. Nós, as putas, sabemos pouco de economia, mas temos intuições. Supomos que mais sexo pode gerar mais sexo, mais conexões, mais cobertura emocional, mais amizades. “Pode” significa “tem o potencial de”. Nós, as putas, acreditamos em uma economia holística, uma ecologia sexual coletivista de compartilhamento de corpos e sentidos, como um desejo positivo e oposto a essa economia dominante de escassez, monogamia e medo. Nossa economia se move por afinidades. O mundo e a vida nele têm o potencial para que possamos construir múltiplas companhias, companheiras e acompanhantes. Uma floresta de fluidos pulsantes, porque temos, como transhumanas, a capacidade de gerar sexo suficiente, afinidade, apoio mútuo, contenção e nutrientes ao redor do nosso solo fértil, que geram relações afetivas relevantes.

As relações afetivas e sexuais não são balanços contábeis: não há débito, não há crédito, não se transferem bens de uma coluna para outra. É apenas lembrar o que obtemos na ecologia da botânica afetiva que estabelecemos com aqueles com quem nos conectamos. Lembremos do que é comovente no encontro afetivo entre seres e tentemos nos afetar com alguém mais.

IV

Vivemos em uma cultura que ainda hoje considera aceitável um crime passional (ou seja, matar alguém por ciúme), que aceita como motivo de divórcio que alguém tenha obtido prazer sexual fora de um vínculo conjugal, com uma moral própria da Inquisição. Punimos severamente quem ousar delinquir, despertando a mais mínima insegurança ou ciúme dentro de nós. Abandonamos lares, quebramos fotos, jogamos alianças fora. E isso não acontece apenas com a pequena burguesia. Por outro lado, por amor, prometemos mentiras, mentimos sobre situações, distorcemos fatos, vivemos no engano, falsificamos dados. Por amor e por medo da solidão, do abandono e da punição, vivemos presas.

V

Mas a monogamia não é a cura para o ciúme nem para a insegurança. Quem nunca sentiu ciúmes de alguém muito querido que passa muito tempo no computador, assiste a um filme sozinho ou fala muito ao telefone? A territorialidade sexual é outra norma social à qual nos opomos com a alegria de compartilhar e presentear, puro potlatch. Nossos ciúmes são combatidos com a mesma ferocidade com que combatemos o Estado e todos os seus aparatos repressivos e dispositivos de subjetividade, como gênero, família, escola, prisões, polícia e heterossexualidade.

VI

As razões para fazer sexo com muitas pessoas, ou até mesmo tentar manter várias relações afetivas simultâneas, são várias: Há diferentes tons e nuances de intimidade. Há práticas sexuais que agradam a algumas, mas não a outras. Há necessidades sexuais e físicas que nem todas as pessoas podem ou desejam realizar. Há desejos sexuais sem tentativas amorosas constantes. Há desejos sexuais com diferentes gêneros que não podem ser reduzidos à especificidade de um único corpo. Há desejos sexuais com grupos.

Por isso, não é apenas impossível, mas também cruel exigir que uma única pessoa cumpra tudo isso. Diante desses múltiplos prazeres, acreditamos ser conveniente encontrar múltiplos parceiros com quem estabelecer vínculos sexo-afetivos éticos e libertários. Outro mundo é possível.

VII

Reivindicamos também ser sós e voltar a ser amicae, amigas sexuais, para os prazeres e para a conexão íntima e profunda do corpo. E ter o potencial de ser muitas outras coisas: companheiras de luta, de caminhada, de aventuras, de farra, roubo, crime… Ser só não é ser solteira, nem uma condição temporária entre casais, nem um período de cura após uma ruptura traumática. Ser só é uma forma de viver, uma escolha e uma maneira de nos construirmos para não tentar nos encaixar melhor na vida de ninguém. Significa aprender a viver consigo mesma e aproveitar isso.

Nossa relação e nossa amizade conosco mesmas duram a vida toda, até decidirmos que nosso tempo chegou ou até que esse tempo chegue de fato. Ser só e se afetar não são excludentes, mas uma oportunidade de nos construirmos intimamente e de nos esforçarmos para nosso próprio devir.

Vivemos em uma cultura que segrega, marginaliza e aponta para quem escolhe a aventura da solidão, da associação livre por afinidade, da espontaneidade. Acreditamos que, se ser só não fosse um estigma, o casal não se desenvolveria como a “opção ideal”, infinitamente supervalorizada, tábua de salvação contra a angústia, o descontentamento e as neuroses do capitalismo.

Ser só poderia permitir, mesmo que pareça paradoxal, o desenvolvimento de ecologias impensáveis hoje, inclassificáveis, múltiplas formas de carinho, cuidados e vínculos que hoje não podemos nem imaginar… Ser sós é devenir lobos, é se mover em alcateia, ser caçadoras, matilha, aproveitar a noite e a manhã e evitar o grande mito da completude.

Ser só é poder gerar sexualidade com as amizades sem que se tornem vínculos possessivos onde se promete e se promete e se promete. É viver, fundamentalmente viver, no abismo do risco. É nos enriquecermos com conhecimentos alheios.

VIII

As sós devemos lembrar, e devemos lembrar a quem desfruta da sexualidade conosco, que: Merecemos ser ouvidas, cuidadas, respeitadas e assistidas em nossos sentimentos. Não somos cidadãs de segunda classe do afeto em relação aos “grandes amores”.

Merecemos poder pedir o que precisamos, mesmo que a pessoa a quem pedimos não possa (o que não é o mesmo que não querer) nos dar. Merecemos ser honradas em nossos acordos e nossos planos. Merecemos ser cuidadas se estivermos doentes, ser amadas, ser atendidas em uma emergência, ser assistidas se não pudermos fazer isso sozinhas, como amigas fazem umas pelas outras.

Merecemos ser incluídas e levadas em consideração em qualquer ecologia onde nossas amantes estejam. Não somos um segredinho sujo.

Merecemos não ser consideradas um problema. Merecemos ser apreciadas e bem-vindas. Merecemos não ser consideradas invulneráveis. E a verdade é que todas, todas, todas as pessoas com quem decidimos nos envolver sexual e afetivamente merecem isso.

IX

Desejamos que nossas amantes tomem café da manhã juntas, que sejam amigas, que se tornem amantes. Acreditamos que esse ideal é materialmente realizável aqui e agora. Nossas amantes têm muito em comum, por que não podem se compartilhar? Ser amantes mútuas fortalece as possibilidades de crescer e nos desenvolvermos em alcateias. De abandonar o binômio macho/fêmea, o casalzinho, a monogamia que restringe sonhos e desejos, e nos aventurarmos em muitos. As redes afetivas se expandem e lembram novos devenires tribais de amor e apoio mútuo.

Se nos tratarmos entre amantes como amigas, e permitirmos que nossos amores e nossas amantes, nossas afins e nossos apoios na vida tomem a forma que a espontaneidade ditar, em vez das normas sociais que impomos a elas, nossos vínculos crescerão. Seremos mais prósperas afetivamente. E menos temerosas da solidão.

Não deveria ser estranho que, entre afins, gostemos das mesmas pessoas, ou pelo menos não as consideremos ameaçadoras ou assustadoras. Se for o caso, e a amante da minha amante for insuportável por razões importantes, é hora de repensar essa afinidade. E mudar.

X

A recompensa pela abolição de ciúmes, invejas e inseguranças em relação às nossas amigas-amantes e suas amigas-amantes será nossa própria liberdade sexual. Liberdade sexual que encontrará sua própria ginástica e agilidade com quem desejarmos correr muito tempo juntas. Com essas pessoas que desejamos tão próximas hoje como no primeiro dia, estabeleceremos redefinições, ressignificações e ressemantizações mutantes ao longo de nossas vidas (Aetatis brevis tempus satis longum ad bene vivendum est).

Não nascemos grandes amantes libertárias, nos tornamos, devenimos. E desaprender ciúmes e inseguranças é, como todo treinamento, uma tarefa difícil que exige disciplina, como toda ginástica ou tecnologia do Eu.

XI

Nem os ciúmes nem as inseguranças são crimes a serem escondidos como roupa suja. Não há por que negar que os temos, assim como não há por que negar que fomos biopoliticamente designadas a um sexo a partir do ideal regulatório de um gênero. Mas tudo – menos a morte – pode ser desfeito. A experiência do sofrimento romântico que se torna liberdade sexual e afinidade afetiva não é de ordem moral: ninguém pode nos acusar de “isso está certo” ou “isso está errado”. Além disso, aquela que sentir dor (devenir/mudar/mutar dói) deve se tratar com indulgência. Chicotes e açoites são para práticas consensuais de jogos sexuais chamados S/M, não para a ginástica de devenir amantes libertárias.

XII

No entanto, quem sente o compromisso de se modificar no campo do amor deve encarar os deuses de frente, ousar. Qual imagem é a que mais nos assusta? Poder vê-la em toda sua dimensão para conjurar o fantasma. Tem um nome? Chama-se solidão? Beleza? Juventude?

Poder invocar a imagem que desperta o ódio passional, trazê-la e fazer as pazes com ela – até, quem sabe, poderíamos nos masturbar pensando nessa imagem.

XIII

Aprendamos a nos perdoar, não cristãmente, mas de forma libertária, por nossos erros, para recomeçar. Afinal de contas, somos apenas iniciantes no mar dos sargaços.

Talvez a única maneira de construir nossa própria homeostase seja cruzando os limites, desestabilizando-nos.

Com pequenos passos, a dor da mutação pode ser mínima: nenhuma lutadora alonga a frio, nenhuma alonga da mesma maneira no início de um treino e quando já está mais experiente no exercício.

Não estamos falando de reformismo, mas de cuidados mútuos, afetividades e afinidades. A aspiração não é a reforma, não é alcançar um estado de “eu não pergunto, você não me conta”, mas sim chegar à coletivização do nosso próprio corpo.

XIV

Um exercício: deixar de pensar psicanaliticamente – no que não está, no que me falta, no que foi para outro lugar.

Opor a esse pessimismo um desejo ativo, um otimismo da vontade: no que está, no que vem, na energia que me envolve.

XV

É difícil. Sabemos disso. Mas a monogamia é ainda mais e oferece muito menos. Nossa aspiração: emancipar-se do conceito de propriedade sobre outros seres e seus corpos – e isso inclui não apenas animais e ecossistemas, mas também a biologia dos vínculos sexuais e afetivos.

Mas somos capazes de enfrentar nossos medos e desaprender o que nos foi ensinado, somos capazes de administrar nossas emoções em uma ecologia vital de prazer e proliferação.

Espalhemos a mensagem e repitamos para nós mesmas quando o pânico tentar nos capturar: somos capazes, somos potentes. Possest: somos o que podemos.

XVI

A afetividade também é algo que experimentamos em situações onde não há outro ser humano.

Quem nunca sentiu a respiração falhar e o coração disparar diante da beleza do mar sem turistas em uma praia deserta? Ou no topo de uma montanha de onde avistamos uma floresta, depois de uma difícil escalada? Ou diante de um prato que nós mesmas cozinhamos e que ficou delicioso? Diante de palavras escritas que julgamos certeiras em um poema, uma carta ou um ensaio?

Ou diante da insurreição popular e das barricadas em chamas? Diante de gestos de carinho de pessoas desconhecidas?

Alguém que nos indica um caminho e nos ajuda a chegar a um destino em uma cidade desconhecida.

Alguém que nos faz companhia compartilhando seu livro em uma viagem.

Alguém que divide sua comida ou compartilha o que tem.

E nesses momentos de profunda intimidade não existe desespero, nem desejo baseado na ausência, nem companhia como remédio contra a solidão. Porque nem o desespero nem o medo que ele evoca são bons conselheiros na hora de escolher companhias.

XVII

E se falharmos? Falhamos. Nada acontece. Tentaremos novamente.

Nossas derrotas não nos tornam erradas. E a dor de um fracasso amoroso dói, e dói fundo, sua ferida não cicatriza rápido. Mas cicatriza, e da dor de um desenlace amoroso indesejado pode nascer uma nova amizade, de outra natureza.

Porque aquela pessoa com quem nos relacionávamos de determinada maneira e com quem agora é necessário nos relacionarmos de outra – exceto em casos de violência extrema – continua sendo a mesma pessoa com quem um dia comprometemos o coração.

Por que então deixar de amá-la?