Título: Tornando-se Irreal e Impossível
Data: 19.07.2020
Fonte: https://antidotezine.com/2020/07/23/unreal-and-impossible/
Notas: tradução por acervo trans-anarquista em janeiro de 2025.

Se o anarquismo é uma derrubada radical do próprio estado que dita o que nos é possível, então o anarquismo exige que pensemos em coisas aparentemente impossíveis.

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Fonte da imagem: Instagram, via Ill Will Editions (Twitter)

“Anarquismo é o desprezo pela subordinação e dominação. Não é o desprezo pelas regras. Ainda teremos sinais de trânsito e coisas desse tipo. É um desprezo pela imposição de regulamentos disciplinares punitivos que, de fato, impedem a proliferação da vida e da possibilidade da vida – isso é autoridade.”


Chuck Mertz: A negritude radicaliza a radicalização e tudo o que a negritude toca. Então, o que acontece quando a negritude entra em contato com a anarquia? Para nos ajudar a entender a negritude, a anarquia e o que elas podem significar e significam uma para a outra, retornando a This is Hell! está Marquis Bey, autore de Anarchoblackness: Notes Toward a Black Anarchism[2] [Anarco-Negritude: Notas Rumo a um Anarquismo Negro]. Marquis é professore assistente de literatura Afro-Americana e Inglês na Northwestern University. Elu esteve em nosso programa no ano passado para discutir seu livro Them Goon Rules: Fugitive Essays on Radical Black Feminism (Ensaios Fugitivos sobre Feminismo Negro Radical).

Bem-vinde novamente a This is Hell!, Marquis.

Marquis Bey: Obrigade por me receber novamente.

CM: Você cita Mahatma Gandhi em seu discurso na Universidade de Banaras, proferido em 4 de fevereiro de 1916, dizendo: “Eu me considero anarquista, mas de outro tipo”.

Nem todo mundo que está ouvindo agora sabe o que é anarquia, então acho que esse é um bom ponto de partida para as pessoas entenderem qual é a definição popular e o entendimento político do anarquismo.

Qual é o tipo de anarquista que Gandhi não era? Isso implica que há várias definições. Antes mesmo de chegarmos à anarquia Negra, qual é a diferença entre o anarquista que Gandhi não era e o tipo que ele afirmava ser?

MB: Isso exige uma resposta um pouco extensa. De modo geral, o anarquismo tem uma reputação ruim. Muitas vezes é equiparado e usado como definição de caos com conotação negativa. Você pode ouvir alguém dizer: “Tudo virou anarquia”, o que significa um estado de coisas indesejável, caótico e ruim. Mas os anarquistas entendem o anarquismo como um modo político, interpessoal e até mesmo social de existir no mundo em conjunto com outras pessoas.

Mencionamos Gandhi – alguém que, como Tolstoi, identificou uma afiliação ao anarquismo. Sem mencionar os anarquistas clássicos canônicos (que abordarei brevemente). O anarquismo ganhou certa notoriedade como uma posição reconhecível que as pessoas defendiam organizacionalmente em resposta às teocracias do século XVIII. Estavam buscando e lutando por uma alternativa a esse controle governamental e social opressivo e disciplinador. Anarquismo, em seu sentido fundamental, é mais bem caracterizado (por um pensador chamado Nathan Jun, que estou parafraseando aqui) como uma ampla condenação, oposição a ou subversão de qualquer autoridade coercitiva circunscrita e seus instrumentos, as quais são então associadas à afirmação de uma concepção radical de liberdade de igualdade.

Sinto a necessidade de explicar essa última parte rapidamente, porque muitas vezes há um ar de presunção, uma arrogância que os anarquistas ou esquerdistas em geral assumem. “Ah, estamos lutando por liberdade e igualdade, então nós somos as boas pessoas.” Realmente precisamos ser transparentes quanto a esses termos, porque as mesmas pessoas que saquearam, escravizaram e dizimaram as terras e os povos deste país e de outros países também disseram que estavam lutando por liberdade e igualdade. Portanto, sejamos pontuais em nossos termos.

Em última análise, o anarquismo está a serviço da liberdade e da igualdade – e da subversão do poder, da autoridade e da coerção. A pensadora feminista negra Saidiya Hartman refere-se ao anarquismo como o tipo de liberdade que podemos de fato temer, uma concepção radical de liberdade que implica a abolição de todas as instâncias de autoridade, hierarquia e coerção. Isso inclui não apenas as coisas obviamente ruins, mas também espaços e lógicas carcerárias, como o binário de gênero, ou a ideia de propriedade que é usada para explorar pessoas e terras, ou vários modos de taxonomizar a nós mesmes e aos outros que não permite a autodeterminação subjetiva. Portanto, refiro-me à liberdade e ao livre-arbítrio da mesma forma que Jennifer Nash descreve o feminismo negro: um projeto de anti-captura. Um modo de existência inteiramente baseado na não-coerção.

Para retomar a concepção clássica de anarquismo (antes mesmo de eu analisar as alterações sutis que o anarquismo negro faz dela) a maneira mais nítida de dizer isso é que o anarquismo, com todas as suas variadas vertentes, consiste tipicamente em um desdém pela autoridade, um desejo de desmantelar o estado e uma ênfase na participação direta. Em termos de autoridade, a frase anarquista popular que sintetiza isso muito bem é “Sem Deuses, Sem Mestres”. Não se trata de uma crença religiosa individualizada, mas sim de um desprezo pela subordinação e dominação. Não é um desprezo pelas regras. Ainda teremos sinais de trânsito e coisas do tipo. É um desprezo pela aplicação de regulamentos disciplinares punitivos que, de fato, impedem a proliferação da vida e das possibilidades de vida – isso é autoridade.

Com relação ao estado, uma maneira de entendê-lo é como uma organização centralizada, de cima para baixo, que mantém o monopólio do uso legítimo e legitimado da violência e, em seguida, concede a si mesma o poder exclusivo de legislar a lei e a violência que todos devem obedecer – ou melhor, todos que não sejam agentes diretos do estado. Ele garante a persistência das existentes relações sociais opressivas e que condenam os modos de vida que não sejam sancionados pelo estado.

Outra maneira de entender o estado é que ele é uma relação, uma maneira de interagir com os outros e consigo mesmo. O que quero dizer com isso é que a nossa maneira de existir em relação aos outros pode, de fato, estar executando o serviço do estado. Você pode estar fazendo o serviço de coerção, regulação e hierarquia autoritária. Por exemplo, aqueles que policiam os gêneros alheios e adotam visões cisnormativas e transfóbicas são agentes do estado e se relacionam entre si conforme parâmetros estatais generificados. Aqueles que informam a polícia sobre atividades supostamente criminosas são agentes do estado. Como as pessoas com quem cresci na Filadélfia gostam muito de dizer, “Snitches get stitches”[3]. Essa é uma forma de se recusar firmemente a permitir que as relações com o estado penetrem seu espaço.

Quanto à participação direta: é simplesmente que aqueles a quem uma determinada ética ou regra se aplica devem ter participação direta na criação ou implementação dessa ética ou regra. É uma recusa de formas representativas de governo, precisamente porque os representantes de fato privam a participação das pessoas e a instanciam em outra pessoa. A participação direta é uma confirmação da capacidade de ter algo a dizer sobre as coisas, ao lado de pessoas com as quais se está em comunidade.

“Se o anarquismo é uma derrubada radical do próprio estado que dita o que nos é possível, então o anarquismo exige que pensemos em coisas aparentemente impossíveis. Anarquismo é a irreverência em relação ao que é “real” ou “possível”. É isso que está em jogo. Temos que nos tornar Irreais e Impossíveis se quisermos concretizar um mundo anarquista.”

O anarquismo não é apenas uma crítica à sociedade opressiva – embora seja isso mesmo -, mas se conjuga com a ideia de um mundo de liberdade. Anarquistas possuem uma metodologia específica de transformação social em que o objetivo a ser alcançado já é visível nos meios que utilizamos.

Então, sim, existe aquela concepção popular do anarquismo como desordem e desorganização radicais. Outro tipo de anarquistas, com os quais Gandhi talvez estivesse falando, possuem uma maneira diferente de conceituar anarquismo por meio de um certo tipo de indisciplina produtiva ou geradora, em que as regras ou os sistemas e regimes que nos governam de fato são opressivos e violentos, de modo que a indisciplina seja, com efeito, uma espécie de forma salvífica de habitar o mundo.

CM: Até que ponto reconhecemos a participação do estado em nossas vidas e em nossas relações? Isso é um passo em direção à compreensão da anarquia política, quando você começa a considerar a forma como o estado muda a maneira como nos relacionamos com tudo? Reconhecemos o quanto o estado está envolvido em nossas vidas?

MB: Acho que não reconhecemos. Mesmo eu, acho que não percebo isso em toda a sua extensão. Pense na maneira como nos relacionamos com os outros – digamos que estamos em um relacionamento com alguém, ou mesmo apenas em uma amizade, e usamos uma frase como “estou investindo meu tempo” nessa amizade: essa é a linguagem capitalista e neoliberal que estamos usando. Estamos pensando em nosso relacionamento com alguém como uma troca transacional para a qual precisamos de um retorno sobre nosso investimento. Isso é incrivelmente repugnante para mim, se é que posso dizer isso. Porque significa que entendemos as pessoas em termos econômicos e economicistas, e não como pessoas sensíveis com vários desejos. Podemos pensar em nossas relações com as pessoas em termos que não sejam fundamentalmente transacionais e extrativistas, e tentar vê-las como mais amorosas, mais atenciosas e mais transformadoras.

A facilidade com que usamos esse tipo de linguagem (“investir” tempo em um relacionamento) parece indicar que ainda não consideramos o quanto o capitalismo e o estado têm sido difundidos até mesmo em nossos momentos mais íntimos. Não se trata simplesmente de uma instituição superior ditando ordens, mas sim de uma coisa íntima que absorvemos – por concepção[4] – do estado e do capitalismo. Isso é algo que precisamos desfazer radicalmente, reconsiderar e reconfigurar.

CM: Cada um dos capítulos de seu livro leva o prefixo “In-” e você diz que o “compromisso de sua escrita com o anarquismo se estende aos domínios subjetivo, intersubjetivo, discursivo, sistêmico e histórico por meio de um compromisso fundamental de ser e se tornar sem-raça, sem-gênero, sem-classe, não-governado e sem-amarras”. Os capítulos incluem “Unblack”[5], “Ingovernável”, “Improprietado”, “Inculto”, “Injusto” e “Incontrolado”.

Esses são todos os estados que temos de alcançar individualmente em nossa própria visão de mundo? Ou são horizontes para almejarmos coletivamente? Ou ambos?

MB: São ambos – é algo que nós, individualmente (tenho muitas dúvidas sobre esse termo e sobre a noção de individuação, mas podemos falar sobre isso mais tarde), precisamos desfazer por nós mesmes. E esse movimento micropolítico terá incursões em formas macropolíticas. As coisas que fazemos por nós mesmes e como nos reconfiguramos e nossa relação com as coisas inevitavelmente terão efeitos em sistemas maiores.

Adoro o termo que você usou, horizonte. Trata-se de um horizonte de interrogação, de questionamento, de reconfiguração e recalibração. O que entendemos como possível para nós mesmes já foi tocado e contaminado pelo capitalismo e pelo estado. Portanto, também temos de questionar nossa suposta capacidade de pensar em possibilidades alternativas, porque essas possibilidades estão, elas próprias, presas no horizonte de possibilidades que o capitalismo e o estado já estabeleceram.

Portanto, o prefixo “In-” que faz parte do título de cada capítulo é uma forma de tentar pensar sobre como precisamos derrubar radicalmente as coisas que sabemos que são reais, que existem. Existe a acusação de que o anarquismo ou algo semelhante à abolição seria “irrealista”. E, de fato, isso é bem verdade. Porque o realismo e a realisticidade são os parâmetros; o escopo das coisas se baseia nos limites circunscritos pelo capitalismo e pelo estado. Precisamos realmente desfazer a própria noção de nós mesmes, a própria noção do que é real e do que é possível. Essa é uma tarefa quase impossível. Realmente é. Não presumo que seja fácil. Mas é o que é necessário se quisermos caminhar rumo a esse mundo anárquico.

Se o anarquismo é uma derrubada radical do próprio estado que dita o que nos é possível, então o anarquismo exige que pensemos em coisas aparentemente impossíveis. Isso será muito difícil, porque tem de ocorrer no nível do indivíduo, no nível do subjetivo, no nível da psique, até mesmo no nível do ideológico e do imaginário. Todas essas coisas têm de ser submetidas a um extremo exame, porque, de muitas maneiras, não podemos confiar nelas. Mas o anarquismo é a irreverência em relação ao que é “real” ou “possível”. É isso que está em jogo. Temos que nos tornar Irreais e Impossíveis se quisermos concretizar o que pode ser chamado de um mundo anarquista.

CM: Você escreve, “A negritude radicaliza tudo com o que entra em contato. Anarco-negritude é um anarquismo negro, queer e feminista que perturba os vários mecanismos que hierarquizam, circunscrevem e violam os momentos da vida nos arredores da ordem. Trata-se de uma socialidade sem restrições e sem governo – uma sensibilidade anticolonial. A anarco-negritude, e o anarquismo negro de forma mais ampla, é um anarquismo de outro tipo, para retomar Gandhi, que reconhece sua intimidade com o anarquismo como convencionalmente entendido, mas que revisa o anarquismo, anarquiza o anarquismo, remixa e sampleia o anarquismo, para produzir algo distinto, mas fortemente vinculado.”

O que você quer dizer com “anarquizar o anarquismo”? A negritude dá ao anarquismo branco, digamos, o radicalismo de que ele precisa? A política branca precisa da radicalização da negritude? É isso que está faltando, digamos, no que vemos como liberalismo estabelecido dentro do Partido Democrata?

MB: É. A resposta mais curta é sim. Mas eu tenho outra resposta longa e desconexa, se você me permitir. Quero ser bem transparente: o anarquismo negro não se refere apenas a pessoas negras que são anarquistas. Embora eu ache muito importante saber que pessoas como Lucy Parsons, Lorenzo Ervin, a Federação Anarquista Black Rose [Rosa Negra], Zoé Samudzi e William C. Anderson existem e são comprovadamente e declaradamente negros e anarquistas, simplesmente nomeá-los como anarquistas que são negros é uma atitude muito básica para mim, pela qual não tenho interesse. Não porque seja indigno, mas porque já foi feito antes e configura a maior parte do que tem sido feito. É isso e apontar o dedo para anarquistas clássicos como Max Stirner e Kropotkin, Bakunin e Emma Goldman, que se esquecem dos negros e da raça. Ok, legal – isso não me surpreende. Por que você está surpreso? Não é isso que estou fazendo.

Bakunin disse que, se existe um estado, deve haver dominação de uma classe por outra e, necessariamente, a partir disso, a escravidão. Portanto, o estado e a escravidão andam de mãos dadas, diz ele. Não se percebe aqui como a história da escravidão de pessoas racializadas, e especificamente de pessoas negras ou com descendência Africana, no mundo ocidental é o espectro assombroso dessa afirmação. Portanto, o anarquismo e seu antiestatismo devem levar em conta como a negritude pode quintessenciar a condição de estar sujeito à escravidão. Abolir a escravidão exige a libertação da negritude, tornando o anarquismo um projeto emancipatório que tem em sua base o enfrentamento da negritude – o que significa dizer anarquismo negro.

“O gênero, construído binaristicamente, reside no centro da estrutura da sociedade. O binário de gênero é regulado pela lei, pelas instituições, pela religião, pela medicina e por várias outras autoridades sociais e societárias – assim, um afastamento radical do estado exige um afastamento radical dos gêneros compulsoriamente binários.”

Mas essa não é a totalidade do anarquismo negro, pelo menos para mim. Não é o movimento que estou interessade em fazer. Pouco me importa apontar o racismo ou o solipsismo branco dos anarquistas clássicos. Meu interesse está em como o anarquismo negro introduz uma mudança qualitativa fundamental que essencialmente anarquiza o anarquismo. Faço isso por meio do engajamento com o feminismo negro e com os feminismos queer e trans.

O feminismo negro como parte do anarquismo negro é um engajamento necessário com o anarcofeminismo. Historicamente, as pessoas chamadas anarcofeministas têm insistido na natureza generificada do capitalismo e do poder. Elas perceberam que, embora os anarquistas homens admitissem que o patriarcado está ligado à classe, também era necessário um entendimento fundamental de que as experiências sob o capitalismo são distinguidas e infligidas pelo gênero. Tradicionalmente, o anarquismo relegou o trabalho anárquico revolucionário à esfera pública, como se o local de trabalho público e assalariado fosse o único lugar onde o trabalho e a mão de obra estivessem sendo realizados e do qual as pessoas precisassem ser libertadas. Então, anarcofeministas têm insistido que a família e a esfera doméstica também são áreas válidas de conflito anarquista.

Mas é claro que há uma elisão aqui. A suposição implícita de que todas as mulheres ocupam o local de trabalho doméstico não remunerado deixa de considerar como as mulheres negras, em particular, têm uma relação peculiar com essa diferenciação simplista entre local de trabalho e vida doméstica, porque as mulheres negras geralmente trabalham na casa de outras pessoas, geralmente para mulheres brancas. A tarefa do anarcofeminismo está longe de se tratar de um feminismo deturpado, estilo empoderamento feminino, que apenas deseja substituir os homens do 1% no topo por mulheres cisgêneras. O anarcofeminismo não significa poder corporativo feminino ou uma mulher presidente. Significa nenhum poder corporativo e nenhum presidente.

Faço referência ao feminismo negro de pessoas como as do Combahee River Collective e ao que elas escrevem em sua famosa declaração feminista negra de 1977. Elas não se dizem anarquistas, mas sim socialistas. Mas estou curiose para saber como parece que o socialismo delas provoca alguém como Marx e, essencialmente – por meio de seu feminismo negro – anarquiza Marx e o socialismo. Se anarquistas defendem, com bastante veemência, que até que todes sejam livres, ninguém é livre, então podemos notar o anarquismo expresso do Combahee River Collective quando argumentaram que se as mulheres negras fossem livres, isso significaria que todos os outros teriam de ser livres, já que a liberdade das mulheres negras exige a destruição de todos os sistemas de opressão.

Isso significa que uma manifestação honesta da política anarquista precisa lidar com o feminismo negro – e tê-lo como base. Como um rápido aceno, devo destacar o recente livro de Saidiya Hartman, Vidas Rebeldes, Belos Experimentos, que discute lindamente o que ela chama de “a anarquia das meninas de cor”, ligando ainda mais as mulheres negras e o feminismo negro ao anarquismo.

É dessa forma que o feminismo negro está ligado ao anarcofeminismo, que está ligado ao anarquismo negro. Em termos de feminismo queer e trans, que é uma das minhas outras áreas de especialização, recorro com frequência a um grupo como o Whore Dyke Black Trans Feminist Network[6], que insiste no que chamam de “dinamitar o binário de gênero” como prática política. Ao explodir o binário de sexo e gênero, rejeitamos a distinção entre a naturalidade do sexo e a suposta culturalidade do gênero. O anarquismo negro e trans feminista não aceita tais distinções e insiste em observar a construção coercitiva e imposta externamente do sexo e do gênero. Os binários de sexo e gênero, portanto, são imposições autoritárias, coagidas e hierarquizadas que – à moda anarquista – precisam ser dizimadas.

A forma como somos classificades em termos de gênero é um produto de como o estado e seus vários aparatos procuram disciplinar, produzir, coagir e hierarquizar diferentes desejos, corpos e comportamentos. Há um interesse político e ético na questão do gênero que se torna anarquicamente pertinente quando o vemos não como um fenômeno natural não mediado, mas como uma produção histórica que serve aos interesses do estado. Assim, os anarquistas preocupados com o gênero – e essas pessoas têm sido chamadas de “radicais sexuais anarquistas” – argumentam que o gênero, tal como interpretado binaristicamente, está no centro da estrutura da sociedade. O binário de gênero é regulado pela lei, pelas instituições, pela religião, pela medicina e por várias outras autoridades sociais e societárias – portanto, um afastamento radical do estado exige um afastamento radical dos gêneros compulsoriamente binários.

Minha concepção de anarquismo negro exige que, à luz desses radicais sexuais anarquistas, também se tenha uma relação queer e trans com a socialidade. A imposição de gênero pode ser o diretor executivo do estado – portanto, desviar-se do estado e enfraquecê-lo exige um desvio e enfraquecimento do regime coercitivo de gênero. A queeridade e a transgeneridade constitutivas do anarquismo negro exigem, então, que se tenha o que eu chamaria de uma relação trans com a normatividade e, especificamente, com o gênero normativo – que não é meramente a roupa que se usa ou como se identifica ou a inflexão da voz, mas uma mobilização relativa de efeitos subjetivos de gênero.

Expressar uma relação trans com a normatividade de gênero é implantar sociopoliticamente o próprio gênero, bem como a socialidade de gênero – a forma como a esfera social é definida e ditada pelo gênero – de maneiras não normativas e subversivas que geram um mundo diferente, talvez até desgenerificado (para usar a linguagem de Hortense Spillers). No livro, eu enquadro tudo isso na análise da anarco-negritude.

CM: Você escreveu, “Seguir e desviar-se do caminho surrado e invicto da história da negritude, uma história que é sempre/já queer, sempre/já feminista negra e, mais fundamentalmente, sempre/já trans e não-normativa, é trazer um arquivo de radicalidade que rompe todos os principais limites da socialidade e da subjetividade.”

Se as vidas negras são sempre radicalizadas, por assim dizer, o que explica o conservadorismo negro – especialmente o dos conservadores negros “lei e ordem”, como os discutidos no trabalho de James Forman Jr.? Ou esse conservadorismo negro também é radicalizado de certa forma?

MB: Preciso ser muito cuidadose com a linguagem aqui e, inevitavelmente, vou irritar algumas pessoas. De qualquer forma, já estou acostumade com isso. Eu diria que não é que as vidas negras estejam em si sempre e já radicalizadas, mas a negritude e talvez até mesmo a vida negra é o que está sempre e já radicalizado. Eu entendo negritude – já tive muitos problemas com isso antes – não como uma categoria identitária. Não é algo que se possui e que se é, sem qualquer outra ação, mas está ligada a uma certa noção de um projeto anti-catividade, ou o que Fred Moten chamaria de fugibilidade, ou um sensorium que denota uma certa relação com o habitar o mundo, uma certa relação com a normatividade e a hegemonia. É assim que entendo a negritude: não como algo que se possui, mas como um modo diferente de habitar o mundo.

“Se o estado é a principal causa da violência e cria as próprias condições que forçam as pessoas a agirem da forma que o estado considera violenta, poderia ser razoável que uma eliminação anarquista do estado – que é novamente uma instituição e um sistema, bem como um modo de se relacionar com os outros e com nós mesmes – reduziria radicalmente o que é considerado como crime, possibilitando o engajamento no que os abolicionistas consideram como justiça transformadora, ou formas de responsabilização, reparação e cuidado geridas comunitariamente, solidárias e não-punitivas.”

Digamos o nome de um conservador negro. Clarence Thomas – seja quem for – é de fato alguém que está demonstrando um certo tipo de branquitude. Essa pessoa está praticando a branquitude, está fazendo o trabalho do estado, está fazendo o trabalho da supremacia branca, independentemente de sua negritude fenotípica. Não estou interessade em pensar de forma simplista. É por isso que o projeto de anarquismo negro está menos interessado em pessoas negras que são anarquistas, mas sim no espírito, na maneira de pensar sobre um certo tipo de irreverência em relação à normatividade e à hegemonia – é assim que estou entendendo a negritude.

A “negritude” de alguém como Clarence Thomas é simplesmente epidérmica. Ele – e outros conservadores negros como ele – está, em grande parte, demonstrando uma imersão na branquitude. A branquitude é uma besta bastante indiscriminada, e assume qualquer pessoa que esteja disposta a assumir esse tipo de visão de mundo, trabalho e perspectiva. Essa é uma afirmação controversa, e estou citando Fred Moten em seu artigo “Black Op”, mas o outro lado da moeda é: se a branquitude pode assumir qualquer pessoa, isso também significa que a negritude pode assumir qualquer pessoa. Fred Moten disse que qualquer pessoa que a negritude assume – ou seja, todo mundo – pode assumir a negritude.

A negritude, portanto, não se trata de uma determinada cor de pele – que, para mim, é algo incrivelmente vazio enquanto forma de existência política e politizada. Em vez disso, é uma determinada maneira de habitar o mundo de forma opositiva não-normativa e subversiva. Resposta curta: os conservadores negros não são negros – ou não estão fazendo negritude. Vou colocar as coisas dessa forma. E estou colocando minhas cartas na mesa com isso.

CM: Você escreve, “Anarco-negritude expressa o que pode ser entendido como um anarquismo negro, na medida em que designa a desordem espontânea[7] que gera a possibilidade de viver sem limites legais, ou seja, sem limites de violência e circunscrição”.

Até que ponto o problema com o policiamento é que a lei é, como você diz aqui, uma questão de violência?

MB: A lei, o capitalismo e o estado estão impregnados de violência. Todas essas coisas realmente se baseiam no monopólio da violência e na distribuição da violência.

A questão da violência é uma das que surgem com frequência quando se pensa em anarquismo. Uma crítica frequentemente feita ao anarquismo é que, ou o próprio anarquismo, em si, é violento, ou que não tem um plano em relação à violência e ao crime. Mas essa crítica já começa com um passo em falso e um descuido grosseiro: o principal progenitor da violência é o estado e suas várias entidades e tradições legais e institucionais sancionadas – a saber, o capitalismo e seus inúmeros malefícios: os militares, a conquista colonial e imperial, a extração ambiental, a exploração, a propriedade privatizada, sem mencionar o sistema de punição criminal.

Em termos de estado, em termos de lei, em termos de execução da lei – que é literalmente uma linguagem violenta: execução da lei – em termos de tudo isso e de sua violência geradora, estritamente como um edifício governamental, o estado está repleto de violência. Ele é gerado a partir de e por meio da violência da concessão da pobreza – a pobreza é de fato conferida. Não é simplesmente um estado em que a pessoa se encontra, mas um status e uma circunstância impostos. Ele leva à morte prematura, ou à morte sancionada pelo estado, como observaram abolicionistas como Saidiya Hartman e Ruth Wilson Gilmore, por meio da privatização da propriedade e da terra, que tem gerado uma enorme população sem moradia, e de práticas exploratórias de empréstimo, aluguel e compra, que alguém como Keeanga-Yamahtta Taylor descreveu brilhantemente em seu livro Race for Profit [Corrida pelo Lucro]. Além disso, o estado, ao literalmente possuir prisões e aprisionar pessoas, comete vários tipos de violência. Isso sem mencionar as inúmeras políticas que impedem o florescimento da vida e o acesso irrestrito à assistência médica e à simples movimentação no terreno social.

Isso ocorre em uma escala imensa que excede em muito uma janela quebrada ou um nariz quebrado. A violência ocupa todos os lugares, ao que me parece, na política governamental partidária. Ela está na distribuição do poder, e o poder é executado pelo uso da violência. Não há poder sem que ele seja executado, e essa execução é um certo tipo de violência: exércitos, forças policiais, demarcação de fronteiras, etc. Esse é o tipo de violência que passa despercebido ou é evitado nas críticas ao anarquismo por este ser ou não ter um plano para a violência.

Recentemente, saiu uma manchete muito elucidativa que dizia algo como: “Violência irrompe em universidade após vigília por estudante morto pela polícia”. A violência ocorre após o assassinato literal de uma pessoa? A polícia não cometeu nenhuma violência, nessa lógica. É somente quando as instâncias do estado são danificadas, criticadas ou questionadas que a “violência” acontece. Portanto, o que se qualifica como violência não é a violência precipitante – o assassinato policial sancionado pelo estado – mas a resposta a essa violência.

Se o estado é a principal causa da violência e cria as próprias condições que forçam as pessoas a agirem da forma que o estado considera violenta, poderia ser razoável que uma eliminação anarquista do estado – que é novamente uma instituição e um sistema, bem como um modo de se relacionar com os outros e com nós mesmes – reduziria radicalmente o que é considerado como crime, possibilitando o engajamento no que os abolicionistas consideram como justiça transformadora, ou formas de responsabilização, reparação e cuidado geridas comunitariamente, solidárias e não-punitivas.

Quero enfatizar que o próprio tema da violência é incrivelmente espinhoso. Não tenho a capacidade intelectual para analisar todas as nuances, por isso quero indicar três diferentes referências. A primeira é Judith Butler, que publicou um novo livro há alguns meses chamado The Force of Non Violence (A Força da Não Violência), que defende – e de forma persuasiva – a não-violência como uma estrutura organizadora para o ativismo e a justiça, na medida em que oferece a melhor chance de mitigar a disseminação da violência no mundo. Não se trata de simplesmente ser pacífico, seja lá o que isso signifique, mas principalmente de nos organizarmos em torno da questão de como podemos existir entre nós de forma menos violenta.

Eu também poderia citar Angela Davis nessa conversa. Ela simplesmente arrasa nessa entrevista que aparece em um documentário chamado The Black Power Mixtape. Ela observa que perguntar ao Partido dos Panteras Negras, ou a pessoas negras em geral, se acham que a violência é justificada é absurdo, porque eles estão vivendo em meio à violência decretada e imposta. Em resumo, “Como ousa?” pergunta Angela Davis. Como você ousa perguntar à pessoa negra que vive em meio ao terror e ao assassinato e à violação sancionados se a violência que está sendo infligida é justificada? Elas foram criadas na violência. Que escolha havia para não praticar o que pode ser chamado de violência? A reação não se encontra no mesmo plano da violência inicial que a precipitou.

A pessoa com quem vou finalizar, em uma espécie de floreio poético, é ume poeta não-binárie chamade Andrea Gibson[8], cujo trabalho é absolutamente incrível. Elu têm uma frase que diz simplesmente, “Acredito que existe algo como um punho não violento”. É algo que eu absolutamente adoro, então vou terminar por aqui.

CM: Marquis, estou muito feliz por você ter voltado ao programa esta semana. Muito obrigado por estar de volta.

MB: Agradeço, foi um grande prazer.


[2] N.T.: o livro ainda não possui tradução para o português. Encontramos diferentes traduções para seu título: “Anarco-Negritude: Notas Rumo a um Anarquismo Negro”, “Anarco-Negritude: Rumo a um Anarquismo Negro” e “Anarco-Negritude: Notas para um Anarquismo Negro”.

[3] N.T.: trocadilho em inglês, em tradução livre, “dedo-duro leva pontos”, ou “X9 leva pontos”. Significa que quem é dedo-duro sofrerá alguma reprimenda.

[4] N.T.: Marquis Bey usou a expressão “by design”, que em inglês se refere a algo feito, por assim dizer, “desde sua concepção”, algo que foi feito “de modo a” acarretar em algo ou expressar algo.

[5] N.T.: alguns dos termos reproduzidos foram mantidos no original, pois a contração do sufixo referido ao português é distinta de seu uso em português, ou porque a tradução literal não faria sentido. O prefiro “Un-“ em inglês é como o prefixo “Im-“ ou “Des-“ em português, e remete à negação, “sem”, ou a desfazer algo. Assim, seguem os termos e suas respectivas possíveis traduções: “Unblack” [black significa preto/negro], “Ungovernable” [governable significa governável], “Unpropertied” [propertied significa transformado em propriedade], “Uncouth” [uncouth significa algo grosseiro], “Unhinged” [hinged significa algo sob amarras/algo que está preso] e “Uncontrolled” [controlled significa controlado].

[6] N.T.: Rede Puta Sapatão Negra Trans Feminista, em tradução literal.

[7] N.T.: aqui, se utilizou o termo “gratuitous”, que significa “gratuito” em tradução literal. Contudo, para fazer jus ao sentido empregado à frase, optamos por traduzir como “espontânea”, ou seja, como algo que não envolve uma relação de troca, no sentido tantas vezes pensado por Marquis Bey.

[8] N.T.: percebemos que no momento dessa entrevista, o nome de Andrea era outro. Optamos por utilizar seu nome atual, como consta em seu site.