Título: Karl Marx, a tênia do socialismo
Assuntos: Karl Marx, Socialismo
Fonte: JOYEUX, Maurice; et al. Os anarquistas julgam Marx. São Paulo: Imaginário, 2001. pp. 13-27.

Há cem anos desaparecia Marx. [1] As sociedades comunistas vão comemorar o evento tocando címbalo, mais ostensivamente na Rússia e nas democracias populares, e com menos fausto por parte dos partidos comunistas ocidentais onde se tem mais dificuldade de fazer coincidir as profecias do "Grande Sachem"[2]. com os imperativos impostos pela evolução econômica e social da humanidade. Entre os cidadãos que rejeitaram o marxismo, falar-se-á dele com esta ignorância e este despreendimento inevitáveis, com os quais se fala dos personagens que representaram um papel, mas que o tempo atenua sem apagar completamente.

Fora de uma obra ideológica discutível, e pelo lugar que ele ocupa na história, Marx merece algo mais que os propósitos ditirâmbicos de uns ou a indiferença de outros. Seu destino, simultaneamente complexo e apaixonante, desposa sua época. Ele nasceu no início de um século que vai parir uma transformação prodigiosa da economia que tornará o lugar outrora ocupado pela filosofia na preocupação intelectual dos homens, e em um tempo em que as mutações se realizam numa cadência desconhecida desde as origens. Pertencerá a um grupo de ideólogos que, assim como ele, tomaram consciência do futuro que espera a sociedade, acompanhando-a intelectualmente durante a primeira parte de sua existência. O destino desses homens, com imenso desejo de compreender, conhecer, explicar e, enfim, pensar a evolução que se delineava, será o de dar uma forma primeira ao que se pode chamar, no sentido mais amplo do termo, o socialismo. Eles reivindicarão o termo em voz alta, antes que suas diferentes contribuições pessoais conduzam as elites a singularizá-Ias por uma fórmula particular que atesta melhor seus propósitos. Essa fórmula delimitará suas conquistas teóricas e sublinhará suas ambições particulares.

Eles são, aliás, e Marx mais do que os outros, os herdeiros de Ricardo, economista inglês, que para definir o percurso da livre-troca na economia capitalista em seu começo, estudará com minúcia os elementos da produção, da distribuição e determinará a parte respectiva do salário e do lucro. Entre esses homens que vão tomar um caminho paralelo ao de Marx, alguns nomes: Saint-Simon, Fourier, Pecqueux, Cabet, Considérant, Proudhon, Engels, Bakunin, Kropotikin, Louis Blanc, Blanqui e tantos outros ainda que reivindicarão cada um deles um socialismo à sua maneira. Entretanto, é incontestável que é Karl Marx quem fará a penetração mais espetacular no tempo, como também é ele quem suportará melhor o passar do tempo, por razões que não são todas devidas ao talento ou à evolução econômica, mas igualmente aos avatares que determinam o caminho seguido por este sistema capitalista por ele condenado e que conseguirá superar suas contradições. Dentre os homens que foram simultaneamente seus contemporâneos e seus adversários, só Pierre-Joseph Proudhon terá um destino comparável ao seu. E hoje, servindo-se do que resta atual de suas obras, é ainda, é sempre Marx e Proudhon que se lançam à frente das escolas socialistas que se afrontam.

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É bem conhecido que no início dos anos 1840 o projeto dos jovens hegelianos alemães, agrupados em torno de Karl Marx, e que se chamam Grün, Ewwerbeck, Weitling, Rüge e alguns outros, sonha com uma "Santa Aliança" intelectual com os socialistas franceses, a fim de operar uma síntese entre a filosofia francesa e a filosofia alemã. Projeto difícil, pois o socialismo francês naquele momento encontra-se fragmentado e, Proudhon à parte, veicula o mal cheiro do jacobinismo saído das grandes horas da Revolução Francesa de 1789. Mas o principal obstáculo a este internacionalismo em desenvolvimento será a confusão ideológica que tem por fonte a obra de Hegel, mal lida ou mal digerida. O jornal que devia ser o suporte desta aliança, Os Anais Franco-Alemães, só terá um número. Entretanto, "o cartaz" poderia ter sido sensacional se se acrescentasse aos nomes já citados os de Engels e de Bakunin. Todos esses homens reunidos durante um curto instante em Paris para um grande trabalho, reprimidos em seguida pelo rei burguês Luis-Felipe, inquieto por esta invasão intelectual, vão se dispersar pela Europa e, durante esses quatro anos (1844-1848) que precedem os espasmos revolucionários que vão agitar as velhas autocracias européias, provocam o aprofundamento das diferenças que os opõem, esboçando o que será mais tarde o mapa ideológico do socialismo pelo mundo.

Entre o humanismo ateu de Feuerbach, o deísmo de Louis Blanc, o jacobinismo centralizador de Marx, e o economicismo igualitário de Proudhon, a margem de acordo é muito pequena. Mas os jovens hegelianos alemães não se considerarão vencidos, e Marx, depois Grün, tentarão converter Proudhon à dialética de Hegel. Proudhon, que não fala alemão, não leu Hegel. O que lhe dizem seus amigos alemães sobre o assunto irá inflamar sua imaginação a tal ponto que o levará a criar sua própria dialética: a "dialética serial", que ele proclamará bem superior àquela do filósofo alemão, e cuja demonstração assentará sobre as antinomias, quer dizer, sobre as contradições nas quais vai procurar o equilíbrio numa obra espessa e confusa: Sistema das Contradições Econômicas, mais conhecida sob o título Filosofia da Miséria. Afirmou-se que foi por causa desse livro que ocorreu a ruptura entre esses dois homens, e é verdade que Miséria da Filosofia, onde Marx, com uma vivacidade incontestável, percorre a obra de Proudhon, permanecerá o símbolo dessa ruptura; apesar desta já ter sido consumada, ela foi o fruto das querelas que agitavam os jovens hegelianos alemães. Até então Marx tinha se adaptado às diferenças entre seu socialismo e o de Proudhon, e tinha inclusive tomado a defesa deste último em seu livro A Sagrada Família. Naturalmente, estas diferenças tinham sido por ele sublinhadas, mas ele não perdia a esperança de conduzir Proudhon ao terreno puramente econômico, que será mais tarde o do materialismo histórico e dialético. O homem é ambicioso, seu caráter é intratável e, assim, tentará envolver Proudhon nas querelas que opõem os socialistas alemães. Proudhon recusa-se a se deixar arrastar por querelas que não lhe concernem, e será a ruptura.

Conhecemos as duas cartas que delineiam perfeitamente o caráter diferente dos dois homens. A carta de Marx onde, em um post-scriptum, vomita sua bílis sobre Grün, e a resposta de Proudhon, cheia de dignidade, pedindo a seu correspondente que mantenha as "discussões necessárias sobre o plano das ideias". Esta correspondência é interessante pois situa Marx com exatidão em suas relações com os socialistas de seu tempo. É exemplar para nós anarquistas, pois retrata a parte do homem no funcionamento intelectual que resulta na criação teórica. Quando toma conhecimento de Miséria da Filosofia, que é uma crítica de sua obra Filosofia da Miséria, Proudhon fará esta simples reflexão: "Marx diz a mesma coisa que eu; o que ele me censura é o fato de tê-Ia dito antes dele", o que é discutível. Ele acrescentará: "Marx é a tênia do socialismo".

Esta atitude de Marx diante dos homens que aparecerão como seus adversários jamais será desmentida, e um pouco mais tarde, quando expulso da França e refugiado em Bruxelas, vai outra vez espalhar calúnias, desta vez contra Bakunin. Servindo-se de uma confidência que George Sand ter-lhe-ia feito, vai acusar o revolucionário russo de ser um agente do czar. Esta, obviamente, o desmentirá, e estamos de posse de sua carta a Bakunin em que ela se indigna por tais procedimentos. O que pensam vocês que fez Marx? Desculpou-se? Apenas tomou conhecimento do desmentido e tentou justificar-se, mostrando a necessidade de proteger o movimento revolucionário das ações da polícia dos governos capitalistas. O procedimento é indecente e parte da clássica ideia: caluniem, caluniem, alguma coisa disso permanecerá! Esta atitude o deixará durante anos à margem do socialismo francês, e apenas os blanquistas, quando tiverem aderido à Internacional, fornecer-lhe-ão um público flutuante. Proudhon eliminará Marx e sua obra – que por sinal só entrará na França muito mais tarde – de suas preocupações. Mas se Proudhon e os socialistas franceses ignoram Marx, este, por sua vez, não os ignorará e consagrar-lhes-á um certo número de artigos que, reunidos mais tarde, formam um volume: A Luta de Classes na França, que não deixará de ser interessante, e no qual ele critica severamente o Banco do Povo de Proudhon. É, nesta ocasião, que ele fala pela primeira vez "de um socialismo pequeno-burguês com o projeto de associar o assalariado e o capital". Propósitos evidentemente injuriosos que serão propagados contra os anarquistas até nossos dias pelos asnos que pastam com dificuldade na prosa do mestre. Seu livro, Crítica da Economia, é uma resposta ao projeto de crédito gratuito exposto por Proudhon em Idées Générales sur la Révolution. Entretanto, os homens terão de escolher entre estas duas ideias abruptas: é o meio que modifica o homem como quer o materialismo histórico de Marx, ou é o homem que modifica as circunstâncias como proclamava Proudhon? Na realidade, a verdade é diferente dos argumentos que esses homens apaixonados se lançam no rosto. O homem modifica o meio que o agita e inscreve-se no meio que guia seus procedimentos. Mas o que dá ao materialismo dialético um aspecto tão superficial quanto o da redenção é o fato de ser impossível delimitar exatamente a parte do homem e do meio, e o instante em que um e outro intervêm, o que torna irrisória esta caminhada inelutável traçada pelos evangelhos políticos ou religiosos e deixa ao homem, "independente de Deus ou de Marx", o cuidado e a responsabilidade de traçar seu caminho a qualquer momento que seja!

Naquela época, contudo, a influência de Proudhon aumenta, e em sua correspondência com Engels, Marx se precipitará sobre sua caneta para caluniar uma última vez seu adversário que, diz ele, é "uma contradição viva". Todavia, não consegue acabar com Proudhon, pois o reencontrará, ou melhor, reencontrará sua influência no seio da Primeira Internacional, antes de se chocar com outro anarquista, Mikhail Bakunin! Convém ainda ressaltar que durante todo esse primeiro período, o rancor e a vaidade do personagem vão se chocar com outros representantes do socialismo alemão que tentará subjugar com a cumplicidade de Engels.
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É justamente na volumosa correspondência que mantém com Engels que Marx revela melhor sua verdadeira personalidade. Os revolucionários daquela época, que não dispunham de nossos meios modernos de informação, mantiveram uma correspondência volumosa. Esta prosa epistolar, que tem a vantagem de nos fazer penetrar nos "segredos de alcovas" políticas, nas quais estes senhores lavam sua roupa suja em família, nem sempre é apetitosa. Aliás, adivinha-se, pelo estilo dessa "Correspondência", dessas "Anotações", desses "Bilhetes" que, por falso pudor, pretende-se conservar para si, mas que na realidade são escritos para serem publicados "depois", quando, na falta do juízo de Deus, soará o dos homens. É nessas correspondências "confidenciais" que as opiniões se manifestam, que os caracteres se delineiam, que os ódios aparecem com maior clareza. Nesse campo, a correspondência entre Marx e Engels, sobre Proudhon, Bakunin e alguns outros, é edificante.

Naquela época, novamente em relação a Bakunin, a calúnia percorre a Europa. Acusam-no de ter escapado da Sibéria com a cumplicidade da polícia do czar. Foi em Londres, em 1866, que Fess Press publicou um artigo criticando o revolucionário russo. Marx sempre se defendeu de ter sido o inspirador deste artigo, mas ele escrevia nesse jornal, cujo editor, Urquhart, era um de seus amigos, e no qual, um outro amigo, Ewwerbeck, colaborava. Estamos diante de uma tática que Marx aplicará durante os primeiros anos da Internacional e que consiste em se servir de outros para tecer as sujas calúnias contra o adversário. E é desde a criação da Internacional que a bílis do personagem vai derramar-se com toda a cólera. Bakunin não escapará disto, mas, após uma destas hipocrisias, nas quais ele é mestre, Marx reconcilia-se com seu adversário do qual espera se servir - seguindo um louvável hábito - contra Mazzini.

A Internacional nasceu em Londres de diversos encontros entre trabalhadores franceses e ingleses, e chegou-se a dizer que "esta criança nascida em Londres tinha sido gerada nas oficinas parisienses". No meeting, assim como na primeira sessão, Marx assistiu apenas como espectador. Foi mais tarde que, encarregado de esmerilar um texto da seção parisiense apresentado por Tolain, e que se tornará a Mensagem Inaugural, penetrou e incrustou-se na seção da organização. No início se resguardou de representar um papel público. Marx é homem da sombra. É interpondo alguém que ele vai se esforçar para barrar os "senhores proudhonianos". Para estes trabalhos de solapamento ele se servirá de vários personagens, dentre os quais o mais conhecido é Eccarius, que será seu fantoche. Todavia, foi durante o Congresso de Basiléia que a ruptura, que amadurecia sob as cinzas já há algum tempo, foi consumada.

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O Congresso de Basiléia, em 1869, foi o mais importante congresso da Internacional, e os problemas evocados há cento e vinte anos, ainda são atuais. Os temas que dominaram as discussões no congresso foram a coletivização das terras e a herança. Marx, que se tornou "secretário correspondente para as seções alemães" e que foi na realidade "permanente", conseguiu afastar os democratas, os mazzinianos, os trade-unionistas, os proudhonianos, mas teve de deparar-se com uma outra oposição dominada pela seção francesa: "os comunistas livres" animados por Eugene Varlin, cujas opiniões estão bem próximas das de Bakunin. Durante as discussões, dois aspectos do coletivismo se afrontam: o aspecto federalista das seções latinas, italianas, espanholas e francesas, e o aspecto centralizador dos partidários de Marx. Na realidade, esboça-se, em Basiléia, o confronto entre o socialismo comunalista e o socialismo de Estado; entre a primazia da economia e a política. No que toca à coletivização das terras, Bakunin e seus amigos vencem a parada; ao contrário, no que se refere à herança, os resultados permanecerão indefinidos. Marx, que segundo seu hábito, encontra-se ausente, porém representado pelo inevitável Eccarius, vai marcar um ponto importante. O Conselho Geral ao qual ele pertence e o qual domina, reforçará seus poderes graças a Bakunin que prepara o chicote com que seu adversário o chicoteará mais tarde. O revolucionário, em seguida, reconhecerá ter-se enganado profundamente.

Bakunin, naquela época, ainda teve de defender-se contra as calúnias do clã que rodeava Marx. Homens como Borkheim, Bedel, Liebknecht deram continuidade à ação em seu jornal Zukunft. Forçado a explicar-se diante de um júri de honra, Liebknecht foi condenado, o que não impediu Hess de publicar em Le Réveil que Bakunin, à frente de um partido russo, teria tentado, em Basiléia, impor seu pan-eslavismo para resultar em uma greve social que permitiria aos bárbaros do Norte rejuvenescer a civilização moderna. Bakunin responderá com muita franqueza, e Herzen o censurará por não ter atacado Marx diretamente ao invés de seus lacaios.

Essas querelas em torno do Congresso de Basiléia vão provocar reações antissernitas lamentáveis e polêmicas em que os problemas pessoais têm tanta importância quanto as oposições ideológicas. Mas é quando eclode a guerra franco-alemã que a duplicidade de Marx torna-se evidente. Conhece-se a mensagem dos trabalhadores franceses aos trabalhadores alemães para se oporem à guerra. Varlin escreve:

Irmãos alemães, em nome da paz, não escutem as vozes estipendiadas ou servis que procuram vos enganar sobre o verdadeiro espírito da França. Permaneçam surdos às provocações insensatas pois a guerra seria para nós uma guerra fratricida. Permaneçam calmos como pode fazê-lo, sem comprometer sua dignidade, um grande povo, forte e corajoso. Nossas divisões nada mais fariam que conduzir às duas margens do Reno o triunfo completo do despotismo.

É certo que Marx, em nome do Conselho Geral da Internacional, faz publicar um texto que conclama à solidariedade entre os operários franceses e alemães, onde se lê esta frase ambígua: "A guerra do lado alemão deve permanecer uma guerra defensiva". Todavia, o verdadeiro pensamento do personagem diante desta guerra é sua correspondência com Engels que nos faz conhecê-lo. Eis uma amostra dessa prosa:

Os franceses precisam de uma surra. Se os prussianos forem vitoriosos, a centralização do poder de Estado será útil à centralização da classe operária alemã. A preponderância transferiria, além do mais, da França para a Alemanha, o centro de gravidade do movimento operário europeu. Basta comparar o movimento de 1866 até hoje, nos dois países, para ver que a classe operária alemã é superior à classe francesa no plano da teoria e da organização. A preponderância, no teatro do mundo, da classe operária alemã sobre a francesa, significaria simultaneamente a preponderância de "nossa" teoria sobre a de Proudhon.

A preponderância sobre Proudhon, eis qual é a preocupação do personagem enquanto a guerra devasta. Estas frases soam como o prelúdio a outras frases pronunciadas por Lenin, em seguida por Stalin, nas quais a vida humana conta muito pouco diante da ambição desmedida destas grandes feras da política. Um certo número de internacionalistas franceses, não querendo ficar à margem, acusará Marx e seu bando de estarem a serviço de Bismarck; e quando se engaja neste terreno nenhum absurdo é negligenciado; acusar-se-à Bismarck de ter pago a Marx 25.000 francos. Mas não se compreenderia muito bem o absurdo aonde levam estas "grandes cabeças" em delírio se não se lesse esta carta de Engels a Marx:

Minha confiança na força militar cresce a cada dia. Fomos nós que ganhamos a primeira batalha séria. Seria absurdo fazer do antibismarckisrno nosso princípio diretor. Bismarck, como em 1866, trabalha para nós, a seu modo...

Mas para conhecer bem o cinismo do personagem, não hesito em lembrar estas linhas de Marx e Engels:

Esses indivíduos (os parisienses) que suportaram Badinguet durante vinte anos; que há seis meses não puderam impedir que ele recebesse seis milhões de votos contra um milhão e meio... Essas pessoas pretendem agora, porque a vitória alemã presenteou-lhes uma república (e qual?), que os alemães deixem imediatamente o solo sagrado da França, caso contrário, guerra total... É a velha presunção! Espero que essas pessoas readquiram o bom senso, passada a primeira exaltação, caso contrário, será bem difícil continuar as relações internacionais com eles.

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A guerra fragmentou a organização operária francesa, e a Comuna será o último sobressalto para reconstruir um movimento revolucionário importante. Marx vê no evento a possibilidade de destruir a influência proudhoniana e eliminar Bakunin. Ele escreve a Engels: "Este russo, está claro, quer se tornar o ditador do movimento operário europeu. Que ele tome cuidado, caso contrário será oficialmente excomungado". E ele vai se esforçar para fazê-lo: serve-se de sua posição na Internacional para denunciar como heréticos os partidários do revolucionário russo. Não perde de vista, contudo, a influência de Proudhon sobre o movimento operário francês, e quando da insurreição parisiense que resulta na proclamação da primeira República, condenará os internacionalistas que se recusam a associar-se ao boicote da insurreição pela burguesia liberal; ele se encontrará em oposição a Eugêne Varlin e seus amigos, bem como aos blanquistas mais ou menos influenciados por ele. Em particular, ele condenará a tomada de posição de Bakunin durante a insurreição de Lyon. É verdade que Marx escreveu sobre a Comuna de Paris seu melhor texto, A Guerra Civil na França, mas não se pode esquecer que, temendo rever a predominância do socialismo francês na Internacional, tinha feito anteriormente todos os seus esforços para desencorajar a insurreição e ordenar o socialismo francês à sombra dos liberais que tinham tomado o poder.

A guerra e a Comuna vão delimitar claramente as correntes de opinião no que resta da Internacional. A organização se fraciona. As seções latinas escolhem a corrente federalista; as seções anglo-saxãs, a corrente centralista. Os internacionalistas suíços constituem duas federações rivais, e se a seção belga conserva sua unidade, é igualmente estremecida pelos despedaçamentos da Internacional. O fim está próximo; ocorre no congresso organizado em Haia, em 1872, e do qual Marx participa pela primeira vez. Marx espera eliminar Bakunin servindo-se do caso Netchaiev. Este não serviu, mas ele tem um outro de reserva: é o famoso caso da tradução em russo do livro de Marx, O Capital, empreendida por Bakunin. Esta tradução, pela qual Bakunin tinha recebido um adiantamento, nunca foi terminada, talvez pela influência de Netchaiev que achava que o revolucionário russo devia consagrar-se por inteiro à propaganda.

E esta máquina de guerra que foi o Congresso de Haia, montado por Marx para eliminar ideologicamente Bakunin e seus amigos, vai terminar por uma última farsa que anunciou o fim da Primeira Internacional, conquanto tenha continuado a arrastar-se antes de ir morrer nos Estados Unidos, longe de seu centro de gravidade, como se Marx, o homem que a matou, não tivesse podido visualizar seu desaparecimento banal.

O Congresso de Haia foi um congresso truncado; a maior parte dos partidários de Marx estava munida de mandatos contestados e contestáveis. Nesta manipulação aparece o caráter do personagem. Todos os meios são bons para eliminar o adversário. Enquanto a minoria é representativa das federações constituídas, a maioria marxista é sobretudo composta pelos membros do Conselho Geral, devotos de Marx. Bakunin será expulso por malversação e James Guillaume por pertencer à Aliança.

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Eu quis, neste texto, retratar o caráter de Marx e restringir-me ao comportamento do personagem, deixando de lado as oposições doutrinárias que meus colegas examinam em profundidade nos diferentes textos deste número consagrado a Marx e à ideologia marxista. Os fatos que eu apresento são conhecidos por um certo número de eruditos, mas cuidadosamente "esquecidos" pelos ideólogos marxistas e ignorados pelo grande público. Quis trazê-los à luz por diferentes razões. Inicialmente porque o personagem é fascinante, e sua vontade de predominância sobre o movimento socialista internacional é extraordinária. O desaparecimento de Proudhon, inicialmente, e de Bakunin, em seguida, não saciaram sua sede de poder, e com seu compadre Engels, buscou novos adversários em seu próprio partido, o Partido Social-democrata alemão, e tratou-os com os mesmos métodos. Mas existe uma outra razão que me leva a dissecar o comportamento de Marx. Como todos os fundadores de escolas, ele trouxe não apenas idéias aos agrupamentos que influenciava como também uma estratégia, uma tática, um comportamento que influencia seu círculo. E a social-democracia alemã, imbuída daquilo que considerava como sendo a superioridade ideológica do mestre, foi carcomida por um nacionalismo que, mais tarde, fê-Ia opor-se a [aurês e apoiar o imperialismo de Guilherme Il, como Marx havia apoiado Bismarck em seus esforços para impor a hegemonia alemã. O comportamento de Marx, assim como o dos outros socialistas alemães, consistia em unir estreitamente as pretensões nacionais àquelas, nacional e internacional, de seu socialismo.

Foi a partir do comportamento de Marx – para o qual o fim justifica qualquer meio, e menos a partir da ideologia que ele afastou cada vez que foi necessário – que Lenin construiu sua teoria revolucionária das minorias agentes. Apesar do que puderam dizer os "puristas" do marxismo, a teoria dos "dois passos adiante, um passo atrás" assim como a da "economia capitalista", prelúdio indispensável à socialização, são realmente uma herança deixada por Marx ao comunismo.

É verdade que as evoluções econômicas, o sucesso ao menos parcial da classe dirigente a sobrepor-se às suas contradições, a melhora das condições de existência das massas no sistema capitalista, a tomada de consciência do terceiro e do quarto mundo de sua exploração, não apenas por suas classes dirigentes como também pelas nações dirigentes, apresentam os problemas de modo diferente daquele exposto por Marx, e não apenas por ele. Pode-se pensar com justa razão que a ideologia socialista, nascida no século passado, tinha singular necessidade de ser desempoeirada. Se nas diferentes escolas do socialismo de hoje continua-se a saudar educadamente os mestres de outrora, e a louvar suas virtudes, "traem-se" os mestres sem nenhum complexo, só conservando de seu ensinamento as palavras cuja potência de evocação permanece intacta, palavras e métodos de dominação que não pertencem exclusivamente ao socialismo, mas que foram o apanágio de todos os autoritários desde a Gênese.

Marx foi a tênia do socialismo, ensina-nos Proudhon. É verdade! Entre Maquiavel e Lenin, sem nos determos nos outros, Marx é o traço de união que religa entre eles os despotismos intelectuais das palavras, para limpar suas vilanias.


Notas

[1] Este texto foi publicado em francês em 1983, na revista cultural anarquista LA RUE, nº 33,

[2] Sachem: palavra iroquesa. Significa velho, ancião com a função de conselheiro e chefe entre as tribos indígenas do Canadá e do norte dos Estados Unidos.