Título: As Armadilhas da Economia Social
Data: 15 e 16 de novembro de 2017
Fonte: libcom.org
Notas: O texto de uma apresentação de 2017 que examina a importância do “terceiro setor” ou “economia social”, o setor de desenvolvimento e assistência comunitária sem fins lucrativos, tem suas origens como substituto de programas governamentais hesitantes para setores excluídos da população, a sua diversificação e o crescente impacto econômico na criação de emprego; prestação de serviços e moradia, sua associação com o movimento da “sociedade civil”, sua evitação de conflitos com o poder estatal e privado e sua dependência de procedimentos e negociações parlamentares, suas cortinas ideológicas e a ascensão da ideologia dos “novos bens comuns” como delirante estratégia de retirada não conflituosa do sistema. Segunda parte de uma apresentação no “Seminário sobre Pensamento Crítico, Revolução da vida cotidiana e Organização Integral de Autogestão”, organizado pela Cátedra Jorge Alonso e pelo Centro Social Ruptura em 15 e 16 de novembro de 2017, em Guadalajara, Jalisco, México.
Titulo Original: The pitfalls of the social economy. Tradução e Revisão por André Tunes @Nucleo de Estudos Autonomo Anarco Comunista.
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.

“Neste volume, quero oferecer uma metodologia para reconhecer meios que se transformaram em fins.” Ivan Illich, Tools for Conviviality [Ferramentas para Convivência]

Atualmente, a automação dos processos produtivos e de boa parte da economia de serviços gerou um grau de desemprego estrutural cujo crescimento não pode ser contido. Quanto maior a produtividade, maior a quantidade de força de trabalho que deve ser desconectada, irreversivelmente, do circuito econômico. O desemprego tem uma repercussão no mercado de trabalho, provocando um declínio geral dos salários e mina a segurança do emprego de tal forma que os meios usuais de controle de danos, como seguro-desemprego, programas de treinamento vocacional e assistência econômica, são superados. Um abismo de exclusão está atraindo uma massa crescente de trabalhadores que estão se tornando supérfluos e desnecessários pela alta tecnologia. Uma força de trabalho inútil está se acumulando à margem do sistema produtivo, uma força de trabalho cuja gestão, dado o aspecto de uma economia de guerra que foi assumida pela economia de mercado, tornou-se problemática. Apesar da escala perturbadora de um problema que não tem solução governamental ou técnica, existe uma solução que, longe de ameaçar a estabilidade do regime capitalista, pode, de certo modo, reforçar suas instituições. Uma das propriedades típicas do capitalismo é sua capacidade de transformar qualquer realidade em um fenômeno econômico, seja uma catástrofe, um desastre ambiental ou uma guerra; consequentemente, nada impede que a exclusão também tenha seu preço, ou seja, ela também deve ser suscetível de ser transformada em mercado e obter uma listagem na bolsa de valores. Estamos falando do que eles chamam de “Terceiro Setor” nos Estados Unidos e na Europa, a “Economia Social”.

A economia social não tem nada a ver com o socialismo como foi concebido por Fourier ou Cabet, nem tem nada em comum com o movimento cooperativo dos trabalhadores do século XIX. E não tem nada a ver com os coletivos revolucionários da revolução espanhola, já que os motivos revolucionários do terceiro setor são notórios por sua ausência. Sem mencionar as revoltas dos escravos fugitivos. Essas remotas referências históricas não têm o propósito de enfatizar qualquer tipo de continuidade histórica em que o passado ilumine e guie o futuro, mas pelo contrário. Os ideólogos querem disfarçar a natureza prosaica de seus projetos socioeconômicos com as vestes heroicas de épocas passadas. O terceiro setor não é produto da luta de classes, nem é fruto de qualquer tipo de vontade comunitária; suas raízes devem ser encontradas nas iniciativas das autoridades municipais ou nacionais, muitas vezes de tendência conservadora; ou naqueles de filantropos ricos; ou na doutrina social das igrejas e nos projetos patrocinados por sindicatos moderados ou “empresariais”. Seus objetivos sempre foram variados: ajudar a classe desprotegida a sobreviver, como nos programas de incentivo à agricultura urbana durante as duas guerras mundiais ou na esteira da guerra espanhola; fornecimento de centros de atividade e terapia ocupacional para trabalhadores aposentados; planos de desenvolvimento agrário que são prejudicados pelas tradições camponesas e o baixo nível de produtividade da propriedade da terra em pequena escala; a construção de moradias baratas em um contexto de superdesenvolvimento dos bairros da classe trabalhadora; e, finalmente, a criação de emprego, para compensar as perdas sofridas pela força de trabalho das empresas vitimadas por planos de reestruturação. A relação direta contemporânea entre crise ambiental, desemprego e economia social, no entanto, é mais indicativa de uma reação reflexa instintiva no interesse da autopreservação por parte das classes médias empobrecidas sob condições capitalistas que entraram no estágio crítico, mais do que do renascimento entre os excluídos de uma predisposição genética hereditária relacionada aos impulsos associativos dos milenares. Nunca se fala tanto de comunidade, soberania, autogestão e utopia como quando elas não existem.


A matriz do terceiro setor é compreendida nas Américas pelas “Corporações de Desenvolvimento Comunitário”, nascidas nos anos 60 do século passado, a partir dos desejos de residentes altruístas e das propostas de certas instituições religiosas. Seu objetivo era compensar as deficiências dos serviços sociais e da habitação em bairros empobrecidos que haviam sido abandonados pelos municípios. Após uma fase inicial de auto-organização e trabalho de base, essas estruturas foram institucionalizadas e obtiveram fundos de programas de ajuda, empréstimos governamentais e bancários e doações privadas, e acabaram se tornando administradores de numerosos projetos de desenvolvimento local. Eles se profissionalizaram e funcionam como empresas de negócios universais: constroem casas e escolas, cultivam jardins que abastecem seus próprios supermercados, administram programas de capacitação profissional e prestam serviços relacionados à saúde para idosos, e no processo criam centenas de empregos. E o melhor de tudo, eles geram lucros1. Nesses níveis, em áreas afetadas pelo turbocapitalismo, tais organizações possuem ativos consideráveis e são responsáveis por entre 6% e 7% do emprego total, e tornaram-se uma garantia de eficácia para qualquer programa social patrocinado pela iniciativa pública. Do outro lado do Atlântico, cooperativas e sociedades mútuas, circuitos de troca estreitamente circunscritos, programas de crédito popular, grupos de consumidores e coletivos de oficinas, desempenham o mesmo papel. Embora essas organizações “sem fins lucrativos”, especialmente na Europa, gostem de caracterizar suas atividades como um estágio de transição para uma economia humanizada, como mais um passo no caminho para a era “pós-mercado”, elas são, ao contrário, uma economia intermediária, “nem peixe nem ave”, dedicada a garantir a sobrevivência das massas inúteis na permanência do desemprego que está sendo continuamente produzida por nosso capitalismo “pós-welfare state”. O papel atualmente desempenhado pelas organizações do terceiro setor é semelhante ao desempenhado pelos sindicatos na fase anterior do capitalismo, quando o mercado de trabalho ainda era capaz de ser normalizado. É responsável por regulamentar o mercado de pobreza e exclusão, mantendo a pobreza em níveis suportáveis, uma tarefa que não é mais realizada com sucesso por instituições governamentais. Se a mão-de-obra é uma mercadoria, ou, em outras palavras, se pode ser comprada e vendida no mercado, por que a exclusão deveria ser diferente? O baixo custo operacional das organizações filantrópicas é um fato evidente, e os resultados podem ser bastante notáveis: é provável que um trabalhador readaptado seja um bom cidadão, um eleitor melhor e um excelente consumidor.

Hoje em dia, quando o capitalismo condenou parte da população do planeta à obsolescência, negando-lhe empregos e sustento, modestamente as atividades orientadas para o autogerenciamento dentro do sistema, independentemente de seus resultados, possuem grande relevância propagandística e ideológica para aqueles que trabalham dentro da “zona cinzenta” dos estagiários colaboracionistas. A falsa consciência explora e restringe o horizonte até mesmo das tentativas mais autênticas de atingir a autonomia, como é revelado pela glorificação entusiasta e acrítica de inúmeras ações isoladas, ignorando o conflito social e político em que elas são necessariamente circunscritas. Os habitantes deste gueto auto-complacente não repudiaram a mediação de uma nova casta da sociedade civil que quer lucrar politicamente com a marginalização sem realmente representar qualquer tipo de ameaça ao sistema. Seus possíveis líderes governamentais afirmam a possibilidade de uma sociedade mais justa, sem a necessidade de mudanças radicais ou de revolução violenta. Tudo o que precisamos é da Internet e da aplicação gradual de receitas cooperativistas para levar a completa autogestão da sociedade dentro de um prazo razoável. Simplesmente deslocando pacificamente e gradualmente os monopólios e o setor público do centro das atividades econômicas, um centro que será então diligentemente ocupado pela economia social, graças ao fato de que será o beneficiário da transferência de parte dos lucros do setor privado e dos investimentos estatais, uma transferência arduamente ganha em batalhas parlamentares. Assim, na cosmovisão da lumpen-burguesia esquerdista, uma forma particular de política burguesa foi colocada num pedestal, e a revolução está escondida no sótão com outras antiguidades, já que não é mais uma questão de destruir o capitalismo, mas de “transcendê-lo” por meio de negociação entre grupos de interesse, a aplicação de leis mutuamente aceitas e um sistema de tributação acordado. Não é uma questão de socialismo ou comunismo, mas de “pós-capitalismo”. Quanto ao Estado, nem sequer é tocado: o Estado é o instrumento indispensável para a transição para a “democracia ecológica”, a ferramenta que facilitará nossa fuga do capitalismo, mesmo permanecendo dentro dele.

O que é imediatamente aparente em um mundo complexo atolado em crise é a necessidade urgente de uma alternativa, que para o movimento da sociedade civil deve ser uma alternativa simples, fácil de digerir e transmitir, sem referências históricas diretas e o mais distante possível do pensamento crítico. Não quer situar nossa era dentro da história e explicá-la com base em seus antagonismos sociais, porque seu propósito não é esclarecer o campo de batalha, mas elaborar um discurso mistificador que sirva de disfarce para as mesmas velhas práticas reformistas de conivência com a dominação. Fórmulas de estabilização ecológico-administrativa da economia, especialmente se condensadas em catecismos, respondem perfeitamente a essa tarefa. O claptrap superficial, místico e holístico também faz sua contribuição. Assim, as prescrições contidas, por exemplo, no municipalismo, renda básica, moedas sociais, consumismo “responsável” e turismo, a doutrina do decrescimento e o credo dos “bens comuns” são veículos ideais para “reorientar” as massas, alimentadas com tanta alienação, em direção à frugalidade e ao equilíbrio. Como dogmas revelados por gurus altruístas, “observatórios” ou “grupos de reflexão”, são os mais ideais, porque têm uma resposta infalível e uma solução mágica para tudo, dispensando a necessidade da luta social e tornando qualquer ideia de diferenças de classe completamente supérflua. Como práticas potenciais adequadas para a institucionalização e para a “democratização” de fragmentos do território, elas são mais apropriadas para servir como um exemplo de coexistência “responsável”, ou mais precisamente falando, de hipocrisia farisaica, inserida no mundo catastrófico da mercadoria.

A ideologia dos “novos bens comuns” ou dos “bens comuns globais” é a única entre essas correntes que está enraizada em antecedentes históricos claros, isto é, a administração de bens comuns, remanescentes dos quais ainda existem, como enfatizado pela economista sueca Elinor Ostrom em seu livro, Governing the Commons. É, no entanto, a mesma economia social sob outro nome, situada em linhas típicas de “pósdesenvolvimento”, que aspira a articular sua política por meio das “novas” instituições sem questionar o sistema partidário, no mínimo, e recriar o “tecido” comunitário por meio de “mercados sociais”, “centros de alimentos”, software livre e a produção coletiva de energia renovável. Experimentos muito interessantes, como, por exemplo, desescolarização, desmedicalização, creches e centros de saúde, sempre permanecerão na esfera Samaritana das boas intenções, já que o nível de envolvimento da comunidade requerido para sua implementação não pode ser sustentado nas condições mercuriais e em constante mudança das economias marginais. A diferença entre estas práticas e o terceiro setor reside no fato de que os proponentes dos “novos bens comuns” não confrontam diretamente a exclusão, uma vez que estão mais preocupados com a segregação voluntária do mercado por parte dos desertores do consumismo. O conceito de “bens comuns” foi estendido até incluir todas as atividades horizontais e não mercantis que podem ser categorizadas sob a rubrica de “sociedade civil”, normalmente supervisionado por vários funcionários e chefes de departamento dos governos das grandes cidades, que são, na verdade, seus defensores mais influentes. São essas autoridades municipais que concedem salas de reunião, equipamentos e recursos a associações de bairro, juventude, esportes ou culturais, mas devemos ter como certo que isso não é feito gratuitamente, mas para garantir a lealdade de uma clientela política. Longe de buscar a autonomia integral, os biencomuneros estão pedindo mais envolvimento dos poderes públicos, especialmente em nível local e regional. A reconexão com um modo de vida que observa os limites impostos pela Natureza não parece ser incompatível com a presença de poderes externos, governamentais, nem parece ser muito incompatível com a existência de interesses empresariais e corporativos. Deste ponto de vista, empregadores, banqueiros e burocratas são legítimos “atores sociais” com os quais os representantes da “sociedade civil” devem negociar.

Os “urbanos comuns” municipais não permitem a formação de movimentos sociais que promovam uma ruptura radical com o sistema, movimentos capazes de enfrentar os interesses que estão destruindo as cidades, porque não se inclina para encontros reais, debates reais e planejamento de ações reais. A mediação municipal impede que isso aconteça. Mas permite, por exemplo, programas para uma “nova cultura” para certos bairros ou mesmo cidades inteiras, convencendo as autoridades municipais da necessidade de declarar uma certa quantidade de terras rurais urbanas ou subdesenvolvidas como estando fora do alcance do desenvolvimento. Ou pode criar “conselhos de alimentos” que unem produtores, distribuidores, consumidores e pessoal técnico municipal com o propósito de concordar com “abordagens lógicas para o consumo responsável”, a pedra angular da “democracia alimentar”. Pela primeira vez, Engels estava certo quando disse que a democracia era a última esperança de toda causa reacionária. Um processo semelhante está em curso nas zonas rurais, uma vez que as autoridades regionais servem de intermediários principais para as negociações envolvendo os empresários e os nossos “democratas”, graças a quais estratégias protecionistas serão implementadas na forma de “bancos” de terra, contratos para administração territorial, cartas para paisagens ameaçadas e a fundação de parques agrários. A preparação de candidatos políticos municipais e territoriais tornou-se agora a precondição essencial para a “democratização econômica”, isto é, para a implantação real de um sistema cooperativo circular capaz de ajudar a custear as necessidades básicas de um setor considerável da população em que os excluídos não são relevantes. A autonomia efetiva dos cidadãos envolvidos no uso dos bens comuns e a eficácia real das estratégias acima mencionadas contra a alimentação industrial e o consumo desenfreado, para não falar de sua eficácia contra a suburbanização do território e a generalização das indústrias extrativas, ainda a ser exibido. É evidente que os governos municipais e as legislaturas regionais e nacionais não são as ferramentas de convívio previstas por Illich, acessíveis a todos, quantas vezes desejarem e para fins que desejam como as assembleias, já que para utilizá-las é preciso organizar uma campanha política, participar de eleições e aprovar legislação. Desta circunstância podemos deduzir que essa “democracia” com seus adjetivos filistinos não é alcançada por meio da defesa do território ou por qualquer outro tipo de luta defensiva: os frívolos discursos dos ambientalistas subsidiados, os “verdes” profissionais, os defensores dos “novos bens comuns” e seus primos de crescimento, não fazem a menor menção de lutas, como se a construção de rodovias, resorts de férias, vastas plantações, reservatórios, aeroportos, trens de alta velocidade e outros projetos inúteis não existir.

O capitalismo tornou-se tão irreformável que a apropriação dos meios de produção atualmente existentes seria inútil para a construção de uma sociedade livre baseada na solidariedade. Ele reproduziria automaticamente o mesmo tipo de sociedade, com características semelhantes. A sociedade industrial deve ser desmantelada antes de ser submetida à autogestão. Em outro contexto, já dissemos que a luta anticapitalista exige um grau significativo de segregação e, consequentemente, um conjunto sério de instituições coletivas independentes. E também dissemos que a vizinhança e as estruturas comunitárias são infinitamente superiores às organizações tradicionais, partidos, sindicatos ou conselhos, uma vez que a separação entre as esferas do trabalho e a vida cotidiana tornou-se obsoleta. A dimensão da negatividade contida na luta não era suficiente, e um sujeito transformador não pode emergir de tais lutas sem o apoio adicional de uma rede positiva de experiência comunitária, ilhas de resistência que abrigam formas não-capitalistas de coexistência. Tais realizações práticas mostram que a vida sujeita a imperativos econômicos não é o mal menor, e que alguém pode subsistir e até mesmo viver fora deles. Isso não é, no entanto, um apelo à marginalização, mas à preservação e extensão das relações humanas em nosso entorno. Essas conquistas não podem, de forma alguma, ser criadas a partir do zero dentro de uma sociedade capitalista com a qual elas coexistem, exceto na forma de experimentos muito limitados de autogestão em pequena escala. O maior erro seria considerá-los como fins em si mesmos, e não como meios para um fim, um erro cometido pelos proponentes da economia social. Não são objetivos isolados, totalmente desconectados de conflitos sociais, mas armas de intervenção nesses conflitos. A capacidade de viver do lado de fora terá a virtude de, por um lado, dificultar a reprodução das relações sociais dominantes, promovendo a sociabilidade e inibindo o individualismo; por outro lado, fornece uma boa base logística para a defesa do território. A fim de transcender as fronteiras do enclave, no entanto, isto é, para ser generalizado, precisa ir à ofensiva e se envolver em uma invasão em grande escala dos espaços dominados pelo capital. Uma verdadeira revolução é necessária. Esse é o dilema do qual aqueles que recorrem a um “assalto à base” [asaltar los suelos] em favor de uma retificação política e ambientalmente “sustentável” do capitalismo global estão tentando escapar.