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Miguel Amorós
Neoliberalismo e Estatização
Porque o estado é o maior inimigo do gênero
humano, e a todos que o pega por banda o divide
Muito cuidado… sempre livre, independente,
e não se preocupe com ninguém.
(Benito Pérez Galdós, Miau)
A questão da natureza do Estado contemporâneo e de sua relação atual com a economia capitalista em uma fase neoliberal avançada altamente inflamável por todos os tipos de crises, é de grande importância para o esclarecimento teórico do protesto no seio das massas dominadas. Tal esclarecimento é uma condição fundamental para a emancipação prática das mesmas. Tendo isso em mente, será bom que exponhamos algumas considerações sobre o assunto.
Durante os tempos críticos, o Estado é levado em procissão. Se a crise sanitária passada evidenciou seu papel fundamental no controle da população e o cessar parcial da atividade econômica, sem traumas nem contestação de importância, as urgências do aquecimento global do planeta e o atual aumento dos preços dos combustíveis não fizeram mais que reafirmarem isso. Os mecanismos postos em marcha para garantir a tarefa foram qualitativamente transformados: a digitalização deu passos gigantescos, a comunicação unilateral se generalizou e a manipulação informativa ultrapassou todos os limites sem resistência perceptível. As garantias legais e os direitos sociais estão sendo progressivamente eliminados enquanto o aparelho repressivo continua a se fortalecer. O que hoje chamam de democracia, transição ecológica ou desenvolvimento sustentável não são mais do que simulações burlescas que não dissimulam a crescente atmosfera autoritária e a primazia anti-ecológica das finanças. O poder real se concentra e centraliza à medida que as massas são despojadas da menor decisão e despojadas de toda informação objetiva. A dominação não tem diante de si mais do que uma população desinformada e em grande parte resignada, agarrando-se às tábuas de salvação que o sistema quer lhes fornecer. Controlada e subjugada a gente, o terreno fica livre para que a estatização da vida suba alguns degraus. Precisamente, como nos indica o conservador Carl Schmitt, o que define o Estado é “a possibilidade de dispor abertamente, muitas vezes, da vida dos homens”, por isso não é surpreendente que no mundo pós-moderno o Estado penetre até na intimidade mais recôndita. Por outro lado, a profissionalização da política e o deplorável espetáculo de seu exercício contribuem bastante para a perversão da atividade pública e para a desafeto social. A tecnificação faz o mesmo com a vida privada (a tecnologia é no presente uma força produtiva direta). Paradoxalmente, a doutrina neoliberal, o dogma da alta burguesia executiva, elevou a níveis superiores a presença cotidiana do Estado em qualquer atividade.
Contra qualquer postulado teórico, a globalização financeira corre ao mesmo ritmo com o estatismo. O controle global dos recursos – a geopolítica – impelia a uma militarização acelerada, e, consequentemente, a um descomunal reforço burocrático do Estado e a uma concentração sem precedentes da esfera decisória. Os desvios conflituosos ocorridos desde a Guerra do Golfo ilustram a tendência belicista-estatista das grandes potências, e consequentemente, de toda a coorte de potências menores. A segurança de uma vida privada entregue ao lazer, ao consumo e ao turismo, atividades tão apreciadas pela massa submissa, depende agora do jogo entre estratégias securitárias em escala mundial. Os desequilíbrios de poder que causam as crises políticas internacionais num contexto de crise múltipla obrigam a uma mudança das relações entre a sociedade, os Estados e os mercados globais. O autoritarismo, e por conseguinte a burocratização e a hierarquização, impõe-se em todos os níveis, pois para conservar a soberania dos mercados e salvar o comércio mundial é necessário um salto qualitativo na disciplinarização e no controle da sociedade. Se as instituições estatais se submeterem em tempos tranquilos aos imperativos da economia, durante os momentos de crise a economia precisa da intervenção estatal como água de maio.
A relação entre Capital e Estado parece estar invertida, mas aqui não se trata de um capitalismo de Estado como o que descreveram em seu dia Bruno Rizzi ou Friedrich Pollock, nem mesmo de interferências estritamente limitadas na atividade econômica como as que Keynes propôs na sua época. Exceto no caso da China, os governos não assumem o papel de capitalista mais poderoso, nem os Estados são o fator econômico mais importante. Não há um partido único omnipresente, e o conjunto das cúpulas partidárias desempenha um trabalho secundário, já que a decisão não repousa normalmente nos parlamentos. Nos sistemas partidaristas os mercados não recuam (nem se alteram), as corporações financeiras mantêm sua posição e a propriedade pública nunca ultrapassa certas barreiras. Nada de nacionalizações ou monopólios. Estamos muito longe do Estado-Nação do século passado: acima planeja-se uma elite corporativa transnacional. O Estado não controla o dinheiro, nem o crédito, nem o investimento, nem os lucros das empresas. Em resumo, não interfere no que diz respeito ao Capital, mas obedece à seus desígnios. No máximo, adota algumas medidas orçamentárias, controla temporariamente os preços dos alimentos básicos e da energia, regula o consumo de alguns produtos, concede subsídios ou decreta impostos extraordinários, mas sem que as leis econômicas sejam substancialmente alteradas. Afinal, o interesse geral expresso na dinâmica estatal não é mais do que a fusão entre os interesses privados da burocracia política e os das oligarquias financeiras mundiais. Essa burocracia não transforma sua condição e cargo diretamente em instrumentos de poder como antigamente nos sistemas totalitários e ditaduras; simplesmente os usa para se colocar em grandes empresas ou organismos paraestatais graças às portas giratórias. No ocidente, a economia define o exercício do poder e a recompensa correspondente, não o inverso.
Apesar da intensa propaganda a seu favor, o liberalismo político não se encaixa com as convicções da maioria dos líderes mundiais, especialmente os dos países afetados por medidas neoliberais e aqueles que nos países promotores as repudiam, os quais costumam priorizar, aberta ou ilicitamente, a subsistência e o crescimento econômico sobre a preservação das aparências democráticas e do garantismo jurídico. Para aqueles, arautos do populismo, o desenvolvimentismo nacional é a melhor ferramenta de estabilização política, e o modelo chinês, que comentadores costumam se referir como “o consenso de Pequim”, o exemplo onde convém inspirar-se. Na verdade, a experiência chinesa sugere que a “modernização” econômica e, consequentemente, a integração na economia-mundo, é compatível com um autoritarismo extremo, desde que a burocracia dirigente saiba adaptar-se aos negócios, Opere de acordo com as regras mercantis e aceite ser julgada pelos resultados. O sistema político não importa, o parlamentarismo é dispensável sem que a estabilidade interna seja perturbada, pois depende muito mais do crescimento da economia do que da reforma política (durante o franquismo isso era um axioma). Apesar das desigualdades e bolsas de pobreza, as classes dominadas e vigiadas em sua maioria vinculam sua prosperidade material ao sistema, por isso a oposição é quase testemunho. A classe dominante chinesa protagonizou um crescimento notável indiferente à situação financeira do capitalismo ocidental, demonstrando a possibilidade de uma globalização que mantivesse a soberania estatal, encorajasse o nacionalismo, enaltecer o estilo autoritário de governo e fechar os olhos à repressão. O modelo exige um papel determinante do Estado-partido como maior fornecedor de recursos, principal financeiro e dominante nos setores considerados estratégicos como transporte, saúde, mineração e comunicações. A área privada da economia na China também não é insignificante, mas a elite econômica gerada está mais interessada em fortalecer o sistema do qual faz parte e se beneficia do que em mudar. Aqui as portas giratórias levam à política. O controle é fundamental, mas o partido único se desenrola nesse campo com eficácia comprovada. Enfim, o modelo chinês demonstra que o capitalismo pode funcionar perfeitamente sem formas políticas representativas e que o sistema de partidos, apesar de sua submissão aos ditames da economia e geopolítica, pendura nos regimes ocidentais como um adorno herdado mais do que como um instrumento medianamente útil.
Em última análise, as crises estimularam uma involução autoritária e controladora em todo o mundo capitalista. O despotismo está na ordem do dia. Nos países com uma classe média importante, a segurança prima sobre a liberdade. Assim, as medidas de exceção são cada vez mais numerosas e os condicionantes democráticos cada vez mais aparentes. A tentação chinesa assola a mentalidade dominante, que considera as instituições políticas como um obstáculo ao desenvolvimento e até mesmo um fator de destruição da economia. Consequentemente, as portas se abrem para uma futura epifania de sistemas ditatoriais mais ou menos mascarados pelo nacionalismo.