Mark Bray
Cinco lições de história para antifascistas
1. As revoluções fascistas nunca tiveram sucesso. Os fascistas chegaram ao poder por vias legais
2. Muitos líderes e teóricos do entreguerras não levaram o fascismo a sério até ser tarde demais
4. O fascismo rouba da ideologia, da estratégia, do imaginário e da cultura de esquerda
5. Não são necessários muitos fascistas para instaurar o fascismo
1. As revoluções fascistas nunca tiveram sucesso. Os fascistas chegaram ao poder por vias legais
Primeiramente, alguns fatos importantes: a marcha de Mussolini em Roma foi só uma encenação com o objetivo de legitimar o convite anterior para que ele formasse um governo. O Putsch de Munique de Hitler, em 1923, fracassou completamente. Sua ascensão final ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu plenos poderes foi aprovada pelo parlamento.
Para os militantes antifascistas, esses fatos históricos põem em questão a fórmula liberal de oposição ao fascismo. A essência dessa fórmula é a crença no debate racional para se contrapor às ideias fascistas, na polícia para se contrapor à violência fascista, e nas instituições republicanas para se contrapor às tentativas fascistas de tomar o poder. Sem dúvida, essa fórmula funcionou algumas vezes. Mas em outras tantas não funcionou.
O fascismo e o nazismo emergiram como clamores emocionais, antirracionais, fundados em promessas másculas de renovação do vigor nacional. Embora a argumentação política seja sempre uma estratégia importante para se comunicar com a base popular do fascismo, ela é menos eficaz quando confrontada com ideologias que rejeitam os termos do debate racional. A razão não parou os fascistas nem os nazistas. Embora a razão seja sempre necessária, de uma perspectiva antifascista ela infelizmente não basta por si só.
Por isso, não é surpresa que a história mostre que as instituições republicanas nem sempre foram uma barreira ao fascismo. Pelo contrário, em diversas ocasiões, funcionaram como um tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do entreguerras se sentiram ameaçadas pela perspectiva da revolução, recorreram a figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente as dissidências e proteger a propriedade privada. Embora seja um equívoco reduzir o fascismo a um último recurso do capitalismo ameaçado, ele teve um papel importante, e às vezes decisivo, nos rumos do sistema. Muitas vezes, os líderes autoritários do entre-guerras impuseram medidas fascistas mesmo diante de ameaças menores. Para a maioria dos revolucionários, isso significa que o antifascismo deve ser necessariamente anticapitalista. Enquanto o capitalismo continuar a fomentar a luta de classes, eles argumentam, o fascismo estará sempre à espreita como uma solução autoritária para o levante popular.
A polícia, por sua vez, até prende e combate os fascistas, mas a história mostra que, assim como os militares, ela é um dos grupos mais ávidos pela “restauração da ordem”. Estudos demonstram que, nos últimos anos, parcelas significativas de policiais votaram no Aurora Dourada grego e na Frente Nacional francesa. [1] Nos Estados Unidos, está claro que muitos policiais saudaram Trump como um simpatizante do movimento Blue Lives Matter [2] e um presidente que permitiria que a força policial continuasse a perseguir e matar impunemente nas comunidades negras. Recentemente, foi revelado que o FBI investiga há décadas um nível alarmante (embora não surpreendente) de infiltração de supremacistas brancos na força policial. [3] Além disso, a origem histórica da polícia americana – as patrulhas que perseguiam escravos no sul do país e a oposição ao movimento operário no norte –— já dá uma ideia, independentemente de sua composição, do papel que ela desempenha no sistema supremacista branco de “justiça” criminal.
Tudo isso significa que o fato de as revoltas fascistas sempre terem fracassado não deveria diminuir a preocupação com insurreições fascistas. A “estratégia da tensão” [4] empregada pelos fascistas na Itália, o desenvolvimento do conceito de “lobos solitários” em uma “resistência sem líder”, [5] promovido por Louis Beam, líder da Ku Klux Klan americana, e a luta fascista armada que se desenrolou dos dois lados nos conflitos da praça Maidan na Ucrânia são provas do perigo concreto da insurreição fascista violenta. [6] Historicamente, contudo, o fascismo não precisou derrubar portões para ganhar acesso aos centros do poder. Bastou convencer os porteiros a deixá-lo entrar.
2. Muitos líderes e teóricos do entreguerras não levaram o fascismo a sério até ser tarde demais
Onde quer que tenha havido revolução, houve contrarrevolução. Para cada Tomada da Bastilha, houve um Termidor. Depois da Comuna de Paris, centenas foram executadas e milhares foram presos e deportados. Mais de cinco mil presos políticos foram assassinados e 38 mil pessoas foram detidas após a fracassada Revolução Russa de 1905, quando também ocorreram 690 pogroms antissemitas, que mataram mais três mil judeus. [7] Os radicais europeus e as minorias étnicas conhecem bem a violência reacionária tradicional.
No entanto, o fascismo representava algo novo. Suas inovações ideológicas, tecnológicas e burocráticas abriram as portas para que a Europa promovesse em seu próprio território as guerras de extermínio que ela havia exportado para todo o mundo por meio do imperialismo e do genocídio.
Compreensivelmente, muitos analistas de esquerda a princípio pensaram o fascismo dentro dos parâmetros das forças contrarrevolucionárias existentes até então. Segundo a Federação Socialista dos Trabalhadores, os fascistas italianos eram “no sentido mais estrito uma Guarda Branca”, referindo-se aos contrarrevolucionários da Revolução Russa. O Partido Comunista da Grã-Bretanha os chamava de “os Black and Tans da Itália”, referindo-se às forças contrarrevolucionárias na Guerra da Independência da Irlanda. Nos anos 1920, alguns marxistas usaram a análise do comunista húngaro Georg Lukács sobre o “terror branco” para argumentar que os squadristi de Mussolini eram nada além de um bastião não ideológico da classe dominante. [8]
Por outro lado, diversos comentadores destacaram os aspectos singulares do fascismo. Eles reconheceram a novidade de seu flerte nacionalista com o socialismo e seu elitismo populista. Observaram que setores antes antagônicos como os tradicionais proprietários de terra e os capitalistas burgueses poderiam formar um movimento contrarrevolucionário unido. [9] A ênfase do marxismo na dinâmica de classe subjacente ao fascismo revelou elementos que observadores de centro não conseguiram captar nessa intrigante nova doutrina. Mas também tendeu a subestimar o perigo que o fascismo poderia oferecer em seu suposto papel de guarda-costas da classe dominante. Por isso, marxistas e muitos outros não foram capazes de prever como o espectro de sua violência se expandiria muito além do que o “necessário” para proteger o capitalismo. Além disso, embora tenham se desenvolvido no entreguerras a partir do eleitorado de classe média e com o apoio da elite, os movimentos fascistas conquistaram em alguns casos o apoio da classe trabalhadora – fato que os marxistas demoraram muito a aceitar.
Independentemente de suas análises, contudo, muitos políticos socialistas e comunistas não agiram como se a própria existência de seus movimentos estivesse em jogo. Em 1921, os socialistas italianos assinaram o Pacto de Pacificação com Mussolini, e nem eles nem os comunistas achavam que a ascensão do Duce ao poder representaria mais do que uma nova oscilação para a direita no velho pêndulo da política parlamentar burguesa. Não foram muito diferentes, nesse sentido, da maioria dos socialistas espanhóis, que colaboraram com o governo militar de tintas fascistas de Primo de Rivera nos anos 1920. Na Alemanha, os comunistas acreditavam que o fascismo já havia chegado no início dos anos 1930, quando os chanceleres começaram a governar por decretos. Ainda assim, as lideranças do partido não se convenceram de que esses chefes de governo supostamente fascistas ou a ascensão de Adolf Hitler representavam uma ameaça à sua própria existência. Para o Partido Comunista da Alemanha (KPD), o fascismo não exigia resistência, mas paciência – seu lema era “Primeiro Hitler, depois nós”. Na virada do século 20, a esquerda tinha motivos para acreditar que os períodos de repressão iam e vinham. O fascismo mudou as regras desse jogo.
O primeiro reconhecimento significativo da essência do perigo fascista veio com a Revolta de Fevereiro, em 1934, quando os socialistas austríacos reagiram contra as batidas e prisões autoritárias ordenadas pelo chanceler Dollfuss (e instigadas por Mussolini). A revolta foi brutalmente reprimida, deixando como saldo 200 mortos, 300 feridos e a cassação do partido, [10] e ainda assim inspiraria, pela bravura, os mineiros socialistas espanhóis que se rebelariam naquele ano nas Astúrias. Seu lema, “Melhor Viena que Berlim”, desdenhava da cidade alemã onde a ascensão de Hitler ao poder não encontrou resistência. Quando estourou a Guerra Civil na Espanha, o antifascismo foi amplamente compreendido como uma luta desesperada contra o extermínio.
A tendência dos teóricos e políticos de esquerda a definir o fascismo com base no paradigma da contrarrevolução tradicional atrasou a capacidade da própria esquerda de se ajustar à nova ameaça. A estratégia da resistência deve sempre ser calibrada a partir daquilo a que se resiste, portanto cabe aos antifascistas reavaliar continuamente seus arsenais teóricos, estratégicos e táticos, com base nas mudanças da ideologia e da práxis de seus adversários de extrema-direita. Matthew N. Lyons pôs em prática essa lição ao criticar autores que defendem que a alt-right [11] seja chamada de neonazista. Embora muitos integrantes da alt-right sejam claramente neonazistas, Lyons defende que isso “encarna a ideia infeliz de que as políticas da supremacia branca são basicamente iguais… como se não precisássemos entender nosso inimigo”. [12] A concepção do inimigo em termos de um paradigma datado custou caro aos antifascistas do entreguerras. A certa altura, à medida que nos afastamos do século 20, a evolução da extrema-direita pode até significar uma extrapolação da estrutura conceitual do “fascismo”.
É essencial que os antifascistas desenvolvam uma compreensão clara e precisa do fascismo. No entanto, para entender a natureza vigorosa e flexível da política antifascista, devemos reconhecer a relação entre dois dos muitos registros do antifascismo: o analítico e o moral.
O registro analítico consiste em mobilizar definições e interpretações do fascismo ancoradas na história, para elaborar uma estratégia apropriada aos desafios específicos de enfrentar grupos e movimentos de ideologia fascista. Os métodos de enfrentamento de grupos neonazistas talvez não façam sentido contra outras formações de extrema-direita. A compreensão da diferença entre eles deveria orientar as estratégias e táticas.
O registro moral se desenvolveu a partir do poder retórico do epíteto “fascista” – chamar alguém ou algo de fascista — no período do pós-guerra. Ele entra em cena quando lentes antifascistas são aplicadas a fenômenos que podem não ser fascistas, tecnicamente falando, mas que são fascistoides.
Por exemplo, os Panteras Negras estavam errados ao chamar os policiais que mataram negros impunemente de “porcos fascistas”, mesmo que eles não estivessem defendendo pessoalmente crenças fascistas ou mesmo que o governo norte-americano não fosse literalmente fascista? Em uma manifestação antifascista em Madri, vi uma bandeira do arco-íris com o lema “homofobia é fascismo”. Será que a existência de homofóbicos não fascistas invalida esse argumento? Será que as guerrilhas que combateram Franco na Espanha ou Pinochet no Chile estavam equivocadas ao chamar sua luta de “antifascista”, uma vez que, segundo a maioria dos historiadores, esses regimes não eram tecnicamente fascistas?
É importante analisar cada um desses casos e muitos outros para desenvolver uma interpretação mais nuançada. “Fascismo” se tornou, no entanto, um significante moral que aqueles que lutam contra diversos tipos de opressão usam para enfatizar a ferocidade de seus inimigos políticos e os elementos de continuidade que eles compartilham com o fascismo histórico. A Espanha de Franco pode ter sido antes um regime militar católico tradicionalista do que um fascismo propriamente dito, mas tais diferenças tiveram pouca importância para quem foi perseguido pela Guarda Civil.
O desafio de definir o fascismo borra os limites entre esses dois registros. Além disso, o registro analítico traz em si uma crítica moral, assim como o registro moral implica uma análise mais ampla da relação entre determinada fonte de opressão e o fascismo. Embora seja verdade que o epíteto “fascista” perde parte da força se aplicado de forma muito difusa, um elemento fundamental do antifascismo é promover a organização contra políticas fascistas e contra políticas fascistoides, em solidariedade a todos aqueles que sofrem e lutam. Questões conceituais deveriam influenciar nossas estratégias e táticas, não nossa solidariedade.
3. As lideranças socialistas e comunistas foram mais lentas do que suas bases em compreender a ameaça do fascismo
Como muitos socialistas e comunistas a princípio consideravam o fascismo uma variante da política contrarrevolucionária tradicional, eles se concentraram muito mais uns nos outros do que em seus inimigos fascistas. Ambas as facções argumentavam que, se pudessem unir o proletariado sob sua liderança, não faria mais diferença quais obstáculos de direita teriam que enfrentar.
Assim, embora alguns militantes socialistas tenham se alinhado aos Arditi del Popolo [13] para combater os Camisas Negras na Itália no início dos anos 1920, a liderança do partido se preservou para continuar buscando o poder pela via das eleições legítimas. Quando esse caminho foi definitivamente bloqueado, o partido se viu em dificuldades para mudar de linha.
Na mesma época, registraram-se movimentos similares. Os socialistas alemães aderiram a uma linha estritamente legalista nos anos 1920 e 1930, apesar da crescente inquietação da base do partido. Embora os socialistas da Reichsbanner [14] e, mais tarde, da Frente de Ferro, pressionassem por medidas mais agressivas, o sonolento aparato do partido não estava preparado para considerar estratégias alternativas. Da mesma forma, os militantes do socialismo austríaco lutaram para empurrar a liderança de seu partido para ações de autodefesa diante dos ataques da extrema-direita nos anos 1920 e 1930. [15] Na Inglaterra, os membros do Partido Trabalhista e da Federação dos Sindicatos enfrentaram fisicamente os fascistas nas ruas mesmo contrariando a orientação de seus líderes. A liderança trabalhista chegou a condenar os militantes que participaram da Batalha de Cable Street – quando vários grupos enfrentaram os Camisas Negras de Oswald Mosley que marchavam pelo bairro judeu do East End londrino – e se recusou a apoiar muitos membros do Partido Trabalhista que se juntaram às Brigadas Internacionais na Espanha. [16] Como defendeu o historiador Larry Ceplair, os social-democratas “jogaram o jogo do parlamento por muito tempo, e seus líderes se tornaram ideológica e psicologicamente incapazes de organizar, comandar ou aprovar a resistência armada ou a revolução preventiva”. [17]
Apesar disso, muitos socialistas, menos atrelados à ideologia legalista do partido e à estratégia eleitoral como principal plano de ação, parecem ter se tornado mais sensíveis às mudanças nas condições do terreno e muito mais dispostos a combater o fascismo.
No início dos anos 1920, a Internacional Comunista acreditava que a tarefa mais premente para a revolução era traçar uma distinção clara e antagônica entre o marxismo-leninismo e a socialdemocracia, de modo que ela pudesse liderar a onda insurgente que parecia estar prestes a engolir o continente. Esse objetivo voltou ao primeiro plano com o início do “terceiro período” do Comintern, em 1928. O modelo de organização leninista do “centralismo democrático” ditaria uma cadeia de comando disciplinada a partir do Comintern, em Moscou, passando pelos partidos nacionais, até os setores regionais e os quadros de cada bairro. Esse modelo permitiu ao movimento comunista internacional agir em uníssono ao longo de vastas extensões geográficas, mas muitas vezes também significava que as disputas internas da elite do partido em Moscou tinham um impacto muito maior na política do que as condições locais.
A linha “social-fascista” foi um exemplo disso. Muitas lideranças nacionais adotaram-na com relutância e a abandonaram avidamente com a mudança do Comintern para a política da Frente Popular [18] em 1935. Os militantes comunistas e socialistas geralmente não se odiavam tanto quanto seus líderes. Na verdade, as primeiras iniciativas de união entre socialistas e comunistas na França e na Áustria, por exemplo, foram desenvolvidas de baixo para cima. [19] Esses exemplos demonstram algumas das desvantagens da organização hierárquica.
4. O fascismo rouba da ideologia, da estratégia, do imaginário e da cultura de esquerda
O fascismo e o nazismo se desenvolveram a partir do desejo de libertar o nacionalismo, o militarismo e a masculinidade das mãos da burguesia capitalista “decadente” que dirigia os governos italiano e alemão, e de tirar a política popular coletivista das mãos da esquerda socialista “degenerada”. Mesmo antes de Hitler assumir o poder, o Partido dos Trabalhadores Alemães usava uma saudável dose de vermelho em suas bandeiras e cartazes, e seus membros se tratavam por “camarada”. [20] Isso produziu paradoxos anti–ideológicos, antirracionais, como “nacional-sindicalismo” e “nacional-socialismo”. Os fascistas e os nazistas “de esquerda” foram expurgados assim que seus partidos chegaram ao poder e entraram em acordo com a elite econômica, mas a cooptação nacionalista da retórica do populismo da classe trabalhadora foi fundamental para essa ascensão.
Graças a suas boas relações com homens de negócios, os nazistas criaram suas próprias agências de emprego para oferecer vagas aos desempregados. Em certo sentido, isso era uma variação, em forma de colaboracionismo de classe, da atuação dos sindicatos como porta de entrada para empregos na indústria. As tabernas frequentadas pelas tropas nazistas claramente se originaram da tradição das tabernas socialistas do século 19.
Os nazistas também ofereceram comida e abrigo de graça a seus apoiadores durante a Grande Depressão. Essa foi uma clara diferença entre eles e os conservadores tradicionais, que demonstravam desdém pelos pobres e pelos desempregados e, no máximo, contribuíam eventualmente com alguma ação de caridade apolítica ou religiosa.
Esse modelo de caridade política de extrema-direita foi adotado pelo Aurora Dourada grego, pelo CasaPound italiano, pelo Hogar Social de Madri, e pela National Action inglesa, instituições que começaram distribuindo gratuitamente comida e mantimentos a pessoas de origem grega, italiana, espanhola, ou apenas para “brancos”. Os ativistas do CasaPound começaram a ocupar edifícios abandonados, imitando os movimentos sociais dos sem–teto, e o Hogar Social de Madri não só começou a fazer ocupações, como certa vez organizou uma ação contra o despejo de pessoas de origem hispânica, em uma clara tentativa de se apropriar do vibrante movimento da esquerda espanhola de luta pela moradia.
De modo geral, os fascistas do pós-guerra continuaram a olhar para a esquerda revolucionária em busca de intuições estratégicas. Os fascistas adeptos da Terceira Posição [21] tentaram aplicar a teoria maoista da revolução do Terceiro Mundo para fomentar uma “libertação europeia”, que implicaria a remoção violenta dos “não europeus”. Nos anos 1980, uma facção da Troisième Voie [22] tentou usar uma “estratégia ‘trotskista’” para se infiltrar na Frente Nacional e tomar o partido por dentro. Os fascistas ucranianos tentaram se apropriar do legado do líder anarquista Nestor Makhno, enquanto as Bases Autónomas do fascismo espanhol louvavam o anarquista Buenaventura Durruti. [23]
A partir do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com mais força no final dos anos 2000, os fascistas de toda a Europa chegaram a copiar a tática black bloc dos Autonomen alemães. Esses “nacionalistas autônomos” vestidos de preto, que às vezes usam bandeiras com o símbolo antifascista, mas com lemas nacional-socialistas, ou se cobrem com keffiyeh palestinas, tentaram imitar o apelo da esquerda radical defendendo o anticapitalismo, o antimilitarismo e o antissionismo em países como Alemanha, Grécia, República Tcheca, Polônia, Ucrânia, Inglaterra, Romênia, Suécia, Bulgária e Holanda. Essa tendência entrou em declínio na Europa Ocidental por volta de 2013. O “nacional-anarquismo” é outra nova variante desse tema. Os “nacional-anarquistas” abusam do conceito anarquista da autonomia para defender “enclaves étnicos” separados e homogêneos, inclusive uma pátria só de brancos. [24]
Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para demonstrar como o antifascismo não exige apenas se lançar em ofensivas de combate ao fascismo, mas também em marcar posição contra o lento avanço fascista, como sugere o título do maravilhoso livro de Alexander Reid Ross. Eles também demonstram a importância da ideologia de esquerda. Sem estabelecer a coerência entre si, conceitos como “autonomia”, “libertação nacional”, ou mesmo “socialismo”, e táticas como ocupações do movimento por moradia, os mutirões de doação de alimento ou a formação de black blocs podem ser cooptados debaixo de nossos narizes.
5. Não são necessários muitos fascistas para instaurar o fascismo
Em 1919, os fasci de Mussolini tinham 100 membros. Quando Mussolini foi indicado primeiro-ministro, em 1922, apenas entre 7% e 8% da população italiana, e 35 dos mais de 500 integrantes do parlamento, pertenciam a seu PNF (Partito Nazionale Fascista). O Partido dos Trabalhadores Alemães tinha só 54 membros quando Hitler compareceu a seu primeiro encontro após a Primeira Guerra Mundial. Quando Hitler foi indicado chanceler, em 1933, apenas cerca de 1,3% da população pertencia ao NSDAP (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães). [25] Por toda a Europa, emergiriam enormes partidos fascistas a partir do que eram pequenos núcleos no período do entreguerras. Mais recentemente, o sucesso eleitoral de muitos partidos fascistas (ou fascistoides) depois da crise financeira de 2008 e da recente onda de imigração demonstrou o potencial de crescimento rápido da extrema-direita quando as circunstâncias se tornam propícias.
Certamente esses partidos cresceram, e esses regimes consolidaram seu poder, ao conquistarem o apoio das elites conservadoras, dos industriais angustiados, dos pequenos empresários alienados, dos nacionalistas desempregados e de outros mais. As narrativas triunfantes da resistência no pós-guerra podem ter consolidado a ideia de que só os ideólogos fascistas mais comprometidos apoiaram figuras como Mussolini ou Hitler, mas na verdade ambos os regimes cultivaram amplo apoio popular, e isso confunde nossa compreensão do que significava ser um fascista ou um nazista nos anos 1930. Nesse sentido, não foram poucos os fascistas que fizeram o fascismo. No entanto, antes de conquistarem esse apoio popular, fascistas e nazistas não passavam de minúsculos grupos de ideólogos.
Mas, nesse ínterim, é importante notar que, enquanto Mussolini reunia um grupo desorganizado de uma centena de veteranos de guerra amargurados e de excêntricos socialistas de tendências nacionalistas, e Hitler lutava pela liderança do insignificante Partido dos Trabalhadores Alemães, a Itália e a Alemanha pareciam à beira de uma revolução social. Não havia motivo para a esquerda sequer pestanejar diante desses fatos. Aqueles grupelhos não poderiam ser mais irrelevantes.
Diante daquilo que os anarquistas, os comunistas e os socialistas sabiam na época, não havia motivos para dedicarem tempo e atenção ao fascismo em suas origens. No entanto, é impossível não nos perguntarmos o que poderia ter acontecido se eles tivessem prestado mais atenção. É uma hipótese impossível de se considerar a sério, e refletir demais sobre ela significaria omitir os fatores sociais mais amplos que prepararam o palco para a ascensão do fascismo. Mesmo assim, os antifascistas concluíram que, uma vez que o futuro não está escrito, e que o fascismo geralmente emerge a partir de grupos pequenos e marginais, todo grupo fascista ou de supremacia branca deve ser tratado como se pudesse ser os 100 primeiros fasci de Mussolini, ou os 54 membros originais do Partido dos Trabalhadores Alemães que serviram de pedra fundamental a Hitler.
A ironia trágica do antifascismo moderno é que, quanto mais bem-sucedido ele for, mais será questionada sua razão de ser. Suas maiores conquistas ficam em um limbo hipotético: quantos movimentos fascistas assassinos foram cortados pela raiz por grupos antifascistas nos últimos 70 anos, antes que sua violência entrasse em metástase? Jamais saberemos – e é bom que seja assim.
[1] Did One in Two Greek Policemen Really Vote for Golden Dawn?”. Disponível em: news.radiobubble. gr/2012/06/did-one-in-two-greek-policemen-really.html. “Les gendarmes et l’élection présidentielle”. Ifop. Disponível em: lessor.org/wp-content/uploads/2017/ 04/Rapport-sondage-pre%CC%8-1sidentielle.pdf.
[2] Vidas Azuis Importam: movimento criado depois da morte de dois policiais de Nova York, em 2014, em contraposição ao movimento Black Lives Matter, que denuncia a violência policial contra os negros nos EUA. O nome é uma referência ao uniforme azul da corporação. [N. do r.]
[3] Alice Speri, “The FBI Has Quietly Investigated White Supremacist Infiltration of Law Enforcement”, The Intercept, 31.01.2017. Disponível em: theintercept.com/2017/01/31/the-fbi-has-quietly-investigated-white-supremacistinfiltration-of-law-enforcement.
[4] O termo “estratégia da tensão” se refere a uma série de ações (como campanhas de desinformação, contrapropaganda e até atentados) que têm como objetivo desestabilizar o ambiente político em um país. A expressão se popularizou depois de ser usada para descrever ataques terroristas e assassinatos cometidos por grupos neofascistas na Itália nos anos 1970 e 1980. [N. do E.]
[5] Desenvolvido nos EUA, nos anos 1960, como estratégia anticomunista, o conceito de “resistência sem líder” propõe a organização em células independentes, às vezes constituídas por apenas um indivíduo (ou “lobo solitário”). A tática foi adotada pela Ku Klux Klan nos anos 19 80 e hoje é comum entre organizações terroristas islâmicas. [N. do E.]
[6] Alexander Reid Ross, Against the Fascist Creep. Chico: Ak Press, 2017, p. 115.
[7] Orlando Figes, A People’s Tragedy: The Russian Revolution: 1891-1924. Nova York: Penguin, 1996, pp. 197, 201.
[8] Keith Hodgson, Fighting Fascism. Manchester: Manchester University Press, 2010, pp. 51, 55.
[9] Ibidem, pp. 27, 36.
[10] Paula Sutter Fichtner, Historical Dictionary of Austria. 2. ed. Lanham: Scarecrow, 2009, pp. 96-97.
[11] Contração do termo “direita alternativa” em inglês, alt-right é um rótulo que se aplica a uma gama variada de ativistas de extrema-direita que ganharam espaço nos EUA nos últimos anos. No caldeirão ideológico da alt-right se misturam nacionalismo, xenofobia, supremacismo branco e referências à iconografia e aos preceitos do nazismo. O movimento ganhou força desde a eleição presidencial de 2016 nos EUA, conquistando influência na campanha e depois no governo de Donald Trump. [N. do E.]
[12] Matthew N. Lyons, “Calling Them ‘Alt-Right’ Helps Us Fight Them”, threewayfight, 22.11.2016. Disponível em: threewayfight.blogspot.com/2016/11/calling-them-alt-right-helpsus-fight.html.
[13] Arditi del Popolo (Os Valentes do Povo, em tradução livre) foi um movimento italiano fundado em 1921 para fazer frente ao partido fascista de Mussolini e ao seu braço paramilitar, os Camisas Negras. Formado por sindicalistas, socialistas, comunistas, anarquistas e republicanos, chegou a ter cerca de 20 mil integrantes. Desmantelou-se em 1924, ao ter seus principais líderes detidos ou assassinados. [N. do E.]
[14] A Reichsbanner Schwarz-Rot-Gold (Bandeira Preta, Vermelha e Dourada do Reich) foi uma organização formada em 1924, na Alemanha, por socialdemocratas e liberais para defender as instituições democráticas contra extremistas. Tornou-se aos poucos um braço do Partido Social Democrata, que em 1931 formou com setores do operariado a Frente de Ferro, cujo objetivo era combater os nazistas. [N. do E.]
[15] Larry Ceplair, Under the Shadow of War. Nova York: Columbia University Press, 19 87, pp. 68-69; Julius Deutsch, Antifascism, Sports, Sobriety: Forging a Militant Working-Class Culture. Gabriel Kuhn (org.). Oakland: Pm Press, 2017.
[16] Keith Hodgson, op. cit., pp. 105-106, 138, 140, 160-161.
[17] Larry Ceplair, op. cit., p. 6.
[18] Em 1935, a Internacional Comunista passou a aceitar pactos com socialistas e social-democratas, revertendo a diretriz vigente até então. [N. do E.]
[19] Larry Ceplair, op. cit., p. 86.
[20] Stanley G. Payne, A History of Fascism. Madison/ Londres: University of Wisconsin Press/ UCL Press, 1995, p. 151.
[21] Movimento surgido na Europa que, sob o pretexto de se colocar igualmente contra capitalismo e comunismo, mistura posições econômicas e sociais de esquerda e direita para defender um nacionalismo radical, com tintas xenófobas. [N. do E.]
[22] Movimento francês de extrema-direita adepto da Terceira Posição. [N. do E.]
[23] Stanley G. Payne, op. cit., p. 163; Alexander Reid Ross, op. cit., pp. 89-90, 140-141, 170-172.
[24] “Les autonomes nationalistes en Allemagne”, Reflexes, 12.11.2009. Disponível em: reflexes.samizdat.net/ les-autonomes-nationalistes-enallemagnemefiez-vous-des-imitations; Maik Fielitz, “Militanter Neonazismus in Griechenland”, Antifaschistisches Infoblatt, 13.03.2016. Disponível em: www. antifainfoblatt.de/artikel/militanterneonazismus-griechenland; Alexander Reid Ross, op. cit., pp. 217-229, 284.
[25] Stanley G. Payne, op. cit., pp. 151, 287; Robert Soucy, French Fascism: The First Wave. New Haven/ Londres: Yale University Press, 1986, p. 24.