Luis Manuel Rangel
MATILHAS QUEER E GREVE HUMANA
Desde as primeiras linhas do livro, Foucault para Encapuchados, do coletivo Manada de Lobxs, publicado pela editora madrilena, Traficante de Sueños, nos encontramos no quadro conceptual deleuziano. Por todo o lado saltam os conceitos chave, a que Deleuze & Guattari nos habituaram: devir, devir lobo, matilha, constelações, nomadismo, desterritorialização, entre outros. Esta proximidade conceptual é mais do que uma simples “afinidade eletiva”, ou uma mera apropriação queer da filosofia deleuziana. É uma investida, a partir de Deleuze & Guattari, contra a heteronormatividade, em nome de subjetividades singulares e autónomas. Uma subjetividade desterretorializada, no verdadeiro sentido da palavra: quer dizer, que renuncia à pertença a um território, a uma comunidade, a uma pátria e a todas as demais atribuições legais, com que o estado costuma determinar os seus súbditos. Uma singularidade que rompe com os limites impostos a um corpo sem fronteiras, atravessado pelo fluxo desejante, não sedentário, livre do confinamento heterossexual.
Neste ponto, não pode haver qualquer ilusão: tomadas por este devir monstruoso, que abre a novas formas de ser, a novos encontros, que não se deixa cristalizar pelas forma da exploração e aceitabilidade heterocapitalista, as singularidades em matilha não podem esperar pela aceitação , ou tolerância, por parte da Norma vigente. Não seremos sujeitos “de bem”, diz Foucault para Encapuchados, «mas invenções, ficções literárias ou outras, personagens conceptuais, abertas àqueles encontros que nos tornarão mais livres, quer dizer mais potentes, “cáries na estrutura molar” heteronormativa». Seremos então “agentes coletivos de enunciação”, outro termo pedido de empréstimo a Deleuze/Guattari, quer dizer, um campo de intensidades, não edipianas, anti-identitárias, de singularidade dispostas em redes abertas e cooperantes, contra a máquina de produção massificada de sujeitos conformes.
«Não nos esquecemos de onde partimos, a nossa terra é sempre periférica e à margem» — diz Foucault para Encapuchados. É justamente a partir das margens proibidas da exploração heterocapitalista, da pobreza e da exclusão, que um novo jogo pode começar. O jogo das lutas travadas aqui e agora, que podem ser derrotadas, mas não vencidas. Porque o corpo, estes corpos ilegíveis, sem fronteiras, são portadores de verdade e vontade próprias, interagindo, uns com os outros, em movimentos coletivos. Prelúdio de uma política somática, a política de corpos livres e cooperantes em movimento. Corpos rebeldes, portanto, não domesticados.
Existe toda uma genealogia que leva da domesticação do cão — o primeiro animal a ser domesticado, como lembra Roland Barthes em Como Viver Juntos [1] -, à humanidade domesticada do homem domesticus hetero-imperialis, pejada de valores que importa preservar, como os de Progresso, Humanismo, Industrialização. Contra o homem-cão domesticado, o lobo e as suas matilhas em movimento autónomo, velha lição de Deleuze-Guattari, retomada aqui num contexto novo. Diante da “comunidade terrivel” de homens domesticados, que se “propagou pelo planeta como uma praga”, o que fazer? Escolher o exílio, onde quem se “exila leva consigo a cidade que habita”? Ou pelo contrário, escolher o deserto e a sua travessia, os encontros que neles podem eventualmente acontecer, os oásis de acontecimentos inesperados?
«Desertar», quer dizer, escolher o deserto, desejar o encontro com singularidades intensivas, não conformes, que se movem como matilhas de lobos, segundo a sua lógica própria, os seus objetivos, os seus interesses subvertidos. «Desertar a sociedade heterocapitalista», diz Foucault para Encapuchados, «porque nela só existem cidadãos imperiais fazendo barragem contra o pouco que resta de potência, nos nossos corpos. Desertar significa ir para o deserto, atrever-se, deixar-se cair, precipitar-se nos devires alegres, dizer “não”, preferir não fazê-lo», como Bertleby, o escrivão e a sua máxima … I Prefer Not To. Criar «vazios de solidão e silêncio», recusar os diálogos estéreis, fazer dos nossos corpos «máquinas de guerra sediciosas», aprender a arte do recuo estratégico, escolher a solidão, lá onde ela é produtiva e subversiva: « Estar sozinha é associarmo-nos ao elemento criminal indispensável: atraiçoar sem nostalgia a família, a classe, a pátria, a condição de autor, a pertença, o género.».
A matilha — outro conceito deleuziano — usado aqui para convocar a nova «solidariedade de matilha», por oposição à sociabilidade envenenada dominante. A matilha é uma rede de dissensões inconfessáveis de sujeitos não conformes, cujas práticas desobedecem às atribuições biopolíticas e normativas da heterossexualidade vigente. Matilha é também uma política de alianças, com outros sujeitos imigrantes, dissidentes, outros desertores. Uma prática de encontros, não apenas com outras pessoas, mas também com outras ideias, movimentos, acontecimentos não normativos.
Nos anos setenta do século passado, a feminista italiana Carla Lonzi, membro do movimento da Autonomia italiana, elaborou o importante conceito de “greve humana”, como resposta do feminismo radical, à figura do obreiro viril, “macho reprodutor” da revolução, capaz de contestar as relações de produção e de exploração capitalista, sem por em causa as relações reprodutivas e de discriminação de género, que lhe estão subjacentes. O grito das feministas, que se ouvia nas ruas e praças italianas, nos anos setenta, sintetiza bem a dimensão revolucionária da “greve humana”: “Não seremos mães, esposas ou filhas: destruamos a família!”.
A prática da “greve humana” responde à pergunta: o que fazer? É um poderoso instrumento de oposição à subsunção da vida, por parte do heterocapitalismo. Uma forma de recusa do binarismo sexual e respetivos papéis sociais e uma reapropriação da violência revolucionária, por parte das subjetividades secundárias. Uma forma de fazer hacking aos códigos da masculinidade e feminilidade heteronormativa.
A renúncia a manter relações sexuais naturalizadas heteronormativas (que carateriza a greve humana), permite a ressignificação e a desconstrução da centralidade do pénis. Desgenitalizar a sexualidade e, deste modo, separar o prazer, da reprodução da espécie. Adotar novas práticas de prazer não monogâmicas, tomando o corpo como uma «barricada de insubordinação política e de desobediência sexual», aos regimes naturalizados. Subverter, desde dentro, quer dizer, desde a intimidade da cama, o regime heterossexual, tudo isto é objetivo da “greve humana”.
A matilha queer proposta por Foucault para Encapuchados é anárquica. À triste norma heterocapitalista, opor a alegria anárquica, quer dizer, «a amizade-animalidade política» das facções políticas de sujeitos não conformes com a heterossexualidade e suas normas especistas, os animais, os trabalhadores sexuais, os trans, os transexuais, os emigrantes queer. E, assim, destruir os fundamentos que sustentam o regime heterossexual.
[1] Roland Barthes, Como Viver Juntos, Simulações romanescas de alguns espaços quotidianos. Cursos e seminários no Collège de France, 1976–1977. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Claude Coste. Tradução | Leyla Perrone-Moisés. Martins Fontes. São Paulo 2003.