Mikhail Bakunin
Carta de Mikhail Bakunin a Serguey Guennadevich Nechayev
2 de Junho de 1870, Locarno.
Carta de Mikhail Bakunin a Serguey Guennadevich Nechayev, 2 de Junho de 1870, Locarno.
Estimado companheiro: dirijo-me agora a você e, através de você, ao seu e ao nosso Comitê. Espero que se você está agora em um lugar seguro, livre das pequenas moléstias e inquietações, possa reconsiderar tranquilamente a sua situação e a nossa em geral, nossa causa comum.
Comecemos reconhecendo que nossa primeira campanha, iniciada em 1869, se perdeu, estamos derrotados. Esmagados por duas razões principais: a primeira, o povo não se levantou em cuja revolta confiávamos com todo o direito. Vemos que não se esgotou o limite de seus sofrimentos e o limite de sua paciência. Vemos que sua confiança em si mesmo, em seu direito e em sua força, ainda não estava avançada e não se encontrou um número suficiente de pessoas capazes por toda a Rússia para atuar junto e despertar essa confiança. A segunda razão, nossa organização, pela qualidade e pela quantidade de seus membros e do mesmo modo de sua formação, resultou insuficiente. Por isso fomos derrotados, perdemos muitas forças e pessoas valiosas.
Este é um fato inquestionável e devemos reconhecê-lo totalmente, sem retroceder em nenhum momento, para que seja um ponto de partida de nossas próximas reflexões, empresas e ações.
Você estava consciente disso, assim como seus amigos, sem nenhuma dúvida antes, muito antes de me contar. Pode-se dizer que nunca me falaram disso. Tive que adivinhar pelas contradições, numerosas e evidentes, de suas declarações e por fim convencer-me, pelo estado geral da situação, pois estava muito claro que não havia modo [...] de ocultá-lo nem sequer aos companheiros mais desinformados. Você estava convencido disso más que a medias quando veio a minha casa em Locarno. Mas você me falou com completa certeza e do modo mais afirmativo da iminência da necessária sublevação. Você me enganou, e eu, suspeitando ou pressentindo instintivamente a mentira, me negava consciente e sistematicamente a acreditar. Você continuou falando e atuando como se me dissesse a pura verdade. Se me houvesse mostrado, durante sua estadia em Locarno, a situação tal como era em relação ao povo e a organização, sem dúvida haveria redigido minha convocação aos oficiais no mesmo sentido e com o mesmo espírito, porém, com outras palavras. E haveria sido melhor para mim, para você e sobre tudo para a situação. Eu não lhes haveria falado de um movimento eminente.
Não me aborreço com você e não lhe faço reprovação por saber que quando você está mentindo, ocultando ou silenciando a verdade, você o faz fora de interesses pessoais, faz simplesmente por que acredita ser útil a causa. Todos nós e eu lhe queremos com afeto e lhe respeitamos profundamente precisamente por que nunca encontramos um homem tão desapegado de si mesmo como você e tão entregue a causa.
Mas nem esse afeto, nem esse respeito, poderiam impedir-me de lhe dizer francamente que seu sistema de mentiras, que tende cada vez mais a ser sua principal, seu único sistema, sua arma e meio principal, é mortal para a mesma causa.
Não obstante, antes de tentar demonstrar-lhe, e espero conseguir, falarei sobre a minha atitude para com você e seu Comitê. Buscarei explicar por que, a pesar dos pressentimentos e as dúvidas racionais e instintivas, que me avisavam cada vez mais contra a verdade das suas palavras, ainda não acreditava neles. Até minha última viajem a Genebra, eu falava e atuava como se confiasse totalmente em você.
Se pode dizer que estou 30 anos distante da Rússia, entre meus 40 e 51 anos estava no estrangeiro, a princípio com um passaporte, logo como emigrante. Aos 51 anos, depois de dois anos prisioneiro nas fortalezas de Saxônia e Áustria, fui entregue ao governo russo, que durante ainda 6 anos me manteve, a princípio na fortaleza Pedro e Paulo, no Revelim Alexis, logo em Shliselburgo. Aos 57 anos, fui mandado a Sibéria, passei dois anos no oeste e dois no leste. Aos 61 anos eu fugi da Sibéria. Desde então, por suposto, não voltei a Rússia. Assim, durante 30 anos, vivi 4 anos (há 9), dos 57 aos 61, livre na Rússia, ou seja, na Sibéria. Isso, naturalmente, me deu a possibilidade de conhecer de perto o povo russo, seus camponeses, seus burgueses, seus comerciantes, especialmente na Sibéria, porém, não a sua juventude revolucionária. Na minha época não havia outros exilados políticos na Sibéria senão alguns poucos dekabristas e polacos. Conheci, no entanto, é verdade, um grupo de quatro Petrashevistas, Petrashvski, Lvov e Tol, mas essas pessoas representavam um tipo de transição entre os dekabristas e a juventude atual. Eram socialistas doutrinários, livrescos, fourieristas e pedagogos. Os jovens reais, nos quais eu acredito, desclasados, desapegados, [...] este grupo da revolução popular, de que falei várias vezes em meus escritos, não os conheço e só agora começo pouco a pouco a relacionar-me com eles.
A maior parte dos russos que vinham saudar Herzen em Londres eram pessoas bem situadas e homens acadêmicos ou oficiais liberalizantes ou democratizantes. O primeiro revolucionário russo sério foi Potebnia, o segundo, você. Não vou falar de Utin nem dos outros emigrados de Genebra. Assim, até nosso encontro, a verdadeira juventude revolucionária russa era para mim “terra incógnita” [assim está no original em russo].
Bastou-me pouco tempo para compreender sua seriedade, para confiar em você. Me convenci e até agora sigo convencido que ainda que vocês não sejam muito numerosos, representam uma ação séria, a única ação revolucionária séria na Rússia. E feita minha convicção, disse a mim mesmo que minha obrigação era ajudar-lhes com toda minha energia e meus meios, associando-me como pudesse ao movimento russo. Esta decisão foi mais fácil de tomar já que o seu programa, pelo menos no ano passado, não só parecia, mas era inclusive idêntico ao meu, elaborado constantemente [...] sobre a base da experiência de uma já larga vida política. Definamos em alguns traços este programa sobre a base na qual eu e você nos aliamos profundamente o ano passado e do qual você se afasta, ao que parece, sensivelmente, mas que, por minha parte, continuo fiel [...] ao ponto que se seus sentimentos atuais e seu afastamento – ou o de seus amigos – deste programa forem definitivos, me veria obrigado a romper todas as relações políticas e íntimas com você.
Este programa pode se formular claramente em algumas palavras: liquidação total do mundo estatal e jurídico e da chamada civilização burguesa por uma revolução popular espontânea, invisivelmente dirigida, de nenhuma maneira por uma ditadura oficial, senão pela ditadura anônima e coletiva dos amigos da emancipação completa do povo de qualquer jugo, solidamente aliados em uma associação secreta e atuando sempre e por todas as partes com um único objetivo e um programa único.
Tal é a ideia e tal é o plano sobre a base do qual me aliei a vocês. Para realizar- lo, lhes estendi a mão. Vocês sabem como me mantive fiel a minha promessa de aliança. Vocês sabem como confiei em vocês desde que me convenci de sua seriedade e da identidade de nossos programas revolucionários. Não lhe perguntei quem são seus amigos, nem quantos são, nem verifiquei suas forças. Acreditei sob palavra.
O fiz por debilidade, por cegueira, ou por burrice? Vocês mesmos sabem que não. Vocês sabem muito bem que nunca houve em mim confiança cega e que já no ano passado durante conversas sozinho com você, e outra vez na casa de Ogarev e em sua presença, lhe falei claramente que não éramos forçados a acreditar em você, porque para você não há problema em mentir quando lhe parece que a mentira pode ser útil a causa. Portanto, não temos outra garantia de veracidade de suas palavras senão sua induvidável seriedade e total entrega a causa. Que seja importante esta garantia, não o salva, no entanto, dos erros e resvalos se nos entregássemos a você com os olhos fechados.
Mas apesar dessa convicção, que lhe expressei várias vezes, permaneci, contudo, com você e em todas as partes lhe ajudei o quanto podia. Deseja saber por que o fiz? Primeiro, porque até sua saída de Genebra para Rússia nossos programas era no fundo os mesmos. Disso eu pude me convencer não apenas com nossas conversas diárias, senão pelo fato que todos os meus escritos concebidos e publicados em sua presença, suscitavam em você uma grande simpatia pelos pontos que melhor e mais claramente traduziam nosso programa comum, e também porque seus escritos editados o ano passado levavam um caráter idêntico.
Segundo, porque reconhecia em você a energia real e incansável, a dedicação, a paixão [...] e a reflexão, acreditei e acredito capaz de reunir ao redor de você, não para você senão para a causa, verdadeiras forças. E eu dizia a mim mesmo e dizia a Ogarev, que se não estavam ainda reunidas, seguramente o seriam rapidamente.
Terceiro, porque de todos os russos que conheço, você me pareceu o mais apto para levar a cabo esta empresa. Disse a mim mesmo e a Ogarev que não devíamos esperar a chegada de outra pessoa, que ambos éramos maiores, que era pouco provável encontrar alguém como você, mais dedicado, mais capaz. Se, portanto, desejávamos estabelecer vínculos com a causa russa, tínhamos que associar-nos com você e não com outros. Não conhecemos seu Comitê nem sua associação e unicamente podemos julgar por você. Se você é sério, por que não seriam seus amigos, presentes e futuros? Sua induvidável seriedade, era para mim uma garantia que, por uma parte, você não iria admitir pessoas inúteis e, por outra, que vocês não ficariam sozinhos e que se esforçariam para constituir uma força coletiva.
Existe, é verdade, em você um ponto débil que me assombrou desde os primeiros dias de nosso encontro, mas ao que, o confesso, não lhe dei a devida atenção: é sua inexperiência, sua falta de conhecimento das pessoas e da vida, ao qual está ligado a um fanatismo, não distante ao misticismo. A ignorância das condições sociais, dos costumes, características, ideias e sentimentos ordinários do chamado mundo culto, o faz ainda hoje incapaz de trabalhar com êxito nesse meio, inclusive para destrui-lo. Você até hoje desconhece os métodos que permitem adquirir influência e força, o que o condena a erros fatais cada vez que para as necessidades da causa entra em contato com pessoas ilustradas. Viu-se claramente com sua infeliz tentativa de publicar Kolokol em condições impossíveis. Mas falaremos mais diante de Kolokol. O desconhecimento das pessoas lhe acarreta necessariamente erros. Você exige muito delas e ao mesmo tempo espera muito delas, encarregando-lhes tarefas acima de suas forças, na medida em que todas as pessoas devem estar animadas da mesma paixão que você. Além disso, você absolutamente não confia nas pessoas e por isso não leva em conta a paixão que se vai despertando nelas, a orientação que se vai criando, assim como a honradez de suas aspirações para os mesmos fins que você. E você tenta sujeitá-la, aterrorizá-la, atá-la com um controle exterior e amiúde insuficiente, para que uma vez caída em suas mãos não possa escapar jamais. E não obstante as pessoas fogem e fugirão constantemente enquanto você não mude seu sistema de comportamento com elas, enquanto não se esforce para que elas encontrem principalmente a razão da aliança com você. Lembre-se de quando se aborreceu quando o chamei de “abrek” [1], e seu catecismo, um catecismo de “abrek”. Você disse que em todos os indivíduos deveria estar a renuncia total a si mesmo e a todos os desejos pessoais, satisfações, sentimentos, afetos e relações, como estado normal, natural e constante de todos os indivíduos sem exceção. Sua dureza para consigo mesmo, seu autêntico e grande fanatismo, você quer que seja, desde agora uma regra de vida para toda a comunidade. Você aponta a fatos absurdos, impossíveis, a negação completa da natureza dos homens e da sociedade. Esta busca é nefasta, porque lhe empurra a gastar suas forças de modo banal, e os tiros saem pela culatra. Ninguém, por maior força que tenha, e nenhuma associação, por mais perfeita que seja a sua disciplina e poderosa sua organização, não conseguirá nunca vencer a natureza. Somente os fanáticos religiosos e os ascetas podem tentar vencê-la. Por isso estranhei muitíssimo de encontrar em você uma espécie de idealismo místico e panteísta. Dadas suas inclinações, isso me pareceu perfeitamente claro, ainda que perfeitamente absurdo. Se, querido amigo, você não é um materialista como nós os pecadores, senão um idealista, um profeta, um monge da Revolução, seu herói não pode ser nem Babeuf nem sequer Marat, senão Savonarola. Por sua forma de espírito você se aproxima mais a [ilegível...], aos jesuítas que a nós. Você é um fanático. Daí sua enorme força de caráter e junto a ela, sua cegueira, e a cegueira é uma debilidade grande e mortal. A energia cega divaga e tropeça; e quanto mais terrível é esta energia, mais irreparáveis e significativos os erros. Falta muito em você o espírito crítico, e com essa carência [...] é impossível uma apreciação correta dos indivíduos, das situações, dos meios adequados às metas.
Tudo isso compreendi e já dizia a mim o ano passado. Porém, duas considerações equilibravam a totalidade a seu favor. Primeiro, reconhecia e reconheço em você uma força considerável e, se pode dizer, sumamente pura, sem nenhuma mescla de vaidade, uma força como não encontrei nenhuma igual em outros russos. Segundo, dizia e ainda o digo, que você ainda é jovem, com tanta renuncia preciosa ao personalismo, aos caprichos vaidosos e ilusões, que não poderia por muito tempo seguir uma via mentirosa e enganosa, funesta para a própria causa. Esta é ainda hoje minha convicção.
Por fim, via e sentia que você estava longe de me dar completa confiança e que em muitos aspectos me tratava como um instrumento para fins imediatos e desconhecidos por mim. Mas não me inquietava totalmente.
Primeiro, eu gostava do seu mutismo sobre quem participava em sua organização, dada minha convicção de que nesse tipo de assunto, inclusive as pessoas mais próximas só devem saber o que é na prática imprescindível para o êxito de sua tarefa. E você vai reconhecer esta verdade, de que eu nunca lhe fiz perguntas indiscretas. Inclusive se você tivesse citado nomes, em oposição ao seu dever, isso não me ajudaria em nada, por não conhecer as pessoas que você lidera. Tive que julgar-lhe por sua palavra, e acreditei e acredito em você. Um comitê composto de pessoas como você e merecendo toda sua confiança, merece por nossa parte não menos que uma confiança integral.
Coloca-se uma questão: existiu realmente sua organização, ou você tentou unicamente lançá-la? E se existiu, era numerosa e representava ao menos um embrião de uma força, ou só era uma mera esperança? Existiu inclusive o próprio Comitê, seu santo dos santos, com a forma indicada e com esta profunda coesão que você vincula à vida e à morte, ou você somente se dispôs a formá-lo? Em uma palavra, representava você uma força isolada, muito honrável por certo, porém individual, ou uma força coletiva real e existente? E [...] se a associação e o Comitê dirigente existiram de verdade – supondo que, especialmente o Comitê, estivessem compostos exclusivamente de homens dedicados, firmes, tão fanaticamente entregues e desapegados de si mesmos como você, me ocorre uma outra pergunta: Possuíam e possuem bastante espírito prático e conhecimentos, bastante preparação teórica e aptidão para conhecer as condições e relações dentro da vida do povo e as classes na Rússia, para que o Comitê revolucionário não seja de maneira nenhuma insignificante, senão autêntico, e para que abarque toda a vida russa e penetre em todas as camadas sociais da Rússia, como realmente uma organização poderosa? Da ardente energia dos participantes depende a franqueza da ação; do espírito prático e dos conhecimentos deles, seu êxito.
Para eu ter uma ideia tanta da realidade como das possibilidades e do espírito da empresa de vocês, eu não parava de lhe fazer perguntas, e confesso que suas respostas não me pareceram absolutamente satisfatórias. Como não se esquivava nem me enrolava, você, contra a sua vontade, expressou o seguinte: sua associação, dada sua filiação, era muito insignificante, e por seus meios materiais, era ainda mais. Falta-lha ainda espírito prático, conhecimentos e destreza. Mas o Comitê, integrado por você, é sem nenhuma dúvida composto de homens como você, e entre eles você é um dos melhores, um dos mais firmes. Você é o fundador e até agora o dirigente da associação. Tudo isso, estimado amigo, eu entendi e soube já no ano passado. Isso não me impediu de nenhum modo a aliar-me com você, porque reconheci em você [...] um militante inteligente e dedicado com paixão, como há poucos, e porque eu estava convencido que você havia conseguido descobrir pelo menos alguns homens do seu temperamento e agrupá-los. Eu estive convencido e sigo sendo até o momento, que pela via da experiência e com esforços incansáveis e ardentes, você adquiriria rapidamente os conhecimentos, a razão a destreza, sem os quais o êxito é impossível. E como fora do seu círculo eu não supunha e não suponho que possa existir na Rússia outro tão sério como você, apesar de tudo, decidi ficar unido com você.
Não me incomodava de nenhuma maneira ver-lhe sem cessar exagerar frente a mim suas forças: é uma postura objetiva e muitas vezes positiva, e outro valor de todos os conspiradores. Mas é verdade que notei na sua tentativa de me enganar a prova de sua compreensão ainda insuficiente do povo. Me pareceu que com todas nossas conversas, você deveria ter compreendido que para me entusiasmar não necessitava dar- me provas de uma força já existente e organizada, senão apenas a prova de sua inquebrantável e inteligente vontade de criar tal força. Entendi também que possuía frente a mim alguém como um representante e de alguma maneira um embaixador de uma organização já existente e bastante forte. Ao portar-se dessa maneira, você se colocou na posição de me apresentar suas condições da parte de uma poderosa organização, e não apenas como um indivíduo que juntava forças. Você deveria ter falado comigo de igual para igual, de pessoa para pessoa, e expor-me [...] seu programa [...] e sua ação.
Isso não entrava em seus cálculos. Você ficava demasiado fanaticamente apegado ao seu programa e seu plano para submetê-los a qualquer crítica. E segundo, você não confiava bastante em minha dedicação pela causa e em minha compreensão para mostrar-me sua empresa sob sua verdadeira luz. Você teve uma atitude ascética para com toda a emigração e teve razão. Você o foi talvez um pouco menos comigo, porque te dei diversas provas de minha vontade de servir a causa sem nenhuma pretensão pessoal nem cálculos. Você me tomava, no entanto, por um incapacitado cujos conselhos e conhecimentos podem as vezes ser útil, porém [...] cuja participação em sua ardente empresa seria inútil e até prejudicial. Eu vi isso muito bem, porém não me ofendi absolutamente. Você mesmo sabia [...] isso e não podia induzir-me a separar- me de você. Eu não tinha que demonstrar-lhe que não sou absolutamente uma pessoa acabada e incapaz de tomar parte em uma ação ardente e séria como lhe parecia. Deixava e deixo ao tempo e a sua própria experiência que lhe convençam do contrário.
Existia e há até hoje uma circunstancia particular que me obrigava e me obriga ainda a mostrar-me muito cauteloso frente a todos os assuntos e as pessoas da Rússia. É a minha total falta de dinheiro. Toda minha vida lutei com a pobreza e cada vez que pude empreender e fazer algo útil, o fiz não com meus recursos senão com recursos alheios. Isso me custou desde a muito tempo, sobre tudo da parte da canalha russa, uma montão de calúnias e ataques.
Esses senhores contaminaram profundamente minha fama e com isso paralisaram sensivelmente minha atividade. Acudi a toda a verdadeira paixão e a sincera vontade que me animam (digo sem vaidade, senão por experiência) para não quebrar- me e seguir atuando. Você também [...] sabe que o quão mentirosos e odiosos são os rumores que correm sobre meu luxo pessoal e minha inclinação a fazer dinheiro as custas dos demais, a enganá-los. Particularmente as canalhas da emigração russa, os Utin e Cia., se atrevem a tratar-me de trapaceiro e explorador interesseiro, eu que, desde que tenho memória, nunca vivi por minha satisfação pessoal e que sempre me esforcei para emancipar aos demais. Não tome isso por vanglória, digo isso a você e a seus amigos, já que, sinto o direito e a necessidade de dizer-lhe de uma vez por todas.
É evidente que para dedicar-me por inteiro a serviço da causa, devo ter os meios de existência necessários. Estou envelhecendo; oito anos [...] de detenção provocaram uma enfermidade crônica [...] daí determinados cuidados, certas condições para servir utilmente a causa. Além disso, tenho uma mulher e filhos que não posso condenar a morrer de fome. Esforcei-me para reduzir meus gastos ao mínimo, mas apesar disso não podia viver sem receber cada mês uma certa quantia. Onde tomá-la, se dou todo meu labor a causa comum?
Há ainda outras razões; por haver fundado a alguns anos a Aliança Internacional Revolucionária Secreta, não posso nem quero abandoná-la para dedicar-me unicamente a causa russa. Pelo menos, em meu pensamento, a causa russa e a causa internacional são apenas uma. Até agora esta não me deu meios de subsistência, só me custou dinheiro. Tal é em poucas palavras a chave da minha situação. Você compreende que esta pobreza, por uma parte, e as calúnias rasteiras propagadas por emigrantes russos da outra, me paralisam em relação as pessoas novas e a todas as causas. Você vê quantos motivos tinha para não querer me impor, não pedir-lhe mais confiança além daquela que lhe parecia oportuno outorgar-me. [ilegível] esperar a você e seus amigos se convencerem de que era possível, útil e necessário confiar em mim.
Além disso, eu via e entendia muito bem que, ao não tratar-me de igual para igual, como uma pessoa de confiança, de acordo com o seu sistema e acatando, como se viu, sua necessidade lógica, você me considerava como um objeto de experimentação, ao 80% cego, para a causa, usando como ferramenta minha pessoa, minha militância e meu nome. De modo que, não dispondo na realidade da força que me falava, estava usando meu nome para organizá-la na Rússia, até o ponto que muito acreditam que estou na cabeça de uma associação secreta de que, como você sabe, desconheço absolutamente tudo.
Teria eu que permitir que se sirvam de meu nome como meio de propaganda e recrutamento para uma organização com um plano de ação e objetivos imediatos da qual ¾ das partes me desconhecidas? Sem vacilar respondo categoricamente: sim, podia e devia fazer-lhe. Aqui estão minhas razões:
Primeiro, sempre estive convencido de que o Comitê Revolucionário Russo deve e somente ele pode ter sua atividade na Rússia, e querer dirigir a revolução russa desde o exterior é um absurdo.
Se você e seus amigos tivessem que ficar muito tempo no exterior, lhe explicaria que você já não é membro do Comitê. Se vocês fossem emigrantes, deveriam, como eu mesmo fiz, submeter-se, quanto ao que concerne as atividades russas, a direção absoluta de um novo Comitê na mesma Rússia, reconhecido por vocês sobre a base de um programa e um plano discutido juntos. Vocês formariam um Comitê russo no estrangeiro com plena autonomia para administrar todas as atividades, a gente e os círculos russos fora da Rússia, em plena conformidade de pontos de vistas com o Comitê [de lá], e com autonomia e independência que corresponde para a eleição dos modos e meios de ação, e sobre tudo de acordo com a Aliança Internacional. Nesse caso, eu teria o dever e o direito de exigir que eu integrasse em plano de igualdade este Comitê russo no estrangeiro. É o que por outra parte havia pedido em minha última carta que dirigi ao Comitê e a você, reconhecendo que este deve estar na Rússia. Por suposto, eu não tive nem a possibilidade nem a intenção de regressar a Rússia, e tampouco tenho a pretensão de entrar no Comitê que ai está. Através de você tive conhecimento do programa e dos objetivos da atividade desse Comitê. Como eu estava inteiramente de acordo com vocês, lhe comuniquei estar disposto e com a firme resolução de ajudar ao Comitê e servi-lo por todos os meios a minha disposição. Posto que meu nome lhe parecia útil para atrair novos aderentes a sua organização, lhe autorizei para usá-lo. Eu sabia que isso ia pela causa (nosso programa comum e o seu caráter eram minha garantia) e não temi ver-me exposto, em caso de erros ou fracassos, às críticas públicas, porque estou acostumado as injúrias.
Porém, lembre-se de que já no verão passado convencionamos entre nós dois que você me comunicaria todas as empresas, atividades e [contatos com] russos no estrangeiro e que tudo o que se faça ou tente fazer ai, não se faria sem que eu soubesse e sem minha aprovação. Era uma condição necessária. Primeiro, porque conheço o estrangeiro muito melhor que qualquer um de vocês; e segundo, porque uma solidariedade cega e independente de você para as suas ações e publicações no estrangeiro poderiam colocar-me em uma situação contrária aos meus deveres e aos meus direitos como membro da Aliança Internacional. Esta condição, como vamos ver, não foi cumprida pela sua parte e, por não aplicar-se integralmente, eu estaria na obrigação de romper todas as relações políticas e pessoais com você.
Antes de tudo, meu sistema difere do seu onde não admite nem o interesse, nem sequer a possibilidade, de uma outra revolução a não ser a revolução espontânea, ou seja, popular e social. Qualquer outra revolução, esta é minha profunda convicção, seria desonesta, nociva e mortal para a liberdade e o povo, porque lhe asseguraria uma miséria nova e uma nova servidão. E o essencial é que qualquer toda revolução resulta desde agora impossível, fora do alcance e irrealizável. A centralização e a civilização, as ferrovias, o telégrafo, os novos armamentos e a nova organização do exército, em fim, a ciência administrativa, quer dizer, a ciência da submissão e da exploração sistemática das massas, a ciência da domesticação de todo tipo de sublevações populares, está tão cuidadosamente elaborada, verificada pela experiência e aperfeiçoada no decurso dos últimos setenta e cinco anos de história contemporânea, acrescentando o fato de que o Estado e seu armamento representa atualmente uma força tão enorme, que todas as tentativas artificiais, os complôs secretos fora do povo, os ataques e os assaltos de surpresa viriam a despedaçar-se frente a esta força, que somente poderá ser vencida e destruída pela revolução espontânea, popular e social.
Assim, o único objetivo da associação secreta deve ser não o de constituir uma força artificial fora do povo, senão despertar, agrupar e organizar as forças populares espontâneas. Nestas condições, o exército da revolução, o único capaz e real, não está fora do povo, é o próprio povo. Não se lhe despertará através de meios artificiais. As revoluções populares são engendradas pela própria força das coisas ou por essa corrente histórica que, invisível e subterrânea, incessante e a maior parte do tempo lenta, corre por entre as camadas populares, abarcando-as cada vez mais, penetrando gota a gota, até que se escape desde abaixo para fora sua selvagem corrente, até que rompa todos os obstáculos que encontrar no seu caminho.
Tal revolução é impossível artificialmente. Nem sequer se pode adiantar significativamente, ainda que eu não duvide que uma organização dirigida devidamente e inteligentemente possa facilitar sua explosão. Há períodos na história em que as revoluções são totalmente impossíveis; existem outros em que elas são inevitáveis. Em qual desses tipos de períodos estamos na atualidade? A meu ver, e é minha profunda convicção, em um período de revolução popular generalizada e inevitável. Não tratarei aqui de provar a justeza desta opinião, me levaria muito longe. Tampouco é necessário, dado que me dirijo a alguém e a pessoas que, estou seguro disso, a compartilham por inteiro. Digo então que por qualquer lugar em toda a Europa, a revolução social e popular é inevitável. Explodirá em breve, mas onde se acenderá primeiro: na Rússia, na França ou em outro país do Ocidente? Ninguém pode prever. Talvez estoure dentro de um ano, talvez mais cedo, ou nem sequer antes de dez ou vinte anos. Esta não é a questão, e aqueles que quiserem servir lealmente a revolução não o farão por mero prazer. Todas as associações secretas que querem de verdade trabalhar por ela devem primeiro abandonar todo nervosismo, toda impaciência. Não devem adormecer, pelo contrário, devem manter-se dispostas dentro do possível em qualquer momento, estar, portanto, em alerta e sempre capazes de agarrar toda ocasião favorável. Mas ao mesmo tempo temos a necessidade de formá-las e organizá-las não para um levantamento próximo, senão para o trabalho clandestino paciente e de larga duração, como seus amigos, os padres jesuítas.
Limitarei minhas reflexões a Rússia. Quando então vai estourar a revolução russa? Ignoramos. Muitos, e o pecador de mim dentre outros, esperavam a sublevação do povo em 1870; mas o povo não se despertou. Deve-se deduzir disso que o povo russo poderia prescindir da revolução, evitá-la? Não, tal dedução não é possível, seria absurda. Quem conhece a situação sem saída e de fato crítica de nosso povo, por uma parte, no plano econômico e político e, por outra, a incapacidade decidida de nosso Governo e do Estado, não apenas de modificar, senão de suavizar um pouco a situação (incapacidade que procede não de tal ou qual característica específica de nossos governantes, senão da própria índole de nosso sistema estatal em particular e de cada estado em geral), deve inevitavelmente chegar a conclusão que a revolução popular russa é inevitável. O é em negativo e em positivo, porque em nosso povo, apesar de sua ignorância, forjou-se com a história um ideal que ele se esforça, conscientemente ou não, por cumprir. Aquele ideal é a posse comunitária da terra com uma emancipação completa de qualquer opressão estatal e serviçal. A isso apontava o povo na época dos falsos Dmitri, de Stenka Razin e Pugachev; a isso tende ainda hoje as revoltas incessantes, mas dispersas e sempre reprimidas.
Só assinalei dois traços principais do ideal popular russo, sem pretender definir- lo por inteiro com algumas palavras. Contudo, por acaso é pouco o que está vivendo o povo russo em suas aspirações intelectuais e o que virá com a primeira revolução? Isso me basta agora para demonstrar que nosso povo não é uma folha em branco em que qualquer associação secreta pode escrever o que ela bem entender, o programa comunista de você por exemplo. O povo elaborou, em parte consciente e quase tudo inconscientemente, seu próprio programa, que cada associação secreta deve conhecer, adivinhar, e ao qual terá que conformar-se se quiser vencer.
É um fato sem nenhuma dúvida e conhecido por todos nós que na época de Stanka Razin e de Pugachev, cada vez que um levantamento popular se produzia, ao menos durante certo tempo, nosso povo fazia uma única coisa: tomava posse de toda a terra para colocá-la em comum, mandando para os diabos os nobres, os grandes latifundiários, os funcionários do Tsar e algumas vezes até mesmo os sacerdotes, e organizava sua comuna livre. Isso significa que nosso povo guarda em sua memória e em seu ideal um valioso elemento para a organização futura, elemento que não existe ainda entre os povos ocidentais: a comuna econômica livre. Na vida e no pensamento popular existem dois fatores, dois fatos em que podemos nos apoiar: as frequentes rebeliões e a comuna econômica livre. Mas existe um terceiro fator, um terceiro fato: é o povo cossaco ou o mundo dos bandoleiros e ladrões, que reúne em si mesmo um protesto contra a opressão do Estado e a do patriarcado comunitário, que se conecta com os dois primeiros.
As frequentes revoltas, ainda que sempre provocadas por circunstancias fortuitas, provêem não obstante de causas gerais e traduzem o profundo descontentamento geral do povo inteiro. São de certo modo um fenômeno corrente e natural da vida popular russa. Não existe no campo russo um povo que não esteja profundamente descontente com sua situação, que não padeça de escassez, de asfixia, de deseja de mudança e não oculte no fundo de sua alma coletiva o desejo de apoderar-se de toda a terra senhorial, logo a dos kulaks, com o sentimento de que está sem nenhuma dúvida em seu direito. Não há aldeia que, tendo possibilidade, não vá ao levantamento. Se o campo não levanta tão rápido, é unicamente pelo medo, por imaginar-se indefeso. Este sentimento provém da desunião das comunas, a ausência de solidariedade real entre elas. Se em cada aldeia se soubesse que no momento que se levantar todos os outros povos farão o mesmo, pode-se dizer certamente que não haveria um só povo na Rússia que não se subleve. Daí se retira o primeiro dever, a orientação e o objetivo da organização secreta: despertar em todas as comunas rurais o sentimento de sua segura e inevitável solidariedade, e assim despertar no povo russo o sentimento de seu poder; em uma palavra, unir as diversas revoltas camponesas em um levantamento popular.
Um dos meios importantes de alcançar esse objetivo, de acordo a minha profunda convicção, é e deve ser valer-se de nossos cossacos livres, a multidão de nossos vagabundos (os santos e os outros), os peregrinos e os benguny [2], os ladrões e os bandoleiros, todo esse amplo e clandestino mundo, que desde sempre está protestando contra o Estado e o estatismo e contra a civilização knutogermânica. Isso já foi exposta em um volante anônimo: “A questão revolucionária e o modo de aplicá-la” provocando um grito de indignação em todas as pessoas de bem e charlatães vaidosos que tomam sua verborragia doutrinária e bizantina por ação. Mas tudo isso é absolutamente verdadeiro e está confirmado por toda nossa história. O mundo dos cossacos, ladrões, bandoleiros e vagabundos, desempenhou precisamente o papel de vínculo para unir as frequentes revoltas das comunas isoladas; e no tempo de Stenka Razin e Pugachev, os vagabundos foram os melhores e os mais fiéis intermediários da revolução popular, preparadores da agitação popular, precursores do levante do povo inteiro; Quem ignora que os vagabundos, ao apresentar-se a ocasião, se convertem facilmente em ladrões e bandoleiros? E quem, entre nós, não é bandoleiro ou ladrão? Por acaso o Governo não é? Nossos especuladores e negociantes estatais e privados? Nossos latifundiários e comerciantes? Por minha parte, não suporto, não admito nem o bandoleirismo, nem o roubo, nem qualquer violência contra as pessoas. Mas reconheço que se tenho que escolher entre o bandoleirismo e o roubo desde o trono, o que utiliza de todos os privilégios, e entre o roubo e o bandoleirismo do povo, sem a menor vacilação tomo o partido deste último, o vejo natural, necessário e até em certo sentido legítimo. O bandoleirismo popular, eu reconheço, desde o ponto de vista da verdade humana, deixa muitíssimo de ser belo. Mas o que é belo na Rússia? Pode haver algo mais sujo que o mundo das pessoas de bem, funcionários, pequenos burgueses cultos e elegantes, ocultando sob seus brilhos ocidentais a mais terrível perversão de pensamento, sentimentos, ações! Ou, no melhor dos casos, um vazio triste e sem saída. Na perversão do povo, ao contrário, existe a natureza, a força, a vida, existe no final o direito, dados os sacrifícios durante muitos séculos de história. Existe um poderoso protesto contra a base principal de toda perversão, contra o Estado, por isso é uma possibilidade de porvir. Por isso tomo partido dos bandoleiros populares e vejo neles uma das principais alavancas da futura revolução popular na Rússia.
Entendo que isto pode indignar os nossos puros ou não puros idealistas, idealistas de qualquer coloração, de Utin a Lopatin, que imaginam poderem através da violência, por uma organização secreta artificial, impor ao povo seu próprio pensamento, sua vontade e seu modo de atuar. Não acredito nessa possibilidade, estou convencido, pelo contrário, que com a primeira grande derrota do Estado de toda a Rússia, sejam quais forem as causas, o povo se levantará não pelo ideal de Utin e Lopatin, nem sequer o de vocês, senão pelo seu próprio, e nenhuma força estará em condição de parar e modificar seu movimento natural, porque não existe dique capaz de conter o oceano furioso. Vocês todos, meus queridos amigos, estarão varridos como gravetos se não souberem nadar no sentido do povo. Creio que com o primeiro grande impulso do levantamento do povo, o mundo dos vagabundos, bandidos e ladrões, profundamente arraigado em nossa vida popular e um de seus principais fenômenos, se colocará em marcha poderosa e massivamente.
Bom ou mal, é um fato indiscutível e inevitável, e quem deseja realmente a revolução popular russa, que quer servi-la, sustentá-la, organizá-la, não apenas no papel, senão nos atos, deve conhecer este fato. Deve ter isso em conta, sem tratar de se esquivar, ter uma atitude consciente e prática, usando-o como um meio poderoso para o triunfo da revolução. Aí não se pode ser puro. Quem quiser preservar sua pureza ideal e virginal, que fique em seu gabinete, que sonhe, pense, escreva suas reflexões e versos. Mas quem quer ser um autêntico militante revolucionário na Rússia, que tire suas luvas, porque não existem luvas que possam proteger-lhe da incalculável sociedade russa generalizada. O mundo russo, estatal e privilegiado ou popular, é um mundo horrível. A revolução russa será sem lugar a dúvidas uma revolução horrível. Quem teme os horrores ou a lama que se distancie deste mundo e dessa revolução; mas quem deseja servi-la, sabendo o que acontecerá, que fortaleça seus nervos e esteja disposto a tudo.
Valer-se do mundo dos bandidos como instrumento da revolução popular, como meio de vínculo entre as sublevações de massas isoladas, é uma tarefa difícil. Admito que é necessária, mas ao mesmo, tempo sei que sou totalmente incapaz de dedicar-me a ela. Para empreendê-la e levá-la a cabo, é preciso ter nervos sólidos, uma força colossal, convicções apaixonadas e uma vontade de ferro. Tais homens podem fazer picadinho de vocês. Mas as pessoas de nossa geração e com nossa educação é incapaz de fazer isso. Ir entre os bandoleiros não significa tornar-se a si mesmo um bandoleiro e apenas um bandoleiro. Isto não significa compartir suas paixões, suas misérias, suas motivações por sinal detestáveis, seus sentimentos e seus atos. Isto significa dar-lhes uma alma nova e despertar neles a necessidade de um objetivo diferente, de um objetivo popular. Estas pessoas selvagens e brutas até a crueldade possuem uma natureza fresca, forte, intacta e em plena vitalidade, e consequentemente aberta a uma propaganda vivaz, naturalmente sempre que uma propaganda vivaz e não doutrinária se atreva e possa aproximar-se deles. Estou disposto a falar-lhe mais sobre esse tema caso prossiga esta correspondência com você.
Outro elemento valioso da vida popular futura na Rússia, como lhe dizia, é a comuna econômica livre. Efetivamente é um elemento muito valioso e que não existe no Ocidente. A revolução social no Ocidente deverá criar esse embrião indispensável e fundamental da organização futura, e esta tarefa custará ao Ocidente muitos esforços.
Entre nós já está feita, quando estourar a revolução na Rússia, e quando o Estado – com todos seus empregados – se desmoronar, o campo russo se organizará sem qualquer problema, por si só, no ato. Na Rússia, por outro lado, existe uma dificuldade que não existe no Ocidente. Nossas comunas são terrivelmente desunidas; quase não se conhecem e se opõe frequentemente como inimigas segundo o velho habito russo. Ultimamente, por causa das medidas financeiras do Governo, as comunas começam a acostumar-se a união no plano comarcal, de modo que a comarca está adquirindo um significado e uma consagração popular, mas não vai mais longe. Cada comarca não sabe e não quer saber nada da comarca vizinha. Mas para preparar a vitória da revolução, para organizar a futura liberdade do povo, é necessário que as comarcas, por seu próprio movimento popular, se unam em distritos, os distritos em regiões, e que as regiões formem entre elas uma Federação Russa Livre.
Despertar em nossas comunidades rurais a consciência desta necessidade por sua própria liberdade e por seu bem, é igualmente a tarefa da organização secreta, porque ninguém além dela irá querer empreender este dever, à que se opõem diretamente os interesses do Governo e de todas as classes privilegiadas. De que modo atuar, o que fazer e como proceder para despertar nas comunas essa consciência, a única de que se pode dizer que é de verdade saudável? Não é o lugar para aprofundar o tema.
Tal é, estimado amigo, em suas grandes linhas todo o programa da revolução popular russa, profundamente enraizada no instinto histórico e na condição de nosso povo. Quem deseja colocar-se na cabeça do movimento popular deve aceitar este programa por inteiro e ser deu realizador. Aqueles que querem impor ao povo seu próprio programa se colocam do lado dos tontos.
O mesmo povo, nós já vimos, por sua ignorância e desunião, não está em condição de formular este programa, sistematizá-lo e unir-se em seu nome. O povo necessita então de ajudantes. Onde recrutar-lhes? Em todas as revoluções este problema é o mais difícil. Até agora, em todo o Ocidente, os auxiliares da revolução procediam das classes privilegiadas e quase sempre se convertiam em seus beneficiários.neste âmbito também a Rússia tem mais sorte que o Ocidente. Existe dentro do país uma massa enorme de pessoas instruída e capaz de pensar, a que ao mesmo tempo lhe falta totalmente uma situação, carreira e saída: as três quartas partes ao menos de nossa juventude universitária se encontra precisamente nessa situação. Os seminaristas, os filhos de camponeses e burgueses, os filhos de pequenos funcionários e nobres arruinados, mas para que falar-lhe disso: você conhece esse mundo melhor do que eu. Tomando o povo como exército revolucionário e a estes últimos como nosso estado-maior, constitui-se o valioso material da organização secreta.
Mas, esse mundo, é preciso organizá-lo e moralizá-lo. Você, por causa do seu sistema, o está pervertendo e preparando por dentro a traidores e exploradores do povo. Recorde que em todo esse mundo há muito pouco sentido moral, exceto um escasso número de naturezas férreas e de grande moral, formadas segundo a teoria darwinista em meio de uma opressão imunda e uma miséria inaudita. Os virtuosos, ou seja, aqueles que amam o povo, tomam partido pela justiça contra a injustiça e por todos os oprimidos contra todos os opressores, o são unicamente por causa de sua própria situação e não por consciência nem vontade. Eleja nesse mundo cem pessoas aleatoriamente e coloque-as em uma situação que lhes permita explorar e oprimir o povo: pode-se afirmar sem lugar a dúvidas que lhe exploraram e oprimiram com plena tranquilidade. Há, portanto, nas pessoas, pouca virtude espontânea. Aproveitando a miserável situação que a faz virtuosa inconscientemente, é preciso despertar, educar e fortalecer nas pessoas essa virtude involuntária, para que se torne apaixonada e consciente por meio de uma propaganda constante e pela organização. Mas você faz exatamente o contrário: ao copiar o sistema jesuítico, você apaga sistematicamente nas pessoas todo sentimento humano e todo sentido pessoal da justiça (como se o sentimento humano e o sentido da justiça pudessem ser impessoais!), você cultiva nelas a mentira, a desconfiança, a espionagem e a delação, e você conta muito mais com as pressões exteriores, mediante as quais você enreda, que com a valentia interior das pessoas. De modo que bastará que modifiquem as circunstancias para que as pessoas percebam que os temores do Governo são mais terríveis que o que você lhes infunde, e para que se convertam, graças a suas lições, em excelentes servidores e espiões das Autoridades. Em decorrência disso, estimado amigo, agora, seguramente a maior parte de seus companheiros caídos nas mãos da polícia, sem grande esforço por parte do Governo e sem tortura, delataram tudo e todos. Esse fato penoso, se você souber se corrigir, deveria abrir-lhe os olhos e obrigar-lhe a mudar sua atuação.
Como moralizar esse mundo? Despertando nele franca e conscientemente, excitando em seu espírito e em seu coração a única e absorvente paixão da emancipação do povo inteiro e da humanidade. Esta é a religião nova e única, cuja força move a alma e cria um impulso coletivo salvador. Tal deverá ser mais a frente o único conteúdo de nossa propaganda. Seu objetivo imediato: articular a organização secreta, uma organização que deverá por sua vez constituir uma força popular auxiliar e ser uma escola prática para a educação moral de todos os seus membros.
Definamos frente a tudo o objetivo, o sentido, a finalidade desta organização. Em meu sistema, como já o apontei várias vezes, esta não deve ser o exército revolucionário. Para nós, só existe um exército revolucionário: o povo. A organização não deve ser nada mais que o estado- maior desse exército, não a organizadora de sua própria força senão a do povo, como intermediário entre o instinto popular e o pensamento revolucionário. E este pensamento só é revolucionário, vivaz, real e autêntico, quando expressa, enquanto da forma aos instintos populares moldados pela história. Tentar impor às massas o pensamento da organização, banal ou alheio a seus instintos, significa querer subordiná-las a um novo Estado. Por isso uma organização que deseje sincera e unicamente libertar a vida do povo deve adotar um programa que seja a expressão integral das aspirações populares. Me parece que o programa exposto no primeiro número de Narodnoe Dielo [Ação popular] corresponde totalmente a este objetivo. Não impõe ao povo novas regulamentações, ordens ou modos de vida, pelo contrário, liberta sua vontade abrindo amplos horizontes a sua autodeterminação e a sua organização econômica e social, que deve criar por si mesmo, de baixo para cima e não de cima para baixo. A organização deve francamente penetrar-se da ideia que é a servidora, a auxiliar do povo e não sua dona, em nenhum caso, nem sob nenhum pretexto, nem sequer o do bem popular.
Uma tarefa enorme corresponde a organização: não só preparar o triunfo da revolução popular pela propaganda e a união das forças populares; não só destruir na totalidade, com o poder desta revolução, toda ordem econômica, social e política existente; senão que, além disso, depois de viver o triunfo da revolução, no dia seguinte da vitória popular, deve impossibilitar o estabelecimento de todo poder estatal sobre o povo, até mesmo um poder que seria em aparência o mais revolucionário, incluindo o seu. Todo poder, independente do nome que se coloque, inevitavelmente imporá ao povo sua antiga servidão sob uma nova forma. Nossa organização deverá, portanto, ser bastante forte e viável para superar a primeira vitória do povo, o que não é nada fácil, e deverá estar profundamente penetrada de seus princípios para que não possa esperar que inclusive em plena revolução não modifique nem seu pensamento, nem seu caráter, nem sua orientação. O que a de ser esta orientação? Quais serão o objetivo principal e a tarefa da organização? Ajudar o povo a decidir ele mesmo sobre a base da igualdade absoluta, uma liberdade humana completa e universal, sem a menor intromissão de qualquer poder, até mesmo o provincial ou de transição, quer dizer, sem intermediários de qualquer sistema estatal.
Somos os inimigos declarados de todo poder oficial, inclusive se é um poder ultra-revolucionário, de toda ditadura reconhecida publicamente. Somos anarquistas, socialistas revolucionários. Mas se somos anarquistas, perguntará você, com que direito queremos atuar sobre o povo e com que meios o faremos? Rechaçando todo poder. Com que autoridade, com que força vamos administrar a revolução popular? Mediante uma força invisível que não terá nenhum caráter público e que não se imporá a ninguém; mediante a ditadura coletiva de nossa organização que será tanto mais poderosa quanto ficar invisível, não declarada e privada de todo direito e sentido.
Imagine-se em pleno triunfo de uma revolução espontânea na Rússia. O Estado e com ele toda ordem social e política foram aniquiladas. O povo inteiro se levantou, tornando-se dono de tudo o que necessita e expulsando a todos seus inimigos. Não há lei nem poder. O oceano da rebelião rompeu todos os diques. Toda esta massa, que longe de ser homogênea é, pelo contrário, sumamente diversificada, está cobrindo a imensa extensão do império russo, começou a viver e atuar por si mesma, a partir da realidade, e não de algo que se lhe impunha por fora, e o faz por todos os lugares e a sua maneira: é a anarquia geral. A sujeira removida, amontoada em grande quantidade no seio do povo, retorna à superfície. Em determinadas partes surge uma multidão de homens novos, audazes, inteligentes, sem escrúpulos e ambiciosos que buscam, por suposto, cada um a da sua maneira, ganhar a confiança do povo para si e usá-la em proveito próprio. Essas pessoas lutam e se destroem uns aos outros. É como uma anarquia espantosa e sem saída.
Mas imagine, em meio desta anarquia popular, uma organização secreta que dispersa seus membros em grupos pequenos por toda a superfície do império, mas estão firmemente unidos, animados por uma mesma ideia e um mesmo objetivo, aplicados por todas as partes, de acordo obviamente com as circunstâncias, e segundo um mesmo plano. Estes grupos, que ninguém conhece como tais, não possuem nenhum poder reconhecido oficialmente. Mas com a força de seu pensamento, que expressa a própria natureza dos instintos, desejos e necessidades populares; com a clara consciência de seu objetivo em meio a uma multidão que luta sem objetivo nem plano; com a força da inteligência e da energia dos membros que constituem esses grupos e conseguem unir em torno de si homens mais ou menos apegados a mesma ideia e naturalmente submetidos a sua influência, tais grupos, que não buscam nada para eles próprios, nem proveitos, nem honras, nem autoridade, estarão capacitados para dirigir o movimento popular contra todos os ambiciosos, desunidos e opostos uns aos outros, e encaminhá-los para a realização tão integral como seja possível do ideal social e econômico, e para a organização da liberdade popular mais completa. É o que chamo a ditadura coletiva da organização secreta.
Esta ditadura não conhece nem ganância, nem vaidade, nem ambição, porque é impessoal, invisível e porque não fornece a ninguém daqueles que compõem os grupos, tampouco aos próprios grupos, nem proveitos, nem honras, nem reconhecimento oficial de um poder qualquer. Não ameaça a liberdade do povo dado que, por carecer de qualquer caráter oficial, não se apresenta como um poder estatal sobre o povo, senão que sua única meta, definida por seu programa, é conseguir a realização mais completa das liberdades populares.
Tal ditadura não é absolutamente contrária ao livre desenvolvimento e a autodeterminação do povo, nem a sua organização desde baixo até acima de acordo a seus usos e instintos, tendo em vista que trabalha exclusivamente pela única influencia natural e pessoal de seus membros, que estão desprovidos de todo poder e dispersos por meio de sua rede invisível, em todas as regiões, distritos e municípios. Eles se esforçam, de comum acordo e cada um em seu povoado, para orientar o movimento revolucionário espontâneo do povo segundo um plano determinado de antemão e bem definido. Este plano que organiza a liberdade popular deve ser, primeiro, preparado com bastante solidez e claridade em seus princípios e objetivos essenciais com o fim de descartar qualquer possibilidade de desacordo e choques por parte dos membros da organização que o apliquem. E segundo, deve ser amplo e natural o bastante para abarcar e aplicar as inevitáveis mudanças procedentes de circunstâncias diversas e movimentos heterogêneos da diversidade da vida popular.
Assim, toda a questão é como organizar, com os elementos disponíveis e conhecidos, tal ditadura coletiva secreta e tal força que poderia desde agora fazer uma ampla propaganda popular, uma propaganda que penetre realmente dentro das massas; pela força desta propaganda, e também pela organização do próprio povo, reunir as energias dispersas do povo em um todo poderoso capaz de destruir o Estado. E segundo, a questão é como se poderia manter a organização durante o processo revolucionário, sem perder seu ardor e sem mudar sua orientação no dia seguinte da liberdade popular.
Tal organização, e em particular seu núcleo central, deve ser integrada pelas pessoas mais firmes, mais inteligentes e dentro do possível com instrução (ou seja, uma inteligência com base na experiência), mais apaixonada, com uma dedicação sem titubeios nem modificações, havendo renunciado na medida do possível a todo interesse pessoal e rechaçado de uma vez por todas, em sua vida e até a morte, como sendo uma prisão aos indivíduos: as comodidades e os gozos sociais, as satisfações da vaidade, da ascensão social e a fama. Esta gente estaria concentrada unicamente e inteiramente na única paixão de emancipação do povo, sem buscar um papel histórico em sua vida ou até de um rastro pessoal na história depois de sua morte.
Esta abnegação total só é possível com a paixão. Você não estimula a consciência do dever absoluto, e menos ainda com o sistema de controle exterior, manipulação e obrigação. Apenas uma paixão pode motivar em um indivíduo este milagre este poder, sem esforço. De onde procede e como nasce tal paixão nos indivíduos? Encontra-se na vida e nasce da ação conjunta do pensamento e da vida; de modo negativo, como ódio e protesto contra aquilo que existe e oprime; de modo positivo, pela convivência com aqueles que pensam e sentem de forma similar, como criação coletiva de um novo ideal. Portanto, tens que entender que esta paixão só é eficiente, salvadora, quando nela se encontram na mesma medida, estreitamente vinculada os dois componentes, o negativo e o positivo. Uma paixão negativa, o ódio, não cria nada, nem sequer a força necessária para a destruição e, portanto, não destrói nada; a paixão positiva não quebra nada, dado que a criação do novo é impossível sem destruir o velho, ela tampouco cria algo, ficando sempre como um sonho doutrinário ou uma doutrina baseada no sonho.
A paixão profunda, a paixão arraigada e sem vacilações é a base de tudo. Aquele que não a possui, inclusive se tem uma inteligência muito elevada, inclusive se é muito honesto, não será capaz de aguentar até o final a luta contra o terrível poder social e político que nos oprime a todos. Não será capaz de resistir todas as dificuldades, as impossibilidades e, sobretudo, as decepções que lhe esperam e com as quais chocará sem dúvida nenhuma durante esta luta desigual e diária. O homem sem paixão não terá nem força, nem fé, nem iniciativa, nem valentia, e sem valentia tal obra não se cumpre. Mas a paixão sozinha não basta; a paixão engendra energia, porém, a energia sem uma direção clara resulta estéril e absurda. Por isso, da mesma forma que a paixão, faz falta a razão fria, calculadora, realista, prática frente a tudo, e também teórica, conformada amplamente pelo conhecimento e a experiência; sem perder de vista nenhum detalhe; capaz de compreender as pessoas e diferenciá-las, captar a realidade, as relações, as condições da vida social em todas suas camadas e manifestações, seu verdadeiro aspecto e sentido, não com o sonho e de modo arbitrário, como se faz amiúde, meu amigo, e você em especial. É necessário, por fim, conhecer bem a Rússia e a Europa, sua verdadeira situação política e social, assim como o estado de espírito em uma e outra parte. Quer dizer que a paixão própria, sendo sempre o elemento principal, deve guiar-se com a razão e o conhecimento, deve deixar de agitar-se, e sem perder sua chama interior e sua inquebrantável firmeza, converter-se em uma paixão fria e, por isso, mais forte.
Tal é o ideal do conspirador convocado a formar parte do núcleo da organização secreta.
Você me perguntará onde encontrar semelhante pessoa, se existem muitas na Rússia e inclusive em toda a Europa. Nesse assunto, em meu sistema, não é necessário que tenhamos muitos membros. Lembre-se que você não deve organizar o exército, apenas o estado-maior da revolução. Pessoas assim, estão quase totalmente preparadas. Talvez você encontre dez. Das capazes de sê-lo e que já estão preparadas para isso, no máximo cinquenta ou sessenta, e ao olho de bom cubero é bastante. Você mesmo, estou profundamente convencido disso, apesar de todas suas torpezas, seus erros lamentáveis e funestos, apesar de todas as suas superstições vulgares e burras, dentro de um sistema tão mentiroso, você não tem de forma nenhuma ambição pessoal, vaidade ou ambição (como muitos, muitos mesmo, tendem a acreditar). Você mesmo, de quem terei que separar-me e com quem decidi romper, se você não renunciar a esse sistema, você mesmo, forma parte destas pessoas tão pouco numerosas. Esta é a única razão de meu afeto por você, de minha confiança com você apesar de tudo, de minha larga paciência, que, contudo está por acabar-se. Pese os seus terríveis defeitos e reflexões insuficientes, vejo e reconheço em você uma pessoa inteligente, firme, enérgica, capaz de trabalhar com sangue frio, apesar da inexperiência e da ignorância, pese muitas vezes o uso de embustes, com uma total abnegação e apaixonadamente, profundamente apegado e entregue a causa da emancipação do povo. Retire de você seu sistema e tornar-se-á um ser valioso. Se você não o quer tirar, se converterá seguramente em um ser perigoso e sumamente destruidor, não para o Estado, senão para a causa da liberdade. Porém, tenho a grande esperança de que os últimos eventos ocorridos na Rússia e no estrangeiro tenham-lhe aberto os olhos, e de que deseja e acredita ser imprescindível estendermo-nos a mão sobre bases sinceras. Então, eu repito, veremos em você uma pessoa valiosa e reconheceremos com alegria como nosso chefe para todas as atividades na Rússia. E se você é realmente um homem dessa natureza, então sem nenhuma dúvida encontrará na Rússia pelo menos dez homens como você. Se não os possui, busque e os encontrará e forme com nós uma nova associação sobre as bases e as seguintes condições recíprocas:
1) Reconhecimento completo, inteiro e apaixonado do programa , mencionado mais acima, de Narodnoe Delo (Ação Popular), com os complementos e esclarecimentos que lhe pareçam necessários;
2) Igualdade de direitos de todos os membros e solidariedade incondicional e absoluta – um por todos e todos por um -, com a obrigação de todos e de cada um em ajudarem, sustentarem e salvar cada membro até a última possibilidade, dentro do que é factível, sem por em perigo a própria existência da associação;
3) Sinceridade absoluta entre os membros. Exclusão de todo jesuitismo nas relações, a desconfiança ruim, o controle pérfido, a espionagem e as delações recíprocas, ausência e proibição terminante de rumores e indiretas. Quando um filiado tem algo a reprovar a outro, deve fazê-lo na assembleia geral e em sua presença. Controle fraterno coletivo de cada um por todos, controle em nenhum caso incômodo, mesquinho e, sobretudo malévolo, do qual deve substituir seu sistema de controle jesuítico, e deve fazer-se com a educação moral, com o pilar da força de cada membro, com base na confiança fraterna mútua, na qual se fundará toda a força interior e, portanto exterior da associação;
4) Ficam excluídos da associação todos os nervosos, medrosos, vaidosos e ambiciosos. Podem servir, sem eles saberem, como instrumento da associação, mas não devem absolutamente formar parte do núcleo da organização;
5) Ao aderir à associação cada membro se condena para sempre a não ser conhecido nem se destacar. Toda sua energia e sua inteligência pertencem a associação e devem tender, não a criar sua força social pessoal, senão a força coletiva da organização. Cada um deve convencer-se que o prestígio individual é impotente e estéril e que apenas a força coletiva poderá derrubar o inimigo comum e alcançar o objetivo positivo comum. Por isso, as paixões individuais de cada filiado deverão ir-se apagando frente a paixão coletiva;
6) A inteligência individual de cada um se perde, como a um rio no mar, na razão coletiva, e todos os membros obedecem absolutamente as decisões desta;
7) Todos os membros são iguais em direitos, conhecem todos seus companheiros e com eles discutem e decidem todas as questões essenciais com relação ao programa da associação, assim como sua atividade geral e seu andamento. A decisão da assembleia geral é uma lei absoluta;
8) Cada filiado possui de fato o direito de informar-se de tudo. Porém, se descarta toda curiosidade trivial na associação, assim como os comentários ocos sobre a atividade e os objetivos da associação secreta. Informado do programa comum e da orientação geral da ação, nenhum membro pedirá nem tratará de conseguir detalhes desnecessários para a boa execução daquilo que ele está encarregado; e sem necessidade prática não falará a nenhum companheiro seu da tarefa que lhe foi encomendada;
9) A associação elege entre seus filiados um Comitê executivo de três ou cinco membros que, sobre a base do programa e do plano geral de atividade adotado pela mesma, deve organizar sua ramificação e dirigir seu trabalho por todas as regiões do império;
10) Este Comitê é eleito por um período ilimitado. Se a associação, que penso chamar de Fraternidade Popular, se a Fraternidade Popular está satisfeita com a atividade do Comitê, o mantenha em suas funções, e enquanto as exerça, cada membro da Fraternidade Popular e cada grupo regional devem obedecer-lhe de forma absoluta, exceto nos casos em que as ordens do Comitê contradigam o programa geral, os princípios fundamentais, ou o plano conjunto de ação revolucionária, conhecidos por cada um tendo em vista que todos os irmãos participam em igual medida na avaliação e nas decisões;
11) Neste caso, os membros e os grupos devem deixar de executar a ordens do Comitê e processá-lo frente a assembleia geral da Fraternidade Popular. Se a assembleia não está satisfeita com o Comitê, sempre poderá substitui-lo por outro;
12) Cada membro, assim como cada grupo, ser julgado pela assembleia geral da Fraternidade Popular;
13) Posto que cada irmão está informado de tudo, inclusive da composição do Comitê, a admissão de todo membro novo deve ir de mãos dadas com a maior cautela, reflexão e restrição, uma só má eleição pode arruinar tudo. Nem um novo aderente será admitido de outro modo que com o acordo de todos os irmãos ou em última instância e de nenhuma maneira com menos que as três quartas parte dos membros do conjunto da Fraternidade Popular;
14) O Comitê divide os membros por região e forma grupos ou comandos regionais. No caso de haver um número insuficiente de membros, tal comando ficará reduzido a um único irmão;
15) O comando regional está encarregado de constituir uma associação de segundo grau – a Fraternidade Regional – sobre a base do mesmo programa, das mesmas regras e do mesmo plano revolucionário;
16) Todos os membros da Fraternidade Regional se conhecem uns aos outros, porém, desconhecem a existência da Fraternidade Popular. Apenas sabem que existe um Comitê Central que lhes transmite suas ordens para serem executadas através do Comitê Regional, designado pelo Comitê Central;
17) O Comitê Regional está constituído, dentro do possível, apenas de irmãos populares designados e substituídos pelo Comitê Central, ou em última instância de um único irmão popular. Neste caso, este designa, com o acordo do Comitê Central, os dois melhores membros da Fraternidade Regional e forma com eles o Comitê Regional. Porém, não existe igualdade entre todos os membros dado que só o irmão popular está em contato com o Comitê Central, do qual lhe transmite as ordens de seus companheiros do Comitês Regional;
18) O ou os irmãos populares que se encontrem nas regiões, buscam na Fraternidade Regional as pessoas capazes e dignas de serem admitidas na Fraternidade Popular apresentando-as à assembleia geral da mesma e através do Comitê Central;
19) Cada comitê regional organiza Comitês de Distrito compostos de membros da Fraternidade Regional, nomeados e substituídos pelo Comitê Regional;
20) Os comitês de Distrito podem fundar, em caso de necessidade, mas não sem a aprovação do Comitê Regional, uma organização de terceiro grau, a Fraternidade de Distrito, cujo programa e estatutos deverão se aproximar o máximo possível ao programa geral e aos estatutos da Fraternidade Popular. O programa e os estatutos da Fraternidade de Distrito só serão vigentes depois de ser discutidos e aprovados pela assembleia geral da Fraternidade Regional e confirmados pelo Comitê Regional;
21) O controle jesuítico, o sistema de manipulação policial e de mentiras estão excluídos decididamente dos três graus da organização secreta, assim como as Fraternidades Regionais, de Distrito e da Fraternidade Popular. A força do conjunto da associação, da mesma forma que a moral, a lealdade, a energia e a dedicação de cada membro se fundam exclusiva e inteiramente na verdade, na franqueza e na confiança recíprocas e no controle fraterno aberto de todos por cada um.
Assim são os grandes traços do plano da associação como a entendo. Desde logo, este plano deve ser desenvolvido, completado, algumas vezes modificado de acordo às circunstâncias e a índole do meio, e até definido de modo muito mais claro. Porém, estou convencido de que o essencial deve manter-se se você deseja criar de verdade uma força coletiva capaz de servir a causa da emancipação do povo, e não uma nova exploração deste.
Os sistemas de manipulação e de mentira jesuíticos excluem-se totalmente desse plano, por ser meios e princípios nocivos, dissolventes e degradantes. Porém, fica também excluídos o palavrório parlamentar, a agitação por vaidade. Se observa uma estrita disciplina de todos os membros para com os Comitês e todos os Comitês locais em relação ao Comitê Central. O juízo e o controle dos membros pertencem as Fraternidades e não aos Comitês. O novo poder executivo está nas mãos destes últimos. O direito de julgar os Comitês, incluindo o Comitê Central, pertence unicamente a Fraternidade Popular.
A Fraternidade Popular, em meu plano, nunca terá mais de cinquenta a setenta membros. No início é possível que não haja mais que dez filiados e inclusive menos, logo se irá estendendo, de um a um, e submetendo a cada um a um exame prévio sumamente minucioso, dentro do possível, com a admissão por decisão unânime de todos os membros da Fraternidade Popular ou no mínimo das três quartas partes destes. Não é possível que em dois ou três anos não se encontre trinta ou quarenta homens capazes de serem irmãos populares.
Represente você a Fraternidade Popular em toda a Rússia, com quarenta ou a lo sumo setenta membros. Logo algumas centenas de membros da organização de segundo grau – os irmãos regionais -, e cobrirá toda a Rússia com uma rede realmente poderosa. Sua plana maior está formada, e como já se disse, nela se assentam, ao mesmo tempo que uma extrema prudência e a expulsão de qualquer palavrório e charlatanismo parlamentar, a verdade, a franqueza e a confiança recíprocas e, por fim, a solidariedade real, como elementos de moralização e de união.
A associação inteira forma um corpo, um todo sólido unido, dirigido pelo Comitê Central e leva uma guerra subterrânea permanente contra o Governo e contra as organizações que a combatem ou que simplesmente trabalham fora dela. E onde existe guerra, existe política, aí se impõe a violência, a astúcia e a manipulação.
As associações com objetivos próximos aos nossos devem ser pressionadas para que se unam a nós ou, pelo menos, a ficarem-nos subordinadas, sem que o saibam e afastando todos os elementos nocivos. As associações contrárias e propriamente nefastas devem ser anuladas. Por fim, o Governo deve ser aniquilado. Tudo isso não se fará pela mera propaganda da verdade; a astúcia, a diplomacia e a mentira serão necessárias. Ali o jesuitismo e até a manipulação tem o seu lugar; a manipulação é um bom e excelente meio para caracterizar e aniquilar o inimigo, porém, ela não é absolutamente um modo útil para ganhar e atrair novos filiados.
Assim, na base de nossa atividade, deve haver esta simples lei: verdade, honestidade, confiança entre todos os irmãos e com toda pessoa capaz e que queira filiar-se. A mentira, a manipulação e, se lhe faz falta, a violência, são contra os inimigos. Trabalhando desse modo você moralizará, potencializará e unirá mais estreitamente os seus, e você destruirá e anulará as relações e as forças alheias.
Quanto a você, meu estimado amigo, - e é seu principal, seu imenso erro -, você se deixou seduzir pelo sistema de Loyola e de Maquiavel, o primeiro se propunha escravizar a humanidade inteira, o segundo criar um poderoso Estado (monárquico ou republicano, pouco importa), ou seja, a escravidão do povo. Com seu gosto pelos princípios e os procedimentos jesuíticos e policiais, você pensou fundar neles sua própria organização, sua força coletiva secreta, a alma – para dizer assim – de toda sua associação. Em consequência, você trabalha com seus amigos como se fossem inimigos: trampea com eles, mente, se esforça para separá-los, inclusive que criem inimizades entre eles, de modo que não possam unir-se contra sua tutela. Você busca a força, não para a união deles, senão a desunião, e não confiando absolutamente neles, tenta conseguir contrariamente a eles fatos, cartas, que por sinal você lê sem estar autorizado e até rouba. Sempre os enreda por todos os meios possíveis para que dependam de você como escravos. Para piorar, você faz isso de modo tão torpe, tão desajeitado, indiscutível, imprudente e irreflexivo, que todas suas manipulações, suas artimanhas e esquemas aparecem rapidamente em plena luz. Impregnou-se tanto de jesuitismo que se esqueceu de todos os demais, se esqueceu até mesmo do objetivo e do desejo apaixonado que lhe atraiu a emancipação do povo. Tanto se impregnou de jesuitismo que está disposto a predicá-lo como imprescindível a todos, até a Sukovski. Você quis inclusive dedicar artigos e encher com seus ensinamentos o Kolokol, recordando o refrão Suvorov: “Graças a Deus, não é certo o que todos pensavam ser”. Em uma palavra, você se pôs a jogar com o jesuitismo, como uma criança com futilidades ou Utin com a revolução.
Vejamos o que você alcançou e conseguiu fazer em Genebra com a ajuda de seu sistema jesuítico. O fundo Bajmetev lhe foi entregue. Esse é o único resultado real e importante que conseguiu. Porém, Ogarev lhe transmitiu este fundo e eu lhe aconselhei com vigor para que o fizesse, não porque você se comportara de modo jesuítico, senão porque, apesar do seu jesuitismo demasiado simplista, ambos sentimos e reconhecemos em você a um homem profundo, ardente e seriamente dedicado a causa russa. Porém, saiba – e é de minha parte uma amarga constatação – que quase começo a me arrepender de haver aconselhado a Ogarev a lhe entregar este fundo, não porque penso que você poderá empregá-lo de modo desonesto e com finalidades pessoais – me preservem todos os santos de tão vil ideia e realmente absurda, e eu quero morrer se penso que você possa usar sequer um centavo para você mesmo –, não, começo a arrepender-me porque, observando todos seus atos, eu deixei de acreditar em sua maturidade política, em sua seriedade e na existência de seu Comitê e de toda sua associação. A quantia não é enorme, mas é o que tínhamos e vai ser desperdiçada em vão, de modo inútil, descarado, em tentativas disparatadas e impossíveis.
Mas com essa quantia reduzida e a ajuda de poucas pessoas, expressando-lhes com muita sinceridade sua intenção de servir a causa russa comum, sem exigências nem pretensões, sem vaidade nem presunção, teria podido fazer não poucas coisas úteis em Genebra. Você poderia ter criado um órgão serio, com um programa francamente social revolucionário e associado ao periódico, um Birô no estrangeiro para a condução de nossa ação fora da Rússia, com certa autonomia ainda que não absolutamente completa, mas não obstante real. Foi com esse fim que fui chamado a primeira vez a Genebra por seu comitê, quer dizer, por você. E o que encontrei em Genebra? Primeiro o programa deformado do Kolokol, do qual o Comitê e você pediam diretamente absurdos e feitos impossíveis. Você sabe que posso admitir a debilidade que me induziu a ceder a você nesta questão. Vou ter que responder por este infeliz Kolokol e em geral por minha solidariedade com você frente a todos meus amigos internacionais, por uma parte, por causa de Utin, e por outra, de Sukovski, que, o primeiro com seu ódio, o segundo com sua boa vontade, nos vão caluniando.
A propósito de Sukovski: você lhe demonstrou seu grande desconhecimento e incompreensão das pessoas e sua incapacidade de as atrair para sua causa com uma atitude direta, honesta quer dizer, forte. Conhecendo muito bem Sukovski lhe havia descrito em detalhes o seu caráter, suas capacidades e incapacidades, de modo que lhe seria fácil incitar-lhe a estabelecer relações sérias com você. Apresentei-lhe ele como um homem muito bom, capaz, longe de ser idiota, ainda que sem espírito de iniciativa, mas assimilando bem as ideias alheias e podendo propagá-las e difundi-las com bastante eloquência, mais pela palavra que pelo papel. É um homem impressionante como um artista, devotado com bastante força a uma tendência, mas falta-lhe caráter na medida em que não gosta do perigo, frente a uma oposição categórica cede facilmente as influências mais diversas. Em uma palavra, é um homem muito capaz de levar a propaganda, mas de nenhuma maneira para formar parte de uma associação secreta. Você deveria ter acreditado em mim e não acreditou, e em vez de ganhar Sukovski para nossa causa, você o afastou de você e de mim. Você tentou enrolar-lhe, enganar- lhe, para que se convertesse em seu escravo. Com este fim você se colocou a criticar- me, rir de mim, mas houve em Sukovski um espírito de honestidade que se rebelou. Me contou tudo o que você lhe disse de mim, com indignação e repugnância, e se eu fosse mais orgulhoso e mais fraco, haveria bastado isso para que eu rompesse minhas relações com você. Se lembrará que me contentei em repetir-lhe, sem comentários, as palavras de Sukovski. E você nada respondeu e não me pareceu útil prosseguir a conversa. Logo que você expôs a Sukovski sua teoria preferida de comunismo estatal e de jesuitismo policial, e o afastou definitivamente de você. Por fim, houve as miseráveis fofocas de Henry que fizeram de Sukovski seu inimigo mortal, e não só seu, pode-se dizer que meu também. E, no entanto, apesar de todos seus pontos débeis, Sukovski poderia ter sido útil.
Reconheço também, estimado amigo, que seu sistema de chantagem, de armadilha e intimidação com Tatá, me revoltaram extremamente, já expus isso diversas vezes. O resultado é que você lhe infundiu uma profunda desconfiança para todos nós e o sentimento que você e eu tínhamos a intenção de explorar seus recursos, extrai-los, desde logo, não para a causa, mas para nós mesmos. Tatá é, em toda a acepção do termo, uma pessoa honesta e sincera, mas incapaz, ao meu ver, de dedicar-se por inteira a seja o que for. É, portanto, uma diletante, não por natureza, senão por mentalidade, diletante tanto do ponto de vista moral como intelectual, mas se pode confiar em sua palavra e era possível que se convertesse, senão em nossa amiga, pelo menos em uma companheira fiel. Você tinha que portar-se com ela franca e lealmente, sem buscar estratagemas em que você acreditar retirar sua força. Mas que revelam sua debilidade. Enquanto acreditei possível e útil falar com ela direta e francamente para atuar sobre seu livre pensamento, o fiz. Não quis ir mais longe com você, estava com asco. E só quando por você me informei que Natalia Alekseevna propagava calúnias sobre mim, afirmando que eu pegava o dinheiro de Tatá e quando vi que esta estava perplexa, me afastei dela decididamente.
A propósito, você me afirmou muitas vezes que havia sabido por Tatá que Natalia Alekseevna e Tchórzewski gritavam por todas as partes, contavam a todos, escreviam que eu buscava aproveitar os recursos de Tatá. Mas Natalia Alekseevna e Tchórzewski afirmam pelo contrário que não disseram nunca a ninguém ou escreveram semelhante coisa e Tatá me confirmou isso. Durante minha última estadia em Genebra, você disse saber por Serebrennikov (Sêmen) que Sukovski havia declarado a este último que eu explorava Tatá. Fiz a pergunta a Serebrennikov e soube que Sukovski lhe falou de você e não de mim. Você me contou também que a mulher de Sukovski lhe havia pedido que você se unisse a Utin, afirmando-lhe que toda aliança comigo era inútil, impossível e doentia. Porém ela disse o contrário: não lhe falou de mim, não lhe propôs que fosse com Utin, com quem me disse que havia rompido mais ou menos, e não foi ela senão você quem lhe propôs buscar fundos para unir-se, e é você que esperava ditos fundos.
Você já consegue ver quanto a mentira insensata é inútil e como sai facilmente a luz. Confesso que desde minha primeira viagem a Genebra foi uma forte decepção e quebrou minha confiança em sólidos vínculos e em uma ação com você. Sobre o assunto pelo qual havia sido chamado a Genebra e que era a única razão da minha viagem, não intercambiamos nem uma só palavra concreta. Varias vezes comecei a orientar a conversa sobre o birô no estrangeiro e você a evitou. Você esperava não sei que resposta definitiva do Comitê que nunca chegou. Acabei por ir embora depois de remeter através de você cartas ao Comitê (na qual pedia que se expusesse e precisasse claramente o assunto pelo qual me haviam chamado) e declarei estar firmemente decido a não voltar a Genebra enquanto não recebesse uma resposta satisfatória.
Em maio você voltou a me chamar a Genebra. Me neguei várias vezes a fazer a viagem, no fim eu fui. Este último passo confirmou todas minhas dúvidas e arruinou minha confiança na lealdade e na veracidade de sua palavra. A conversa na minha presença entre você e Lopatin, na mesma tarde da minha chegada, as acusações precisas, duras deste contra você, com uma confiança que não deixava lugar a nenhuma dúvida sobre a veracidade de suas palavras, que convertiam as suas em outras tantas mentiras. Sua recusa completa de todos os detalhes que figuram no relato de sua evasão tal como você a publicou, suas acusações diretas contra os companheiros mais próximos de você, acusações escritas, que Lopatin, segundo as palavras de você, que me confirmou mais tarde, teve a oportunidade de ler, particularmente seu desprezo pelas atuações, manobras e denúncias totalmente inúteis de Pryzov, que sempre me pintou como um de seus melhores e mais firmes companheiros. Por fim, a negativa direta e decidida de Lopatin da existência de seu Comitê nesses termos: “Nechayev pode lhe contar isso, porque você está longe da Rússia. Porém, não tentará repeti-lo frente a mim, por saber muito bem que estou inteirado de tudo e que conheço todos os grupos, as pessoas, as relações entre uns e outros e o que passou lá. Você vê que com seu silêncio confirma a exatidão de tudo o que lhe disse sobre sua evasão, cujos melhores detalhes e circunstancias ele sabe que os conheço muito bem, assim como seus companheiros e seu Comitê fictício”. De fato, a tudo isso você respondeu com o silêncio e nem sequer tratou de defender nem a si mesmo, nem a nenhum de seus companheiros, nem sequer a realidade de seu Comitê.
Lopatin triunfava e você frente a ele afundava. Não podia dizer-lhe, estimado amigo, quanto me era penoso por você e por mim. Eu já não podia colocar em dúvida a verdade das palavras de Lopatin. Significava que você havia mentido sistematicamente para nós. Significava que toda sua ação estava encharcada, apodrecida pela mentira e baseada em areia. Significava que seu Comitê era unipessoal, pelo menos para as três quartas partes, com dois, três ou quatro companheiros em suma que lhe ficam submetidos ou sobre quem você exerce uma influência predominante. Toda a ação pela qual você deu sua vida se desmoronou, se esfumaçou por causa de uma orientação mentirosa e burra de seu sistema jesuítico, que rebaixou você e mais ainda seus companheiros. Eu o quero profundamente e sigo querendo, tinha por você uma grande, muito grande confiança e ao ver-lhe em tal situação, na humilhação frente a este charlatão do Lopatin, senti uma indescritível amargura.
Me era doloroso, e por mi mesmo. Incitado pela confiança em você, lhe entreguei meu nome e me solidarizei publicamente com sua ação. Tentei com toda minha energia atrair a simpatia de Ogarev e a confiança dele para sua empresa. Lhe aconselhei sempre que lhe entregasse o Fundo em sua totalidade. Ganhei-lhe a Ozerov e fiz de tudo para convencer Tata para que se somasse a nós, ou seja, a você, e que se entregasse por inteira a ação. Por fim, contra minha convicção, convenci a Ogarev que publicasse Kolokol com base em seu programa fantasioso, absurdo, impossível. Em uma palavra, confiando em você sem reserva, quando você me enganava sistematicamente, me portei como um tonto rematado (o que é tão amargo quanto vergonhoso para um homem como eu, dada minha experiência e minha idade) e, o que é pior, comprometi minha posição frente a causa russa e a causa internacional.
Quando Lapatin saiu eu lhe perguntei: “Ele disse a verdade? Será possível que tudo o que você me disse tinha sido só mentira?” Você desviou a resposta. Era tarde. Fui embora. E todas as conversações e discussões do dia seguinte com Lopatin me convenceram que ele dizia a verdade. Você ficou em silêncio. Eu esperava o resultado de seu último encontro com ele, você não me comunicou. Porém acabo de tomar conhecimento por cartas de Lopatin que Ozerov lhe lerá.
O aprendizado me basta para tomar medidas contra novas tentativas suas de explorar a mim e a meus companheiros. Em consequência, escrevi um ultimato que lhe li rapidamente na casa dos turcos e me pareceu que você o aceitava. Desde este encontro, não nos voltamos a ver.
Ao fim, recebi anteontem uma carta que Lopatin que me ensinou dois tristes fatos: primeiro, você mentiu... (não vou empregar superlativo) contando-me sua conversa com ele. Tudo o que você me disse era pura mentira. Não lhe disse que lhe devolvi as cartas de Liubavin, e tampouco; “O velho não resistiu a prova, agora é nosso prisioneiro, já não pode fazer nada contra vocês...”; a isto você lhe havia respondido: “Se Bakunin teve a debilidade de devolver as cartas de Liubavin, temos outras delas, etc.” Você mentiu, caluniou Lopatin, você me enganou deliberadamente. Lopatin se assombra que eu tenha podido acreditar em você e com palavras corteses tira conclusões pouco lisonjeiras sobre minhas capacidades mentais. Não esta equivocado, nesse caso eu fui completamente burro. Porém não teria me julgado com tanta severidade se ele soubesse como eu lhe quis e acreditei com paixão e ternuras profundas! Você decidiu arruinar tal confiança, pior para você. Eu poderia supor que um homem inteligente e dedicado a causa, como você parecia aos meus olhos, apesar de tudo o que ocorreu, podia eu imaginar que você poderia mentir de modo tão descarado e estúpido frente a mim, quando minha dedicação não lhe deixava lugar a dúvidas? Como não passou pela sua cabeça que sua insolente mentira viria a tona e que eu pediria, deveria pedir explicações a Lopatin, quanto mais que em meu ultimato se dedicava a necessidade de tratar com plena caridade o assunto Liubavin?
O segundo fato: Liubavin não recebeu minha resposta a sua carta descarada; por tanto, tampouco tive o recibo adjunto. Quando mostrei a você minha resposta e o recibo, você me pediu que esperasse e que não o enviasse. Eu lhe rechacei e então você se encarregou de entregar minha carta e você não o fez. Basta com tudo isso Nechayev, acabaram nossas antigas relações e nossos compromissos recíprocos. Você mesmo os destruiu. Se você acreditou e acredita ainda me obrigar e me enrolar moral e materialmente, está muito equivocado. Nada no mundo pode me prender contra minha consciência, minha honra, minha vontade, minha concepção e meu dever revolucionários.
É verdade que no plano financeiro, me encontro hoje, dependo de você, em uma situação muito difícil. Não tenho meios de existência e minha única fonte de renda – a tradução de Marx e a esperança de poder receber outras obras literárias – agora se esgotou. Não tenho um centavo e não sei como sairei desse apuro, mas esta é a última das minhas preocupações.
A verdade é que me equivoquei frente a meus companheiros e fico meio paralisado agora. Estão chovendo calúnias sobre mim pelo Fundo, a história com Liubavin, com Tatá, em fim, por tudo o que ocorreu ultimamente na Rússia.
Mas tudo isso não me vai fazer parar. Estou disposto, se for necessário, a confessar minha insensatez e arrependimento publicamente. Seguramente, será para mim uma vergonha grande, mas que me recomporá. Não serei mais seu aliado forçado.
Declaro-lhe decididamente, portanto, que todas minhas relações até agora insalubres com você e todos meus laços com sua ação se romperam. Porém, rompendo- os, lhe proponho estabelecer entre nós novos vínculos sobre outras bases.
Lopatin, que não lhe conhece tão bem como eu, se estranharia com tal proposta de minha parte depois de tudo o que passou entre nós. Não será uma surpresa para você nem para meus companheiros mais próximos.
Sem dúvida alguma, você fez muitas burrices e sujeiras realmente prejudiciais e desastrosas para a própria causa. Porém, é claro para mim, que todos seus atos estúpidos e suas tremendas burradas não tinham como meta nem o interesse pessoal, nem a ganância, nem a vaidade ou o amor próprio, senão unicamente sua falsa concepção da ação. Você tem uma dedicação apaixonada e poucos existem como você, daí sua força, sua valentia, seu direito. Você e seu Comitê (se ele existe de verdade) estão cheios de energia e dispostos a cumprir sem frases ocas quando acreditam ser válido para a causa, e isto é valioso. Porém, ao seu Comitê e a você mesmo lhes falta equilíbrio, isso é evidente agora. Como crianças, vocês se agarraram ao sistema jesuítico vendo nisto toda sua força, seu êxito e sua salvação. Vocês esqueceram-se do essencial e do objetivo da associação: emancipar o povo não apenas dos dirigentes, senão de vocês mesmos. Por adotar esse sistema, vocês levaram-no a extremos monstruosos e estúpidos, pervertendo e desonrando a associação no mundo inteiro; com esquemas muito torpes e absurdos incríveis, tal como suas cartas de ameaças a Liubavin, a Natalia Alekseevna, e sua longa e amável paciência com Utin (quando este nos estava difamando fortemente a todos com insolência), assim como seu nefasto programa comunista e um montão de manipulações sem-vergonhas. Tudo isso testemunha uma ausência completa de inteligência, saber e conhecimento dos indivíduos, das relações e das coisas. Portanto, é impossível, ao menos neste momento, contar com sua razão, apesar de você ser sumamente inteligente e capaz de adquirir mais juízo ulteriormente, mas isso é uma esperança para o futuro. Para o presente, você se mostrou torpe e ridículo como uma criança.
Firmada definitivamente minha convicção, estou na seguinte situação:
Suas palavras, suas afirmações e suas promessas ocas, sem conformação com os fatos, agora não vou acreditar nelas por saber que para você não importa mentir se lhe parece útil a causa. Tampouco acredito no você vê como justo e racional, porque você e seu Comitê me deram muitas provas de insensatez. Porém, se nego sua visão da realidade e das possibilidades, não rechaço sua energia e sua dedicação absoluta à causa, vejo que neste âmbito, poucos homens existem na Rússia como você. Era isso, repito mais uma vez, é a principal e inclusive a única razão de meu afeto por você e de minha confiança. Até hoje tenho a convicção de que você é – mais que todos os outros russos que conheço – capaz e chamado a servir a causa revolucionária russa, unicamente, logicamente, se quiser e puder modificar todo seu sistema de atividade na Rússia e no estrangeiro. Se você não o quiser modificar, se converterá inevitavelmente, em razão das qualidade de fazem a força, em um homem eminentemente perigoso à causa.
Com essas considerações, e apesar de tudo o que passou entre nós, desejaria não apenas estar unido a você, senão que estar ainda de modo mais estreito e firme, supondo, naturalmente, que você modifique por completo de sistema e coloque como base de nossas futuras relações a confiança mútua, a franqueza e a verdade. Caso contrário, nossa ruptura é inevitável.
Agora vêm minhas condições de ordem pessoal e geral. Começo pelo pessoal:
1) Você me colocará fora de cena e reconhecerá que não tenho nada a ver com a história com Liubavin; e escreverá uma carta coletiva a Ogarev, Tata, Ozerov e a S. Serebrennikov, na qual você declarará, de acordo com a verdade, que eu ignorava tudo na carta do Comitê e que foi escrita sem meu conhecimento e contra minha vontade;
2) Que você leu minha resposta a Liubavin a qual estava anexada o recibo de 300 rublos, e que, encarregado de deixar a carta no Correio, deixou-a ou não na caixa de correio;
3) Que nunca tive direta e indiretamente uma intervenção na gestão do Fundo Bajmetev. Que você recebeu a totalidade do Fundo em datas distintas, primeiro das mãos de Herzen e Ogarev, depois, a maior que sobrou, de Ogarev que, depois da morte de Herzen era o único com o direito a administrá-lo, e que você o aceitou em nome do Comitê do qual você era o representante;
4) Se você ainda não deu recibo a Ogarev pela entrega do Fundo, você deverá lhe dar;
5) Você deverá devolver o quanto antes a mensagem de Danielson, pelo nosso intermediário e o de Lopatin. Se não está em suas mãos (mas tenho certeza que está com você), você se comprometerá nesta mesma carta a enviarnos o mais rapidamente possível;
6) Você abandonará as tentativas, que não levam a nada e que são indignas para a causa, de aproximação e reconciliação com Utin, que a ambos nos calunia assim como a todos os seus em Rússia de um modo sumamente repugnante. Ao contrário, você se comprometerá, escolhendo a hora e a ocasião para não prejudicar a causa, para combatê-lo abertamente.
Estas são as minhas condições: a recusa de um desses pontos, e em particular dos inço primeiros e da primeira metade do sexto, ou seja, o fim de todas as relações com Utin, será para mim um motivo suficiente para romper qualquer vínculo com você. E tudo isso você deve cumprir de modo amplo, direto, honesto, sem mal-entendidos mesquinhos, reticências, alusões e equívocos. Já é hora que tenhamos um jogo limpo.
Agora vêm as condições globais:
1) Sem dar os nomes, que não necessitamos, nos mostrará a situação real de sua organização e sua ação na Rússia, suas esperanças, sua propaganda, seu movimento, sem exageros e enganos;
2) Extinguirá de sua organização qualquer uso de sistema policial e jesuítico, conformando-se em aplicá-lo somente em casos de necessidade prática extrema, principalmente com sensatez, apenas contra o governo e os partidos inimigos;
3) Você deixará o pensamento absurdo que se pode fazer a revolução fora do povo e sem a participação popular, e tomará como base de toda sua organização a revolução popular espontânea, em que o povo será o exército, e a organização unicamente a estado-maior;
4) Adotará como base da organização o programa social revolucionário exposto no primeiro número de Narodnoe Delo [Ação Popular], o plano de organização e de propaganda revolucionária apresentado por mim em minha carta, com os acréscimos e as modificações que juntos em assembléia geral consideremos necessárias;
5) Tudo o que adotemos em discussão comum e decisões unânimes, será submetido a você e a todos seus companheiros em Rússia e no estrangeiro. Se rechaçarem nossas decisões, você terá que determinar se quer ir com eles ou com nós, romper as relações com eles ou com nós;
6) Se aceitarem o nosso programa, plano de organização, o regulamento da associação e o plano de propaganda e ação revolucionária, você por eles e em seu nome nos dará a mão e sua palavra de honra que daqui pra frente este programa, plano de organização, propaganda e ação serão a lei absoluta e a base imprescindível de sua associação na Rússia;
7) Confiaremos em você e sobre novas bases estabeleceremos com você novos e fortes vínculos, nós Ogarev, Ozerov, S. Serebrennikov, eu e talvez Tatá, se você quiser, e se você e todos os outros estão de acordo, seremos de verdade irmãos populares, vivendo e militando no estrangeiro. Por isso, sem manifestar nunca uma curiosidade supérflua, teremos o direito de saber e saberemos de modo positivo, com todos os detalhes desejados, a situação clandestina e os objetivos imediatos em Rússia;
8) Logo, todos os já mencionados formaremos um Birô no estrangeiro para a condução sem nenhuma exceção de todos os assuntos russos no estrangeiro no estrangeiro conformando-nos às indicações políticas gerais da Rússia, mas elegendo livremente os métodos, as pessoas e os meios;
9) Além disso, se publicará Kolokol com um programa revolucionário socialista claro, por ser necessário e por haver os fundos suficientes;
Tais são, Nechayev, minhas condições para com você. Se você abandonou a reflexão cega, se em você voltou um ânimo de compreensão sensata da ação e se o amor pela ação é efetivamente mais forte em você que em todos os demais, então você as aceitará.
Se não as aceitar, minha decisão é inquebrantável, terei que romper toda relação com você e, sem ajustar-me a nada mais que a minha própria consciência, meu enfoque e meu dever, trabalharei com independência.
Mikhail Bakunin, 2 de Junho de 1870.
[1] “Abrek”, um guerreiro do Cáucaso, um combatente solitário, inimigo de parte de seu clã e dos russos (Nota da tradução em expanhol).
[2] “Beguni”, miembros de una secta religiosa opuestos al Zar y a sus leyes (Nota da tradução em espanhol).