Título: As Veias da América Latina Estão Mais Abertas do que Nunca
Data: 11/2017
Fonte: libcom.org
Notas: Parte I de uma apresentação proferida no “Seminario de Pensamiento crítico, Revolución de la vida cotidiana y Organización autogestiva integral”, realizado na Cátedra Jorge Alonso e o Centro Social Ruptura nos dias 15 e 16 de novembro de 2017 em Guadalajara, Jalisco (México).
Titulo Original: The veins of Latin America are more open than ever. Tradução e Revisão por André Tunes @Nucleo de Estudos Autonomo Anarco Comunista.
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.

“O abismo não nos detém: quando a água está caindo no precipício é mais bonita”.

Ricardo Flores Magón

No atual estágio da globalização capitalista, o território está passando por uma violenta readaptação em escala mundial. A vítima imediata da aceleração abrupta da atividade econômica é o território. Não só está sujeito a grandes projetos de infraestrutura e urbanização intensiva, mas, de forma mais geral, está se tornando a fonte de recursos industrialmente exploráveis e, portanto, o motor indispensável da economia. Como resultado, seus moradores são confrontados com a destruição completa de seu habitat e seu modo de vida. Numa economia predominantemente financeira, o território não passa de capital, o que implica o desaparecimento do seu entorno de qualquer atividade que não esteja subordinada ao lucro econômico privado. Nem a própria vida, seja ela pública ou privada, é regida pelas necessidades coletivas, mas pelos interesses da elite político-econômica que está expropriando os recursos do território. O território está sendo transformado em uma espécie de fábrica difusa que tende a funcionar como um negócio moderno, com alta tecnologia e pouca mão de obra, reproduzindo antagonismos sociais ao mais alto nível na forma de problemas ambientais, crises ecológicas, esgotamento de recursos, a realocação forçada de populações e, nos países com grandes e vitais setores agrícolas tradicionais, essas questões incorporadas à luta pela questão agrária por suas classes camponesas; são aspectos inéditos que permitem apresentar a questão social com mais veracidade. A crítica teórica deve ter isso em mente se quiser evitar o idealismo e o dogmatismo.

O território tornou-se o principal meio de produção; o extrativismo nada mais é do que o reflexo capitalista dessa realidade. A ordem industrial-financeira não pode impor seu domínio sem a exploração massiva do território na forma de múltiplos programas de desenvolvimento. A sociedade de consumo pós-moderna não seria o que é hoje sem tratores e máquinas de perfuração de túneis. A construção de rodovias, portos, barragens e pisciculturas, usinas nucleares, parques eólicos e instalações fotovoltaicas, prospecção de minérios, gás natural e petróleo, monoculturas, reflorestamento industrial e plantações de biocombustíveis, turismo de massa, etc. exemplos ilustrativos da nova fase orientada para o desenvolvimento ligada à consolidação do mercado global. “Extrativismo” é um neologismo político usado para se referir à pilhagem do território. Os governos nacionais, modelados de acordo com suas necessidades e liderados por uma classe poderosa que aproveita a situação para aumentar seu poder e lucro, não hesita em sacrificar o território, deportar seus habitantes, eliminar sua cultura, devastar o meio ambiente, contaminar o solo , ar e água, e põem em perigo a saúde e ameaçam a própria sobrevivência de todos. O extrativismo caracteriza uma fase particularmente obsessiva e viciante da sociedade produtivista e consumista, características que constituem o núcleo ideológico do pensamento da classe dominante. Nada importa para a mentalidade extrativista, exceto o lucro econômico de curto prazo; consequências a longo prazo não são sua preocupação. Como resultado, regiões inteiras são mutiladas e esquartejadas por projetos de infraestrutura que são implementados de acordo com as exigências do mercado, enquanto as populações empobrecidas fogem do campo devastado para se aglomerar nas periferias pestilentas das megacidades, onde se expõem e imitam a domesticação das massas urbanas no consumo sistemático. “Desenvolvimento” é o desenvolvimento por e para outros, a oligarquia, seus intermediários e os beneficiários de suas redes patronais, e corresponde a um modo de vida artificial, atomizado, nocivo, sujeito à obsolescência programada.

Nos últimos vinte anos, as elites dos países latino-americanos adotaram avidamente planos econômicos que priorizam a exportação de matérias-primas – principalmente alimentos, celulose, minerais, biocombustíveis e hidrocarbonetos – favorecendo o investimento estrangeiro e abrindo caminho para a penetração das corporações multinacionais. Eles adotaram uma espécie de partição mundial do território para superar rapidamente os vários estágios de atraso industrial de seus países e se inserir lucrativamente no mercado global. O território foi dividido em zonas, divididas de acordo com suas especializações produtivas com base em planos de desenvolvimento elaborados nas grandes cidades. O que chama a atenção nessa tendência é que muitos de seus protagonistas não pertencem às classes dominantes tradicionais, mas a partidos e coalizões de “esquerda” que clamavam pela regulação estatal das indústrias extrativas. O crescimento do aparato estatal é outra característica comum do sistema capitalista atual, pouco afetado por uma ortodoxia neoliberal que nunca é posta em prática, pois é fonte de empregos muito procurados. Se há algo que caracteriza a etapa da globalização é a fusão do Estado e do Capital. Estado e Capital são as duas faces da mesma moeda, assim como a política e a economia. Os esquerdistas subiram ao poder político com promessas de justiça social, erradicação da pobreza, direitos políticos, participação das maiorias excluídas, proteção da natureza e, claro, “desenvolvimento” nacional. Para tanto, deveriam tentar compatibilizar seus programas ambientais e sociais com a habitual dependência econômica e vocação exportadora de seus respectivos países, ou seja, promover o extrativismo e socializar seus lucros. Eles tiveram que harmonizar a pilhagem e devastação do território com planos de ajuda econômica, educação, saúde e emprego, todos implementados de forma a beneficiar os membros fiéis e satisfeitos das redes de clientelismo político. O aumento do preço das matérias-primas no mercado mundial rendeu-lhes grandes somas de dinheiro e contribuiu para a convergência dos vários governos nacionais com as grandes corporações envolvidas na extração de recursos, consolidando assim a nova casta progressista-extrativista, que está mais do que disposta a sacrificar quantas zonas da “Mãe Terra” forem necessárias para manter o fluxo de capital que a mantém no poder. De fato, a operação estatista-exportadora foi coroada de sucesso, possibilitando um aumento gradual do bem-estar do consumidor, medido pelo número de carros, televisores, computadores, empregos criados, unidades habitacionais construídas, pensões, crédito, subsídios, vagas universitárias e seguro médico. À medida que crescia o “ogro filantrópico”, que é o que Octavio Paz chamava de Estado, ele se transformava em negócio, com a concomitante corrupção de “esquerda”. As conquistas indiscutíveis no combate à pobreza que são responsáveis por um aumento da capacidade de consumo popular paralela à capacidade de extração de recursos, a autêntica encarnação do Progresso e da “modernização”, fomentaram o suborno e a corrupção, cooptaram militantes dos movimentos sociais, aumentaram a dependência do grande capital e da tecnologia, reduziram o nível de compromisso social e privaram indivíduos, grupos e coletivos de toda autonomia. Pequenos inconvenientes para hoje, em nome de um amanhã melhor e mais americanizado. E, portanto, vitórias que entrincheiram os burocratas da burocracia político-administrativa e que fomentam a expansão do elemento estabilizador mais típico da era pós-moderna produzido pela tecnologia totalitária e pela constante decomposição da condição humana: a classe média assalariada.

As novas classes médias, compostas em sua maioria por funcionários públicos, funcionários de colarinho branco e profissionais liberais, devem sua expansão à terciarização da economia e ao alargamento da burocracia estatal. Seu status não se deve à propriedade de seus meios de produção, como era o caso da pequena burguesia clássica, mas sim à sua formação acadêmica, tanto técnica quanto ideológica. O espectro ocupacional compreendido por essas classes inclui, entre outras profissões, consultores, administração, publicidade, serviços de informação, elaboração e transmissão da ideologia dominante, etc. O aumento do número de alunos é um índice melhor de sua ascensão social do que o número de telefones celulares “per capita”. Essas classes compreendem mais ou menos um terço da população [na América Latina], menos da metade de sua parcela correspondente da população na Europa, Japão e Estados Unidos, onde são as classes mais numerosas. Pelas suas origens e situações sociais, as camadas intermediárias de assalariados com formação superior, envolvidos no trabalho improdutivo, compõem uma classe urbana relativamente esclarecida, tecnofílica, pródesenvolvimento, pragmática e liberal. Esta classe tem uma mentalidade moderada, tendendo à acomodação com a autoridade, e não está disposta a entrar em conflito, priorizando a segurança acima da liberdade quando a estabilidade das instituições das quais sua prosperidade depende está em perigo. Enquanto sua capacidade de consumo for mantida, ou, como dizem os economistas, “enquanto a demanda interna for mantida”, suas vidas privadas serão mais importantes que suas vidas públicas, mas quando essa classe for prejudicada pelos acordos de livre comércio ou pelas crises econômicas sairá de seu sono e contaminará os movimentos sociais, encabeçando iniciativas políticas que se transformarão em novas frentes e alianças. Essas classes não se caracterizam por seu anticapitalismo, embora confessem tais convicções por motivos eleitorais; seu objetivo obviamente não é a emancipação da humanidade explorada, ou uma sociedade livre de produtores livres, ou muito menos a abolição do Estado. Seu objetivo é muito mais prosaico: o resgate de sua própria classe, ou seja, resgatá-la do destino da proletarização por meios político-administrativos. Em suma, o que distingue a revolta das classes médias da revolta dos camponeses e proletários é a exigência da primeira por profundas mudanças políticas e sua total falta de interesse em promover mudanças sociais de qualquer tipo.

Questionar a natureza do Estado era uma característica das classes que buscavam destruir toda forma de poder separado. Não é o caso dos partidos da sociedade civil que representam a nova classe média: seu dogma sagrado é que todo conflito social tem uma solução política dentro do Estado. Graças à sua participação, o regime parlamentar colocará o país de volta nos trilhos. A partidocracia ampliada corrigirá os erros históricos do antigo sistema político e resolverá todas as crises. Para o movimento da sociedade civil, a luta social é relegada a um segundo plano, e essa perspectiva constitui, portanto, um fator de confusão, desmobilização e desintegração da identidade de classe em larga escala, na medida em que não seja criticada e denunciada por um movimento autenticamente subversivo. A tradição em que se baseiam esses partidos da sociedade civil é leninista porque perseguem o poder e cultuam a hierarquia, embora não pratiquem os métodos conspiratórios do sectarismo messiânico. Eles são os partidos por excelência do negócio de bastidores: suas armas são táticas eleitorais, postura da mídia e candidatos políticos, que são tipicamente social-democratas, todos misturados com uma retórica variavelmente patriótica, folclórica ou carismática. Eles não estão focados na agitação, mas no “diálogo”: eles querem negociar, não tumultuar. Eles são abertamente reformistas; eles não querem abolir o capitalismo, mas gerenciá-lo. Eles prometem que a economia, a produtividade e as exportações de matérias-primas prosperariam sob seu domínio. Eles são keynesianos; não querem um capitalismo de Estado burocrático, mas um Estado burocrático que reinvestiria parte dos lucros do capitalismo na preservação e extensão da classe média tanto nas megacidades quanto nas áreas rurais. São, portanto, a encarnação moderna do mito do Estado “civilizado”, o Estado paternalista acessível aos seus candidatos. Ou, dito de outra forma: o Estado que faz a mediação entre as classes perigosas – o proletariado das favelas e o campesinato tradicional – e a racionalidade do mercado. De certa forma, os Estados populistas de Correa, Evo, Ollanta, Lula da Silva, Mújica e Bachelet. A atual missão do Estado latino-americano, no entanto, é apenas temporariamente de mediação, e sempre que entra em ação revela-se visivelmente como o tentáculo armado dos interesses das corporações transnacionais. A classe média assalariada então olha para o outro lado porque, embora não seja a classe majoritária na América Latina, seu peso político é maior do que nos outros países do mundo e seus interesses começam a se confundir com os do comércio internacional: seus partidos e frentes experimentaram o sabor do poder, caminharam no tapete vermelho e conviveram com líderes mundiais e, como se isso não bastasse, seu reforço bem-sucedido da partidocracia tornou-se um modelo para os movimentos da sociedade civil em todo o mundo.

O movimento operário oficial há muito está integrado ao sistema. No passado, a exploração econômica provocou revolta em um mercado de trabalho caótico e um proletariado hostil aos valores burgueses. Agora, a necessidade não obriga mais o proletariado a exigir uma nova sociedade. Sua práxis não a conduz à autonomia. Enquanto a produção de trabalho não diminuir, os salários garantirem um certo poder aquisitivo e os gastos públicos manterem os serviços sociais, o comportamento das massas assalariadas nunca será sedicioso ou radical. Seu modo de vida flui submissamente nos canais da dominação. Os mecanismos de controle social são vigilantes e são responsáveis por garantir que isso continue assim. O antagonismo violento então se desloca para as margens do regime capitalista: a maior contradição não é mais a mais-valia apropriada pela classe exploradora, mas a exclusão social. Os principais protagonistas do drama histórico não são mais aqueles que existem no mercado de trabalho e lamentavelmente cambaleiam pelos caminhos da alienação, mas os expulsos, os dissidentes e todos aqueles que resistem a entrar ou operar no circuito da mercadoria: aqueles que situam fora do “sistema” como inimigos e foras da lei. A forma como expressam suas visões sobre o terreno social é nova, espontânea, plural, criativa e baseada em assembleias. Apesar dos obstáculos mencionados acima, o protesto precisa ser articulado e defendido, por isso deve aprender a nomear seus adversários, especialmente aqueles dentro de suas próprias fileiras, a velha e desacreditada esquerda, os movimentos da sociedade civil de novo estilo e as facções populistas. Quanto a seus inimigos fora de seu movimento, os oligarcas da indústria e das finanças, a plutocracia neoliberal, os grandes latifundiários, os executivos que trabalham para as multinacionais etc., já os conhece bem o suficiente. Assim, esse protesto avançado não poderá evitar essa luta interna, e somente levando-a a uma conclusão bem-sucedida poderá confrontar as classes dominantes com alguma chance de sucesso. Então, poderá expressar a verdade que contém e sua causa poderá ser transformada na causa de todos os oprimidos. Ultrapassará as fronteiras locais que antes a limitavam, deixará para trás seu particularismo e será um exemplo para o mundo.

A série de “Cúpulas da Terra”, a começar a ser realizada no Rio de Janeiro, assumiu a missão de conciliar o crescimento econômico e o extrativismo com a devastação do território, dissimulando-a por trás de fórmulas de investimento ambiental. Colocam os primeiros tijolos no muro de um capitalismo “verde” baseado no “desenvolvimento sustentável” e na “transição energética”, que equivale a fazer da destruição do meio natural e rural uma fonte de lucros através da criação de um mercado para a degradação ecológica. A descarbonização, a restauração de partes do campo para o turismo, a poluição controlada, a reciclagem, a dessalinização da água do mar, os OGM, a indústria das energias renováveis, etc., são exemplos flagrantes deste salto qualitativo para a barbárie da economia “sustentável”. No entanto, onde a brutalidade dos projetos de desenvolvimento não pode ser dissimulada com sucesso sob a máscara brilhante da sustentabilidade, o conflito se espalha. A economia verde é mais adequada para países industrializados sem camponeses reais. Na América Latina, onde a população rural é muito grande e até constitui a maioria da população em muitos países, o lado extrativista do mercado se manifesta claramente em uma demanda por território sem precedentes. Eventualmente, uma avalanche de novas rodovias, túneis, oleodutos, turismo, plantações, minas, reservatórios, lixões e tudo mais, precipita uma guerra contra o campesinato, que é forçado a se mobilizar para a resistência e participar da autodefesa e do autogoverno. Inúmeras assembleias populares, comunidades indígenas, “círculos”, “rodadas”, comitês de defesa, piquetes e movimentos de bairro, que convivem com outras organizações cidadãs que atuam em um quadro legalista e verticalizado, fazem parte das múltiplas experiências de organização improvisadas para responder às necessidades urgentes impostas pela luta contra a privatização ou a nacionalização do território, numa luta pela preservação das suas identidades e das suas culturas, que correm o risco de serem padronizadas, despovoadas e mercantilizada. Para eles, o homem pertence à terra, e não a terra ao homem, e esse princípio determina um estilo de vida incompatível com o desenvolvimento capitalista, seja ele “extrativista” ou não. Essas preocupações amplamente compartilhadas agora afetaram as zonas urbanas. Agora que o território tem obtido uma importância econômica e política cada vez maior, a natureza do poder e das classes é definida doravante em relação ao território. O sujeito revolucionário parece tomar forma em torno de sua defesa, um pouco como a nova luta de classes em condições de capitalismo acelerado, que de certa forma é uma marca de continuidade histórica: as classes camponesas sempre estiveram presentes em todas as revoluções do continente, enfrentando o poder em suas reivindicações por terra e autonomia. Assim, a história da luta pela terra foi, e ainda é, a história das comunidades agrárias.

Se a repressão se concentra nas áreas rurais tradicionais, em sua maioria as áreas habitadas por povos indígenas, isso se deve ao fato de serem imunes ao capitalismo, e também ao fato de poderem se retirar da esfera do Estado. Os ameríndios são um exemplo paradigmático de uma sociedade sem conflito, coerção ou violência, onde o trabalho não é santificado, nem o poder desejado, e onde as relações sociais são reforçadas. Uma sociedade de iguais, sem hierarquia, com fortes raízes na terra, preocupada com o seu patrimônio, regida por um regime de reciprocidade, fora do mercado, funcionando de forma autônoma, quase sem interferência da ordem estabelecida. Uma sociedade cujo modo de vida se baseia em obrigações mútuas e gira em torno de cerimônias e festas, os momentos de rejuvenescimento dos laços comunais. Em uma sociedade de tipo não individualista, alheia ao lucro privado, a economia é uma atividade subordinada que obedece às normas comunais estabelecidas pelo costume. O enriquecimento pessoal não tem lugar nele e não é de forma alguma o objetivo da troca, pois a riqueza não é concebida como uma acumulação de bens, mas como uma abundância de relações. Fora dos jogos, a competição é, portanto, incompreensível. Não é nossa intenção idealizar uma sociedade baseada na tradição e no direito consuetudinário, ou retornar às eras pré-capitalistas, mas mesmo um breve estudo sobre o tema já nos mostra práticas coletivas de pecuária, coleta de plantas silvestres, irrigação, caça, pesca e agricultura que são exemplares na medida em que evidenciam a exploração equilibrada dos recursos comuns. Mostram aos habitantes das megacidades que há melhores alternativas ao controle estatal, à nacionalização, à privatização e venda do território, à indústria alimentar, à economia monetária, etc., e que é possível uma economia moral, solidária, integrada, uma economia que permita uma sociedade livre e igualitária, em equilíbrio e sem Estado, desurbanizada e sem mercado. A simpatia ativa despertada pela sociedade indígena entre os rebeldes urbanos repercute dialéticamente na primeira, permitindo-lhe superar seu localismo e orientar-se para objetivos universalistas.

Além do fato de serem fonte de lições positivas, o melhor exemplo dado pelas comunidades camponesas é a extraordinária resistência por elas montada contra a agressão dos agentes do Progresso e suas forças repressivas. O grau de ingovernabilidade que apresentam é tanto mais surpreendente pelo fato de o Estado nunca hesitar em recorrer a procedimentos terroristas; a recalcitrância camponesa, por sua vez, tornou-se um poderoso estimulante para as revoltas urbanas. Assembleias, manifestações, vigílias, marchas, bloqueios de estradas, barricadas e ocupações são instrumentos simultaneamente defensivos e sociáveis, e têm demonstrado uma eficácia superior aos métodos políticos convencionais na neutralização das forças inimigas e na dissuasão pacífica dos seus planos destrutivos. É claro que nada pode ser alcançado sem a participação das massas urbanas desenraizadas e vulneráveis, os elementos mais numerosos, razão pela qual devemos constantemente construir pontes entre o campo e a cidade, especialmente quando a liberdade caminha lado a lado com o desarmamento do Estado e com a ruralização. A megacidade não pode ser reduzida a dimensões humanas, ou, mais precisamente, as cidades nunca poderão ser o que foram, projetos de vida autogovernada em comum, sem a recriação de comunidades urbanas de luta, mas estas não podem ser consolidadas sem o apoio de uma revolução camponesa. Nos países onde as classes camponesas ainda não foram derrotadas pelo capitalismo, tal revolução é possível.