#title Internacionalismo e Desmundialização
#author Miguel Amorós
#date 01/06/2024
#source [[https://kaosenlared.net/internacionalismo-y-desmundializacion/][kaosenlared.net]]
#lang pt
#pubdate 2025-09-17T13:35:05
#topics internacionalismo, desmundialização, marcos estatais, fronteiras, idiomas, idiossincrasia nacional, proletariado, burguesia, estados nacionais, globalização, mundialização capitalista
#notes Titulo Original: Internacionalismo y Desmundialización. Tradução e Revisão por André Tunes @Centro de Análises Sistêmicas Anarco Comunista.
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.
* O NOVO INTERNACIONALISMO NA LUTA PELA DESMUNDIALIZAÇÃO
Pede-se que eu reflita sobre os condicionantes impostos pelos marcos estatais – seriam as fronteiras, os idiomas, a idiossincrasia nacional? na hora de construir relações em escala global. Uma reflexão desse tipo não pode ser feita in abstracto, mas deve partir de uma situação dada num momento dado. Suponhamos que estamos na Europa, na atualidade, quando, sem muito cálculo, um movimento social de características libertárias, nascido de lutas locais, se propõe a conectar-se com outros movimentos semelhantes em curso em outros Estados. Poderíamos pensar que o movimento em questão já se encontra suficientemente consolidado e esclarecido a ponto de fixar metas mais ambiciosas, além do âmbito local em que até então se limitava. Deduziríamos, então, que um processo acumulativo de experiências teria culminado e que o grau de desenvolvimento alcançado permitiria a “globalização” do movimento. Assim sendo, a superação do marco estatal se daria necessariamente de dentro para fora. No entanto, há exemplos históricos que demonstram o contrário. A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) não foi primeiramente constituída em espaços delimitados por Estados. Um comitê local convocou um congresso ao qual assistiram diversos delegados com diferentes níveis de representatividade; a ideia vingou e logo formaram-se organizações “regionais”, com novos congressos sendo realizados. Os marcos estatais não foram um obstáculo. Respirava-se uma atmosfera geral nos distintos cenários sociais do mundo capitalista anterior à aparição da AIT. O local era, ao mesmo tempo, universal. A condição proletária se estendia a todos os cantos do planeta da mesma maneira, de modo que qualquer trabalhador podia sentir como próprias as lutas mais geograficamente distantes. Ao contrário das lutas da burguesia, que buscavam a constituição de Estados nacionais, as lutas proletárias transcendiam toda barreira estatal: eram internacionalistas por natureza. Mais ainda, a Primeira Internacional se considerava portadora dos germes da sociedade futura. Tal sociedade resultaria da universalização da organização da Internacional. Apenas o que separava a realidade do futuro seria construído, ora mediante a ação parlamentar de partidos políticos fortes, segundo a corrente marxista, ora por meio de “uma coletividade revolucionária poderosa porém sempre invisível que preparasse a revolução e a dirigisse”, conforme a corrente bakuninista.
Somente levando em conta o estilo de vida uniforme, massificado e consumista imposto pela atual mundialização capitalista, o urbanismo predatório, o domínio absoluto da tecnologia e o extraordinário desenvolvimento dos Estados, particularmente de seus mecanismos de controle social, percebe-se que as possibilidades de um movimento social se estender para fora do Estado que o abriga são realmente mínimas. Mesmo aqueles de maior repercussão são efêmeros e deixam pouco rastro na consciência. Nas fases tardias do capitalismo, a condição proletária generalizou-se a tal ponto que já não constitui um signo diferencial sobre o qual se possa constituir uma identidade de classe. A penetração do capital na vida cotidiana o impede. Dentre tantos interesses particulares presentes e tanta sociabilidade dissolvida, nenhum interesse geral, de classe, chega a formular-se. A atomização sob o capitalismo, intensamente favorecida pelos planos de ordenamento urbano, proíbe a solidariedade, o apoio mútuo ou as relações fraternas que caracterizavam e regiam as comunidades proletárias de outrora. De fato, ela é eminentemente antissociativa. No entanto, os conflitos ocorrem onde os embates da economia, ou as consequências indesejáveis desses embates, encontram resistências em torno das quais pode delinear-se um anticapitalismo matizado. Surgem novos coletivos e movimentos sociais contra o patriarcado, o modo industrial de vida, a agricultura e a alimentação industriais, a mudança climática, a poluição do ar, da terra e das águas, o capitalismo verde, os despejos, o preço dos aluguéis, os baixos salários, a exploração de pessoas sem documentação, a multiplicação de rodovias, a urbanização desenfreada, o turismo de massas, etc. E dessas mesmas lutas emergem formas de sociabilidade alheias aos valores mercantis dominantes, embora estejamos longe de “uma nova comunidade humana no interior da antiga, mas em conflito com ela”, como sonhavam os internacionalistas.
A questão social, ao transbordar o mundo do trabalho, reaparece de forma fragmentária, sem que nenhuma crítica global consiga unificá-la. Toda tentativa de projetá-la a partir de um congresso internacional sempre resultou em estrondoso fracasso. A pobreza patética dos resultados desestimula muitos de tentar novamente, embora sempre haja quem se satisfaça com esse tipo de evento. O fracionamento da questão social corresponde a uma dispersão de teorias com componentes irracionais crescentes. Graças à filosofia pós-moderna, e especialmente à desvalorização da memória que ela implicou, o capitalismo também venceu a batalha no terreno das ideias. A autoformação militante já é considerada desnecessária; as ideias se reduzem à propaganda. No reino do esquecimento e da desmemória, as referências ao passado são inúteis. As do futuro, também. As metas não importam: só o presente conta. Nessa conjuntura, mencionar um porvir sem Estado, baseado em associações voluntárias de comunidades livres e autônomas, soa como coisa de outro mundo. Em condições materiais e pessoais em choque com as ideológicas, o recuo ao local se mostra aconselhável. Contudo, a vontade de clarificação é apenas um aspecto secundário de uma retirada estratégica. A luta anticapitalista é, antes de tudo, uma luta contra a globalização, uma luta pela desmundialização, o que implica um retorno à base. O local adquire uma importância maior do que em outras épocas. O estabelecimento de relações em nível global partirá, desta vez, da expansão e posterior confluência das experiências locais.
As lutas não são realmente anticapitalistas se não rejeitam o estilo de vida consumista, tecnodependente, individualista e periurbano, típico da organização social dominante. Sendo o capitalismo onipresente, o rechaço a ele será abstrato, mas pode deixar de sê-lo e se concretizar em nível local. Localmente, modos de vida societários e autônomos podem ser construídos à margem do capital, com maior facilidade fora das aglomerações urbanas e das zonas residenciais, nos territórios, o que impulsiona processos de ruralização cuja irradiação depende de sua exemplaridade e eficácia. A descolonização do espaço moldado pelo mercado imobiliário é obrigatória. Por outro lado, começam a surgir grupos de trabalhadores desempregados que ocupam ou alugam terrenos para plantar hortas e organizam redes para distribuir seus produtos, contrapondo-se assim à desmoralização produzida por uma ociosidade forçada. Esse deslocamento do eixo dos conflitos do campo laboral para a defesa do território tem consequências importantes. No território, é relativamente fácil que convirjam coletivos diversos com disposições às vezes contrapostas, mas capazes de encontrar pontos em comum e estabelecer vínculos que lhes permitam sair vitoriosos do choque com os interesses dominantes. A coordenação das lutas prepara o terreno para o reaparecimento de uma questão social unificada, reflexo da incipiente autoconstrução do sujeito anticapitalista, aquele que no passado chamavam de “proletariado”. Evidentemente, suas características definidoras serão outras, mais em consonância com a potencialidade maligna das novas tecnologias e com o urbanismo da dispersão ou, visto de outro ângulo, com a conjuntura histórica. Desnecessário dizer que, hoje, os movimentos sociais tendem mais a se apagar do que a se expandir, razão pela qual os encontros de coletivos têm pouca continuidade e as tentativas de coordenação supraestatal, quando ocorrem, não passam da primeira etapa de contato e troca de materiais. Vejamos os motivos.
É fácil supor o efeito desmoralizador da presença visível de aventureiros, lunáticos, curiosos, falastrões e outros personagens tóxicos, ou seja, o “lumpem” contemporâneo, como fator de desarticulação dos movimentos sem chefes nem regras. Mas isso só se aplica a movimentos estáticos (perdoe-se a aparente contradição), do tipo Occupy ou 15M, cuja finalidade não é outra senão preencher seu vazio existencial por vias emocionais. No entanto, há fatores desmobilizadores mais relevantes, como a heterogeneidade e a autolimitação. A variedade de elementos que compõem os movimentos defensivos, sobretudo o grupo de prefeitos, cargos eleitos e militantes partidários impregnados de mentalidade cidadanista, impede a formulação de programas e estratégias demasiado radicais (basta lembrar a fracassada coordenação interestatal AntiTAV). A autocontenção imposta à maioria dos conflitos territoriais os torna quase indistinguíveis dos protestos no estilo “no por mi patio trasero” (lutas contra linhas de alta tensão, contra usinas eólicas, contra apartamentos turísticos...). No entanto, o fator mais nocivo de todos, a digitalização não tem recebido a devida atenção. Ao menos fora dos reduzidos círculos antidesenvolvimentistas. Sem sequer nos darmos conta, a atividade contestatória foi em grande parte virtualizada, o que é como dizer: escapou da realidade. A hiperconexão pôde acelerar, em determinado momento, a afiliação e a promoção de manifestações, mas multiplicou exponencialmente sua volatilidade e ineficácia. Sem uma multiplicidade de relações diretas, os compromissos são frágeis e a responsabilidade social evapora-se rapidamente. Popularidade hoje, vacuidade amanhã. As mensagens se difundem e se esquecem em altíssima velocidade, submersas em um oceano de informação irrelevante. O espaço virtual, o assim chamado “ciberespaço”, não é neutro: ele é projetado para gerar lucro. Tende a manter o status quo capitalista, por mais que seus criadores afirmem o contrário, algo que se tornou evidente com a rapidíssima proliferação das redes sociais. Os movimentos sociais que a elas recorrem enfrentam uma verdadeira avalanche de manipulações, indiferente às dificuldades (ainda que improváveis) impostas pelos marcos estatais.
As novas gerações já nasceram com o celular na mão. Estamos nos primórdios de uma cultura digital uniforme, impulsionada por plataformas criadoras de identidades aberrantes e realidades paralelas. Essa cultura é homogênea e universal, fala todos os idiomas. Na última década, as redes sociais e os aplicativos pioraram radicalmente a forma de pensar, comportar-se e relacionar-se da grande maioria das pessoas no mundo todo. Elas deram o golpe final, no tempo, à obra predatória da urbanização no espaço. Para os usuários, plenamente reconfigurados, a realidade verdadeira é a que elas transmitem. Não precisam de mais nada. Em pouquíssimo tempo, os meios clássicos de formação e informação, livros, revistas, jornais, conferências e debates, tornaram-se raros, a ignorância se propaga sem freios via WhatsApp, e a desinformação em forma de fake news corre solta. O poder das redes de distorcer a realidade, pseudopolarizá-la e forjar uma mentalidade de turba é aterrador. Os processos cognitivos e morais dos indivíduos estão sendo seriamente danificados, sua personalidade, desestabilizada, e, enquanto isso, a vida cotidiana ressurge moldada por incentivos e normas impostos pelos algoritmos da persuasão industrializada. Dada a velocidade estonteante dos avanços e descobertas (por exemplo, a inteligência artificial), a capacidade manipuladora das plataformas digitais promete superar todo tipo de limitação. Os mecanismos da alienação e da psicopatia têm um grande futuro pela frente. Os conflitos reais não escapam a uma virtualização banalizante, à medida que ganham publicidade, da qual é impossível fugir. A questão social se transforma em questão existencial. Os movimentos sociais têm, portanto, nas redes seu maior inimigo, seu maior condicionante. O grau elevado de sectarismo e agressividade de determinados coletivos de ideologia woke, que hoje dinamita os meios libertários, não é alheio às plataformas. Curiosamente, esses coletivos costumam alinhar-se com as novas tecnologias e contra as posições antiindustriais. Tampouco o são o protagonismo de tela ou o prestígio fictício de muitas figuras-vedete. Por todas as razões expostas, as relações, em qualquer escala, precisam ser construídas desde o exterior. Ou, ao menos, manter suas linhas de ação e coordenação bem afastadas. Mergulhar na tarefa laboriosa de tecer organização por meio de contatos pessoais, reuniões, publicações impressas, assembleias presenciais e coordenações rotativas. Sair do capitalismo era uma operação difícil de realizar dentro das conurbações metropolitanas. Também hoje é tarefa impossível sem sair das redes.