Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.
Miguel Amorós
Os Novos Tópicos da Ordem Estabelecida
Os lugares comuns presentes no discurso da elite dominante, elevados à categoria de tópicos por uma plêiade de porta-vozes e panegiristas, refletem uma dupla evolução contraditória: por um lado, a completa integração na economia mundial de qualquer atividade humana; por outro, o retorno do Estado como instrumento complementar dessa integração.
Como diz a sensibilidade burocrática de hoje, sem Estado não há mercado, sobretudo após o crash de 2008 e a pandemia. É indiscutível que os mercados governam e ditam a lei, principalmente os financeiros, mas, na verdade, os Estados gerenciam o mau funcionamento de tal tipo de governo. Vivem para a economia. O estilo de vida moderno, industrial, consumista, seria impossível de outra forma, sem um aparato administrativo e coercitivo que fosse reparar os erros da máquina capitalista e amortecer os conflitos suscitados. O Estado, isto é, a organização da sociedade baseada no domínio e monopólio da violência, a combinação perversa entre violência e poder, desempenha um certo papel na nova reestruturação capitalista em curso. O que na boca dos defensores populistas da ordem estabelecida dá lugar ao grande tópico do Estado paternalista como resposta a todos os problemas dos cidadãos, desde os ambientais aos sociais. “O Estado é tudo”, dizem: a segurança, o bem-estar, o enriquecimento fácil, o gozo, dependem dele. Para o partido da ordem é, de fato, uma forma indispensável de organização social.
A ilusão de um possível interesse comum entre o Estado e seus súditos, ou a suposição de um espaço inexistente onde se possam conciliar os meios coercitivos estatais e as práticas democráticas horizontais, são fundamentais se se deseja que os governados ajam segundo pautas determinadas em tempos de crise – não há outros – a favor das medidas restritivas que lhes sejam impostas, deixando a discussão e a análise para especialistas a soldo. No entanto, não estão longe os tempos em que o Estado era considerado como a herança política das classes privilegiadas, ou seja, o poder organizado da classe dominante sobre as massas dominadas. O chamado Estado do bem-estar era simplesmente a forma estatal própria do capitalismo nacional, um produto fracassado da luta de classes, a dominação política burguesa típica de uma fase pré-globalização hoje extinta. Ignorar esta verdade significa ocultar a existência dessa classe, algo que habitualmente fazem os políticos, e também os “verdes”, uma vez que foram cooptados pela ordem e, dada a facilidade com que assimilam comportamentos burgueses na vida quotidiana, eles também acreditam pertencer de fato a ela. Enfim, a vontade popular nunca poderá se expressar através do Estado, enquanto poder separado, mas à margem. A tarefa das instituições estatais não é representá-la, mas substituí-la. O Estado é tanto mais forte quanto essa vontade não encontra formas organizacionais adequadas para se formular. Por outro lado, sua futilidade é bem visível quando a sociedade civil sabe se auto-organizar.
Um dos tópicos mais comuns entre os líderes é o de estar “na véspera de uma crise”. A poluição, os resgates bancários, o pico do petróleo, o aquecimento global, a exclusão e, como não, as guerras, iluminam as múltiplas faces dos apuros da economia-mundo, seja na forma de alteração climática, seja como problema financeiro, baixa fertilidade dos solos, escassez de energia ou redução da oferta de alimentos. Os líderes se tornaram catastrofistas e adotaram a linguagem dos progressistas pós-estalinistas, populistas de esquerda e ecologistas de tapete, todos eles keynesianos furiosos, e como tal, partidários até a morte do Estado. Mas a crise é inerente ao capitalismo, já que seu funcionamento normal consiste em subverter as relações sociais nas quais anteriormente se apoiara. As crises são os motores da globalização, necessárias para o crescimento econômico: são a sua condição de existência. A crise atual, limiar de uma recessão em todos os sentidos, nos introduz num cenário de escassez de matéria-prima, predomínio voraz da finança e volatilidade de preços que terá consequências perturbadoras na massa administrada. Nessas circunstâncias, a dominação reconhece a deterioração social e ambiental como um fato total e tenta se manter e lucrar com isso. A catástrofe é agora a principal condição do desenvolvimento capitalista e o propulsor de seu programa de atividades extrativistas, o “Novo Pacto Verde”, cuja cereja do bolo é a “transição energética”. O capitalismo “verde” é essa fuga para a frente que o tecido industrial, financeiro, comunicacional e político que o representa costuma chamar de “progresso”.
O slogan de “o capitalismo do futuro será verde ou não será”, que se popularizou nos últimos noventa com o do “desenvolvimento sustentável”, é outro tópico na dança. O aquecimento global finalmente atingiu a alta política e os males do desenvolvimentismo não podiam ser negados. Então, no ponto em que o crescimento econômico perturba a existência de amplos setores da população e até põe em perigo a sobrevivência da espécie humana, a busca do lucro privado se proclama conservacionista e ambientalista. Os projetos ecológicos enquanto descobrem novas vias para a acumulação de capitais, passam a fazer parte dos mecanismos desenvolvimentista da dominação em sociedade amigável com a mineração recém-reativada e a digitalização total da economia, da vida e do trabalho. Seu papel é evidente, por exemplo, na recente invasão de pseudo-renováveis industriais ou na exploração de recursos naturais de qualquer tipo. A conexão do aparelho ecologista, profissionalizado e hierarquizado, com o capitalismo “verde” através de fundos “filantrópicos” é evidente: o discurso ecológico domesticado é cada vez mais um discurso de especialistas sobre a gestão da penúria e da nocividade. Na realidade, a burocracia “verde”, além de uma poderosa máquina arrecadadora, é o defensor ideológico do ecologismo de Estado e o agente desmobilizador do antidesenvolvimentismo de base. Não é segredo que a crise climática, a biodiversidade, o campesinato tradicional ou a poluição não importam para quem toma decisões de cima; o que realmente importa é a preservação do regime capitalista – a manutenção da civilização industrial – pois é o único modelo de sociedade capaz de abrir portas para os anseios de poder, a obsessão por enriquecer e as exigências consumistas de um estilo de vida escravo da mercadoria e administrado por parasitas como o que temos. Se tivermos essa prioridade em mente, o que diz o ecologismo patenteado não tem a menor importância. Não significa nada, é pura palhaçada. Um monte de clichês.
Considerando a inevitabilidade dos conflitos territoriais, os mecanismos transversais de participação e diálogo podem ser trampolins perfeitos para o salto à política provincial e regional. Com a intermediação entre a resistência às agressões ao território e os interesses extrativistas, o ecologismo burocrático aspira a aumentar seu peso na administração, começando pelo térreo. Inimigo dos ativistas, sabotadores e ocupantes de zonas a defender, ele se dirige mais para um público próximo de aspirantes a vereadores ou deputados quando recomenda “gerar espaços políticos”. A política é o terreno mais indicado para o ecologismo de ordem, “uma alavanca de câmbio colossal” de acordo com o tópico mais aberrante de todos, maior ainda que o otimismo tecnológico que costuma acompanhá-lo. Quando se fala de política, não se alude à arte de relacionar-se, deliberar publicamente e tomar decisões em comum benéficas para toda a coletividade, longe de instituições que não a representam, mas sim à política parlamentar burguesa, aquela cujas regras de jogo favorecem os interesses das finanças, no caso espanhol nascida de um compromisso entre a última Ditadura e a oposição moderada. Em uma época de descrédito absoluto dessa política, de crise do sistema de partidos, de desprestígio do partidarismo mesmo entre as classes médias que têm sido seu principal suporte, quando os adversários são apenas distinguíveis uns dos outros, os adeptos do “Novo Pacto Verde” entre as administrações, as multinacionais e as organizações político-sindicais e verdes, interpretam as eleições como verdadeiros “plebiscitos climáticos”. Sem dúvida, uma espécie de sinais de aprovação da evolução fantasmal “sustentável” da economia orientada pelos Estados. Ao falar de política, da má, da qual não existe sem os sistemas de poder separados, na realidade se falava também de Estado contemporâneo, funcionarial, militar e policial. Uma coisa é a outra.
Os tópicos do ecologismo de despacho e do populismo de esquerda marcam uma linguagem política degradada que transparece com clareza o amor às poltronas. Isso é porque a linguagem da política liberal serve para esconder o abraço totalitário da mercadoria, não para desvendá-lo. As regras da correção política sancionam implacavelmente as iniciativas em sentido contrário. Busca-se a submissão aos imperativos econômicos, não seu desmascaramento, ainda que em momentos de insegurança no fornecimento e protestos dos agricultores, as mudanças tenham se desacelerado, sobretudo em questões energéticas. Em resumo, o objetivo de uma gíria empobrecida cheia de estereótipos é atordoar, não acordar. Vender a mota, não abrir a mente. Recorrendo a Bakunin, diria que “o triunfo da humanidade, a conquista e realização da plena liberdade e do pleno desenvolvimento material, intelectual e moral de cada um, mediante a organização absolutamente espontânea e livre da solidariedade econômica e social, tão completa quanto possível, entre todos os seres humanos da terra” é, entre outras coisas, uma questão de linguagem. Obviamente, trata-se de identificar e descrever com ele os falsos aliados e os verdadeiros inimigos da boa causa da emancipação humana, sem esquecer aqueles que atuam dentro dos coletivos anticapitalistas, porque são os mais letais. Se não queremos que os primeiros passos da liberdade sejam os últimos, devemos nos guardar de todos eles.