Maria Stella D’Agostini
Dos debates às barricadas: sobre política, violência e democracia.
Uma breve compreensão sobre o sentido de violência em Frantz Fanon
“A expressão viva da nação é a consciência em movimento da totalidade do povo. É a praxis coerente e esclarecida dos homens e mulheres.” Frantz Fanon
Introdução
Eis o cenário primeiro: a sociedade contemporânea compreende um Estado, muitas vezes democrático liberal; uma sociedade civil heterogênea, multicultural, com capacidade mínima de agência; e uma organização globalizante da produção, do trabalho e das relações entre eles (Capital). Colocados em posições onde possam interagir entre eles, Estado, Capital e sociedade civil formulam e reproduzem um sistema social cujos objetivos são contraditórios: reprodução do capital ao máximo e sobrevivência da sociedade civil. O Estado, sujeito ora interlocutor neste diálogo, ora mediador do conflito; propicia uma solução semipermeável – ou seletiva – um sistema de organização política em que a participação é bem-vinda; indivíduos tem representatividade a partir da ideia de que o poder político emana do povo: fez-se a democracia moderna.
Fecham-se as cortinas, entram os atores: O Estado democrático utilizando de seus aparatos administrativos, coesivos e coercitivos nesse árduo trabalho de mediação ocupa uma posição central na cena. De um lado, acuada aos berros a sociedade civil marcada pela violência legítima da ação apaziguadora; do outro, por trás de biombos, olhando com certa preocupação indulgente o Capital prezando pela ordem para seu retorno triunfal ao centro. Ele tem pressa em centralizar, a sociedade civil em viver e o Estado em protagonizar. Seguem-se séculos de cenas envolvendo os três na contradição dialética que envolve uma codependência quase simbiótica entre Capital e Estado, com a sociedade civil aparentemente hipossuficiente sobrevivendo ao paradoxo da contemporaneidade.
Na forma alegórica de um esboço como no teatro de costumes, a figuração das três componentes estruturais da sociedade contemporânea apresentadas vislumbra ilustrar a difícil harmonia e sobrevivência dessa tríade dos sistemas político, social e econômico. Partindo do entendimento marxista, no qual a dialética é colocada como lógica analítica central, associada ao materialismo histórico, a relação entre Estado e sociedade civil por vezes é sumariamente violenta. Tratando-se de um sistema calcado em representação, participação e diálogo – para além dos limites tangíveis da democracia e suas crises atuais – este artigo se propõe pensar o papel da violência e sua relação para com a política em sistemas democráticos. O centro da discussão está, portanto, na legitimidade da resistência descrito por Frantz Fanon, através de um debate direto com os princípios fundamentais da democracia associados a atuação do Estado através das seletividades descritas por Claus Offee (1984).
Como a pretensão de estabelecer uma análise inicial sobre o tema, tendo como pano de fundo a fundamentação da legitimidade da violência na agência de resistência da sociedade civil diante do Estado e do Capital, o pensamento político do Frantz Fanon ocupa uma posição central na análise. Para o pensador martinicano, “A violência é, dessa maneira, compreendida como a mediação régia. O homem colonizado liberta-se na e pela violência. Esta práxis ilumina o agente porque lhe indica os meios e o fim.” (FANON, 1979, p. 66); isto é, o único mecanismo de libertação que se apresenta como alternativa à dialética colono-colonizador. Fanon não trata de processos democráticos, mas de lutas emancipatórias, especificamente em relação ao colonialismo europeu em territórios africanos, mas isso não inviabiliza seu argumento sobre a legitimidade da violência da resistência na tensão presente entre Estado e sociedade civil.
Compreender a complexidade presente desse direito do agir violento, diante do poder político do Estado, cuja definição primeira está associada a ideia do monopólio do uso da violência física (WEBER, 2004), mesmo que preliminarmente, envolve retomar alguns aspectos que perpassam a relação das três partes da sociedade apresentadas na alegoria teatral acima. Por isso, este artigo se divide em três partes que pretendem abrir um caminho que leve ao entendimento desse direito à desobediência e resistência. Primeiro, faz-se necessário entender as formas de violência abordadas, suas fundamentações ao longo da história do Estado Moderno e seu papel estrutural, a relação do Estado e suas formas coercitivas, em especial nos regimes democráticos. Delimitados esses primeiros passos, passa-se à observação da noção de resistência em cenário democrático, seus mecanismos de participação, representação e limitações do diálogo entre a tríade da estrutura social tida como premissa. No terceiro momento, inserindo os elementos da análise política feita por Fanon, é necessário compreender o que o revolucionário define e relaciona como Estado, sociedade civil, suas formas de interação contraditórias, bem como o papel do Capital exercido direta e indiretamente nesse processo histórico dialético. Com esse olhar, compreendida a complexidade da dinâmica analisada, é possível centralizar a compreensão fanoniana sobre a centralidade da violência em processos de rupturas e de reivindicações da sobrevivência como cerne da resistência da sociedade civil diante do Estado e do Capital em sistemas democráticos.
O caráter preliminar do debate pretende estabelecer, em especial, uma primeira tentativa de interlocução em que a lógica predominante da participação institucional e das reivindicações pacifistas estão em caráter marginal na análise. Não significa que a abordagem presente neste trabalho ignore a hegemonia do diálogo e do debate nas relações entre as partes da sociedade, mas visa a problematização dessa centralidade no sentido da capacidade que o desentendimento (RANCIÈRE, 2018) tem de pender a balança para prioridades da maioria numérica presente na sociedade civil. É portanto, uma busca de compreender o sistema pelo qual perpassa a luta de classes na materialidade do comportamento do Estado, Capital e sociedade civil nessa relação trigonal, entendida como um processo histórico por meio de uma análise dialética.
Pax mendacium
“Já que nas repúblicas há mais vida, há mais ódio, há mais desejo de vingança; a memória da antiga liberdade não as abandona nem lhes dá descanso, de modo que a via mais segura é aniquilá-las ou habitá-las.” (MAQUIAVEL, 2010, p. 61)
Olhando o caminhada da história observa-se o movimento da construção do Estado Moderno, calcada em premissas que ocupam, também, um papel central na filosofia moderna e nas propostas políticas proclamadas nos contratos sociais desde o século XVII; não cabe uma necessária retomada da construção desse Estado Moderno por completo. No entanto, alguns elementos da filosofia política que tornam esse Estado Moderno, no modelo liberal, que mais tarde se consolidaria nos Estados democráticos expandidos pelo globo, são essenciais. Para isso a problematização das definições dos naturalistas que associam à paz, o republicanismo e o Estado, dentro de uma premissa de exercício pleno de liberdade, servem como ponto de partida.
Como na situação colocada, a relação de aceitação de uma possível heterogeneidade nas sociedades com viés republicano; o alerta de Maquiavel, a memória do que fura essa liberdade para o povo tem potencial subversivo. Não se trata da centralidade do caráter da conquista na manutenção de uma relação de paz entre o conquistador e a população apenas, mas a dinâmica social na qual a servidão ultrapassa os limites do trabalho servil, são para Maquiavel os Estados cuja conciliação entre boas leis e boas armas se fazer mais necessários. O direito natural associado ao território conquistado, dentro da proposição de uma paz imposta, funciona como uma boa analogia sobre o papel do princípio da paz fundamentada na tolerância presente nos contratualistas modernos.
Parte-se do princípio que o homem é definido entre paixão e razão, e na alimentação dessa definição está o exercício obrigatório da tolerância como a primeira premissa para o exercício da liberdade. Tanto em Hobbes, Locke ou Rousseau, a ideia de que a sociedade fundamenta-se para atingir a premissa da paz é central. Se, por um lado, há o direito natural à propriedade do próprio corpo, ao exercício da liberdade da associação, dentro de um sistema de obediência a um soberano político trajado de absoluto, monarquista constitucional ou republicano; por outro, a igualdade ficcionada pelos contratos se expressa na diferenciação de níveis de poder político e econômico associados ao status quo.
A modernidade traz consigo a estrutura política que estabelece fronteiras precisas, mas que ao mesmo tempo preza pela paz através de supostos elementos coesivos que ao não funcionarem fazem necessário o emprego da força física coercitiva. Por isso que o entendimento de que o Estado Moderno detém o monopólio do uso da força física é diretamente relacionado ao jusnaturalismo fundamentado no processo de dominação politica que contratualistas se utilizaram para justificar essa ‘paz’ por quase 300 anos. Seguindo o entendimento de D’Entreves (D’ENTREVES, 2009), o Estado, centralidade do poder político exequível na sociedade, na busca da fundamentação argumentativa da legitimidade de sua existência, é capaz de fazer de si uma resultante com aparência de consequência do processo histórico, e trás para si a premissa jusnaturalista de existência, fazendo do direito natural uma nota originária direta do direito positivo.
“A teoria do direito natural era uma herança do pensamento clássico: os escritores cristãos da Idade Média elaboraram-lhe um sistema completo. Essa teoria contém, sem dúvida, indicações precisas sobre a natureza do direito, mas é dirigida essencialmente para estabelecer um critério de valoração sobre a ‘bondade’ ou sobre a “justiça” dele. Ela provê uma resposta ao problema da legitimidade do poder, não àquele da legalidade da força.” (D’ENTREVES, 2009, p. 127) [1]
A desobediência ou a resistência a deliberações oriundas do poder político são previstas em Hobbes, Locke, inclusive Marx. No entanto a sociedade sobre a qual Marx apresenta a proposta democrática de construção de uma constituição e não parte da mesma clemência de seção de uma liberdade em nome de uma segurança. Em Marx (2013), a noção de democracia é associada uma sociedade não desigual estruturalmente, como aquela cuja a paz é justificada pelos contratualistas anteriores.
Essa parente digressão que remete ao jusnaturalismo, chegando a noção de que o Estado é parte do corpo da sociedade, ao mesmo tempo que é um aparelho administrativo, serve para enxergamos o primeiro ponto argumentativo do presente artigo: a justificação de um Estado desigual em nome de uma suposta segurança necessita de meios coercitivos para sua sustentação (FANON, 1972). Equivale a dizer que partindo do papel do Estado em Offe (OFFE, 1984), a sua justificação como centralizador de um poder político, em associação, é um aparato administrativo burocrático que determina uma diferenciação entre esfera pública e privada, na qual regulamenta o comportamento dos indivíduos em ambas; bem como, as relações entre eles e o modo de produção capitalista, estão vinculadas à capacidade desse Estado em manter a ordem na sociedade civil. O controle pela eliminação ou ocupação, parafraseando Maquiavel (MAQUIAVEL, 2010).
Se a paz é um conceito fictício feito para justificar práticas estruturas sociais, presentes no intuito de garantir a reprodução do capital, o exercício de poder político e econômico, que se comportam em associação, é importante agora entender a violência. Segundo a compreensão de que ao menos quatro tipos de violência em relações estruturais estão presentes, e que elas se associam dois grandes grupos – subjetivo e objetivo -: simbólico, sistêmico, físico e estrutural. A proposta é compreender minimamente o papel desses grupos na coerção social feita, seja pelo Estado, seja pelo capital, e seja pela própria sociedade civil.
Distinguido entre violência subjetiva e violência objetiva, Žižek (2014) apresenta a construção dos tipos de violência a partir das relações delas com a realidade em que estão presentes. A partir de suas definições, que o presente trabalho pretende estabelecer a interlocução entre a legitimidade do exercício de violência na resistência da sociedade civil. Assim define-se violência subjetiva como aquela explícita, identificável podendo ser física ou simbólica. Dentro da noção de violência objetiva, aquela que exercida, porém é experimentada como uma perturbação de um estado basal de paz; as violências simbólica e sistêmica se inserem nessa objetividade, que muitas vezes se apresentam como imperceptível ou invisível nesse processo de relação entre sociedade civil, Capital e Estado.
Portanto, define-se que a violência sistêmica é divisível, ela permeia as relações sociais mas não deve ser negada enquanto violência. Ao mesmo tempo, que a violência simbólica, para Žižek (2014) encarnada na linguagem e suas formas, também não se apresentam de forma evidente nesse sistema de relações dialéticas. A violência física se apresenta, sob um olhar geral, como uma violência subjetiva, perceptível e definidora enquanto tal.
Em associação é esse conjunto conceitual de Žižek (2014), que possibilita retomar o trabalho de Rancière (2018) na definição do papel da política e dela em si partindo do olhar das relações sociais. Para ele o desentendimento é o local de exercício da política e de expressão da mesma. A sociedade reflete sobre si e através das disputas nas quais as partes conseguem se comunicar ao tratar o mesmo assunto, e dessa comunicação resultam-se consensos, conflitos e conciliação que a política é exercida, que se faz presente. Do contrário não há política, mas ruído, uma forma de não política incapaz de promover qualquer ganho comunicativo ou objetivo das partes envolvidas. Nota-se que ele não está falando de relações institucionais mais parte da ação para compreender as micro posições da política nas relações sociais.
Tendo isso em mente, que retoma-se o Estado enquanto definição conceitual, que possui sistemas organizativos nos quais a participação da sociedade civil garante uma denominação num sistema de democracia. Se é o Estado Moderno exógeno a sociedade civil que se relaciona para com ela e com capital, através de sistemas de seletividade, como apresentar Offe (1984), pode-se entender que os espaços e momentos de diálogo e debate, onde a disputa por ações do Estado, em que priorizem a sociedade civil ou o Capital, no sistema de dominação política, é um exercício efetivo da política como desentendimento.
Portanto, retomando Maquiavel e os contratualistas a fim de entender o lugar da violência do Estado, do Capital e da sociedade civil; nessas relações o desentendimento, como campo resultante do processo de debate em que o diálogo existe, porque as partes se fazem entender, a violência objetiva está no momento político da argumentação, como violência sistêmica ou simbólica, e como subjetiva no momento não político, seja iniciativa do Estado, do Capital ou por resistência da sociedade civil.
Resistir e desobedecer
A consolidação do Estado democrático como forma do Estado Moderno a partir do final do século XIX, auxilia a compreensão da função do Estado descrita por Offe (1984), no que tange a sua seletividade e ao seu comportamento de codependente da reprodução do Capital; ao mesmo tempo que mantém a paz e a organização política na sociedade civil. Retomando as quatro seletividades descritas por ele, sabendo que todas envolvem uma espécie de membrana limitadora do acesso a participação, é possível levantar premissas em que a relação do Estado com a sociedade civil, em especial, seja determinada por posturas e comportamentos conflitivos e consensuais, simultaneamente. O consenso, nesse caso, apresentado como o entendimento comum que não homogeneíza as opiniões, não anula a viabilidade do conflito e vice-versa. O objetivo aqui não é adentrar com profundidade sobre as relações antagônicas e agonísticas entre os grupos de interesse aos moldes trabalhado por Laclau, mas sim entender as limitações de uma espécie de protocolo de comportamento do Estado em que a reivindicação da sociedade civil, da forma que forem feita, determinam o nível de seletividade da dominação política para a partir disso ser expressa a reação no comportamento do Estado.
Se a luta de classes perpassa toda essa relação entre Capital, Estado e sociedade civil; e o Estado tem seu papel de regulamentador e mediador das relações pela concessão de direitos civis, políticos e sociais, bem como o favorecimento de interesses diretamente relacionados a reprodução do capital; a materialidade presente no nível de reivindicação partindo da sociedade civil determina diretamente o tipo de resposta. Portanto, demandas estruturais que envolvam grandes mudanças, como reformas tributárias, reformas políticas e afins, que possam impedir a sociedade civil, mesmo os que possuem capacidade de diálogo e consequente desentendimento menor com o Estado, cuja natureza ideológica liberal não contempla tais tipos de alteração estrutural. Portanto trata-se não só de capacidade de criar momentos de desentendimento para que tanto a política seja exercida aos moldes descritos por Rancière (2018), quanto o tipo e nível de violência oriunda do Estado para com a sociedade civil na natureza das demandas da última.
A atuação direta do embate entre partes da sociedade civil, defendendo ou se opondo a postura as estatais, lembrando que governos não são o estado por completo mais podem definir níveis de participação momentâneos, interfere também na capacidade e forma de resposta do Estado. A sociedade civil fragmentada por seus interesses permeia e adentra na relação com o Estado conforme ambas as partes são capazes de estabelecer desentendimento. Ou seja, na luta por reivindicações de camadas esclarecidas que tenham capacidades debater e discutir ideologias, processos ou até a própria estrutura, no sentido de não promover o enfrentamento direto dos interesses reprodutivos do Capital, no quesito capacidade de reprodução cada vez maior. A sociedade civil integra essa relação dialética como aquela capaz de amplificar ou diminuir os tensionamentos, e, portanto, a resposta recebida. A origem, a demanda e o interesse do diálogo para com a outra parte, é a determinante para o tipo de violência aceito e exercido por parte do Estado para com ela.
A resistência utiliza de ferramentas limitadas pela última seletividade da dominação política do Estado: a repressão. Pois, se a democracia envolve necessariamente a participação direta pelo voto, representação ou pelas atividades cívicas, como conselhos e conferências, o Estado lhe permite a agência individual ou coletiva conforme o nível de estabilidade na relação entre política e economia (BOURDIEU, 2010). A ação de resistir incorpora a ideia de estratégia e tática de quem resiste com a ciência do nível de seletividade em que se é capaz de provocar desentendimento com Estado.
Atuação cívica aceita no processo democrático é, portanto, delimitada pela habilidade máxima do Estado no momento que é um convite que parte dele mesmo para a sociedade civil, no sentido de provocar uma sensação de participação e relevância em cada indivíduo; questionável quando se trata dos resultados. Se por um lado a participação é muitas vezes obrigatória, por outro, em sentido oposto, às demandas e exigências e necessidades são por vezes suprimidos em nome de ditos interesses comuns ou de uma maioria, aquela com mais capacidade de agência, partindo da noção de democracia participativa de O’Donnell (O’DONNELL, 1999).
O efeito direto da não contemplação ou a revolta pela não aceitação de posturas do Estado caracteriza uma resistência. Significa dizer que seja da forma como fora a permeabilidade de participação, considerando os mecanismos do Estado e a seletividade descritas por Offe (1984) a aceitabilidade ou enfrentamento da propositura de um desentendimento serão sempre permeados por violência.
Pode-se, então seguindo Rancière (2018) e Žižek (2014), definir que toda e qualquer relação que envolva o poder político e o poder econômico está contaminada com violência. Sendo assim, há um nível aceitável de violência basal por parte do poder político de poder econômico, os quais exercem uma violência objetiva em suas formas de relação para com a sociedade. Ou melhor, é plausível afirmar o que é a seletividade do Estado no modelo de Offe (1984) que indica a violência que será exercida por parte dele. Não significa que todo desentendimento é violento, ao contrário, seguindo o raciocínio dos autores a viabilidade de política efetivamente existe quando a comunicação não é ruidosa, ou quando ela consegue ser exercida enquanto fala e ausculta, por ambas as partes, nesse caso a violência se ausenta e prevalece a política como máxima.
Entretanto definir limitações de participação utilizando de uma estrutura criada para aparentar certa isonomia ou equilíbrio, como a divisão de poderes, as eleições diretas ou até a transparência de informação, não garante a capacidade de um desentendimento político. Ao contrário, utiliza-se como subterfúgio das instituições sistêmicas, sobre um aspecto estruturante, na qual a violência objetiva da linguagem se expressa em associação constante com a violência sistêmica do próprio desenho do Estado.
Diante da complexidade do entendimento dessa variedade de violência com a ideia de que desobediência, desde os contratualistas é legítima, e que para o exercício efetivo da política é necessário o desentendimento não ruidoso, que a violência subjetiva e objetiva podem e são legitimamente empregadas pela sociedade civil na busca pelos seus anseios. Não se trata de posturas revolucionárias ou disruptivas, mas ao contrário, a disponibilização de entrada pela não violência ou pela violência não propõe necessariamente a destituição do sistema do Estado contemporâneo por completo.
É aí que o entendimento da legitimidade da violência, como resistência presente em Fanon se faz explícito. Se a proposta revolucionária do pensador martinicano fundamenta-se na resistência pelo uso da violência contra o Estado colonial, que a emprega diretamente sob a forma subjetiva, explicita e física; a situação pós revolucionária, na construção de um Estado democrático independente, para ele, envolve o direito de resistência. Não se trata mais da violência física recebida do Estado, mas aquela simbólica e sistêmica que nasce junto a forma de Estado Moderno construído na nova nação.
In impetus Fanon
A viabilidade da compreensão do papel central da violência na análise política de Fanon está diretamente relacionado ao entendimento que este faz do processo dialético entre colonos e colonizado. Tanto colono quanto colonizado são os conceitos que englobam aparatos estruturais envolvendo o Estado, a sociedade civil e o Capital. Portanto a complexidade da estrutura dialética tem um caráter de entendimento da falta de homogeneidade da sociedade civil composta por brancos e não-brancos (FANON, 1972). Confronta-se a postura do Estado enquanto aparato administrativo e burocrático, seja da metrópole ou da nova nação, junto a voracidade de interesses de dominação econômica do Capital, na ânsia de garantir mais eficiência na sua reprodução. Por isso não é possível compreender a estrutura dialética da sociedade fanoniana sem considerar o primeiro plano da patologia social chamada racismo, em que as relações entre brancos e não-brancos são embasadas no fundamento fenotípico (FANON, 2008). Essa patologia associa-se a estruturas sociais que se apresentam como uma dominação política e econômica (FANON, 1980).
A sociedade civil é, portanto, uma construção heterogênea artificial feita pela e para a situação colonial (FANON, 1979). A propositura de diferenciação dos elementos que compõem a sociedade civil é essencial no entendimento da relação dialética presente na contradição ilustrada pelo racismo, enquanto conceito. Por isso se existe heterogeneidade nessa sociedade civil, a permeabilidade do Estado também se relaciona dentro dessa dialética.
A diferença entre não brancos e brancos, permeada pela postura pacifista da intelectualidade de não brancos educados em regiões metropolitanas, na complexa contradição e disputa por desentendimento para com o Estado é elemento central na constrição dos espaços e na forma de violência abordada. O Estado da França não é simplesmente um aparato administrativo de exercício do poder político que deve ser disputado no sentido reformista, mas sim no sentido revolucionário. A proposta deste artigo não é entender simplesmente a violência proposta por ele do ponto de vista da ruptura com sistema, mas é compreender que para além da radicalização da ruptura Fanon apresenta as formas de violência que chegam à sociedade civil associadas pelo Estado e pelo Capital no processo de colonização e após emancipação. É justamente o pós emancipação, para conformação de um Estado efetivamente democrático, que também é alvo de críticas do pensador, sobre onde está o tipo de legitimidade e de violência empregados pelas três partes (FANON, 1979).
Assim o Estado é a centralização do poder político que emancipado deve procurar a participação da sociedade civil, sem considerar prevalências e privilégios relacionados a posição de colono e colonizado, ou dos grupos participantes. Ele entende que a violência objetiva no Estado não metropolitano possui níveis de aceitação enquanto simbólica e sistêmica, em um grau bem superior ao zero de não violência. É um Estado que ocupa a constante possibilidade de exceção, uma vez que a violência subjetiva é utilizada como a frequência maior do que nos Estados europeus; ao mesmo tempo que possui um grupo focal de maioria populacional que já é alvo de maior violência subjetiva por parte de outras camadas da sociedade civil e do próprio Capital.
Definir então que a estrutura dialética da sociedade no sistema colonial após a emancipação possui no seu estado normal estruturas políticas e econômicas em um nível de violência relativamente alto para com toda uma sociedade civil, no que tange a violência objetiva, seja pelo uso da linguagem, publicidade e pressão econômica; junto ao nível de violência subjetiva diretamente aplicada contra aqueles que foram colonizados que mantém-se em altos padrões, com a justificativa constante de permanência de ordem. O Estado Moderno recém-nascido do processo revolucionário para emancipação é uma reprodução forma do Estado colonial. A diferenciação fenotípica aliada a segregação econômica cria no novo Estado, o atual Estado contemporâneo. Camadas de dignidade humana associadas a permeabilidade do Estado para a participação aos moldes da seletividade da dominação política descritos por Offe (1984).
Partindo portanto violência simbólica e sistêmica, presentes na ação do Estado para com a sociedade civil, que a violência na resistência aparece como alternativa no espaço de prevalência da não política, especialmente quando se trata sobre as camadas da sociedade civil com menor índice de dignidade humana. A resistência é uma forma de “diálogo” dentro da linguagem sistemática proposta pelo capital. Pois, o nível de dignidade humana reconhecido por aparatos relacionados a seletividade do Estado fazem com que as formas de violência empregadas progressivamente levem a repressão, O espaço do não desentendimento, onde a política está ausente. A resistência nesses espaços, por esses indivíduos cuja dignidade é basal, deve seguir a sistemática de reação sobre mesma esfera que ação recebida.
O monopólio do direito ao uso da violência física, a priori do Estado, parte da premissa de que ela é a última instância de relação antes da ruptura entre o Estado e a sociedade civil. Se ela é tratada pelo Estado, mesmo que não seja um Estado policial, sim democrático, como a primeira abordagem com base na estrutural característica do racismo e da segregação econômica; a resposta de proposição de integração e interação dessa parte da sociedade civil com o Estado não pode ser política pela ausência de efetividade e do princípio da paz. A violência física objetiva é, portanto, a única alternativa de expressão e visibilidade desses grupos sociais cuja a categorização calcada nos interesses do Capital, pela segregação econômica e associada a patologia social do racismo, é a expressão máxima de reivindicação à participação negligenciada pela hierarquia dentro da sociedade civil, especificamente no reconhecimento pelo Estado.
Fanon trata de uma sociedade tão complexa e heterogênea quanto a contemporaneidade e é exatamente essa característica que permite enxergar que nem toda violência proposta por ele é necessariamente disruptiva. A violência da resistência, enquanto objetiva e física, como forma de manifestação pela participação ou pela inserção em um nível de dignidade humana superior ao aceito pelo Estado, não propõe uma ruptura, mas uma ampliação da democracia. Cabe, enfim, ao Estado e ao Capital, junto às demais camadas da sociedade civil, receber tal violência ao invés de optar pela ampliação democrática ou pelo Estado policial.
Referências
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BOURDIEU, P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
D’ENTREVES, A. P. La dottrina dello Stato: elementi di analisi e di interpretazione. Torino: Giappichelli, 2009.
FANON, F. Sociologie d’une révolution. Paris: Fronçois Maspero, 1972.
FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
FANON, F. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Lins de Sá, 1980.
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EdUFBA, 2008.
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2010.
MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
O’DONNELL, G. Teoria Democrática e Política Comparada. Dados [online], Rio de Janeiro, 42 nº4, 1999. 655–690.
OFFE, C. Dominação de classe e sistema político: sobre a seletividade das instituições políticas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 140–177 p.
RANCIÈRE, J. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 2018.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UnB, v. 2, 2004.
ŽIŽEK, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
ŽIŽEK, S. Violência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
[1] Tradução não publicada.