#title Anarquismo Hoje #author Miguel Amorós #date 09 de Fevereiro de 2025 #source [[https://kaosenlared.net/el-anarquismo-hoy/][kaosenlared.net]] #lang pt #pubdate 2025-06-10T11:33:38 #topics Domesticação, Estado, Conformismo, Ambiguidade, Legalismo, #notes Titulo Original: El anarquismo hoy. Tradução e Revisão por André Tunes @Centro de Análises Sistêmicas Anarco Comunista. Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor. Pensamento libertário e participação popular no século XXI Não há anarquismo mais genuíno do que aquele capaz de dirigir a si mesmo o mais implacável dos olhares críticos. Tomás Ibáñez Hoje em dia, com uma máquina estatal hiperdesenvolvida especialmente no aspecto militar subsidiada por um mercado onipresente e sem forças sociais que a questionem, a palavra “revolução” desapareceu do vocabulário dos oprimidos e explorados. Não vemos em lugar algum aquela afluência massiva de descontentes de todas as classes que torna inevitáveis as grandes convulsões sociais. Já ninguém sente a proximidade de grandes mudanças, e poucos são os que as desejam. Na verdade, a maioria as teme. Nessas condições, a rejeição do princípio de autoridade — fundamental para os libertários — esbarra no muro intransponível da resignação e do medo, condições ideais para o crescimento ilimitado do Estado. O pensamento antiautoritário, sem conseguir convergir com nenhuma revolta digna de nota, fica aprisionado na propaganda, enquanto a ação, escassa e desconectada de uma reflexão realmente subversiva, carece da “ousadia da ideia” (como diria Kropotkin) e, passados os primeiros momentos de euforia existencial, seguirá por caminhos que a contradizem até se diluir por completo. Por um lado, a paralisia do movimento operário velha de muitos anos reduziu ao mínimo as organizações anarcossindicalistas, eixo em torno do qual girava o movimento libertário. A institucionalização burocrática da negociação trabalhista tornou muito difícil a ação direta de trabalhadores cada vez menos combativos. Por outro lado, a desintegração das ideias da modernidade — universalidade, razão, progresso — lançou o anarquismo atual — aquele que vem da ocupação de praças, da música punk e do altermundialismo juvenil — no presentismo, na interseccionalidade, no identitarismo e na perda de memória histórica. Para completar o quadro, a presença majoritária nos conflitos, em sua superfície, de membros das classes médias assalariadas fortemente identificadas com o Estado, os métodos autoritários e as leis burguesas arrastou todo movimento mais chamativo para a fluidez relativista, a confusão e o possibilismo. Com o proletariado radical evaporado e consolidada a mentalidade da pequena burguesia, em vez de minar a supremacia do Estado e corroer o respeito aos governos, o protesto social tende a se autolimitar em suas reivindicações e a se encerrar no local, sem de fato colocar em xeque a legitimidade das instituições nem questionar seriamente o jogo político da dominação. Com a desculpa de buscar resultados imediatos ou de repudiar a violência, evita-se o comprometimento, freia-se a causa revolucionária e ela é deslocada para um horizonte remoto e inalcançável. Muitos são os retrocessos que a sociedade sofreu sob o regime capitalista, e não apenas no movimento operário: na divisão do trabalho, na sociabilidade popular, na conexão entre gerações, no aumento das psicopatologias, na burocratização, e por aí vai. O sistema dominante se sofisticou e se fortaleceu à medida que, com a ajuda da tecnologia da informação e do endividamento, ampliou seu poder e aprofundou seu alcance. Como resultado, o velho esquema bipolar burguesia/proletariado já não explica mais nada faz tempo que saiu da realidade. A revolução como desfecho de um confronto de classes nesse estilo agora é impossível. Tampouco existe hoje um projeto revolucionário crível baseado nessa suposta rivalidade. A generalização do trabalho assalariado, os serviços públicos, a atomização social, o consumismo, a vigilância digital e, repitamos, a influência político-ideológica das classes médias são fatores que transformaram profundamente a natureza das classes e o equilíbrio de forças entre elas, ao mesmo tempo que suavizaram os antagonismos e desarmaram as consciências. Os mecanismos de domesticação e submissão se tornam a cada dia mais eficazes, e os meios estatais de controle social, mais poderosos. O peso esmagador do presente principal fonte de conformismo e o desprezo consequente pela memória diluíram a confiança no futuro, e com ela, a fé na utopia, onde repousavam as esperanças de transformação revolucionária. A chamada “questão social”, que antes, numa sociedade de classes em conflito, se expressava de forma unificada na meta da emancipação proletária, hoje sem um sujeito histórico que a abarque, sem uma comunidade operária que a encarne e sem um projeto social que a lidere se dispersa em uma pluralidade de problemáticas heterogêneas, separadas e limitadas aos seus respectivos movimentos “sociais”: feminista, gay, ecologista, antimilitarista, okupa, antidesenvolvimentista, pró-moradia, vegano, etc. Onde antes havia uma classe, agora transitam coletivos interclassistas diversos, cada qual com seus objetivos específicos e suas dinâmicas próprias, incapazes de se tornar um sujeito universal, já que nunca conseguirão fundir todas as causas particulares inclusive a sua numa só. Tampouco é esse seu objetivo. O traço mais comum entre todos eles é a timidez na ação e a ambiguidade em relação aos fins algo que combina bem com o isolamento voluntário, o ativismo virtual e o refúgio no presente. Nessa conjuntura, gestos sem consequência, táticas reformistas e a tendência ao acomodamento com as instituições dominam sobre alternativas reais de mudança e sobre o desejo de se auto-organizar para realizá-las. Onde faltam referências e prevalecem medidas legalistas, onde a ação vira espetáculo e o debate permanece prisioneiro das redes sociais, a participação autêntica é anulada: nesse cenário, a democracia direta não é viável. E sem democracia direta, não há revolução. Há autores contemporâneos muito pertinentes — como Bookchin, Scott, Graeber, Ellul, Mumford, Anders, Vaneigem —, mas ainda não existe um raciocínio especulativo, econômico ou científico que consiga explicar de forma convincente a totalidade do momento atual, muito menos oferecer uma base teórica completa que sirva de orientação prática. Não são tempos propícios para o debate livre entre as massas nem mesmo para o debate, ponto. A ordem dominante mantém as massas distraídas com outras ocupações. O pensamento coletivo, por isso, permanece adormecido. Como magra compensação, também não são tempos bons para ideologias progressistas ou ortodoxias do passado, sejam elas operárias ou não pois essas já se tornaram anacrônicas, assim como o conceito oitocentista de proletariado. Em contrapartida, infelizmente, estes tempos são bastante propícios para fórmulas salvacionistas como o decrescimento, o retorno ao campo, o “assalto” às instituições, o novo pacto verde ou a economia circular. Também são férteis para fundamentalismos redentores, patriotismos de campanário e catastrofismos apocalípticos frequentemente utilizados como instrumentos de dominação. Por isso mesmo, o pensamento libertário contemporâneo, se quiser ser útil, antes de tudo deve combater todo discurso irracional evitando inventar um novo credo pós-moderno, e menos ainda criar uma organização multiforme para difundi-lo. Deve desmontar as mentiras da economia, corrigir os erros da história, expor os discursos demagógicos do poder, desmascarar os delírios ideológicos e demonstrar a inutilidade perniciosa do Estado. Com esse objetivo, precisa partir criticamente da realidade tal como ela é e mergulhar nela, impulsionando, em linhas gerais, os processos de ruptura que conduzam a uma sociedade sem senhores: desindustrialização, desmercantilização, desurbanização, desmilitarização, descentralização e desestatização. É verdade que os defensores do acordo livre, da autogestão, do equilíbrio com a natureza e do comunalismo ainda estão longe de contrapor às forças da dominação uma força de maior magnitude. Mas também é verdade que pequenas batalhas vêm sendo travadas nos campos mais diversos e que, por terem sido geradas pelas contradições do mesmo sistema, estão fadadas a convergir: lutas contra os aluguéis e os despejos, pelo trabalho, por aposentadorias, contra o patriarcado, em torno da sexualidade, da alimentação, da saúde, da imigração, das prisões, das infraestruturas industriais e rodoviárias, da mídia, da defesa dos territórios, etc. Sempre que essas lutas alcançarem determinado nível e transbordarem a ordem pública, libertar-se-á energia suficiente para aumentar a capacidade popular de auto-organização, solidariedade e unidade criando condições para o surgimento de estruturas comunitárias — horizontais, assembleárias, federativas —, bem como instituições autônomas, alheias ao Estado, capazes de resistir às manobras partidárias e às manipulações externas. Um clima de guerra civil favorece o despertar das iniciativas populares e o desenvolvimento intelectual e moral dos oprimidos. A destruição, como diria Bakunin, transforma-se em força criadora. Mas, num contexto de poder quase absoluto da classe dirigente, a ação construtiva provoca mais rachaduras na imobilidade imposta pelo domínio do que a ação destrutiva, que é bem menos viável. Ainda assim, a negação acompanha de perto a afirmação. Mais do que táticas internas, sejam elas violentas ou pacíficas, trata-se de estratégias de segregação e demolição. Se o que se busca é a participação igualitária na prática, mais do que pragmatismo e liderança, o essencial é o debate e a rotatividade de funções. Mais do que organização, trata-se de tecido social, de espaços de vida onde se possam repensar as relações sociais em todos os níveis ou melhor dizendo, de uma contra-sociedade rebelde, com seus próprios hábitos cooperativos e defensivos, à margem do estabelecido. E quem fala em contra-sociedade fala também em contracultura, cuja concepção e desenvolvimento têm muito a ganhar com o espírito libertário — desde que este se livre do peso morto de ideologias falidas e dos clichês da moda.