Luther Blisset
Manifesto por uma Frente de Libertação Musical
Por muito tempo a ideologia dominante (ou seja lá que monstro vem dominando as pessoas) tem as afastado de um caminho que leve a um mínimo de resistência contra as apropriações de expressões humanas comumente denominadas de expressões artístico- culturais.
A divisão da vida humana em esferas separadas operada na sociedade capitalista, na qual cultura, economia, política, religião, etc. aparecem como manifestações distintas, transparece na separação entre “público” e “artista”, ou melhor, na existência de um público – consumidor de produtos “culturais” – e um “artista” – produtor de “cultura”. A cultura passa a ser algo produzido por alguém ou alguns, como uma bicicleta ou uma casa, e não mais como uma manifestação social, de uma sociabilidade e de um imaginário social específicos. A quebra destas separações é um dos objetivos da revolução, sem dúvida.
Esta separação abre espaço para existência da indústria cultural, corolário da existência do artista, do público e da propriedade, isto é, do capitalismo. Se a separação da vida em esferas ou compartimentos é condição de existência da indústria cultural, esta, por sua vez, intensifica a separação entre público (sinônimo de consumidor passivo, alienado e sem vida própria) e “artista” (o produtor de “cultura”, o operário da indústria cultural: que se diferencia de um operário comum por não possuir a dignidade deste último, pois se nega a aceitar o fato de ser operário e com isso expor a existência da indústria cultural ao público, se escondendo atrás do rótulo de “artista” que pressupõe ao senso comum independência e autonomia, sendo assim cúmplice intencional da ideologia dominante). Ocorre que o artista como produtor cultural passa a ser visto e “vendido” – com todo apoio da concepção de propriedade e apropriação própria da sociedade capitalista arraigada em todas as pessoas – como o autor, o criador, que assim como Deus, tira algo do nada. Esta concepção e falsa ideia é o que sustenta a irracionalidade dos direitos autorais e consequentemente da indústria fonográfica e cultural em geral. O artista ou autor não é mais do que a homologia terrestre da crença e irracionalidade divina. O fosso que existe entre as sociedades humanas e Deus é recriado na terra entre Artista e público. “Se Deus existe, o homem é escravo” já dizia o velho Bakuna. Pois bem, se o Autor, o Artista, existe, o homem é público (isto é, espectador passivo, alienado, escravo). O corpo que expressa uma “nova” melodia não está suspenso no vácuo, mas se encontra localizado histórica e socialmente, e tanto aos de hoje como aos de ontem pertencem também esta “nova” melodia. Estas questões já foram expressas pelos clássicos anarquistas. Leiam Proudhon a respeito do tema, se ainda não se convenceram de que não existe “produção” que não seja coletiva. O mesmo se aplica à música ou outras manifestações e linguagens humanas.
Decorre disso que a relação da música com seu “criador”(preferiria usar a palavra “gerador”)não é de espécie diferente, ou pela razão não deveria ser de espécie diferente, daquela entre os pais e sua cria: “Geraste mas não te pertence, não lhes são propriedade. Os genes que lhes dão forma vieram de combinações muitas, e tantas outras modificações que escapam da história, não tiveram origem em ti e tua/teu parceir@, são produto das experiências e acasos da natureza”. Da mesma forma, uma melodia gerada por alguém é produto de combinações e experiências musicais e sonoras que se perdem na história e que atingiram de alguma forma este indivíduo, e sem as quais seria inconcebível tal “criação”.
A concepção irracional de direitos autorais, que só pode nascer dentro do individualismo capitalista, acaba se tornando um meio eficaz de afastar as expressões populares do meio onde elas surgem, e transformá-las em bens de consumo para o enriquecimento da indústria capitalista e daqueles que se vendem sob o rótulo de autores ou artistas.
Nasce uma música em cima de um morro, num boteco, numa garagem, ela então é afastada de seu ambiente, da sociedade e das condições criadas pelo grupo social em que ela nasceu, através de um negócio feito entre a indústria e o gerador, o AUTOR. Essa música assim não será mais do morro, do boteco ou da garagem, não mais lá ela será tocada, os copyrights e os direitos privados de execução não o permitem, se ouvires estarás testemunhando uma transgressão da lei. Essa música foi roubada pelos capitalistas, que com o artefato ideológico do AUTOR e do ARTISTA conseguem que seu roubo seja aceito sem maiores reclamações além de seduzir o gerador para ser cúmplice deste roubo. “A propriedade é um roubo”, já dizia o velho Proudha. Uma melodia ou um riff que teriam uma vida livre e social, passam a estar sob o jugo capitalista, servindo aos seus interesses mesquinhos. Este é um manifesto, entre outras coisas, para a criação de uma FRENTE DE LIBERTAÇÃO MUSICAL.
Eu me envergonharia de dizer coisas que podem parecer tão óbvias se de fato, até pouco tempo atrás, eu não compartilhasse do senso comum que supervaloriza uma tal de “criação própria”, que é algo metafísico, e que nos faz esquecer e aceitar a música que nos foi roubada e que além de tudo é um fruto direto da ideologia capitalista-individualista, do AUTOR, de DEUS, e por consequência dos direitos autorais e de propriedade. Não se trata de deixar de incentivar a geração de “novas” músicas, mas simplesmente de pararmos de enxergar aquilo que nos quer vender a indústria cultural como algo que não é nosso, mas sim que nos foi roubado, como algo que devemos expropriar, re-utilizar, modificar, combinar, gozar, brincar, etc.
No meio anarco-punk/hardcore é padrão uma certa repugnância em se tocar muitos “covers” e principalmente em se tocar músicas que estão sob copyright de indústrias capitalistas e/ou sob domínio de bandas (AUTORES) que compactuam com a indústria cultural. Parece muitas vezes que se está a sujar o sangue se se toca uma música ou melodia que ganhou notoriedade através de um Sex Pistols ou The Clash, que posam legalmente como autores de tais. Este tipo de pensamento só tem um fundamento racional (mas não creio que seja isto que o mova): evitar divulgar o produto vendido por esta indústria/artista. Este é um perigo real que os expropriadores musicais devem estar atentos. Por isso deve estar sempre clara uma posição e uma propaganda contra a indústria e o artista por parte dos expropriadores, mostrando o quanto são repugnantes. Porém, creio eu que a força motriz de tal atitude por parte de anarco-punks e afins, está no fato de vincularem de forma inextricável a criatura ao criador, fruto de uma concepção ao mesmo tempo burguesa e teísta. Assim como o filho não tem culpa dos pais que têm, a música também não o tem. se se pensa de outra forma se está a jogar o jogo da indústria cultural. Essa moral transcendental encarnada pelos punks retira de questionamento os direitos autorais, pois nem sequer passam a querer transgredi-lo. A música apropriada pelo artista e pela indústria passa a ser mal vista pelos punks, aqueles que por sua formação política seriam potencialmente o grupo que tenderia mais a uma atividade expropriadora. Desta forma a indústria fonográfica pode ficar mais tranquila com relação ao respeito aos seus “direitos”. Talvez outro motivo que aja de forma a causar essa repugnância em não se tocar músicas de “autoria própria” principalmente se de uma banda vendida, esteja na própria falta de personalidade e individualidade que assola os indivíduos da nossa sociedade, e talvez principalmente os punks. Pois parece muitas vezes pelas reações de alguns, que tocar uma música que a indústria vende como do The Clash é como se o indivíduo estivesse com isso encarnando o caráter e as atitudes dos indivíduos desta banda. Talvez aqueles que pensam assim, assim o pensem por eles mesmos agirem desta forma na sua vida por falta de “personalidade própria”, apenas assumindo papéis e identidades prontos e vendidos pelo capitalismo.
Deve se deixar também claro que não trata-se aqui de aplaudir ou se quer gostar de bandas “covers”, ou daquelas que querem parecer com seus ídolos e que querem replicar e reproduzir não somente a música, mas fazem tudo para encarnar o espírito da banda consagrada. Não se trata de gostar ou ver algo belo em clones. Clones são repugnantes de fato. E geralmente as pessoas acostumadas a serem público em todas as esferas da vida se tornarão clones quando tiverem espaço em um palco, seja ele em que esfera da vida for. A personalidade e a individualidade são características de um mundo libertário, a meu ver, e isso deve ser valorizado. Odiaria viver em um mundo de “macacos e imitação”, com semi-pessoas.
Mas trata-se de observar que a metafísica “música própria” não é a única forma legítima de expressão musical potencialmente revolucionária. É também revolucionário resistir à apropriação da música, que é produto social, pela indústria cultural e artistas. Se as letras não servem aos nossos ideais, sentimentos e momentos, troquê-mo-las. Se o arranjo e a velocidade não são do nosso gosto, troquê-mo-los. Expropriar não é somente pegarmos de volta do jeito pasteurizado com que a indústria nos vende a nossa música, mas a reformularmos, constantemente se for o caso, adaptando-a a nossos propósitos e desejos. Se o riff ou a melodia não nos agrada, geremos uma música “nova”. Mas não temos porque rejeitarmos melodias que nos inspiram, que nos agradam, só porque nos dizem que ela possui dono. Não serei Shakespeare por recitar um poema que dizem ser seu, nem Michael Jackson por tocar um música que dizem ser sua.
Expropriar músicas não somente é legítimo, é necessário. Preencher de conteúdo o máximo revolucionário (não somente no sentido lírico) todas as músicas possíveis deve ser pensado. Ou você acha que “Ay Carmela” foi escrita pelos revolucionários espanhóis de 1936? Ou você acha que aquela letra que você conhece foi a única que foi casada com aquela música? Este é um bom exemplo de reformulação e do potencial revolucionário que isto tem.
Pois então que o “Should i Stay or Should i go” seja trocado por “Devo aceitar ou me revoltar”. Ou vamos deixar a Levis e a Sony em paz?