Título: PORQUE (AINDA) SOU ANARQUISTA
Subtítulo: Notas para uma teoria política cyberpunk
Data: 28/01/2025
Notas: O presente texto atualiza o pensamento anarquista com base na teoria dos quatro espaços antropológicos de Pierre Levy (1993, 1998): Espaço da Terra, Espaço do Território, Espaço da Mercadoria e Espaço do Saber. Marcelo Bolshaw Gomes é professor titular do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN, coordenador da base de pesquisa GEMINI. E cyberanarquista.

Resumo: O presente texto atualiza o pensamento anarquista com base na teoria dos quatro espaços antropológicos de Pierre Levy (1993, 1998): Espaço da Terra, Espaço do Território, Espaço da Mercadoria e Espaço do Saber.

Palavras-chave: Anarquismo1; Cibercultura2; Espaço antropológico3.

Abstract: This text updates anarchist thought based on the theory of Pierre Levy’s four anthropological spaces (1993, 1998): Space of Earth, Space of Territory, Space of Merchandise and Space of Knowledge.

Keywords: Anarchism1; Cyberculture2; Anthropological space3.


Introdução

Em 2020, arrumei alguns desafetos devido ao texto “Porque não sou marxista (mas continuo estudando sociologia crítica)”, em que afirmo que Pierre Bourdieu e Michel Foucault são muito mais radicais do que Marx. Entre as várias críticas que recebi, a mais interessante me acusa de confundir deliberadamente ideologia política com teoria social; e que eu deveria, ao invés de explicar “o que não sou”, dizer em que realmente acredito, uma política propositiva a partir da sociologia contemporânea.

Então, surgiu a ideia deste texto, não mais voltado para mostrar ao público político uma teoria social mais crítica e contundente que o marxismo, mas, sobretudo, para repensar uma ideologia política mais completa, atual e sociologicamente fundamentada do que a professada pelo senso comum de direita e de esquerda.

Anarquia é “sem governo”, “sem Estado” e, para alguns, “sem nenhuma forma de autoridade” imposta, sem coerção. Essa certamente é uma definição utópica: uma sociedade sem hierarquias em que ninguém seja obrigado a fazer o que não quer contra sua vontade, em que todo trabalho seja voluntário e cooperativo. Há também versões românticas, que veem no anarquismo uma filosofia da liberdade, quase um sentimento anti autoritário, que se modifica com o tempo, adotando várias feições[2].

O estereótipo do anarquista como uma pessoa indisciplinada, um “sem regras”, perdura, embora a verdade seja justamente o oposto: anarquistas são aqueles que lutam por autonomia através da auto-eco-organização de suas vidas.


Autopoesis Social

Quando me declaro politicamente anarquista, não é um virtude de Bakunin e Proudhon. Aliás, concordo com as críticas de Marx e Lenin a esses autores. E, embora goste de Emma Godman, Piotr Kropotkin[3] e de Henry David Thoreau (e concorde com suas ideias sobre feminismo, mutualismo e desobediência civil), considero que essas ideias são distorcidas e apropriadas pela direita, como, por exemplo, pelo presidente da Argentina Javier Milei e pela ideologia anarco-capitalista. Meu anarquismo tem mais a ver com a Guerra Civil Espanhola[4], com a contracultura e com o conceito de ‘Autopoesis’ (a auto-eco-organização) elaborado pela teoria da complexidade.

Autopoiese é um termo que significa autoprodução, e que se refere à capacidade dos seres vivos de se produzirem a si próprios. A palavra vem do grego autós, que significa “por si próprio”, e poiesis, que significa “criação, produção”. Autores como Henri Atlan e Edgar Morin dão ênfase à auto-organização. Trata-se da atividade que faz um sistema ter autonomia nas interações em relação ao ser meio ambiente. Um sistema altamente organizado (ou complexo) resiste a mudanças ambientais pela sua diversidade e autonomia.

Nessas concepções, o sistema começa e termina pelo observador (por mim, por ti) e filtra o ruído externo, oferecendo níveis mais estáveis de definição. O sistema social filtra o meio ambiente e é filtrado pelo sistema cognitivo. Os sistemas são indissociáveis da observação. Assim, é possível existir contradições entre diferentes observadores.

Rousseau diz que a Sociedade Civil através de um contrato social entre indivíduos livres; Hobbes considera que o Estado é um acordo que impede a guerra de todos contra todos. Na primeira concepção, a Sociedade Civil precede o Estado, a cooperação frente à natureza precede a guerra e a dominação de classe. “O homem é um animal gregário”, como diz Aristóteles. Já na concepção de Hobbes (e também de Platão, Maquiavel, Marx, entre outros), “o homem é o lobo do homem” e o Estado se formou pelo conflito antes da sociedade e da propriedade privada.

Existem anarquistas dos dois lados, alguns acham que a violência organizou a sociedade e outros acreditam que a cooperação frente a natureza gerou o vínculo social. Particularmente, estou nesse segundo grupo em virtude do Ensaio sobre a Dádiva (Mauss,1974). Outra demonstração importante da comunidade anterior ao Estado é A Sociedade contra o Estado (Clastres,1978) sobre os índios Guaranis do Paraguai.

“Quem veio antes”, no entanto, é apenas um eufemismo para duas interpretações distintas de Estado. Para Bobbio (2000b, 37), a concepção liberal considera que o Estado é formado pela defesa dos interesses coletivos de seus cidadãos enquanto a concepção totalitária entende o Estado como o conjunto funcional de todas instituições. Para direita, “o estado é a nação politicamente organizada dentro de um território” e, para esquerda, Gramsci (2000) por exemplo, tanto há “o estado ampliado” (a totalidade da superestrutura) como o “estado restrito” (as instituições jurídico-políticas, as ações sociais de coerção, a metade ‘não-ideológica’ da superestrutura).

Já o ‘Mercado’ surgiu após o Estado e a Sociedade Civil, mas também tem várias datas em virtude de sua definição. Como espaço, o mercado é equivalente à feira e é anterior à moeda e à mediação das trocas. Como sistema acoplado, que ganhou autonomia através da auto-organização, o mercado é bem recente e se confunde com o capitalismo ou economia de troca orientada para o lucro[5].

Sociedade Civil, Estado e Mercado – essa subdivisão em três esferas sociais (ou do sistema social nos subsistemas econômico, político e cultural) é comum em vários autores contemporâneos, inclusive em Habermas (e na teoria da democracia deliberativa) e em Giddens (e em sua política de terceira via).

‘Democracia deliberativa’ é a democracia representativa ampliada pelos meios de comunicação, em que os debates, conflitos e as decisões parlamentares são divulgadas, testadas e legitimadas pela opinião pública. Habermas acredita na ampliação da esfera pública pela sociedade civil.

Essa ideia é retomada com a proposta de uma Política de Terceira Via (2001a, 2001b), Giddens elabora uma resposta ao impasse entre a socialdemocracia tradicional (o keynisianismo e o estado do bem-estar social) e o neoliberalismo (ou o estado mínimo aberto às trocas externas) com a ampliação do papel desempenhado pela Sociedade Civil. Giddens acredita que apenas democratização da democracia no interior da Sociedade Civil pode mediar o conflito entre os interesses econômicos e políticos (2003). Daí surgiram as ONGs, as agências reguladoras de segmentos econômicos, as políticas público-privadas em comunidades.

Nesse modelo, três instâncias de auto-organização diferentes lutam entre si para absorver e controlar as outras. O Mercado quer reduzir o Estado ao mínimo; o Estado deseja controlar o Mercado; a Sociedade Civil é disputada pelos dois, que tenta resistir.


A negação da negação

Há uma frase circulando pela internet, atribuída a Paulo Freire, que se uma concepção política afirma que “está acima da contradição entre direita e esquerda, então, certamente, essa concepção é de direita.”

É possível que a piada se aplique à socialdemocracia europeia (na verdade, ao partido trabalhista britânico), mas, o próprio Freire afirma que “o importante para se determinar a “base ideológica” (de uma concepção de mundo) é que ela seja mais ou menos inclusiva e abrangente. Então, posto isso, é possível uma concepção mais ampla que a polaridade entre Estado e Mercado. Um olhar que represente a perspectiva da Sociedade Civil.

Pensadores como Noberto Bobbio, por exemplo, colocam a teoria política acima dessa polaridade moderna, que surgiu nas bancadas do parlamento burguês na revolução francesa. Para ele, apesar de opostos, os contrários são também complementares, existindo inclusive “um movimento pendular” entre as duas posições na administração e nas eleições.

No campo da argumentação racional, a direita defende a liberdade econômica; a esquerda, a igualdade individual – mas ninguém fala da solidariedade. A direita quer cortar os gastos e esquerda deseja subir os impostos – mas todos se conformam com o endividamento público. Ou temos a regulamentação econômica com anarquia moral – como quer a esquerda; ou a anarquia econômica com fortes controles morais – como deseja a direita. E, no campo do convencimento emocional? Para esquerda, o mal é o capitalismo, o mercado, as grandes corporações, os EUA; para direita, o mal é o estado corruptor, a transgressão sexual, os imigrantes e o crime organizado. Mas, o mal em si não existe e esses inimigos são apenas fantoches emocionais de manipulação. A esquerda se motiva pelo medo; a direita, pelo ódio. São os dois lados de uma mesma moeda, da mesma estrutura de poder.

Esta também é a grande causa da apatia política e eleitoral dos mais jovens na democracia representativa em todo mundo. A maioria, ou os que se identificam com a Sociedade Civil, desejam um Estado mais associativo / um Mercado mais cooperativo.

Além disso, a ideia de uma ‘política sem inimigos’ (ou acima do bem e do mal) também é bastante atrativa do ponto de vista eleitoral. Daí a política de Terceira Via ter se tornado uma estratégia de diferentes grupos em um contexto de polarização, pois aparenta maturidade e bom senso. Mas, essas iniciativas, depois de desmascaradas, só aumentam a apatia, fortalecendo ainda mais a polarização.

Qual, então, a solução para esse impasse?


A Era da Informação

Para Pierre Levy (1998), existem quatro “espaços antropológicos” que se sobrepõem como níveis históricos e simultâneos de virtualização: o Espaço da Terra, o Espaço do Território, o Espaço do Mercadorias e o Espaço do Saber.

  • O Espaço da Terra ou Natureza corresponde ao meio ambiente imaginado pela comunidade primitiva. Ele não é o meio ambiente em si, mas uma representação. Em seus primeiros trabalhos (Levy, 1993), esse espaço é definido pela oralidade, pelo Mito e pela linguagem enraizada no corpo e pelo ‘eterno retorno’ de um tempo circular e cosmológico. Nesse espaço, emissor e receptor partilham um contexto único: o modelo de interação um-um.

  • O Espaço do território (e do Estado) é marcado pelo aparecimento da vida sedentária, da agricultura, dos deuses solares, da escrita, do direito e das primeiras cidades. Esse espaço é a segunda virtualização, abstração do espaço físico e materialização cultural, é corresponde ao começo da História e da memória social. Passam a existir múltiplos contextos no espaço/tempo, constituindo um modelo de interação um-muitos.

  • O Espaço das Mercadorias nasce de dentro do Espaço do Território, como uma estratificação sistêmica econômica, o capitalismo e sua lógica de concorrência e lucro. O mercado surge da desterritorialização do Estado, transformando todas “as posses” em mercadoria. Nesse modelo, os espaços antropológicos não são apenas fases históricas que se sobrepõem, mas realidades simultâneas em desenvolvimento, virtualizações, em que as últimas tentam se sobrepor e controlar as primeiras.

  • E, finalmente, o Espaço do Saber, o ciberespaço, em que tudo se torna informação, se datifica. Nesse espaço, a organização se dá de forma flexível e complexa e por meio de redes digitais em tempo real; o modelo de interação é muitos-muitos, em que todos são interlocutores e há uma reunificação dos contextos no virtual. Ainda estamos em um momento inicial da construção desse espaço antropológico, cujo a função é controlar os espaços anteriores/exteriores: das mercadorias, dos territórios e do meio ambiente.

Levy define ciberespaço como o quarto espaço antropológico, sobrepondo-se à Terra, ao Território e ao Mercado. Os Territórios são virtualização da Terra; a Mercadoria é uma virtualização dos Territórios; e o saber, uma virtualização das Mercadorias. Um exemplo dado por Michel Serres: nosso nome e sobrenome são nossas identidades no espaço antropológico da Terra; nosso endereço, nossa identidade no espaço territorial; a profissão, a posição que ocupamos no mundo das mercadorias; e, atualmente, estamos definindo uma quarta identidade para o espaço antropológico do saber: a senha, a impressão digital do polegar, a íris do olho, o DNA.

Nesse modelo, mais do que explicar os conflitos institucionais, o objetivo é imaginar como seria habitar em outros universos simultaneamente. Nosso corpo está no meio ambiente, mas também nas dimensões política, econômica e cultural.

Vejamos agora como o Espaço do Saber se relaciona com os espaços que o antecederam. Em relação ao Espaço da Mercadoria, a informação está provocando várias mudanças, principalmente a passagem da economia industrial (e da cultura de massas) para uma economia de consumo e para segmentação interativa dos públicos.


A desmaterialização da economia

O final do século XX marca a passagem de um capitalismo industrial, baseado na produção, para o capitalismo informacional orientado pelo consumo. Pode-se dividir esse processo em duas etapas: o período dos meios de comunicação de massa e a fase das redes sociais, cada uma com um conjunto de efeitos sobre a economia. É bom lembrar: os meios de comunicação foram uma parte do mercado que se tornou autônoma e passou a mediar as relações econômicas. As redes sociais (na verdade, a internet e a telefonia móvel) segmentaram em públicos a cultura de massas.

Castells (2009) descreve essa transição do industrial para as redes em detalhes: os bens simbólicos superam os físicos em valor e volume em âmbito global, o setor terciário (comércio e serviços) passa a suplantar a indústria na maioria dos países. Capital e trabalho tendem cada vez mais a existir em diferentes espaços e tempos: o espaço de fluxos e o espaço dos lugares, tempo instantâneo de redes computadorizadas versus tempo cronológico da vida cotidiana. O capital é global; o trabalho, local.

Na passagem da produção industrial para o consumo informacional, o marketing se tornou não apenas um modo de adaptação das empresas ao mercado, mas sim uma forma de integração de todas as instituições à sociedade. Daí a possibilidade de um marketing para partidos, governos, ONGs e universidades e outras instituições sociais diferentes das empresas. O marketing pode ser visto como uma ferramenta de reorganização institucional para sociedade de consumo. Escolas, igrejas, associações, o setor público passaram todos a repensar suas práticas sociais em função das necessidades de consumo segmentado.

Além disso, na indústria de massa, o marketing era indiferenciado: um único produto; uma única forma de distribuição; uma única forma de comunicação; e uma única embalagem para todos os segmentos. O mercado ignorava as diferenças existentes entre os consumidores, direcionando a ação para o conceito de consumidor médio. As empresas ofereciam o mesmo produto, ao mesmo preço, com a mesma promessa e nos mesmos locais a todos os consumidores.

Com a segmentação interativa gestada pelas redes sociais, o mercado foi subdividido em um número reduzido de subconjuntos. O processo de segmentação comporta quatro parâmetros: os critérios de segmentação em si (demográficos, geográficos, sociais e econômicos); as clivagens de personalidade e de estilo de vida (mensuráveis através da renda, da escolaridade e do nível de sofisticação cultural); e os critérios de comportamento e de atitudes psicológicas relativamente ao produto (aferidas através de pesquisas de opinião).

Essa “datificação” do consumidor leva a consequências ainda não entendidas em seu conjunto, mas, com a utilização de algorítmicos e da Inteligência Artificial, é possível prever o comportamento específico de cada um, não apenas aos produtos e serviços, mas também às ideias e propostas. E esse modelo de antecipação baseado nas recorrências reforça ainda mais as tendências conservadoras e inibindo mudanças e novas opções. A datificação é instituicionalização digital do habitus.

Além disso, a segmentação também gerou um marketing e fidelização dos fornecedores; bem como o endomarketing, voltado para os funcionários “vestirem a camisa da empresa” – muitas vezes acompanhado com políticas de distribuição dos lucros e planos de carreira. Porém, a grande mudança em curso provocada pela segmentação interativa das massas foi a “exportação” do marketing para fora do mercado, gerando um processo de adaptação de instituições não comerciais à economia de consumo. O consumidor é mais prestigiado que o cidadão.

Então, observando a relação entre os espaços do saber e da mercadoria, destacamos três aspectos: a passagem para uma sociedade de consumo pós-industrial, a segmentação interativa da cultura de massas e, finalmente, ao consumo datificado, em que as informações sobre cada um são usadas em simulações de comportamento.

O regime do consumo e a segmentação interativa são avanços no sentido de otimização dos fluxos econômicos e comunicacionais, mas também aumentam ainda mais a desigualdade social, ampliando a exploração dos subalternizados através exclusão econômica e digital. O consumo é um regime de exclusão de populações. E essa exclusão gera um desejo desesperado de submissão.


O fim do governo invisível

O segundo passo em nossa análise sistêmica é observar o efeito do Espaço do Saber sobre o Espaço do Território. Vários autores afirmam que a mídia usurpou o lugar de fala do rei, que o poder de dar a última palavra foi terceirizado pelos meios de comunicação e que esse “olhar externo ao poder” é um dos pilares da democracia. Mas, a democracia representativa nunca conseguiu cumprir a promessa de transparência (Bobbio, 2000a) e de acabar com “o governo invisível” (o lobby, as negociações de bastidores, a corrupção). Ao contrário, a hipervisibilidade seletiva imposta pelos meios de comunicação (e sua inevitável espiral de silêncio) encobre os processos políticos de suborno e chantagem, gerando ainda teorias de conspiração absurdas de que a um governo mundial secreto, por exemplo.

Aqui também há uma fase em que a imagem que a sociedade fazia de si era mais monolítica e outra fase em que as redes sociais fragmentaram o império da mídia, implodindo a democracia representativa através da participação direta. A transição econômica do modo de produção industrial para o modo informacional orientado pelo consumo manifesta-se no campo político como a passagem do modelo de interação panóptico (um-muitos) para o modelo de interação rizomático em que todos os pontos se comunicam entre si (muitos-muitos).

Deleuze (2008), citando Foucault, diz que essa transição é uma passagem das instituições de confinamento da sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. Foucault (2017) descreve a transição entre um regime de punição baseado no castigo corporal para o aprisionamento em massa, não apenas através dos primeiros presídios, mas também das escolas, hospitais, fábricas e outras organizações de confinamento, formando uma sociedade disciplinar em oposição à antiga sociedade da soberania. Deleuze complementa o pensamento de Foucault propondo uma passagem da sociedade disciplinar para uma sociedade de controle em rede a céu aberto.

Byung-Chul Han (2019) considera que a sociedade de controle produz um trabalhador que é seu próprio patrão, que a submissão foi interiorizada como uma forma responsabilidade social. Na sociedade disciplinar, o coletivo impõe regras e rotinas para o adestramento do corpo; na sociedade de controle, incorporamos mentalmente as regras e as rotinas.

Um bom exemplo da diferença entre disciplina e controle é a noção de “Moratória Ilimitada”.

O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado (DELEUZE, 2008, p. 224).

Quando nascemos, contraímos uma dívida com tudo já foi feito antes de nós. E passamos o resto da vida com essa obrigação inconsciente de ressarcir a sociedade pelo que nos foi entregue e que nunca conseguiremos pagar. O dispositivo de controle da moratória ilimitada é uma dívida social inconsciente que nos foi imputada e que nunca conseguiremos saldar. A inversão da “Dádiva” e de sua retribuição voluntária.

Há também muitos efeitos secundários importantes da relação entre o Espaço do Saber com o Espaço do Território. A desburocratização é o resultado mais evidente – e isso não é de pequena monta. O Estado aumentou seu poder de controle em abrangência e em detalhe, diminuindo drasticamente o custo e a possibilidade de erros.

O efeito mais impactante, no entanto, é o fim da privacidade em geral (e dos sigilos bancário, postal e telefônico). Hoje somos todos rastreáveis em tempo real pelo GPS dos celulares. Deleuze bem antes da internet profetizou que usaríamos “coleiras eletrônicas”. Porém, o controle age principalmente sobre os rastros que deixamos, identificando o que compramos, o que desejamos e o que não queremos.

Não é o rei que está nú, mas seus súditos! E ninguém percebe a própria nudez, apenas o poder que sabe tudo sobre todos.

A transparência total é o fim desse ‘governo invisível’ que tudo sabe e tudo vê. A raiz de todas as manipulações é a existência de informações privilegiadas. Não existem segredos em uma tribo indígena. Ou melhor: segundo a lenda tupi, Jurupari instituiu o segredo da casa dos homens para mulheres, fundando o patriarcalismo primitivo. Hoje vivemos em regime em que as ideias são engavetadas, em salas fechadas, em prédios-caixotes, em cidades formigueiros. A informação está escondida e supervalorizada. E a mentira, a informação falsa, existe gratuitamente. Há um jogo de poder constante pela crença em informações inacessíveis.

A telepatia que prevejo não é individual (a capacidade de ler a mente alheia), mas sim uma cognição coletiva, um consenso compreensivo de um grupo sobre algum objeto ou acontecimento. A ‘telepatia de rebanho’ – que a mídia ampliou e as redes segmentaram e potencializaram ainda mais – é uma forma de consciência em que todas as informações são compartilhadas imediatamente.


A simbiose com as máquinas

O efeito da informação sobre a mercadoria é o predomínio consumo sobre a produção e o processo de segmentação interativa da cultura de massas. A informação está customizando a mercadoria e excluindo parte da sociedade do processo. O efeito da informação sobre o território é o poder através do controle psicológico e de dados. Ele permite uma democratização relativa, inclusive no interior das instituições, mas produz a moratória ilimitada, a submissão individualista e apatia existencial.

O efeito da informação sobre o espaço da terra, tanto visto como meio ambiente como como corpo, é a tecnologia, as ferramentas com as quais mudamos o mundo.

Apenas a automatização da produção material é que pode acabar com o trabalho obrigatório e com a divisão de classes e de gênero. Porém, essa mudança não será automática, nem depende apenas de uma substituição de homens por máquinas. Ela depende principalmente de auto-organização e da tecnologia ser partilhada por todos.

É inacreditável que a esquerda (incluindo aí grande parte do anarquismo) não percebe o papel estratégico da tecnologia na construção de mundo sem dominação. A direita, por outro lado, entende as mudanças que a tecnologia instaura no Estado e no Mercado, mas as utiliza para manutenção das desigualdades.

Luta pela diminuição gradativa da jornada de trabalho (e/ou pela substituição progressiva do trabalho por atividades educacionais e culturais), bolsas de estudos em todos os níveis, reestruturação dos meios de comunicação com base comunitária, intercâmbios internacionais entre cidades – são algumas iniciativas dessa forma de ação política. Mas, o principal é o resgate da utopia social tecnológica, de um projeto de sociedade em que os meios de comunicação sejam mediadores imparciais dos interesses políticos e econômicos.


Conclusão

Com a extinção de parte da humanidade em virtude de seu comportamento autodestrutivo, os sobreviventes terão que dar um salto quântico em suas relações entre si e com o meio ambiente. Oxalá, o imperativo do autocuidado e a onipresença do ‘outro em mim’ sejam os pilares éticos de um novo comportamento. Esse salto para níveis mais complexos e participativos de organização, exige também o desenvolvimento de novas competências de comunicação semi telepática, em que a mentira não será mais possível. O ‘controle da informação’ é a última trincheira do estado ante o retorno da comuna primitiva tecnologicamente potencializada no final da história. O último bastião do poder a ser derrubando antes da utopia anárquica.

Sou anarquista porque acredito que a Comunidade está no começo e no final da História. No começo, como comunidade primitiva anterior ao Estado; e, no final, como uma utopia democrática comunitarista, posterior ao Estado, ao Mercado e à divisão da sociedade em classes sociais. Essa utopia passa muito mais por um redimensionamento das desigualdades cognitivas que de uma redistribuição material das riquezas ou de uma reorganização das relações de força.

Sou um anarquista pós-moderno (Passeti, 2000) com viés feminista (acho que a dominação de gênero é a base da dominação social) e ecológico, acredito que o crescimento econômico só é legítimo através da produtividade (e não do aumento da produção). Sou favorável à automatização do trabalho manual, à diminuição progressiva das horas de trabalho, à educação integral voltada para o desenvolvimento ético, ao pleno emprego.

Mas, principalmente, transparência. O controle da informação passou a ser o ponto central do meio ambiente, da democracia e do mercado. Por isso, mais do que derrubar o parlamento ou o lucro, é preciso garantir o acesso universal à informação. É preciso lutar contra o governo invisível e o império da hipervisibilidade seletiva.

E acho que o nome adequado para esse posicionamento político é “Anarquismo Cyberpunk”.

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[2] Para conhecer melhor o anarquismo, seus conceitos, suas fases e vertentes. V. a Biblioteca Anarquista Lusófona <bibliotecaanarquista.org> .

[3] Foi o autor de livros considerados clássicos do pensamento libertário, entre os quais se destacam A Conquista do Pão; Memórias de um Revolucionário (ambos publicados em 1892); Campos, Fábricas e Oficinas (1899); e Mutualismo: Um Fator de Evolução (1902). V.tb: Algumas considerações sobre o geógrafo anarquista Piotr Kropotkin e a comunidade rural Yuba em Mirandópolis.

[4] O documentário “Sem deuses, Sem mestres: História do Anarquismo “, de 2006, dirigido por Tancrède Ramonet (legendado em português) é subdividido em três partes – de 52 minutos cada – com a história política do movimento anarquista: A paixão por destruição (1840–1906); Terra e Liberdade (1907–1921); e Em memória do derrotado (1922–1945).

[5] A definição abstrata de mercado por Adam Smith foi substituída pela segmentação concreta provocada pelo consumo e pelo domínio financeiro. Agora, ou o mercado representa os consumidores, ou se refere a um conjunto de empresas que formam um setor específico da economia. Hoje, inclusive, de tão concreto, o mercado se apresenta como um agente social com vontade própria, embora isso seja apenas uma ilusão criada por seus porta-vozes financeiros e midiáticos. Aqui adotamos o conceito de Mercado como espaço antropológico (ou sistema econômico) formado a partir dos sistemas primários do Estado e da Natureza. Assim, tanto é uma abstração das forças sociais como um elemento concreto de coerção indireta, pela necessidade e pela comercialização dos desejos.