Título: Classe Média, Partidocracia e Fascismo
Data: 10 de Janeiro de 2013
Notas: Titulo Original: Clase Media, Partitocracia y Fascismo. Tradução e Revisão por André Tunes @Centro de Análises Sistêmicas Anarco Comunista.
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O tema da partidocracia não foi seriamente estudado nem pela sociologia acadêmica nem pela crítica “antifascista” do parlamentarismo moderno, e isso apesar de a crise dos regimes autoproclamados democráticos ter revelado sua realidade específica como sistema autoritário com aparências liberais, onde os partidos, e muito mais suas cúpulas, se apropriam da representação da vontade popular para legitimar sua ação e seus excessos em defesa de seus interesses particulares. Não deve surpreender o fato, pois, assim como ocorreu com a burocracia de partido único nos regimes estalinistas e fascistas, a classe política conformada pela partidocracia existe na medida em que oculta sua existência como classe. Como aponta Debord, “a mentira ideológica de sua origem jamais pode ser revelada”. Sua existência como classe depende do monopólio da ideologia, leninista ou fascista em um caso, democrática no outro. Se a classe burocrática do capitalismo de Estado disfarçava sua função de classe exploradora apresentando-se como “partido do proletariado” ou “partido da nação e da raça”, a classe partidocrática do capitalismo de mercado o faz exibindo-se como “representante de milhões de eleitores”, e, portanto, se a ditadura burocrática era o “socialismo real”, a substituição partidocrática da soberania popular é a “democracia real”. A primeira tentou se sustentar com a abundância de espetáculos rituais e sacrifícios; a segunda o fez com a abundância de habitações e de crédito para possuí-las. Ambas as abundâncias fracassaram.


Para compreender o fenômeno da partidocracia, é preciso remontar-se às suas origens históricas, quando o caciquismo deixa de ser operativo devido à perda de poder das oligarquias locais em favor do Estado. Em um determinado momento do desenvolvimento capitalista, aquele em que a burocratização desempenha um papel central na história, a administração partidária substitui o paternalismo dos latifundiários e da alta burguesia. O referido fenômeno deve ser enquadrado entre a degeneração extrema do parlamentarismo, a concentração do capital, a degradação das organizações operárias, a expansão do Estado e a profissionalização total da política, fatos intensificados no pós-guerra mundial. Podíamos também aludir às oscilações imperialistas, à guerra fria, ao “eurocomunismo”, aos processos de modernização tecnológica e à crise energética, como tantos outros condicionantes da fusão da política, do Estado e do capitalismo nacional. Mas a patrimonialização do Estado por uma classe política não alcança seu ápice e, portanto, não desempenha um papel crucial, senão quando proclama como objetivo único o crescimento da economia autônoma, ou seja, o abandono do nacionalismo econômico em prol do desenvolvimento mundial do Mercado. Então a classe política, apoiada em uma extensa clientela criada com fundos e empregos públicos, torna-se parte da classe dominante. Em uma nova burguesia, se assim se quiser. Não é uma classe subalterna, nem é toda classe dirigente (exceto na China); tampouco se trata de uma classe nacional. Justamente, quando se internacionaliza, torna-se um elemento fundamental nas relações de produção impostas pela globalização financeira. A partidocracia suprime a contradição entre interesses nacionais e interesses globais ao recriar em todas as partes as mesmas condições políticas ótimas para a expansão da economia; por um lado, forjando ao mesmo tempo uma extensa rede clientelista; por outro, desativando os protestos que emanam da sociedade civil e aportando a violência institucional onde falha a violência econômica. A economia não funciona sem a ordem, e a partidocracia é, se não exatamente a ordem, é uma desordem que funciona em benefício da economia. É a desordem estabelecida.


Embora em um caso estejamos diante de um sistema aberto e competitivo que utiliza procedimentos eleitorais e, no outro, diante de um sistema fechado e rigidamente hierarquizado onde as nomeações não necessitam de legitimação pública, nos últimos tempos não é raro a comparação, até mesmo a assimilação, da partidocracia com o fascismo. Ambas são formas autoritárias de governo que surgem após os retrocessos e derrotas do proletariado, no subsequente processo de massificação e desclassificação que dará lugar a uma nova classe média conformista e submissa. Ambos nacionalizam bancos em ruína e têm um momento “plebeu” inicial que estipula o “direito ao trabalho” e ao “bem-estar”, seja apoiando determinados sindicatos ou criando-os ad hoc para usá-los como interlocutores, momento que termina assim que a classe operária é domesticada e dissolvida. A conversão do proletariado em uma infantaria passiva dos sindicatos institucionais, sem nenhuma consciência de classe nem desejo de transformação social, é fundamental para a implementação de contrarreformas trabalhistas; depois, serão exigidos esforços empobrecedores das classes médias. Fascismo e partidocracia baseiam seu sucesso em submeter os antagonismos sociais ao mito do Estado, mas onde há Estado, a liberdade está subordinada à Razão de Estado, ou seja, não existe. Por isso, a classe política deve consolidar e conservar seu status suprimindo os fundamentos liberais que a tornaram possível. Ela se empenha para que a sociedade civil proletarizada não se constitua à margem do sistema e dispute espaços, mas sob o fascismo, enquanto defesa extremista da economia, recorre-se à brutalização da vida pública, enquanto sob o sistema parlamentar de partidos, a sedução consumista e a corrupção são os meios preferidos para modernizar a defesa. As duas formas são respostas custosas à crise capitalista, pois precisam manter uma população improdutiva crescente que realize uma renovação, uma mobilização e uma transferência de recursos fora do alcance do Mercado. Mas o fascismo é uma resposta arcaica e dura, e a partidocracia, uma resposta mais envolvente e racionalizada. São formas de organização política do grande capital, diferentes dos regimes antigamente chamados “bonapartistas” – referindo-se à ditadura populista implantada na França após uma vitória eleitoral por Luís Napoleão, como a do marechal Pétain, também na França, a do general Perón na Argentina ou o chavismo. Partidocracia e fascismo possuem uma base social concreta: a pequena burguesia, os empregados e o proletariado desclassificado no segundo, e a classe média assalariada e os operários sindicalmente treinados no primeiro.


A psicose coletiva gerada pela ausência de ideais de classe, a desmoralização e o medo da crise fazem com que essa base acredite em milagres e se disponha a submeter-se, não sem resistir, a toda classe de medidas restritivas. O desastre da globalização faz com que a dominação reclame uma economia de guerra. E aqui começam as diferenças: o fascismo ocorre em um quadro nacional, daí seus planos autárquicos, as empresas mistas, os trabalhos públicos como solução do desemprego e seu nacionalismo expansionista. A partidocracia se desenvolve em um contexto neoliberal, de modo que sua planificação nacional obedece às diretrizes econômicas do capital internacional e sua política exterior se subordina à estratégia diplomático-militar do grande Estado guardião do capitalismo, os Estados Unidos da América. Daí seus planos de infraestrutura, os consórcios mistos das metrópoles-empresa e o uso do “bem-estar” como distribuição discriminatória de favores clientelistas. Ao contrário do que ocorre com o fascismo, na partidocracia a utilização do aparato burocrático com fins privados está descentralizada; ocorre em qualquer nível da administração e não apenas nas altas esferas ministeriais. A partidocracia não precisa estatizar nenhum meio de produção, embora possa intervir nos meios financeiros, mas sempre mais a favor dos fundos de investimento internacionais do que para salvar a empresa ou a propriedade privada autóctone. Ela se move sempre na esfera de interesses que superam os estatais e locais, embora não os anulem, pois são os de sua paróquia. Certo é que se serve do medo como instrumento de governo, mas não para impor uma política de terror, e sim uma política de resignação. Para a partidocracia, os terroristas são os outros, seus inimigos violentos ou tranquilos que tentam reconstruir a sociedade civil a partir da dissidência, e ela se empenha a fundo contra eles, embora em condições normais prefira dissolver os antagonismos de classe em vez de criminalizá-los e esmagá-los, escolhendo a compra de líderes por cooptação ao uso da força, e a tecnovigilância ao internamento político. O fascismo não admite exceções, enquanto a partidocracia tolera minorias hostis, desde que não se tornem problemáticas. A comunidade ilusória definida pelo fascismo da qual é preciso fazer parte pela força é a da raça ou nação que necessita de um espaço vital, enquanto a comunidade partidocrática é a cidadania votante que completa suas necessidades espaciais com o turismo. Carece do grande problema das ditaduras terroristas de partido único, que é a guerra contra as nações vizinhas. Em virtude dos tratados internacionais que estabelecem a circulação livre de capitais, a expansão da economia nacional não esbarra em tarifas nem barreiras alfandegárias, podendo se estender e até se deslocalizar pelo mundo sem necessidade de operações bélicas, salvo as exigidas pelo controle das fontes de energia. Em consequência, as políticas “de defesa” dos sistemas partidocráticos não esgotam as reservas nacionais na fabricação de armamentos, nem condenam à fome a população submetida (como acontecia, por exemplo, na URSS e ocorre hoje na Coreia do Norte). Tampouco a torturam com discursos e constantes manifestações de adesão: a publicidade da mercadoria é mais eficaz na mobilização do que a ideologia. Por isso, os fascismos e totalitarismos quase sempre fracassaram e se desmoronaram, vítimas de suas insuperáveis contradições. Com frequência, foram substituídos por regimes partidocráticos mais ou menos imperfeitos, ou seja, mais ou menos mafiosos, conforme a presença fraca ou forte de mecanismos reguladores e, inversamente, conforme a presença forte ou fraca do pessoal do regime anterior. Alemanha, Suécia ou Reino Unido poderiam ser exemplos de partidocracias autorreguladas, e Espanha, Itália ou Rússia, de partidocracias corruptas. Tal reconversão aproveitou-se da derrota definitiva do proletariado revolucionário, nunca compensada com novos avanços que reanimassem a discussão e o debate social e tornassem possível o retorno de um movimento operário radical e independente.


Podemos aceitar que a partidocracia não é fascismo, embora se assemelhe a ele em alguns aspectos — sobretudo na forma bipartidária —, mas é mais certo que tampouco é democracia, nem sequer “democracia doente”: nela não existe separação de poderes, nem debate público, nem controle, nem mecanismos formadores da opinião. É um tipo moderno de oligarquia desenvolvimentista que funciona bem sem crises. As partidocracias são questionadas por sua base social devido à sua subordinação ao sistema financeiro que as prejudica, mas não a ponto de recorrer a procedimentos revolucionários, já que sua iniciativa não vai além da reforma eleitoral, do controle da banca e da demanda de investimentos. As classes médias descontentes não rejeitam o sistema partidocrático, simplesmente exigem partidos mais alinhados com seus interesses e um Estado mais keynesiano que resolva o problema do desemprego e do crédito; consequentemente, suas armas continuam sendo a coleta de assinaturas, as mobilizações por delegação, pacíficas e espaçadas, os votos e os recursos aos tribunais. Assim, as classes médias (entre as quais se incluiria o proletariado inconsciente, disperso e desmoralizado) não buscam um confronto com as instituições partidocráticas, mas uma maior abertura das mesmas a uma frente de terceiros partidos e associações. Uma batizada “democracia participativa”. Querem estar corretamente representadas no regime, por isso umedecem a pólvora para que não exploda. No entanto, quando as instituições deixam de funcionar por excesso de endividamento, fruto da corrupção ou de uma simples má gestão prolongada, ocorre essa circunstancial desafeição que, ao isolar a classe política — que, não esqueçamos, inclui a burocracia operária —, obriga a partidocracia a endurecer-se, aproximando-a do fascismo, e mais com o temor que inspira uma verdadeira oposição “antissistema”. Mas seu instinto de sobrevivência faz com que não apazígue o descontentamento limitando-se à legislação punitiva e às forças antidistúrbios, e use qualquer recurso: os partidos e sindicatos alternativos, as coalizões eleitorais e as plataformas cívicas, os movimentos sociais e de bairro. Assim, dorme-se em uma assembleia de “indignados” e acorda-se votando na Esquerda Unida ou nos Verdes. E enquanto isso, a classe política, o verdadeiro Partido do Estado, salva seu modus vivendi, ou como ela chama, a “governabilidade”, graças a uma complicação passageira do mapa político e a portas entreabertas à participação “transversal”.


A partidocracia se consolidou com o apoio das classes médias, que gostam de se autodenominar “cidadães”, mas não corresponde ao governo dessas classes; é, pelo contrário, o governo absoluto do capital globalizado. Por estarem demasiadamente fragmentadas, as classes médias são incapazes de uma política independente e, tanto em épocas de prosperidade quanto em épocas de crise, acomodam-se com as políticas desenvolvimentistas definidas pelos dirigentes da alta burguesia executiva. Mas algo precisam dizer quando seus interesses são jogados ao mar. O protesto cidadão, do qual o esquerdismo vanguardista não passa de uma versão arcaizante, é sua maneira de manifestar o desencanto com os “políticos” e os parlamentos. Que ninguém espere ver as reivindicações “democráticas” conhecidas se transformarem em reivindicações socialistas. Que tampouco ninguém espere encontrar nas propostas ecologistas uma defesa do território. Pedem-se apenas reformas; no entanto, a partidocracia não pode ser reformada, só pode ser derrubada, e é precisamente isso que as classes médias não se atrevem a fazer. Não está em sua natureza. Se forças históricas suficientes fossem concentradas para destruí-la, ou seja, se a crise social se aprofundasse até a ruptura, uma parte da classe média as seguiria, enquanto a outra abraçaria a ditadura ou o fascismo e, então, o comunismo ou socialismo revolucionário jogaria tudo ou nada. Infelizmente, como demonstra a ausência de mecanismos populares de auto-organização, essas forças não existem.

Qualquer análise séria da partidocracia deve levar em consideração as relações entre a classe dominante, incluindo a classe política, as classes médias e os movimentos contrários ao sistema. A classe dirigente deve assegurar a conexão com as classes médias por meio do Partido do Estado, neutralizando qualquer oposição resoluta que se forme diretamente a partir da contestação social. Se isso não ocorrer e os protestos se transformarem em revoltas, a classe dominante abandonará os métodos pacíficos e conservadores em favor de táticas próprias da guerra civil, silenciando os lamentos cidadanistas e transformando a classe política em partido unificado da ordem. Quando a classe dominante entra em conflito com a democracia parlamentar formal, tentará sair mediante leis de exceção e estados de sítio encobertos, como tem feito até agora. Essa é a verdadeira função da classe política e da burocracia operária em momentos de crise aguda. A classe política ou Partido do Estado está para tornar desnecessário o sempre arriscado recurso ao golpe militar ou ao fascismo, pois ela deve bastar-se para agir como guarda do capital mundial, mantendo as mínimas aparências de legitimidade parlamentar. Convém repetir que as classes médias não constituem exatamente uma classe, mas um agregado variado de fragmentos sociais, maleável e versátil, por isso estão condenadas a continuar sendo, até o fim, uma ferramenta do capitalismo. Não podem escapar às alianças de emergência com a classe dominante, pois necessitam de uma “direção” e não há outra classe capaz de fornecê-la. Por outro lado, as classes médias temem mais a anarquia popular, à violência das massas, ao anticapitalismo ou ao desmantelamento do Estado, do que aos impostos, aos cortes ou às privatizações. Estão irritadas com os políticos, com o parlamento e com o governo, mas ainda acreditam nos juízes, na imprensa, nos funcionários e nas ONGs, na saúde e no ensino públicos, na ciência e no progresso. Estão sentadas sobre duas cadeiras instáveis, mas diante de uma alternativa muito pronunciada, agarrar-se-ão aos tópicos cidadanistas da ordem antes de se aventurarem pelos caminhos incertos da revolução social. Não será assim em todos os casos, mas sim na maioria. Pelo menos no início, quando a classe dominante e o sistema partidocrático tiverem a vantagem. Seu papel histórico é subalterno, nunca determinante. O sujeito subversivo não surgirá delas, nem encontrará nelas suas ilusões e seu ser. Apontamos a possibilidade de que da plena decomposição do capitalismo possa emergir uma classe “perigosa” disposta a mudar a sociedade de cima a baixo e eliminar o regime político vigente. Essa classe negativa terá de rejeitar a ideologia cidadanista tanto quanto a política profissional mistificadora feita pelos partidos, pois sua condição de existência impõe uma estratégia dissolvente e um proceder independente e igualitário. Se isso acontecer, a questão da classe média se resolverá por si só.

É muito difícil pensar estrategicamente após uma série de derrotas decisivas. Os novos rebeldes persistem em ignorar a derrota de seus predecessores, pois quanto maior foi a destruição do meio operário e o progresso da domesticação, maior é a desorientação e a impotência em vislumbrar uma nova perspectiva. A história social registra um grande número de derrotas suplementares como resultado de uma má avaliação da derrota principal, neste caso a do proletariado nos anos sessenta e setenta, agravada pelas tentativas de ocultá-la ou ignorá-la. Tampouco parece que influam as transformações do capitalismo provocadas pela globalização, a crise energética ou a urbanização generalizada. Na guerra social, esse tipo de comportamento leva à aniquilação de forças, ao compromisso efêmero e ao sectarismo vanguardista e aventureiro. Resulta paradoxal que aqueles que mais defendem uma memória histórica completa sejam os mais desmemoriados. E que aqueles que se autodenominam o pesadelo do poder não sejam mais que a facção indisciplinada e extremista das classes médias em ebulição. Ao longo da história, as crises sociais conduziram a situações explosivas, mas em uma atmosfera de confusão e na ausência de uma consciência clara, as crises apenas agravam o processo de decomposição. A mentalidade niilista e o oportunismo ocupam o lugar da consciência de classe, trabalhando contra a formação de um sujeito revolucionário, e fomentando subsidiariamente nas massas oprimidas sentimentos de frustração e de indiferença. Nos meios superficialmente contestatórios faltam análises sérias que revelem as raízes da questão social. O contraste atroz com a realidade teimosa e triste das ridículas táticas operárias e insurrecionais, sem mencionar as ainda mais dolorosas montagens lúdicas ou estéticas, induz à passividade, não à radicalização. Não pode haver radicalização sem tomada de consciência, e não há tomada que valha se não se avaliou criticamente o passado. Somente com boas intenções, raiva e encenações não se vai a lugar algum. Infelizmente estamos nos começos de uma revisão crítica. O capitalismo continua vencendo sem encontrar demasiada resistência. E o lado dos vencidos continua sofrendo as consequências não assimiladas de suas derrotas.