Margareth Rago
Maria Lacerda de Moura, uma parresiasta no Brasil
Combativa ativista anarcofeminista, Maria Lacerda de Moura (1887-1945) se destaca por reflexões, publicadas nas primeiras décadas do século XX, que continuam a ecoar fortemente na atualidade. Inauguram lutas e reivindicações que questionam a moral sexual, o regime de verdades hegemônico em sua época e a imposição da identidade mulher, asséptica e higienizada, às mulheres. Com a emergência da historiografia feminista, que nos dotou de um passado em que pudemos reconhecer-nos, hoje sabemos que essa definição normativa do “ser mulher” data do século XIX, quando nascem a ginecologia moderna e outras importantes áreas da Medicina, que passam a atuar no processo de higienização das cidades e de normalização das condutas. Assim, a medicina vitoriana definiu a maternidade como essência das mulheres, com base nos ensinamentos misóginos do cristianismo, que culpabilizaram a primeira mulher pela queda do primeiro homem e de toda a humanidade.
Na contramão do tempo, desautorizando essas verdades científicas que passavam a constituir o imaginário social e cultural, Maria Lacerda de Moura questiona o mito da inferioridade cerebral das mulheres, definidas pelo útero e vistas como “doentes periódicas”, quando não como “degeneradas-natas”. No livro que aqui se apresenta, a professora mineira critica o argumento inventado por Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, em La donna delinquente: la prostituta e la donna normale (1895), segundo o qual a prostituta – “degenerada-nata” – nasce com determinada formação óssea, marcada pela testa curta, mandíbula larga, quadril grande, sendo tagarela, irracional, egoísta, extravagante e exagerada; incapaz, portanto, de autogovernar-se. De maneira ácida, essa ativista libertária questiona as interpretações produzidas pelo discurso científico sobre o corpo feminino e revela sua função normalizadora e confinadora das mulheres na esfera da vida privada, isto é, num espaço em que são privadas do acesso à cultura, à educação, aos negócios, à experiência sexual e à própria vida.
Vale notar que essa pioneira anarcofeminista escreveu vários livros, ensaios, folhetos e artigos, publicados no Brasil, na Argentina e na Espanha, em que denuncia as múltiplas formas da dominação burguesa e da exploração capitalista do trabalho, para além da violenta crítica da cultura patriarcal. Contudo, só tivemos conhecimento de sua existência e de sua obra na década de 1980, quando vem a público a única biografia existente sobre ela, escrita pela historiadora feminista, já falecida, Miriam Moreira Leite, intitulada Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura (1984). No ano seguinte, publiquei Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar, trazendo alguns de seus textos irreverentes pelas críticas contundentes a um mundo misógino e opressivo, especialmente para as mulheres. Em 2005, são lançados uma antologia dos seus textos, por iniciativa de sua biógrafa (LEITE, 2005), e um vídeo de trinta minutos de duração, produzido pelo Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo. Desde então, são constantes as referências a essa grande pensadora e militante libertária.
Gostaria de destacar o que me parece ser uma das grandes novidades do pensamento de Maria Lacerda: a crítica à moral sexual de sua época, quando os ideais de vida considerados modernos se difundiam no país, pautados pela experiência europeia e estadunidense, trazendo o modelo da família nuclear, a ideologia da domesticidade, o pânico da prostituição, da homossexualidade e das “perversões sexuais”, segundo as definições do psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, cuja obra Psychopathia sexualis (1886) se tornava conhecida, e a definição de rígidas identidades sexuais, ancorada no discurso médico e jurídico. As bandeiras da luta anarcofeminista lançadas por Maria Lacerda serão retomadas pelo movimento feminista apenas na década de 1970, sem necessariamente alguma referência inicial a ela, já que, apenas nos anos de 1980, passamos a tomar contato com sua história e escritos, ainda hoje de difícil acesso.
Suas ousadas críticas ganham maior relevância, quando nos lembramos de que, naquela época, raramente uma mulher poderia abordar publicamente temas referentes à sexualidade, área considerada de domínio privado dos homens. São raros os romances femininos que tratam da prostituição, nesse período, a exemplo de Vertigem, de Laura Villares, ou dos dois livros de Ercília Nogueira Cobra, Virgindade inútil e Virgindade anti-higiênica. Foram necessárias extrema ousadia e parresia – ou coragem da verdade em situação de risco, como ensinou Michel Foucault, para fazer ataques tão ácidos à maternidade, postulada como destino necessário de todas as mulheres, já que inscrito na própria definição de sua estrutura biológica. Maria Lacerda ousou defender não apenas a maternidade voluntária, mas o prazer sexual para as mulheres e o direito à própria existência. Em suas palavras,
É bárbaro o prejuízo da virgindade, da castidade forçada para o sexo feminino, castidade imposta pela lei e pela sociedade, como é bárbara a prostituição “necessária” [...] para saciar os esfomeados de todas as idades e de todos os estados civis. Também é selvageria a maternidade não desejada, a maternidade imposta pelos maridos comodistas às mulheres ignorantes e duplamente sacrificadas (MOURA apud LEITE, op. cit., 2005: 221).
Nada melhor do que ficarmos com suas próprias palavras para descobrirmos esse incrível universo de críticas anarcofeministas à modernidade, ao capitalismo e à cultura patriarcal, ao mesmo tempo repleto de perspectivas de criação de um mundo mais justo, mais digno, libertário e filógino, onde subjetividades éticas possam se constituir em meio a outras artes do viver.
Referências bibliográficas
LEITE, Miriam L. Moreira. Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica. Florianópolis: Editora Mulheres, 2005.
________. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil: 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 1997; 4. ed., 2014.