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Miguel Amorós
Leninismo, Uma Ideologia Fascista
“Libertação! É notável como os instintos criminosos humanos são persistentes! Uso deliberadamente a palavra ‘criminoso’, pois a liberdade e o crime estão tão intimamente relacionados quanto o movimento de um avião e sua velocidade: se a velocidade de um avião é igual a zero, o avião é imóvel; se a liberdade humana é igual a zero, o homem não comete nenhum crime. Isso é claro. A maneira de livrar o homem da criminalidade é livrá-lo da liberdade”. Yevgeny Zamyatin, We, 1920.
A existência de seitas imobilistas mais ou menos virtuais que se reclamam de Lênin é hoje um assunto mais relacionado com as neuroses que espreitam os indivíduos imersos nas condições modernas do capitalismo do que com a luta pelas ideias que sustentam os rebeldes contra os ideólogos da classe dominante. O tempo não perdoa e o fracasso final do leninismo ocorrido entre 1976 e 1980 levou os crentes que sobreviveram a uma sobrevivência esquizóide. Como já estudou Gabel, o preço a pagar por sua fé é uma consciência dividida, uma espécie de dupla personalidade. Por um lado, a realidade desmente o dogma até no menor detalhe, e por outro, a interpretação militante há de contorná-la, encolhê-la e manipulá-la até o delírio para moldá-la ao dogma e fabricar um relato maniqueísta sem contradições. Como se de uma Bíblia se tratasse, nesse relato estão todas as respostas. O conto leninista suprime a angústia que no crente geram as contradições da prática, o que constitui uma poderosa arma para escapar à realidade. O resultado seria patético para o resto dos seres vivos se os debates abundassem no seio de um proletariado combativo como o dos anos setenta, mas dado o estado atual da consciência de classe, ou o que é o mesmo, dada a inversão espetacular da realidade, onde “o verdadeiro é só um momento do falso”, a presença de sectários leninistas nas escassas discussões de base só contribui para a confusão reinante.
O papel objetivo das seitas consiste em falsificar a história, ocultar a realidade, desviar a atenção dos verdadeiros problemas, sabotar a reflexão sobre as causas do triunfo capitalista, bloquear a formulação de táticas de luta adequadas, impedir, enfim, o rearmamento teórico dos oprimidos. Os leninistas fossilizados de hoje já não são (porque não podem) a vanguarda da contrarrevolução de há trinta anos ou de há sessenta, mas a sua função permanece a mesma: trabalhar para a dominação como agentes provocadores. Dada a atual decomposição da ideologia talvez convinha falar de leninismos, mas longe de nos perdermos nas nuances que separam as diferentes seitas tentaremos agrupar as características relacionadas, que são as que melhor as definem, a saber, a negação absoluta de que em 1936 haveria uma revolução operária, a afirmação igual de rotunda da existência de uma classe operária em constante avanço e a crença no advento do partido dirigente, guia dos trabalhadores na marcha para a revolução. O primeiro lhes vem, bem das análises derrotistas e capituladores da revista belga “Bilan”, bem como dos ditados triunfalistas do Komintern e do PCE. Se em um caso era questão de uma guerra imperialista, no outro, tratava-se de uma guerra da independência; em ambos, o proletariado devia deixar-se esmagar.
No universo leninista, Lenin é a Virgem Maria; a classe operária de que falam é como a cristandade. Um xiita do leninismo, ou seja, um bordiguista, lamentava-se na web: “Se nos tiram a classe operária, o que nos resta?” Com efeito, para os leninistas, a classe operária tem uma função ritual, terapêutica se quiser, psicológica. É uma entidade ideal, uma abstração, em nome da qual há de tomar o poder. Não é que não exista, é que nunca existiu. Inventada por Lenin a partir do modelo russo de 1917, uma classe operária minoritária em um país feudal de população eminentemente camponesa acessível a uma direção exterior composta por intelectuais organizados como partido, não é exatamente algo que vemos todos os dias. Pertence a um passado caduco. É um ideal utópico, antihistórico. Sem brincadeiras, a seita trotskista Posadista acreditava tê-la encontrado entre os extraterrestres de uma galáxia distante de onde enviavam à Terra discos voadores com mensagens socialistas. As mensagens dos ovnis devem ter surgido porque o proletariado leninista aparece em toda sopa planetária; segundo a imprensa leninista sua epifania pode acontecer em qualquer evento, por exemplo, na guerra civil do Iraque, nas mobilizações de estudantes franceses, ou na constituição de uma “esquerda” sindical, ainda que o mais frequente seja nos conflitos laborais.
Como não há história para o leninismo depois da tomada do Palácio de Inverno, desde a Revolução Russa parece que não tenham havido nem derrotas nem vitórias significativas, no máximo algum contratempo dentro de uma linha evolutiva invariável que conduz a uma classe operária impoluta, esperando os padres da igreja, seus líderes, membros por direito do “partido”. Porque o verdadeiro sujeito histórico para os leninistas não é a classe, mas o partido. O partido é o critério absoluto da verdade, que não existe por si só, mas dentro dele, nas sagradas escrituras corretamente interpretadas. Dentro do partido, a salvação; fora, a condenação eterna. Esse vanguardismo alucinado é o traço mais antiproletário do leninismo, já que a ideia de partido único messiânico é alheia a Marx; provém da burguesia maçonaria e carbonaria. Marx chamava partido ao conjunto de forças que lutavam pela auto-organização da classe operária, não a uma organização autoritária, iluminada, exclusiva e hierarquizada.
É revelador que os leninistas vejam hoje os interesses econômicos particulares como interesses de classe, quando já não o são, e que, nos anos setenta, quando o eram, os tratavam como assuntos sindicais, “tradeunionistas”. A diferença é que, na época, o proletariado lutava a seu modo, com suas próprias armas, as assembleias. Era isso que transformava a reivindicação parcial em exigência de classe. Mas os leninistas desprezam as formas realmente proletárias de organização e de luta: as assembleias, os comitês eleitos e revogáveis, o mandato imperativo, a autodefesa, as coordenadoras, os conselhos … E as desprezam porque enquanto formas de poder operário ignoram os partidos e dissolvem o Estado, incluindo o Estado “proletário”. Por isso, esconderam tanto como os meios de comunicação a existência do Movimento Assembleia durante os setenta, porque são inimigos de uma classe operária real que não se parece em nada com a sua e odeiam por razões evidentes suas formas organizacionais específicas. Ao contrário de Marx, para os leninistas o ser não determina a consciência, pelo que é preciso inculcá-la mediante o apostolado dos líderes. Os operários não podem alcançar, segundo Lenin, mais que uma consciência sindical e devem dobrar-se ao papel de simples executantes; os sindicatos que os enquadram e controlam são, portanto, a correia de transmissão do partido. Isso não impede que os leninistas elogiem as assembleias e os conselhos se isso lhes permite exercer alguma influência e recrutar adeptos. Durante os anos setenta chegaram a apoiá-las mas logo que se sentiram fortes as traíram, tal como, salvando as diferenças, fez Lenin com os Sovietes.
A revista “Living Marxism”, animada por Paul Mattick, lançava a palavra de ordem de que “a luta contra o fascismo começa pela luta contra o bolchevismo”. Durante a década de 1950, o capitalismo dos executivos evoluiu para os modos totalitários do capitalismo de Estado soviético. Hoje, quando a classe burocrática comunista se converteu ao capitalismo e o mundo é arrastado para a dominação fascista pela via tecnológica, a ideologia leninista é residual, poeirenta e museográfica. Não estuda o capitalismo porque este não é seu inimigo, e claro que não quer lutar contra ele. Simplesmente faz como o alho, repete-se. O trabalho principal de suas seitas consiste em competir umas com outras assinalando “um ponto particular que as distingue do movimento da classe” (Marx).
A batalha teórica contra os leninistas é pois um combate menor, algo assim como dar pontapés aos mortos-vivos, mas enquanto estrutura primária de novas ideologias da contra-revolução como o Hardt-negrismo não convém negligenciá-la, e com este objetivo recordamos algumas banalidades de base sobre o leninismo que qualquer um poderá encontrar nas obras de Rosa Luxemburgo, Karl Korsch, os conselhistas (Pannekoek, Gorter, Rülhe) ou os anarquistas (Rocker, Volin, Archinoff). O leninismo através de Negri e seus acólitos, como antes através do estalinismo, sua forma extremada, efetua um retorno completo ao pensamento e aos modos da burguesia, concretamente na fase globalizadora totalitária, manifesto em sua defesa do parlamentarismo, dos compromissos políticos, da telefonia móvel e do espetáculo movimentista. O negrismo sustenta ideologicamente as frações débeis, perdedoras, da dominação, a burocracia política administrativa, o aparato sindicalista e as classes médias, interessadas em um capitalismo intervindo pelo Estado. Mas o leninismo não é diferente. Sempre defendeu interesses contrários ao proletariado.
Na Rússia de 1905 não existia uma burguesia capaz de se lançar à luta contra o czarismo e a igreja como futura classe dominante. Essa missão coube aos intelectuais russos, que buscaram o esclarecimento de seus impulsos nacionalistas no marxismo e encontraram seus melhores aliados no campo operário. O marxismo russo tomou um aspecto completamente diferente do ortodoxo, já que na Rússia o trabalho histórico a cumprir era o de uma burguesia muito débil: a abolição do absolutismo e a construção de um capitalismo nacional. A teoria de Marx, adaptada por Kautsky e Bernstein, identificava a revolução com o desenvolvimento das forças produtivas e do Estado democrático correspondente, o que favorecia uma práxis reformista que embora pudesse funcionar na Alemanha, não podia na Rússia.
Se bem que Lenin aceitasse integralmente o revisionismo social-democrata de Marx, sabia que a tarefa dos sociais-democratas bolcheviques de derrubar o czarismo não podia ser levada a cabo sem uma revolução, para a qual eram necessárias melhores forças do que as dos liberais russos. Uma revolução burguesa sem burgueses, e ainda contra eles. A revolta operária de 1905 deixou o regime absolutista ferido e a revolução de fevereiro de 1917 acabou com ele. Embora fosse uma insurreição operária e camponesa não tinha programa revolucionário nem consignas particulares, pelo que os representantes da burguesia ocuparam o seu lugar. A burguesia não soube estar à altura, enquanto o proletariado se instruía politicamente e tomava consciência de seus objetivos; em pouco tempo a revolução perdia seu caráter burguês e adotava um ar decididamente proletário. Durante julho-agosto Lenin ainda defendia um regime burguês com presença operária mas vendo o avanço dos Sovietes ou conselhos operários mudou de orientação e lançou a palavra de ordem de poder aos sovietes, e chegou mesmo a teorizar sobre a extinção do Estado. Mas a ideia de poder horizontal era alheia a Lenin, que havia organizado um partido sobre o modelo militar burguês, vertical, centralizado, decidindo sempre de cima, com a direção e a base fortemente separadas. Se estava a favor dos sovietes era para instrumentá-los e tomar o poder. A sua principal função não foi o desenvolvimento dos sovietes, que não tinham lugar no seu sistema; foi a conversão do partido bolchevique em aparelho burocrático estatal, a introdução do autoritarismo burguês no exercício e a representação do poder. Aos sovietes, os protagonistas da revolução de outubro, em pouco tempo foi escamoteado seu poder por um Estado “proletário” que não souberam destruir. Os bolcheviques combateram em nome da “ditadura do proletariado” o controle operário e a implantação da revolução nas oficinas e nas fábricas, e, em geral, a manifestação soberana da vontade operária em organismos de democracia direta. Em 1920 tinham acabado com a revolução proletária e os sovietes já não eram mais que organismos castrados, decorativos. Os últimos bastiões da revolução, os marinheiros de Kronstadt e o exército makhnovista foram aniquilados mais tarde.
Ao mesmo tempo que destruíam os sovietes, os emissários bolcheviques desembarcavam na Alemanha, onde o conselhismo havia despertado nas massas operárias e os conselhos estavam a ponto de se tornarem órgãos efetivos de poder proletário, para apunhalar pelas costas a revolução. Por toda parte desacreditaram a consigna de Conselhos Operários e advogaram o retorno aos sindicatos corruptos e ao partido social-democrata. A revolução conselhista alemã caiu sob o peso da calúnia, da intriga e do isolamento provocado pelos bolcheviques. Sobre as suas cinzas pôde reconstituir-se, com a bênção de Lênin, a velha social-democracia e o Estado alemão do pós-guerra. Lenin não deixou de combater os defensores do sistema de conselhos cobrindo-os de impropérios no folheto preferido de todos os seus seguidores, “O esquerdismo, doença infantil do comunismo”. Foi aí que ele tirou a máscara. Esmagando com falsidades os comunistas de esquerda e os Conselhos, Lênin defendia o seu pseudosocialismo pan-russo, que, posto em prática por Estaline, se revelaria um novo tipo de fascismo. Nem de longe concebia que a libertação dos oprimidos só pudesse realizar-se mediante a destruição do poder, do terror, do medo, da ameaça, da constrição.
Todo aquele que deseje entronizar uma ordem burguesa encontrará as melhores condições de fazê-lo na separação absoluta entre massas e dirigentes, vanguarda e classe, partido e sindicatos. Lenin queria uma revolução burguesa na Rússia e havia formado um partido perfeitamente adaptado à tarefa, mas a revolução russa adquiriu caráter operário e estragou seus planos. Lenin teve que vencer com os sovietes para depois vencer contra eles. O comunismo mais a eletrificação cedeu a passagem à NEP e aos planos quinquenais de Stalin, dando lugar a uma nova forma de capitalismo onde uma nova classe, a burocracia, desempenhava o papel da burguesia. Era o capitalismo de Estado. Na Europa, as massas operárias foram freadas, desanimadas e empurradas à derrota até se desmoralizarem e perderem a confiança consigo mesmas, caminho que conduziu à submissão e ao nazismo. Hitler chegou facilmente ao poder porque os dirigentes social-democratas e estalinistas tinham corrompido tanto o proletariado alemão que este não se importou em entregar-se sem queixa. “Fascismo pardo, fascismo vermelho” foi o título de um memorável folheto onde Otto Rüle mostrava que o fascismo estalinista de ontem era simplesmente o leninismo de anteontem. Nele nos inspiramos para o título do nosso artigo.
Os paralelismos com a situação espanhola de 1970–78 são óbvios. Por um lado, o partido comunista oficial, estalinista, defendia uma aliança com os sectores da classe dominante que forçasse uma conversão democrática do regime franquista. Sua força provinha principalmente da manipulação do movimento operário, ao que pretendia enquadrar dentro do aparato sindical fascista. Todos os procedimentos leninistas para impedir a auto-organização operária foram utilizados fielmente pelo PCE. Os partidos esquerdistas, nascidos principalmente da explosão do FLP, de cisões do PCE e da Frente Operária da ETA, não agiram de outro modo. Todos atacavam o PCE por não ser suficientemente leninista e não perseguir, como Lenin, uma revolução burguesa em nome da classe operária. Disputavam-lhe a direção de Comissões Operárias, trabalho inútil porque em 1970 Comissões já não era nenhum movimento social, mas a organização dos estalinistas e simpatizantes nas fábricas. Para conquistar posições fizeram concessões às genuínas formas operárias de luta, as assembleias, mas nunca as fomentaram. Após os acontecimentos de Vitória, em 3 de Março de 1976, as divergências com o PCE desvaneceram-se e seguiram-no na sua política de compromissos. Candidataram-se a eleições, colhendo o mais rotundo dos fracassos. Desapareceram deixando um rastro de pequenas seitas, mas seu suicídio político foi também o do PCE, que a partir de 1980 se transformou em um partido testemunhal, de ideologia variável, sustentado só por alguns fragmentos proletários da média e pequena burguesia.
Algumas verdades podemos aprender com a crítica clássica do leninismo em que nos baseamos. Que os fundamentos da ação que incline a balança social do lado contrário ao capitalismo não se encontrarão com os métodos de organização do tipo sindicatos ou partidos, nem nos parlamentos, nem nas instituições estatais, nem nos centros comprometidos com qualquer aspecto da dominação. Que as massas oprimidas se encontram isoladas e dispersas, sem amigos. Que os ativistas devem colocar acima de tudo a capacidade de associação, o fortalecimento da vontade de ação e o desenvolvimento da consciência crítica, inclusive acima dos interesses imediatos. Que as massas devem escolher entre ter medo ou dá-lo.