Luigi Fabbri
O conceito anarquista da Revolução
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A intolerância de muitos socialistas, mesmo revolucionários, face ao anarquismo depende em grande parte da sua absoluta ignorância sobre as ideias, os objetivos e os métodos dos anarquistas.
É espantoso constatar como pessoas das mais inteligentes, duma vasta cultura política e económica, entre os socialistas, quando se trata da anarquia não sabem dizer mais do que os habituais lugares comuns sem sentido, difundidos pela pior imprensa burguesa: as afirmações mais estrambólicas e difamatórias, as interpretações mais tolas. Toda a ciência socialista sobre o anarquismo parece condensada naquele velho libelo em que Plekhanov, em 1893, desafogava a sua bílis anti-anarquista, sem nenhum respeito pela verdade e sem nenhuma honestidade intelectual[1]; ou naquele conhecido livro de Lombroso sobre os anarquistas, que pega por documentos verdadeiros e relatórios da polícia e dos diretores das prisões, e cataloga, sabe-se lá porquê, entre os anarquistas gente que em nove décimos jamais sonhou sê-lo!
Nos jornais, livros e revistas apareceram inumeráveis refutações socialistas do anarquismo; mas, salvo louváveis exceções, quase sempre se refutavam ideias de modo nenhum anarquistas, atribuídas aos anarquistas por ignorância ou artifício polémico. Especialmente sobre o conceito da revolução foram postas em circulação pretensas teorias anarquistas, tão extravagantes que obrigam a duvidar da boa fé de quem as enunciava. Quanta tinta derramada para demonstrar aos «ilusos anarquistas» que a revolução não se faz com pedras, com velhos fuzis ou com qualquer revólver, que as barricadas já não correspondem às necessidades da luta presente! que os motins isolados e improvisados não bastam! que os atentados individuais por si só não fazem a revolução! que o tumulto é uma coisa e a revolução é outra!… E por aí fora, com descobertas peregrinas de semelhante cunho. — ignorando ou fingindo ignorar que os anarquistas têm da revolução o conceito mais exato, e ao mesmo tempo mais prático, segundo o significado etimológico e histórico da palavra.
A revolução, na linguagem política e social — e também na linguagem popular —, é um movimento geral através do qual um povo ou uma classe, saindo da legalidade e fazendo cair as instituições vigentes, quebrando o pacto leonino imposto pelos dominadores às classes dominadas, com uma série mais ou menos longa de insurreições, revoltas, tumultos, atentados e lutas de toda a sorte, derruba definitivamente o regime político e social a que até então estava sujeito, e instaura uma ordem nova.
A derrubada de um regime costuma ocorrer num tempo relativamente breve: poucos dias na revolução de julho de 1830 que substituíu em França uma dinastia por outra, pouco mais de um ano na revolução italiana de 1848; seis ou sete anos na revolução francesa de 1789, uma dúzia de anos na revolução inglesa da metade do século XVII. A revolução, isto é, a demolição de facto de um regime político e social pré-existente, é em substância a conclusão de uma evolução anterior, que se traduz na realidade material quebrando violentamente as formas sociais e o invólucro político não mais apto a contê-la. Ela termina com o regresso a um estado normal, quando a luta é cessada, seja com a vitória a permitir à revolução instaurar um novo regime, seja com a sua derrota parcial ou total a restaurar, em parte ou no todo, o regime antigo, dando lugar à contra-revolução.
A característica principal, pela qual se pode dizer que a revolução começou, é a saída da legalidade, a rutura do equilíbrio e da disciplina estatal, a ação impune e vitoriosa da praça contra a lei. Antes de um facto específico e resolutivo deste género, não há ainda revolução. Pode haver um estado de ânimo revolucionário, uma preparação revolucionária, condições mais ou menos favoráveis à revolução; podem dar-se episódios mais ou menos felizes de revolta, tentativas insurrecionais, greves violentas ou não, manifestações até sangrentas, atentados, etc. Mas enquanto a força permanece na lei velha e no velho poder, não se entrou ainda em revolução.
A luta contra o Estado, defensor armado do regime, é portanto a condição sine qua non da revolução. A qual tende a limitar o mais possível o poder do Estado e a desenvolver o espírito de liberdade; a levar até ao limite máximo o povo, os súbditos da véspera, os explorados e os oprimidos, ao uso de todas as liberdades individuais e coletivas. No exercício da liberdade, não coarctado por leis e governos, reside a saúde de toda a revolução, a garantia de que ela não seja limitada ou contida nos seus progressos, a sua melhor salvaguarda contra as tentativas internas e externas de a estrangular.
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Alguns dizem-nos: «Compreendemos que, como anarquistas e sendo contrários a toda a ideia de governo, vos oponhais à ditadura que é a sua expressão mais autoritária; mas não se trata de a propor como objetivo, e sim como meio, ainda que seja antipático mas necessário, como é um meio necessário mas antipático a violência, durante o período provisório revolucionário, necessária para vencer as resistências e os contra-ataques burgueses».
Uma coisa é a violência, outra é a autoridade governativa, seja esta ou não ditatorial. Se é verdade, de facto, que todas as autoridades governativas se baseiam no uso da violência, seria inexato e erróneo dizer que toda a «violência» é um ato de autoridade, e que sendo necessária a primeira também necessária se torna a segunda. A violência é um meio, que assume o caráter do fim para que é aplicada, do modo como é usada, das pessoas que dela se servem. Ela é um ato de autoridade quando é aplicada para impor aos outros a vontade de quem comanda; quando é emanação governativa ou patronal, e serve para manter escravos povos e classes; para impedir a liberdade individual dos súbditos, para fazer obedecer pela força. É ao invés libertária, vale dizer, ato de liberdade e libertação, quando é aplicada contra quem comanda e por quem não quer mais obedecer; quando é dirigida a impedir, diminuir ou destruir uma qualquer escravidão, individual ou coletiva, económica ou política; e é aplicada pelos oprimidos diretamente, indivíduos, povos ou classes, contra o governo e a classe dominante. Tal violência é a revolução em ato; mas deixa de ser libertária, e assim revolucionária, logo que, vencido o velho poder, quer ela própria tornar-se poder, e se cristaliza numa forma qualquer de governo.
É este o momento mais perigoso de toda a revolução: quando a violência libertária e revolucionária vencedora se pode transformar em violência autoritária e contra-revolucionária, moderadora e limitadora da vitória popular insurrecional. É o momento em que a revolução pode devorar-se a si mesma, se lhe tomarem a dianteira as tendências jocobinas, estatais, que desde já se manifestam através do socialismo marxista favorável ao estabelecimento dum governo ditatorial. Tarefa específica dos anarquistas, decorrente das suas próprias conceções teóricas e práticas, é justamente reagir contra tais tendências autoritárias e liberticidas; com a propaganda hoje e com a ação amanhã.
Aqueles que fazem uma distinção entre anarquia teórica e anarquia prática, para sustentar que a anarquia prática não deveria ser anarquista mas ditatorial, não compreenderam bem a essência do anarquismo, no qual não é possível separar a teoria da prática, porquanto para os anarquistas a teoria decorre da prática e é por sua vez um guia para a conduta, uma verdadeira e própria pedagogia da ação.
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Muitos crêem que a anarquia consista só na afirmação revolucionária e ideal ao mesmo tempo de uma sociedade sem governo, a instaurar no futuro, mas sem ligação com a realidade atual, para que hoje se possa ou se deva agir em contradição com o fim que nos propomos, sem escrúpulos e sem limites. Assim, à espera da anarquia, ontem nos aconselhavam provisoriamente a votar nas eleições, como hoje nos propõem aceitar provisoriamente a ditadura considerada proletária e revolucionária.
Mas nada disso! Se fôssemos anarquistas só no fim e não nos meios, o nosso partido seria inútil; pois a frase de Bovio, de que anarquista é o pensamento e para a anarquia vai a história, pode ser dita e aprovada (como de facto muitos dizem subscrevê-la) também por aqueles que militam em outros partidos de progresso. O que nos distingue, não só na teoria mas também na prática, dos outros partidos é que nós não somente temos um objetivo anarquista mas também um movimento anarquista, uma metodologia anarquista; porquanto pensamos que as vias a percorrer, tanto durante o período preparatório da propaganda como no período revolucionário, são as vias da liberdade.
A função do anarquismo não é tanto de profetizar um futuro de liberdade, mas de o preparar. Se todo o anarquismo consistisse na visão longínqua de uma sociedade sem Estado, ou na afirmação de direitos individuais, ou numa questão puramente espiritual, abstraída da realidade vivida e dizendo respeito só às consciências particulares, não haveria nenhuma necessidade de um movimento político e social anarquista. Se o anarquismo fosse simplesmente uma ética individual, a cultivar dentro de nós, ao mesmo tempo adaptando-se na vida material a atos e movimentos com ela contraditórios, poderíamos dizer-nos anarquistas e pertencer aos mais diversos partidos; e poderiam ser chamados anarquistas muitos que, embora sendo espiritual e intelectualmente emancipados, no terreno prático são e continuam nossos inimigos.
Mas o anarquismo é outra coisa. Não é um meio de nos fecharmos na torre de marfim, mas sim uma manifestação do povo, proletária e revolucionária, uma participação ativa no movimento de emancipação humana com critérios e finalidades igualitárias e libertárias ao mesmo tempo. A parte mais importante do seu programa não consiste somente no sonho, que todavia queremos que se realize, duma sociedade sem patrões e sem governos, mas sobretudo na conceção libertária da revolução, da revolução contra o Estado e não por meio do Estado, da ideia de que a liberdade é não só o calor vital que aquecerá o novo mundo de amanhã, mas também e sobretudo, hoje mesmo, uma arma de combate contra o velho mundo. Neste sentido a anarquia é uma verdadeira e própria teoria da revolução.
Tanto a propaganda hoje como a revolução amanhã têm e terão, por conseguinte, necessidade do máximo possível de liberdade para se desenvolverem. Isto não quer dizerque não devam e não possam prosseguir na mesma ainda que a liberdade nos seja em parte, pouco ou muito, tirada; mas é do nosso interesse tê-la e querê-la o mais que for possível. De outro modo não seremos anarquistas. Noutros termos, nós pensamos que quanto mais agirmos libertariamente, tanto mais contribuiremos não só para nos aproximarmos da anarquia, mas também para consolidar a revolução; ao passo que da anarquia nos afastaremos, e enfraqueceremos a revolução, toda a vez que recorrermos a sistemas autoritários. Defender a liberdade para nós e para todos, combater pela liberdade cada vez mais extensa e completa, tal é portanto a nossa função, hoje, amanhã, sempre — na teoria e na prática.
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Liberdade também para os nossos inimigos?, pergunta-se-nos. A pergunta é ingénua ou desonesta. Com os inimigos estamos em luta, e na refrega não se reconhece ao inimigo nenhuma liberdade, nem sequer a de viver. Se fossem inimigos só… teóricos, se os encontrássemos à nossa frente desarmados, na impossibilidade de atentar contra a nossa liberdade, despojados de todo o privilégio e portanto em paridade de condições, seria coisa admissível. Mas preocuparmo-nos com a liberdade dos nossos inimigos quando nós temos algum pobre jornal e uns poucos semanários, e eles possuem centenas de diários de grande tiragem; quando eles estão armados e nós desarmados, enquanto eles estão no poder e nós somos súbditos, eles ricos e nós pobres, ora! seria ridículo… Seria o mesmo que reconhecer a um assassino a liberdade de nos matar! Tal liberdade nós lhes negamos, e negaremos sempre, também em período revolucionário, enquanto eles conservarem a sua condição de verdugos e nós não tivermos conquistado toda e completa a nossa liberdade, não só em direito mas de facto.
Mas esta liberdade não a poderemos conquistar senão utilizando-a também como meio, onde a ação depender de nós; vale dizer, dando desde já uma direção cada vez mais livre e libertária ao nosso movimento, ao movimento proletário e popular; desenvolvendo o espírito de liberdade, de autonomia e de livre iniciativa no meio das massas; educando estas para uma intolerância cada vez maior a todo o poder autoritário e político, encorajando o espírito de independência de opinião e de ação face aos lídes de toda a espécie; habituando o povo ao desprezo de todo o freio e disciplina impostos pelos outros e de cima, que não seja portanto o freio da própria consciência e a disciplina livremente escolhida e aceite, e seguida só enquanto se considera boa e útil ao objetivo revolucionário e libertário estabelecido.
É claro que uma massa educada nesta escola, um movimento tendo esta direção (e tal é o movimento anarquista), encontrará na revolução ocasião e meio de se desenvolver no seu sentido até limites hoje sequer imagináveis; e será o natural obstáculo, e ao mesmo tempo voluntário, à formação e afirmação de qualquer governo mais ou menos ditatorial. Entre este movimento para uma cada vez maior liberdade e a tendência centralizadora e ditatorial não pode haver senão conflito, mais ou menos forte e violento, com maiores ou menores tréguas, em função das circunstâncias; mas concordância nunca.
E isso não por uma mania exclusivamente doutrinária e abstrata, mas porque os negadores do poder — é este, repetimos, o lado mais importante da teoria anarquista, que pretende ser a mais prática das teorias —pensam que a revolução sem a liberdade nos levaria a uma nova tirania; que o governo só pelo facto de o ser tende a conter e limitar a revolução; e que é do interesse da revolução e do seu progressivo desenvolvimento combater e pôr obstáculos a toda a centralização de poderes, impedir a formação de qualquer governo, se for possível, ou impedir ao menos que ele se reforce, se torne estável e se consolide. Quer isto dizer que o interesse da revolução é contrário à tendência que toda a ditadura tem em si, por mais proletária ou revolucionária que se diga, de se tornar forte, estável e sólida.
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Mas não! replicam outros; tratar-se-ia de uma ditadura provisória enquanto dura a obra de deposição da burguesia, para a combater, vencer e expropriar.
Quando se diz «ditadura» subentende-se sempre provisória, mesmo no significado burguês e histórico da palavra. Todas as ditaduras, nos tempos idos, foram provisórias nas intenções dos seus promotores e, nominalmente, também de facto. As intenções em tal caso contam pouco, pois trata-se de formar um organismo complexo, que seguiria a sua natureza e as suas leis e anularia toda a apriorística intenção contrária ou limitadora. O que temos que ver é: primeiro, se as consequências do regime ditatorial são mais de dano do que vantagem para a revolução; segundo, se os objetivos destruidores e reconstrutivos para que a ditadura se quer, não podem ser alcançados também e melhor sem ela, pelas vias largas da liberdade.
Nós cremos que sim; e cremos que a revolução é mais forte, mais incoercível, mais difícil de vencer, quando não há um centro onde atacá-la: quando ela está em qualquer lugar, sobre todos os pontos do território, e em qualquer lugar o povo proceda livremente a realizar os dois fins principais da revolução: a destruição da autoridade e a expropriação dos patrões.
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Quando censuramos à conceção ditatorial da revolução o grave erro de impor a vontade duma pequena minoria à grande maioria da população, respondem-nos que as revoluções são feitas pelas minorias.
Também na literatura anarquista se encontra muito frequentemente repetida esta expressão, que diz de facto uma grande verdade histórica. Mas convém compreendê-la no seu verdadeiro significado revolucionário, e não lhe dar, como os bolcheviques, um sentido que antes nunca tivera. Que as revoluções sejam feitas pelas minorias é de facto verdade… até um certo ponto. As minorias, na realidade, iniciam a revolução, tomam a iniciativa da ação, arrombam a primeira porta, abatem os primeiros obstáculos, pois sabem ousar o que as maiorias inertes ou misoneístas receiam, no seu amor à vida tranquila e o seu temor aos riscos.
Mas se, uma vez quebradas as primeiras amarras, as maiorias populares não seguem as minorias audazes, o ato destas ou é seguido pela reação do velho regime que tira a desforra, ou resolve-se na substituição de uma dominação por outra, de um privilégio por outro. É necessário então que a minoria rebelde tenha mais ou menos consenciente a maioria, lhe interprete as necessidades e os sentimentos latentes; e, vencido o primeiro obstáculo, realize as aspirações populares, deixe às massas a liberdade de se organizarem a seu modo, tornando-se a minoria num certo sentido a maioria.
Se isto não ocorre, não dizemos que a minoria não tenha o mesmo direito à revolta. Segundo o conceito anarquista da liberdade, todos os oprimidos têm direito de se rebelar à opressão, o indivíduo como a coletividade, as minorias como as maiorias. Mas uma coisa é rebelar-se à opressão, outra é tornar-se opressor por sua vez, como mais vezes dissemos. Também quando as maiorias toleram a opressão ou são dela cúmplices, a minoria que se sinta oprimida tem direito a rebelar-se, a querer para si a sua liberdade. Mas igual e maior direito teriam as maiorias, contra qualquer minoria que pretendesse sob qualquer pretexto sujeitá-las.
De resto, no facto real, os opressores são sempre uma minoria, tanto quando oprimem abertamente em nome próprio, como quando exercem a opressão em nome de hipotéticas coletividades ou maiorias. A revolta é portanto, ao princípio, de uma minoria consciênte, insurgida em meio a uma maioria oprimida, contra uma outra minoria tirânica; mas tal revolta só se torna revolução, só pode ter eficácia renovadora e libertadora, se com o seu exemplo conseguir abanar a maioria, arrastá-la, pô-la em movimento, conquistar-lhe o favor e a adesão.
Abandonada ou adversada pelas maiorias populares, a revolta, se derrotada, passaria à história como um movimento heróico e infeliz, fecundo precursor dos tempos, etapa sanguinosa mas necessária de uma vitória indefectível no futuro. Caso contrário, se vencedora, a minoria rebelde tornada senhora do poder a despeito das maiorias, novo jugo sobre o pescoço dos súbditos, acabaria por matar a mesma revolução por ela suscitada.
Em certo sentido poder-se-ia dizer que, se uma minoria rebelde não consegue com o seu ímpeto arrastar atrás de si a maioria dos oprimidos, ela seria mais útil à revolução se derrotada e sacrificada. Pois se com a vitória se tornasse ela o opressor, acabaria por apagar nas massas toda a fé na revolução, fazê-las talvez mesmo odiar uma revolução da qual vissem sair nada além de uma nova tirania — de que sentiriam o peso e o dano, qualquer que fosse o pretexto ou o nome com que viesse coberta.
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Especialmente depois da revolução russa, vem sendo defendida a ideia do poder ditatorial da revolução, como um meio necessário de luta contra os inimigos internos, contra as tentativas dos ex-dominadores desejosos de recuperar o poder económico e político. O governo serviria, portanto, para organizar, nos primeiros momentos de maior perigo, o terrorismo anti-burguês em defesa da revolução[2].
Nós não negamos de modo nenhum a necessidade do uso do terror, especialmente quando aos inimigos internos vêm em ajuda, com forças armadas, os inimigos externos. O terrorismo revolucionário é uma consequência inevitável, quando o território sobre o qual a revolução ainda não se reforçou o suficiente, está a ser invadido por exércitos reacionários. Cada insídia da contra-revolução, a partir de dentro, é demasiado funesta em tais circunstâncias para que não deva ser exterminada com ferro e fogo.
A lenda de Bruto, que manda para o patíbulo os filhos, cúmplices internos dos Tarquínios expulsos de Roma e que ameaçavam a liberdade romana à cabeça dum exército estrangeiro, é o símbolo desta trágica necessidade do terror. Assim em França se sentiu a necessidade, em 1792, de exterminar os nobres, os padres e os reacionários acumulados nas prisões, quando Brunswick se acercava ameaçadoramente a Paris, guiado pelos emigrantes.
O terror torna-se inevitável, quando a revolução é encurralada por todos os lados. Sem a ameaça externa, as ameaças contra-revolucionárias internas não metem medo; basta para as manter inativas o conhecimento da sua impotência material. Deixá-las tranquilas pode ser na mesma um erro, e talvez um perigo para o futuro, mas não constitui perigo imediato. Por isso pode-se facilmente ser arrastado face aos próprios inimigos a um sentimento de generosidade e piedade. Mas quando estes inimigos têm para lá das fronteiras forças armadas prontas a intervir em seu socorro, quando eles acham aliados nos inimigos externos, então tornam-se um perigo, que se faz cada vez mais forte quanto mais avança o outro perigo de fora. A sua supressão torna-se então questão de vida ou de morte.
Quanto mais inexorável é a revolução em tais momentos, melhor consegue evitar maiores lutas para o futuro. Uma excessiva tolerância hoje poderia tornar necessário amanhã um rigor duplamente grave[3]. Se depois ela tivesse por consequência a derrota da revolução, bem mais tremendas chacinas viriam punir a fraqueza com o terror branco da contra-revolução!
Não é necessário de resto valorizar demais a retórica, de que faz pompa a imprensa burguesa, para vituperar e caluniar o terrorismo revolucionário.
Há quatro anos que não fazem mais do que falar dos horrores, das chacinas, das infâmias e das desordens revolucionárias de Petrogrado e Moscovo. Mas se se tivesse a paciência de ir às bibliotecas repescar os diários de Roma, Turim, Viena, Coblença, Berlim, Londres e Madrid de 1789 a 1815, aproximadamente, ler-se-iam palavras idênticas de horror sobre as chacinas, as infâmias e as desordens da Grande Revolução. Aqueles que se lembram dos tempos da Comuna de Paris de 1871, recordam igualmente com que linguagem repulsiva se falava das «chacinas» dos petroleiros comunardos: não havia palavras que chegassem para os vituperar como os piores assassinos. Não obstante, quantos apologistas da Comuna parisiense não estão hoje entre os vituperadores da Comuna mosovita!
Os patriotas italianos sinceros devem recordar-se das infâmias que nos jornais moderados e bonapartistas de Paris se escreveram — de acordo com os jornais clericais vienenses — contra a República Romana de 1849, e de como então as almas mais pias se escandalizaram e horrorizaram pelas chacinas atribuídas aos carbonários e aos mazzinianos. Também sobre a revolução russa um dia se saberá a verdade verdadeira, e talvez muitos dos seus atuais difamadores mudarão de opinião. Aí, provavelmente, os únicos que persistirão na crítica serão… os anarquistas!
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Nenhum direito tem a burguesia de se escandalizar com o terrorismo da revolução russa, ela que nas suas revoluções fez outro tanto, e que depois aplicou o terror em sua vantagem contra o povo, toda a vez que este tentou seriamente sacudir o seu jugo, e com uma ferocidade que nenhuma revolução jamais alcançou.
Como anarquistas, porém, nós fazemos todas as nossas reservas, não contra o uso do terror em linha geral, mas contra o terrorismo codificado, legalizado, feito instrumento de governo — seja embora um governo que se diga e se creia revolucionário. O terrorismo autoritário, na realidade, pelo facto de ser tal, deixa de ser revolucionário, torna-se uma ameaça perene para a revolução, e também uma razão de fraqueza. A violência encontra só na luta e na necessidade de libertação de uma opressão violenta a sua justificação; mas a legalização da violência, o governo violento, é já ele mesmo uma prepotência, uma nova opressão.
Torna-se por isso causa de fraqueza para o terrorismo revolucionário o ser exercido não livremente pelo povo e contra os seus inimigos somente, não por iniciativa independente dos grupos revolucionários, mas pelo governo; com a consequência natural de que o governo persiga, junto com os verdadeiros inimigos da revolução, também revolucionários sinceros, mais avançados do que ele mas com ele discordantes. Além disso o terrorismo, como ato de autoridade governativa, é mais suscetível de recolher aquelas antipatias e aversões populares que sempre se determinam em oposição a todo o governo, de qualquer espécie que seja; e só porque é um governo. O governo, também quando recorre a medidas radicais, pelas responsabilidades que sobre ele pesam e por todo o conjunto de influências que sofre do exterior e do interior, é levado inevitavelmente a cautelas e a atos ou mais violentos ou mais remissivos a critérios sugeridos, mais do que pelo interesse do povo e da revolução, pela necessidade de defender o seu poder e a segurança pessoal presente ou futura, ou até o simples bom nome, dos seus componentes.
Para nos desembaraçarmos em qualquer lugar da burguesia, para proceder àquelas medidas sumárias que podem ser necessárias numa revolução, não há necessidade de ordens de cima. Aliás, quem está no poder, por um sentido natural de responsabilidade, pode ter hesitações e escrúpulos perigosos, que as massas não têm. A ação direta popular — que poderemos chamar terrorismo libertário — é portanto sempre mais radical, sem contar que, localmente, se pode saber muito melhor quem e onde atacar, do que a partir do poder central distante, o qual seria obrigado a confiar em tribunais cada vez menos justos e ao mesmo tempo mais ferozes da justiça sumária popular. — Os quais, mesmo quando levam a cabo atos de verdadeira justiça, não atacam por sentimento mas por mandato, tornam-se assim pela sua frieza antipáticos ao povo, e são levados a rodear os seus atos de crueldade, mesmo que necessária, com uma teatralidade inútil e uma hipócrita ostentação duma igualdade legislativa inexistente e impossível.
Em todas as revoluções, assim que a justiça popular se torna legal, organizada a partir de cima, pouco a pouco se transforma em injustiça. Torna-se talvez mais cruel, mas é também levada a atacar os próprios revolucionários, a poupar muitas vezes os inimigos, a tornar-se instrumento do poder central em sentido cada vez mais repressivo e contra-revolucionário. Como instrumento de violência destrutiva, portanto, não só pode passar sem o poder na revolução, mas a mesma violência é tanto mais eficaz e radical quanto menos se concentra numa autoridade determinada.
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Àqueles que contra os nossos argumentos opõem o que acontece na Rússia, nós respondemos que lá a experiência está ainda em curso, e é cedo demais para nos basearmos nela como prova de verdade. Cita-se muito os decretos emanados do governo soviético, mas para perceber se são bons seria preciso saber se, como e até que ponto foram aplicados, os seus resultados, etc. Para concluir que lá se fez bem, seria preciso que a experiência estivesse concluída, com a vitória ou com a derrota, de modo a saber e perceber se a ditadura terá mais ajudado ou estorvado uma ou outra. Hoje por hoje podemos nós, podem os favoráveis à ditadura revolucionária, excluir que uma das causas das condições terríveis em que se debate a revolução russa seja justamente a sua direção excessivamente autoritária e ditatorial? Não, certamente.
Nós, com o maior senso de objetividade que nos foi possível, dada a nossa passionalidade de homens de partido, examinámos num capítulo anterior as condições criadas na Rússia pela ditadura em relação aos interesses da liberdade. E por este lado as conclusões que se podem tirar não são por certo encorajadoras! Mas o nosso objetivo não é o de nos erigirmos em juízes nem tampouco de fazer da crítica histórica um fim em si mesma, mas sim de examinar as ideias e os factos, tendo em conta o que poderia ser a revolução nos nossos países. Podemos também admitir que na Rússia as coisas não pudessem ir diferentemente de como vão, e não se pudesse fazer diferentemente do que se fez. Mas é certo que nos países ocidentais não se poderia agir do mesmo modo que na Rússia.
As nossas considerações pretendem sobretudo ter um valor aqui, onde nós vivemos, como norma e guia de uma eventual revolução mais ou menos próxima; para que tenhamos o dever de não imitar cegamente o que se diz ou imaginamos se tenha feito na Rússia ou noutro lugar, e sim preparar positivamente o terreno para a nossa revolução, vendo o que convém e o que não convém ao seu triunfo, dadas as nossas condições, os meios de que podemos dispor e os fins que nos propomos com a revolução — aqui, no nosso ambiente, com os nossos sentimentos e as nossas ideias.
Aqueles que citam tão frequentemente Lenin devem a tal propósito recordar o honesto conselho que ele deu aos revolucionários da Hungria, quando lá rebentou a desgraçada revolução tão mal acabada, de terem o cuidado de não macaquear aquilo que se tinha feito na Rússia, porque aí se tinham cometido erros que era preciso evitar; e porque o que podia ser útil, necessário ou inevitável na Rússia, podia ser ao contrário evitável e nocivo noutro lugar. O conselho de Lenin é bom para os revolucionários de todos os países — compreendidos os revolucionários de Itália.
NOTAS
[1] O presente volume estava já impresso em mais de metade quando saiu pelas edições do Avanti! (Milão, 1920) um novo livro, «Estado e Revolução», de Lenin, o qual reconhece a superficialidade de Plekhanov, que tratou o tema evitando completamente o que havia de mais atual e politicamente essencial nas diferenças entre socialismo e anarquia, e acompanhando a parte histórica com considerações filisteias e vulgares pretendendo demonstrar que um anarquista dificilmente se pode distinguir de um bandido (Lenin, «Stato e Rivoluzione» p.118).
[2] Falamos no «terrorismo» não somente no significado particular de política terrorista de governo, mas no sentido geral do uso da violência até aos extremos limites mais mortíferos, o que pode ser feito tanto por um governo por meio dos seus gendarmes, quanto diretamente pelo povo no curso de um tumulto e durante a revolução.
[3] Neste sentido Giovanni Bovio dizia que a Revolução «comete piedosamente ações cruéis, e evita a femínea piedade; desculpa uma matança e condena os Soderini». (G. Bovio, Dottrina dei partiti in Europa, Nápoles, 1886 — pág. 137).