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Mikhail Bakunin
Considerações Filosóficas Sobre o Fantasma Divino, Sobre o Mundo Real e Sobre o Homem
O Sistema do Mundo
Não é este o lugar para entrar em especulações filosóficas sobre a natureza do ser. Mas, como me vejo forçado a empregar frequentemente a palavra natureza, creio dever dizer aqui o que entendo por ela. Poderia dizer que a natureza é a soma de todas as coisas realmente existentes. Mas isso me daria uma ideia completamente morta da natureza, que se apresenta a nós, ao contrário, toda movimento e toda vida. Além disso, o que é a soma das coisas? As coisas que são hoje não serão amanhã; amanhã terão não se perdido, mas se transformado inteiramente. Aproximar-me-ei, pois, muito mais da verdade dizendo que a natureza é a soma das transformações reais das coisas que se produzem e que se produzirão incessantemente em seu seio; e para dar uma ideia um pouco mais determinada do que possa ser essa soma ou essa totalidade, que chamo de natureza, enunciarei, e creio poder estabelecer como um axioma, a seguinte proposição:
Tudo o que é, os seres que constituem o conjunto indefinido do universo, todas as coisas existentes no mundo, quaisquer que sejam, por outro lado, sua natureza particular, tanto do ponto de vista da qualidade como da quantidade, as mais diferentes e as mais semelhantes, grandes ou pequenas, próximas ou imensamente afastadas, exercem necessária e inconscientemente, seja por via imediata e direta, seja por transmissão indireta, uma ação e uma reação perpétuas; e toda essa quantidade infinita de ações e de reações particulares, ao se combinar num movimento geral e único, produz e constitui o que chamamos de vida, solidariedade e causalidade universal, a natureza.
Chamem isso de Deus, o absoluto, se quiserem, que me importa, desde que não deem a essa palavra, Deus, outro sentido que o que acabo de precisar: o da combinação universal, natural, necessária e real, mas de nenhum modo predeterminada nem preconcebida, nem provida, dessa infinidade de ações e de reações particulares que todas as coisas realmente existentes exercem incessantemente umas sobre as outras. Definida assim a solidariedade universal, a natureza, considerada no sentido do universo sem limites, impõe-se como uma necessidade racional ao nosso espírito; mas nunca poderemos abarcá-la de maneira real, nem sequer pela imaginação, e menos ainda reconhecê-la. Porque não podemos reconhecer mais que essa parte infinitamente pequena do universo que nos é manifestada por nossos sentidos; quanto ao resto, o supomos, sem poder constatar realmente sua existência.
Claro está que a solidariedade universal, explicada desse modo, não pode ter o caráter de uma causa absoluta e primeira; não é, ao contrário, mais que uma resultante[1], produzida e reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares, cujo conjunto constitui precisamente a causalidade universal, a unidade composta, sempre reproduzida pelo conjunto indefinido das transformações incessantes de todas as coisas que existem e, ao mesmo tempo, criadora de todas as coisas; cada ponto atuando sobre o todo (aí está o universo produzido), e o todo atuando sobre cada parte (aí está o universo produtor ou criador).
Tendo explicado assim, posso dizer agora, sem receio de dar lugar a qualquer mal-entendido, que a causalidade universal, a natureza, cria os mundos. É ela quem determinou a configuração mecânica, física, química, geológica e geográfica da nossa Terra, e que, depois de ter coberto sua superfície com todos os esplendores da vida vegetal e animal, continua criando ainda, no mundo humano, a sociedade com todos os seus desdobramentos passados, presentes e futuros.
Quando o homem começa a observar com uma atenção perseverante e contínua essa parte da natureza que o rodeia e que encontra em si mesmo, acaba por perceber que todas as coisas são governadas por leis que lhes são inerentes e que constituem propriamente sua natureza particular; que cada coisa tem um modo de transformação e de ação particular; que nessa transformação e nessa ação há uma sucessão de fenômenos e de fatos que se repetem constantemente, nas mesmas circunstâncias dadas, e que, sob a influência de circunstâncias determinadas, novas, se modificam de maneira igualmente regular e determinada. Essa reprodução constante dos mesmos fatos pelos mesmos procedimentos constitui propriamente a legislação da natureza: a ordem na infinita diversidade dos fenômenos e dos fatos.
A soma de todas as leis, conhecidas e desconhecidas, que operam no universo, constitui a lei única e suprema. Essas leis se dividem e se subdividem em leis gerais e em leis particulares e especiais. As leis matemáticas, mecânicas, físicas e químicas, por exemplo, são leis gerais que se manifestam em tudo o que é, em todas as coisas que têm uma existência real, leis que, em uma palavra, são inerentes à matéria, ou seja, ao ser real e unicamente universal, o verdadeiro substrato de todas as coisas existentes. Acrescentarei também que a matéria nunca existe e em parte alguma como substrato, que ninguém pôde percebê-la sob essa forma unitária e abstrata; que ela não existe e não pode existir senão sob uma forma muito mais concreta, como matéria mais ou menos diversificada e determinada.
As leis do equilíbrio, da combinação e da ação mútua das forças ou do movimento mecânico; as leis da gravidade, do calor, da vibração dos corpos, da luz, da eletricidade, tanto quanto as da composição e da decomposição química dos corpos, são absolutamente inerentes a todas as coisas que existem, sem exceção alguma às diferentes manifestações do sentimento, da vontade e do espírito; pois essas três coisas, que constituem propriamente o mundo ideal do homem, não são senão funcionamentos completamente materiais da matéria organizada e viva, no corpo do animal em geral e sobretudo do animal humano em particular[2]. Por conseguinte, todas essas leis são leis gerais, às quais estão submetidas todas as ordens conhecidas e desconhecidas da existência real no mundo.
Mas há leis particulares que não são próprias mais do que há certas ordens particulares de fenômenos, de fatos e de coisas, e que formam entre si sistemas ou grupos à parte: tais são, por exemplo, o sistema das leis geológicas; o das leis da organização animal; enfim, o das leis que presidem o desenvolvimento social e ideal do animal mais perfeito da Terra, o homem. Não se pode dizer que as leis que pertencem a um desses sistemas sejam absolutamente estranhas às que compõem os outros sistemas. Na natureza, tudo se encadeia muito mais intimamente do que se pensa em geral, e do que talvez gostariam os pedantes da ciência, em interesse de uma maior precisão em seu trabalho de classificação. No entanto, pode-se dizer que tal sistema de leis pertence muito mais a tal ordem de coisas e de fatos do que a outra, e que se, na sucessão em que as apresentei, as leis que dominam no sistema precedente continuam manifestando sua ação nos fenômenos e nas coisas que pertencem a todos os sistemas que se seguem, não existe ação retrógrada das leis dos sistemas seguintes sobre as coisas e os fatos dos sistemas precedentes. Assim, a lei do progresso, que constitui o caráter essencial do desenvolvimento social da espécie humana, não se manifesta de modo algum na vida exclusivamente animal, e ainda menos na vida exclusivamente vegetal; enquanto que todas as leis do mundo vegetal e do mundo animal se encontram, sem dúvida, modificadas por novas circunstâncias, no mundo humano.
Enfim; no seio mesmo dessas grandes categorias de coisas, de fenômenos e de fatos, assim como das leis que lhes são particularmente inerentes, há ainda divisões e subdivisões que nos mostram essas mesmas leis se particularizando e se especializando mais e mais, acompanhando, por assim dizer, a especialização mais e mais determinada, — e que se torna mais restrita à medida que se determina mais —, dos próprios seres.
O homem não tem, para constatar todas essas leis gerais, particulares e especiais, outro meio que a observação atenta e exata dos fenômenos e dos fatos que se sucedem tanto fora dele como nele mesmo. Distinção entre o que é acidental e variável do que se reproduz sempre e em toda parte de maneira invariável. O procedimento invariável pelo qual se reproduz constantemente um fenômeno natural, seja exterior, seja interior; a sucessão invariável dos fatos que o constituem, são precisamente o que chamamos a lei desse fenômeno. Essa constância e essa repetição não são, no entanto, absolutas. Deixam um vasto campo ao que chamamos impropriamente as anomalias e as exceções — maneira de falar muito pouco justa, porque os fatos a que se refere provam somente que essas regras gerais, reconhecidas por nós como leis naturais, não sendo mais que abstrações deduzidas pelo nosso espírito do desenvolvimento real das coisas, não estão em estado de abranger, de esgotar, de explicar toda a infinita riqueza desse desenvolvimento.
Essa multidão de leis tão diversas, e que nossa ciência separa em categorias diferentes, formam um só sistema orgânico e universal, um sistema no qual se encadeiam tanto os seres de quem manifestam as transformações e os desenvolvimentos? É muito provável. Mas o que é mais do que provável, o que é certo, é que não poderemos jamais, não só compreender, mas apenas abarcar esse sistema único e real do universo, sistema infinitamente extenso por um lado e infinitamente especializado por outro; de sorte que ao estudá-lo nos deteremos diante de duas infinitudes: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno.
Os detalhes são inesgotáveis. Não será dado nunca ao homem conhecer mais do que uma parte infinitamente pequena deles. Nosso céu estrelado, com sua multidão de sóis, não forma mais que um ponto imperceptível na imensidão do espaço, e embora o abramos com o olhar, não sabemos quase nada sobre ele. Por força, portanto, devemos nos contentar em conhecer um pouco nosso sistema solar, do qual temos que presumir a perfeita harmonia com todo o resto do universo, porque se não existisse essa harmonia, ou bem deveria estabelecer-se ou bem nosso mundo solar pereceria. Já conhecemos muito bem este último do ponto de vista mecânico, e começamos a conhecê-lo um pouco do ponto de vista físico, químico, até geológico. Nossa ciência irá dificilmente muito além disso. Se quisermos um conhecimento mais concreto, devemos nos ater ao nosso globo terrestre. Sabemos que nasceu no tempo e presumimos que —não sei em que número indefinido de séculos ou milhões de séculos— será condenado a perecer, como nasce e perece, ou mais bem se transforma, tudo o que é.
Como nosso globo terrestre, primeiro matéria ardente e gasosa, se condensou, se resfriou; por que imensa série de evoluções geológicas teve que passar, antes de poder produzir em sua superfície toda essa infinita riqueza da vida orgânica, vegetal e animal, desde a simples célula até o homem; como se manifestou e continua se desenvolvendo em nosso mundo histórico e social; qual é o fim para o qual caminhamos, impulsionados por essa lei suprema e fatal de transformação incessante que na sociedade animal se chama progresso: eis as únicas questões que nos são acessíveis, as únicas que podem e devem ser realmente abrangidas, estudadas e resolvidas pelo homem. Não formando mais que um ponto imperceptível na questão ilimitada e indefinível do universo, essas questões humanas e terrestres oferecem, no entanto, ao nosso espírito, um mundo realmente infinito, não no sentido divino, ou seja, abstrato dessa palavra, não como o ser supremo criado pela abstração religiosa; infinito, ao contrário, pela riqueza de seus detalhes, que nenhuma observação, nenhuma ciência saberá jamais apreciar.
Para conhecer esse mundo, nosso mundo infinito, a simples abstração não bastaria. Abandonada a si mesma, nos levaria infalivelmente ao ser supremo, a deus, ao nada, como já fez na história, conforme explicarei em breve. É preciso — ainda continuando na aplicação dessa faculdade de abstração, sem a qual não poderíamos nunca elevar-nos de uma ordem de coisas inferior para uma ordem de coisas superior nem, por consequência, compreender a hierarquia natural dos seres —, é preciso que nosso espírito se mergulhe ao mesmo tempo, com respeito e com amor, no estudo minucioso dos detalhes e do infinitamente pequeno, sem o qual não poderíamos conceber jamais a realidade vivente dos seres. Não é, portanto, unindo essas duas faculdades, esses dois atos do espírito aparentemente tão contrários: a abstração e a análise escrupulosa, atenta e paciente dos detalhes, que poderemos elevar-nos à concepção real do nosso mundo. É evidente que, se nosso sentimento e nossa imaginação podem nos dar uma imagem, uma representação mais ou menos falsa desse mundo, só a ciência poderá nos dar uma ideia clara e precisa.
Qual é, então, essa curiosidade imperiosa que impulsiona o homem a reconhecer o mundo que o cerca, a perseguir com uma infatigável paixão os segredos dessa natureza da qual ele mesmo é, sobre esta Terra, a última e mais perfeita criação? Essa curiosidade, é um simples luxo, um agradável passatempo, ou uma das principais necessidades inerentes ao seu ser? Não hesito em dizer que de todas as necessidades que constituem a natureza do homem, essa é a mais humana, e que o homem não se distingue efetivamente dos animais das demais espécies mais do que por essa necessidade inextinguível de saber, que não se torna real e completamente homem mais do que pelo despertar e pela satisfação progressiva dessa imensa necessidade de saber. Para realizar-se na plenitude do seu ser, o homem deve reconhecer-se, e não se reconhece jamais de maneira completa e real senão enquanto tenha reconhecido a natureza que o cerca e da qual é produto. Portanto, a menos que renuncie à sua humanidade, o homem deve saber, deve pensar com seu pensamento todo o mundo real, e sem esperança de chegar nunca ao fundo, deve aprofundar cada vez mais a coordenação e as leis, porque sua humanidade não existe mais do que a esse preço. Ele precisa reconhecer todas as regiões inferiores, anteriores e contemporâneas a si mesmo, todas as evoluções mecânicas, físicas, químicas, geológicas, vegetais e animais, ou seja, todas as causas e todas as condições de seu próprio nascimento, de sua própria existência e de seu desenvolvimento, a fim de que possa compreender sua própria natureza e sua missão sobre a Terra, sua pátria e seu teatro único; a fim de que neste mundo da cega fatalidade, possa inaugurar seu mundo humano, o mundo da liberdade.
Tal é a tarefa do homem: é inesgotável, é infinita e suficiente para satisfazer os espíritos e os corações mais orgulhosos e mais ambiciosos. Sendo efêmero e imperceptível, perdido no meio do oceano sem bordas da transformação universal, com uma eternidade ignorada atrás de si, e uma eternidade imensa à sua frente, o homem que pensa, o homem ativo, o homem consciente de seu destino humano, permanece tranquilo e altivo no sentimento de sua liberdade, que conquista emancipando-se por si mesmo através do trabalho, através da ciência, e emancipando, rebelando ao seu redor, se necessário, todos os homens, seus semelhantes, seus irmãos. Se lhe perguntarem depois disso seu íntimo pensamento, sua última palavra sobre a unidade real do universo, ele dirá que é a eterna transformação, um movimento infinitamente detalhado, diversificado, e por isso mesmo, ordenado em si, mas sem começo, nem limite, nem fim. É, portanto, o contrário absoluto da providência: a negação de deus.
Compreende-se que no universo assim entendido, não se possa falar nem de ideias anteriores nem de leis preconcebidas e preordenadas. As ideias, inclusive a de deus, não existem nesta Terra senão enquanto foram produzidas pelo cérebro. Vê-se, portanto, que vêm muito depois dos fatos naturais, muito depois das leis que governam esses fatos. São justas quando são conformes a essas leis, falsas quando lhes são contrárias. Quanto às leis da natureza, não se manifestam sob essa forma ideal ou abstrata de lei, senão pela inteligência humana, quando, reproduzidas pelo cérebro, com base em observações mais ou menos exatas das coisas, dos fenômenos e da sucessão dos fatos, tomam essa forma de ideias humanas quase espontâneas. Anteriormente ao nascimento do pensamento humano, não são reconhecidas como leis, por ninguém, e não existem senão no estado de processos reais da natureza, processos que, como acabei de dizer acima, estão sempre determinados por uma combinação indefinida de condições particulares, influências e causas que se repetem regularmente. Essa palavra natureza, exclui, portanto, toda ideia mística ou metafísica de substância, de causa final ou de criação providencialmente combinada e dirigida.
Mas, como existe uma ordem na natureza, deve ter havido necessariamente um ordenante, dir-se-á. De modo nenhum. Um ordenante, embora fosse um deus, não poderia senão dificultar por sua arbitrariedade pessoal a ordem natural e o desenvolvimento lógico das coisas; e sabemos bem que a principal propriedade dos deuses de todas as religiões é ser precisamente superiores, ou seja, contrários a toda lógica natural, e não reconhecerem mais do que uma única lógica: a do absurdo e da iniquidade. Porque, o que é a lógica, senão o desenvolvimento natural das coisas, ou o processo natural pelo qual muitas causas determinantes, inerentes a essas coisas, produzem novos fatos?[3] Portanto, me será permitido enunciar este axioma tão simples e ao mesmo tempo tão decisivo:
Tudo o que é natural é lógico, e tudo o que é lógico ou bem se encontra já realizado, ou bem deverá se realizar no mundo natural, inclusive no mundo social[4].
Mas se as leis do mundo natural[5] e do mundo social não foram criadas nem ordenadas por ninguém, por que e como existem? O que lhes dá esse caráter invariável? Eis uma questão que não está ao meu alcance resolver, e que, que eu saiba, ninguém encontrou nem encontrará jamais uma resposta definitiva. Engano-me: os teólogos e os metafísicos tentaram responder a esta questão pela suposição de uma causa primeira suprema, de uma divindade criadora dos mundos, ou, ao menos, como afirmam os metafísicos panteístas, por meio de uma alma divina ou um pensamento absoluto que estaria aprisionado no universo e se manifestaria pelo movimento e pela vida de todos os seres que nascem e morrem em seu seio. Nenhuma dessas suposições resiste à menor crítica. Demonstrei que a ideia de um deus criador das leis naturais e sociais contém em si a negação completa dessas leis, tornando sua existência, ou seja, sua realização e eficácia, impossível. Um deus ordenador deste mundo deveria, por necessidade, produzir nele a anarquia, o caos. Portanto, de duas coisas, uma: ou deus, ou as leis da natureza não existem; e como sabemos com certeza, pela experiência cotidiana e pela ciência, que essas leis existem, devemos concluir que deus não existe.
Aprofundando o sentido dessas palavras: leis naturais, voltamos a encontrar que excluem de forma absoluta a ideia e a possibilidade mesma de um criador, de um ordenador e de um legislador. Porque a ideia de um legislador exclui, por sua vez, de maneira também absoluta, a inerência das leis nas coisas; e, a partir do momento em que uma lei não é inerente às coisas que governa, ela é necessariamente, em relação a essas coisas, uma lei arbitrária, ou seja, fundada não em sua própria natureza, mas no pensamento e na vontade do legislador. Portanto, todas as leis que emanam de um legislador, seja humano, divino, individual ou coletivo, e mesmo que tenham sido nomeadas por sufrágio universal, são leis despóticas, necessariamente alheias e hostis aos homens e às coisas que devem regular: não são leis, mas decretos que se obedecem não por necessidade interior e tendência natural, mas porque se é obrigado a isso por uma força exterior, seja divina ou humana; decretos arbitrários a que a hipocrisia social, mais inconsciente do que consciente, dá arbitrariamente o nome de lei.
Uma lei não é realmente uma lei natural senão quando é absolutamente inerente às coisas que a manifestam ao nosso espírito; quando constitui sua propriedade, sua própria natureza mais ou menos determinada, e não a natureza universal e abstrata de alguma substância divina ou de um pensamento absoluto; substância e pensamento necessariamente extra-mundanos, sobrenaturais e ilógicos, porque, se não fossem, se aniquilariam na realidade e na lógica natural das coisas. As leis naturais são os processos naturais e reais, mais ou menos particulares, pelos quais todas as coisas existem, e do ponto de vista teórico, são a única explicação possível dos fenômenos. Portanto, quem quiser compreendê-las deve renunciar, de uma vez por todas, ao deus pessoal dos teólogos e à divindade impessoal dos metafísicos.
Mas do fato de que podemos negar com plena exatidão a existência de um legislador divino, não se deduz que possamos entender como se estabeleceram as leis naturais e sociais no mundo. Elas existem, são inseparáveis do mundo real, desse conjunto de coisas e de fatos dos quais nós mesmos somos os produtos, os efeitos, salvo o caso de nos tornarmos, por nossa vez, causas — relativas — de seres, coisas e fatos novos. Eis tudo o que sabemos e, penso, tudo o que podemos saber. Por outro lado, como poderíamos encontrar a causa primeira, já que ela não existe? Pois o que chamamos de causalidade universal não passa de uma resultante de todas as causas particulares que operam no universo. Perguntar por que existem as leis naturais não seria o mesmo que perguntar por que existe o universo — fora do qual nada existe —, por que existe o ser? Isso é absurdo.
O Homem, Inteligência, Vontade.
Obedecendo às leis da natureza, eu disse, o homem não é escravo, pois não obedece senão às leis inerentes à sua própria natureza, às condições mesmas pelas quais existe e que constituem todo o seu ser: ao obedecer a essas leis, ele obedece a si mesmo.
E, no entanto, existe no seio dessa mesma natureza uma escravidão da qual o homem deve se libertar sob pena de renunciar à sua humanidade: é a do mundo exterior que o cerca e que se chama habitualmente de natureza exterior. É o conjunto das coisas, dos fenômenos e dos seres vivos que o obsediam, o envolvem constantemente por todos os lados, sem os quais e fora dos quais, é verdade, ele não poderia viver um único instante, mas que, no entanto, parecem conspirar contra ele, de forma que a cada momento de sua vida ele é forçado a defender sua existência contra eles. O homem não pode existir sem esse mundo exterior, pois não pode viver senão em si e não pode se alimentar senão à custa dele; e ao mesmo tempo, deve se proteger contra ele, porque esse mundo parece querer devorá-lo sempre também.
Considerado sob esse ponto de vista, o mundo natural nos apresenta o quadro criminoso e sangrento de uma luta encarniçada e perpétua, a luta pela vida. Não é só o homem que combate: todos os animais, todos os seres vivos, o que digo!, todas as coisas que existem e que carregam em si, como ele, mas de uma forma muito menos aparente, o germe de sua própria destruição, e por assim dizer, seu próprio inimigo, — essa mesma fatalidade natural que os produz, as conserva e os destrói ao mesmo tempo —, lutam contra ele, pois toda categoria de coisas, toda espécie vegetal e animal, não vive senão em detrimento das outras, uma devora a outra, de forma que, como disse em outra parte, o mundo natural pode ser considerado uma sangrenta hecatombe, uma tragédia lúgubre criada pela fome. É um teatro constante de uma luta sem tréguas. Não devemos nos perguntar por que é assim, e de forma alguma somos responsáveis por isso. Encontramos essa ordem de coisas estabelecida quando chegamos à vida. Esse é o nosso ponto de partida natural, e não temos que fazer outra coisa senão constatar o fato e nos convencer de que, desde que o mundo existe, sempre foi assim e que, segundo todas as probabilidades, não será nunca de outra forma no mundo animal. A harmonia se estabelece nele pela luta: pelo triunfo de uns, pela derrota e pela morte de outros, pelo sofrimento de todos ... Não digamos, como os cristãos, que esta Terra é um vale de dores; há também prazeres, senão os seres vivos não teriam tanto apego à vida. Mas devemos concordar que a natureza não é de forma alguma a terra-mãe de que se fala, e que, para viver, para se conservar em seu seio, é necessário uma energia singular. Pois no mundo natural, os fortes vivem e os fracos sucumbem, e os primeiros não vivem senão porque os outros sucumbem. Tal é a lei suprema do mundo animal. Seria possível que essa lei fatal fosse a do mundo humano e social?
Ah! A vida, tanto individual quanto social, do homem não é, em primeiro lugar, outra coisa senão a continuação mais imediata da vida animal. Não é outra coisa senão essa mesma vida animal, porém complicada com um elemento novo: a faculdade de pensar e de falar.
O homem não é o único animal inteligente sobre a Terra. Longe disso; a psicologia comparada nos demonstra que não existe animal absolutamente desprovido de inteligência, e que quanto mais uma espécie se aproxima do homem por sua organização e, sobretudo, pelo desenvolvimento de seu cérebro, mais se desenvolve sua inteligência e se eleva também. Mas é somente no homem que chega ao que se chama propriamente a faculdade de pensar, isto é, de comparar, de separar e de combinar entre si as representações dos objetos exteriores e interiores que nos são dados pelos nossos sentidos, de formá-los em grupos; depois de comparar e combinar entre si esses grupos, que não são seres reais já, mas noções abstratas, formadas e classificadas pelo trabalho do nosso espírito e que, retidas pela nossa memória, outra faculdade do cérebro, se tornam o ponto de partida ou a base dessas conclusões que chamamos ideias[6]. Todas essas funções de nosso cérebro teriam sido impossíveis se o homem não estivesse dotado de outra faculdade complementar e inseparável da de pensar: a faculdade de incorporar e de fixar, por assim dizer, até nas suas variações e modificações mais finas e mais complicadas, todas essas operações do espírito, todos esses atos materiais do cérebro, por signos exteriores: se o homem, em uma palavra, não estivesse dotado da faculdade de falar. Todos os outros animais também têm uma linguagem, – quem duvida? – mas assim como sua inteligência nunca se eleva acima das representações materiais, no máximo, acima de uma comparação e combinação dessas representações entre si, da mesma forma sua linguagem, desprovida de organização e incapaz de desenvolvimento, não exprime mais do que reações ou noções materiais, nunca ideias. Posso, portanto, dizer, sem temor de ser refutado, que de todos os animais desta Terra, somente o homem pensa e fala.
Somente ele está dotado dessa potência de abstração que — sem dúvida, fortificada e desenvolvida na espécie humana pelo trabalho dos séculos, elevando-o sucessivamente em si mesmo, ou seja, em seu pensamento e somente pela ação abstrativa de seu pensamento, por sobre todos os objetos que o cercam e até acima de si mesmo enquanto indivíduo e espécie — lhe permite conceber a ideia da totalidade dos seres, do universo e do infinito absoluto: ideia completamente abstrata, vazia de todo conteúdo e, como tal, idêntica ao nada, sem dúvida, mas que, no entanto, se mostrou onipotente no desenvolvimento histórico do homem, porque tendo sido uma das causas principais de todas as suas conquistas e ao mesmo tempo de todas as suas divagações, de suas desgraças e de seus crimes posteriores, arrancou-o das supostas bem-aventuranças do paraíso animal para lançá-lo nos triunfos e nos tormentos infinitos de um desenvolvimento sem limites.
Graças a essa potência de abstração, o homem, elevando-se acima da pressão imediata que os objetos exteriores exercem sobre o indivíduo, pode compará-los entre si e observar suas relações mútuas: eis o começo da análise e da ciência experimental. Graças a essa mesma faculdade, o homem se desdobra, por assim dizer, e, separando-se de si mesmo em si, eleva-se de certo modo acima de seus próprios movimentos interiores, acima das sensações que experimenta, dos instintos, apetites, desejos que se despertam nele, tanto quanto das tendências afetivas que sente; o que lhe dá a possibilidade de compará-los entre si, assim como compara os objetos e movimentos exteriores, e de tomar partido por uns contra os outros, conforme o ideal de justiça e de bem, ou conforme a paixão dominante, que a influência da sociedade e das circunstâncias particulares desenvolveram e fortificaram nele. Esse poder de tomar partido a favor de um ou de vários impulsos que atuam nele em determinado sentido, contra outros impulsos igualmente interiores e determinados, chama-se vontade.
Assim explicados e compreendidos, o espírito do homem e sua vontade não se apresentam como potências absolutamente autônomas, independentes do mundo material e capazes — criando um os pensamentos, a outra os atos espontâneos — de romper o encadeamento fatal dos efeitos e das causas que constitui a solidariedade universal dos mundos. Um e outro aparecem, ao contrário, como forças cuja independência é excessivamente relativa, pois, assim como a força muscular do homem, essas forças ou essas capacidades nervosas se formam em cada indivíduo por uma combinação de circunstâncias, influências e ações exteriores, materiais e sociais, absolutamente independentes de seu pensamento e de sua vontade. E assim como devemos rejeitar a possibilidade daquilo que os metafísicos chamam ideias espontâneas, devemos rejeitar também os atos espontâneos da vontade, o livre-arbítrio e a responsabilidade moral do homem, no sentido teológico, metafísico e jurídico da palavra.
Não sendo todo homem, em seu nascimento e durante toda a duração de seu desenvolvimento, de sua vida, senão o resultado de uma quantidade inumerável de ações, de circunstâncias e de condições inumeráveis, materiais e sociais, que continuam a produzi-lo enquanto vive, de onde lhe viria, a ele, elo passageiro e quase imperceptível do encadeamento universal de todos os seres passados, presentes e futuros, o poder de romper por um ato voluntário essa eterna e onipotente solidariedade, o único ser universal e absoluto que realmente existe, mas que nenhuma imaginação humana poderia abranger? Reconheçamos, pois, de uma vez por todas, que diante dessa natureza universal, nossa mãe, que nos forma, nos educa, nos alimenta, nos envolve, nos penetra até a medula dos ossos e até as profundezas mais íntimas de nosso ser intelectual e moral, e que acaba sempre por nos sufocar em seu abraço maternal, não há para nós nem independência nem rebeldia possíveis.
É verdade que pelo conhecimento e pela aplicação reflexiva das leis da natureza, o homem se emancipa gradualmente, mas não desse jugo universal que ele compartilha com todos os seres vivos e com todas as coisas que existem, que se produzem e que desaparecem no mundo; ele se liberta apenas da pressão bruta que exerce sobre ele o mundo exterior, material e social, inclusive todas as coisas e todos os homens que o rodeiam. Domina as coisas pela ciência e pelo trabalho; quanto ao jugo arbitrário dos homens, sacode-o pelas revoluções. Esse é, pois, o único sentido racional da palavra liberdade: é o domínio das coisas exteriores, fundado na observância respeitosa das leis da natureza; é a independência frente as pretensões e aos atos despóticos dos homens; é a ciência, o trabalho, a revolta política, é, enfim, a organização, ao mesmo tempo reflexiva e livre, do meio social, conforme às leis naturais inerentes a toda sociedade humana. A primeira e a última condição dessa liberdade são sempre, pois, a submissão mais absoluta à onipotência da natureza, nossa mãe, e a observância, a aplicação mais rigorosa de suas leis.
Ninguém fala de livre-arbítrio dos animais. Todos concordam nisso: que os animais, em cada instante de sua vida e em cada um de seus atos, são determinados por causas independentes de seu pensamento e de sua vontade; que seguem fatalmente o impulso que recebem tanto do mundo exterior quanto de sua própria natureza interior; que não têm nenhuma possibilidade, em suma, de interromper por suas ideias e pelos atos espontâneos de sua vontade o curso universal da vida, e que, por conseguinte, não existe para eles nenhuma responsabilidade nem jurídica nem moral[7]. E, no entanto, todos os animais estão incontestavelmente dotados de inteligência e de vontade. Entre essas faculdades animais e as faculdades correspondentes do homem, não há mais do que uma diferença quantitativa, uma diferença de grau. Por que, então, declaramos o homem absolutamente responsável e o animal absolutamente irresponsável?
Penso que o erro não está nessa ideia de responsabilidade, que de fato existe de maneira bastante real, não apenas para o ser humano, mas também para todos os animais, sem exceção, embora em graus diferentes conforme cada espécie. O erro está no sentido absoluto que a vaidade humana, sustentada por uma aberração teológica ou metafísica, atribui à responsabilidade humana. Todo o equívoco reside, portanto, nessa palavra: absoluto. O homem não é absolutamente responsável, e o animal não é absolutamente irresponsável. A responsabilidade de ambos é relativa ao grau de reflexão de que são capazes.
Podemos aceitar como um axioma geral que tudo aquilo que não existe no mundo animal, ao menos em estado de germe, não existe e jamais surgirá no mundo humano, pois a humanidade não passa do último desenvolvimento da animalidade sobre a Terra. Se, portanto, não houvesse responsabilidade animal, tampouco poderia haver responsabilidade humana, já que o homem está, como qualquer outro animal, submetido à absoluta onipotência da natureza. Sob esse ponto de vista absoluto, animais e humanos são igualmente irresponsáveis.
Mas a responsabilidade relativa existe certamente em todos os graus da vida animal; imperceptível nas espécies inferiores, já é bastante pronunciada nos animais dotados de organização mais avançada. Animais educam suas crias, desenvolvem à sua maneira a inteligência — isto é, a compreensão ou conhecimento das coisas — e a vontade — isto é, a faculdade ou força interior que permite refrear os movimentos instintivos; chegam até mesmo a punir com ternura paternal a desobediência dos seus filhotes. Há, portanto, nos próprios animais, o começo de uma responsabilidade moral.
A vontade, tal como a inteligência, não é, portanto, uma centelha mística, imortal e divina, vinda milagrosamente do céu para animar pedaços de carne, cadáveres. É o produto da carne organizada e viva — produto do organismo animal. A organização mais perfeita é a do ser humano e, por conseguinte, é no ser humano que se encontram a vontade e a inteligência relativamente mais perfeitas e, sobretudo, mais aptas ao aperfeiçoamento e ao progresso.
A vontade, tal como a inteligência, é uma faculdade nervosa do organismo animal, e tem como órgão especial principalmente o cérebro; assim como a força física ou propriamente animal é uma faculdade muscular desse mesmo organismo e, embora espalhada por todo o corpo, tem como órgãos especialmente ativos os pés e os braços. O funcionamento nervoso que constitui propriamente a inteligência e a vontade, e que é materialmente diferente, tanto por sua organização especial quanto por seu objeto, do funcionamento muscular do organismo animal, é, contudo, tão material quanto este último. Força muscular ou física e força nervosa, ou força da inteligência e força da vontade, têm isto em comum: primeiramente, cada uma delas depende antes de tudo da organização do animal, organização que ele traz ao nascer e que é, portanto, o produto de uma multidão de circunstâncias e de causas que não apenas lhe são exteriores, mas também anteriores; em segundo lugar, todas são capazes de ser desenvolvidas pela ginástica e pela educação, o que nos as apresenta mais uma vez como produtos de influências e ações exteriores.
É claro que, não sendo, tanto do ponto de vista de sua natureza quanto de sua intensidade, senão produto de causas completamente independentes delas mesmas, todas essas forças não possuem senão uma independência relativa, dentro dessa causalidade universal que constitui e abarca os mundos. O que é a força muscular? É uma potência material de intensidade qualquer, formada no animal por um conjunto de influências ou de causas anteriores, e que lhe permite, num dado momento, opor a uma pressão de forças externas uma resistência qualquer, não absoluta, mas relativa.
O mesmo acontece com essa força moral que chamamos força de vontade. Todas as espécies animais estão dotadas dela em graus diversos, e essa diferença é determinada, antes de tudo, pela natureza particular de seu organismo. Entre todos os animais da Terra, a espécie humana é aquela que a possui em grau mais elevado. Mas, mesmo dentro dessa espécie, os indivíduos não nascem com igual disposição volitiva, pois a maior ou menor capacidade de querer está previamente determinada, em cada um, pela saúde e o desenvolvimento normal de seu corpo, e sobretudo pela maior ou menor felicidade na conformação de seu cérebro. Eis, portanto, desde o início, uma diferença pela qual o homem não é de modo algum responsável. Sou culpado pôr a natureza ter-me dotado de uma capacidade inferior de querer? Nem mesmo os teólogos e metafísicos mais exaltados ousariam afirmar que aquilo que chamam de “almas”, isto é, o conjunto das faculdades afetivas, intelectivas e volitivas que cada um traz ao nascer, sejam iguais.
É verdade que a faculdade de querer, como todas as demais faculdades humanas, pode ser desenvolvida pela educação, por uma ginástica apropriada. Essa ginástica acostuma pouco a pouco as crianças a não manifestar imediatamente as menores de suas impressões, ou a conter mais ou menos os movimentos reativos de seus músculos, quando são excitados pelas sensações externas e internas transmitidas pelos nervos; mais tarde, quando um certo grau de reflexão, desenvolvido por uma educação que também lhe é própria, se forma na criança, essa mesma ginástica, ao adquirir um caráter cada vez mais consciente, ao invocar a nascente inteligência da criança, e ao basear-se num certo grau de força volitiva que nela se desenvolveu, a acostuma a reprimir a expressão imediata de seus sentimentos e desejos, e a submeter, enfim, todos os movimentos voluntários de seu corpo, assim como os do que se chama sua alma, seu próprio pensamento, suas palavras e seus atos, a um fim dominante, seja ele bom ou mau.
A vontade do homem assim desenvolvida, exercitada, não é evidentemente senão o produto de influências exteriores que se exercem sobre ela, que a determinam e a moldam, independentemente de suas próprias resoluções. Pode um homem ser responsabilizado pela boa ou má, suficiente ou insuficiente educação que lhe foi dada?
É verdade que, quando no adolescente ou jovem o hábito de pensar ou de querer alcançou, graças a essa educação recebida do exterior, um certo grau de desenvolvimento, a ponto de constituir, por assim dizer, uma força interior identificada com seu ser, ele pode continuar sua própria instrução e até mesmo sua educação moral por meio de uma ginástica, digamos, espontânea de seu pensamento e também de sua vontade, assim como de sua força muscular; espontânea no sentido de que não será mais unicamente dirigida e determinada por vontades e atos exteriores, mas também por essa força interior de pensar e de querer que, após ter-se formado e consolidado nele pela ação passada dessas causas exteriores, torna-se por sua vez um motor mais ou menos ativo e poderoso, um produtor relativamente independente das coisas, ideias, vontades e atos que o cercam imediatamente.
O homem pode, assim, tornar-se, até certo ponto, seu próprio educador, seu próprio instrutor e, por assim dizer, o criador de si mesmo. Mas vê-se que, com isso, ele não adquire senão uma independência muito relativa, que de modo algum o retira da dependência fatal ou, se se preferir, da solidariedade absoluta pela qual, como ser existente e vivo, está irrevogavelmente encadeado ao mundo natural e social de que é produto e no qual, como tudo o que existe, depois de ter sido efeito e continuando sempre a sê-lo converte-se por sua vez em uma causa relativa de novos produtos relativos.
Mais adiante terei ocasião de mostrar que o homem mais desenvolvido em termos de inteligência e vontade se encontra ainda, com relação a todos os seus sentimentos, ideias e vontades, em uma dependência quase absoluta em face do mundo natural e social que o rodeia, e que a cada momento de sua existência determina as condições de sua vida. Mas no ponto mesmo a que chegamos é evidente que não há lugar para a responsabilidade humana tal como a concebem os teólogos, metafísicos e juristas.
Vimos que o homem não é de modo algum responsável nem pelo grau das capacidades intelectuais que trouxe ao nascer, nem pelo tipo de educação boa ou má que essas faculdades receberam antes da idade de sua virilidade, ou ao menos de sua puberdade. Mas eis que chegamos a um ponto em que o homem, consciente de si mesmo, e armado de faculdades intelectuais e morais já fortalecidas graças à educação recebida do exterior, torna-se de certo modo o produtor de si mesmo, podendo evidentemente desenvolver, expandir e fortalecer sua inteligência e sua vontade. Aquele que, encontrando em si essa possibilidade, não a aproveita, seria ele culpado?
E como o seria? É evidente que, no momento em que deve e pode tomar essa resolução de trabalhar sobre si mesmo, esse trabalho espontâneo e interior, que fará dele em certo sentido o criador de si mesmo e o produto de sua própria ação sobre si, ainda não começou; nesse momento, ele não é senão o produto da ação alheia, das influências exteriores que o conduziram até ali. Portanto, a resolução que tomar dependerá, não da força de pensamento e de vontade que ele teria dado a si mesmo visto que seu próprio trabalho ainda não teve início, mas da que lhe foi dada tanto por sua natureza quanto pela ação exterior, independentemente de sua própria resolução; e a resolução boa ou má que vier a tomar não será ainda senão o efeito ou produto imediato dessa educação e dessa natureza pelas quais ele não é de modo algum responsável; do que resulta que essa resolução não pode, de maneira nenhuma, implicar a responsabilidade do indivíduo que a toma[8]. É evidente que a ideia de responsabilidade humana, ideia completamente relativa, é inaplicável ao homem tomado isoladamente e considerado como indivíduo natural, à margem do desenvolvimento coletivo da sociedade. Considerado dessa forma, diante dessa causalidade universal em cujo seio tudo o que existe é ao mesmo tempo efeito e causa, produtor e produto, todo homem nos aparece, em cada instante de sua vida, como um ser absolutamente determinado, incapaz de romper ou mesmo de interromper o fluxo universal da vida, e, por conseguinte, colocado à margem de toda responsabilidade jurídica. Com toda essa consciência de si mesmo, que produz nele o milagre de uma suposta espontaneidade, apesar dessa inteligência e dessa vontade que são as condições indispensáveis ao estabelecimento de sua liberdade diante do mundo exterior, inclusive dos homens que o cercam, o homem, assim como os animais da Terra, não está menos submetido de forma absoluta à fatalidade universal que reina na natureza.
A potência de pensar e a potência de querer, eu disse, são potências absolutamente formais que não implicam necessariamente, e sempre, uma, a verdade, e a outra, o bem. A história nos mostra o exemplo de muitos pensadores muito poderosos que se enganaram. Dentre eles estiveram e ainda estão todos os teólogos, metafísicos, juristas, espiritualistas, economistas e idealistas de toda sorte, passados e presentes. Sempre que um pensador, por mais poderoso que seja, raciocina sobre bases falsas, chegará necessariamente a conclusões falsas, e essas conclusões serão tanto mais monstruosas quanto mais vigor ele tiver dedicado ao seu desenvolvimento.
O que é a verdade? É a justa apreciação das coisas e dos fatos, do seu desenvolvimento ou da lógica natural que se manifesta neles. É a conformidade, tão severa quanto possível, do movimento do pensamento com o do mundo real, que é o único objeto do pensamento. Portanto, sempre que o homem raciocina sobre as coisas e sobre os fatos sem se preocupar com suas relações reais e com as condições reais de seu desenvolvimento e de sua existência; ou quando constrói suas especulações teóricas sobre coisas que jamais existiram, sobre fatos que nunca puderam ocorrer e que possuem apenas uma existência imaginária, fictícia, na ignorância e na estupidez histórica das gerações passadas, ele estará inevitavelmente equivocado, por mais poderoso pensador que seja.
O mesmo acontece com a vontade. A experiência nos demonstra que o poder da vontade está longe de ser sempre o poder do bem: os maiores criminosos, os malfeitores em grau extremo, são às vezes dotados da mais forte potência de vontade; e, por outro lado, vemos com frequência, infelizmente, homens excelentes, bons, justos, cheios de sentimentos benevolentes, que são privados dessa faculdade. O que demonstra que a faculdade de querer é uma potência formal que não implica por si nem o bem nem o mal. O que é o bem? O que é o mal?
Do ponto de vista a que chegamos, ao continuar considerando o homem, fora da sociedade, como um animal tão natural quanto os outros, mas mais perfeitamente organizado que os animais de outras espécies, e capaz de dominá-los graças à incontestável superioridade de sua inteligência e de sua vontade, a definição mais geral e ao mesmo tempo mais difundida do bem e do mal me parece ser a seguinte:
Tudo o que está em conformidade com as necessidades do homem e com as condições de seu desenvolvimento e de sua plena existência — mas para o homem unicamente, não para o animal que ele devora[9] — é o bem. Tudo o que lhe é contrário, é o mal.
Tendo sido demonstrado que a vontade animal, inclusive a do homem, é uma potência formal, capaz, como veremos mais adiante, por meio do conhecimento que o homem adquire das leis da natureza, e somente ao submeter estritamente seus atos a essas leis, de modificar, até certo ponto, tanto as relações do homem com as coisas que o cercam quanto as dessas coisas entre si, mas não de produzi-las, nem de criar o próprio fundo da vida animal; tendo sido demonstrado que a potência, completamente relativa, da vontade, quando colocada diante da única potência absoluta que existe, a da causalidade universal, aparece imediatamente como impotência absoluta, ou como uma causa relativa de efeitos relativos novos, determinada e produzida por essa mesma causalidade; é evidente que não é nela, que não é na vontade animal, mas sim nessa solidariedade universal e fatal das coisas e dos seres que devemos buscar o motor poderoso que cria o mundo animal e humano.
Esse motor, não o chamamos nem de inteligência nem de vontade; porque realmente ele não tem e não pode ter nenhuma consciência de si mesmo, nem nenhuma determinação, nem resolução própria, não sendo sequer um ser indivisível, substância e único, como o representam os metafísicos, mas um mero produto e, como já disse, a resultante eternamente reproduzida de todas as transformações dos seres e das coisas no universo. Em uma palavra, não é uma ideia, mas um fato universal, além do qual nos é impossível conceber qualquer coisa; e esse fato não é de modo algum um ser imutável, mas, ao contrário, é o movimento perpétuo, que se manifesta, que se forma por uma infinidade de ações e reações relativas: mecânicas, físicas, químicas, geológicas, vegetais, animais e sociais, no plano humano. Como resultante sempre dessa combinação de movimentos relativos incontáveis, esse motor universal é tão onipotente quanto inconsciente, fatal e cego.
Cria os mundos, ao mesmo tempo que é sempre seu produto. Em cada reino da nossa natureza terrestre, manifesta-se por leis ou modos de desenvolvimento particulares. Assim é que, no mundo inorgânico, na formação geológica do nosso globo, apresenta-se como a ação e reação incessante de leis mecânicas, físicas e químicas, que parecem se reduzir a uma lei fundamental: a da gravidade e do movimento, ou então a da atração material, da qual todas as outras leis se apresentam apenas como manifestações ou transformações diferentes. Essas leis, como observei acima, são gerais no sentido de que abrangem todos os fenômenos que se produzem na Terra, regulando também as relações e os desenvolvimentos da vida orgânica, vegetal, animal e social, como os do conjunto inorgânico das coisas.
No mundo orgânico, esse mesmo motor universal se manifesta por uma nova lei, fundada no conjunto dessas leis gerais, e que é, sem dúvida, apenas uma nova transformação, transformação cujo segredo ainda nos escapa, mas que é uma lei particular nesse sentido: só se manifesta nos seres vivos — plantas e animais, inclusive o homem. É a lei da nutrição, que consiste, para usar as próprias palavras de Augusto Comte: 1. Na absorção interna dos materiais nutritivos retirados do sistema ambiente e sua assimilação gradual; 2. Na exalação ao exterior das moléculas, então estranhas, que se desassimilam necessariamente à medida que essa nutrição se realiza[10].
Essa lei é particular nesse sentido, como disse, de que não se aplica às coisas do mundo inorgânico, mas é geral e fundamental para todos os seres vivos. É a questão do alimento, a grande questão da economia social, que constitui a base real de todos os desenvolvimentos posteriores da humanidade[11].
No mundo propriamente animal, o mesmo motor universal reproduz essa lei genérica da nutrição, própria a tudo que é orgânico nesta Terra, sob uma forma particular e nova, combinando-a com propriedades que distinguem todos os animais de todas as plantas: a sensibilidade e a irritabilidade, faculdades evidentemente materiais, mas das quais as faculdades chamadas ideais — como o sentimento denominado moral, para distingui-lo da sensação física, assim como a inteligência e a vontade — não são senão uma expressão mais elevada ou a última transformação. Essas duas propriedades, a sensibilidade e a irritabilidade, só se encontram nos animais; não se encontram nas plantas. Combinadas com a lei da nutrição, que é comum a ambos e que é a lei fundamental de todo organismo, constituem, por essa combinação, a lei particular genérica de todo o mundo animal. Para esclarecer esse ponto, citarei ainda algumas palavras de Auguste Comte:
Nunca se deve perder de vista a dupla aliança íntima da vida animal com a vida orgânica (vegetal), que constantemente lhe fornece uma base preliminar indispensável, e que, ao mesmo tempo, constitui para ela um fim geral igualmente necessário. Não é mais preciso insistir sobre o primeiro ponto, que foi posto plenamente em evidência por análises fisiológicas sérias; é hoje bem reconhecido que, para se alimentar e para sentir, o animal deve antes viver, no sentido mais simples da palavra, ou seja, vegetar; e que nenhuma suspensão completa dessa vida vegetal poderia, em nenhum caso, ser concebida sem implicar, necessariamente, a cessação simultânea da vida animal. Quanto ao segundo aspecto, até aqui muito menos esclarecido, qualquer um pode facilmente reconhecer, seja pelos fenômenos da irritabilidade, seja pelos da sensibilidade, que são essencialmente dirigidos, em qualquer grau da escala animal, pelas necessidades gerais da vida orgânica, das quais aperfeiçoam o modo fundamental — seja fornecendo-lhe melhores materiais, seja prevenindo ou desviando influências desfavoráveis: as funções intelectuais e morais não têm ordinariamente outro papel primitivo. Sem tal destino geral, a irritação degeneraria necessariamente em agitação desordenada e a sensibilidade em contemplação vaga: por isso, uma ou outra destruiria rapidamente o organismo por um exercício desmedido, ou atrofiar-se-iam espontaneamente, por falta de estímulo adequado. Somente na espécie humana, e apenas atingido um alto grau de civilização, é possível conceber uma espécie de inversão dessa ordem fundamental, representando, ao contrário, a vida vegetativa como essencialmente subordinada à vida animal, da qual seria apenas o suporte para seu desenvolvimento — o que constitui, me parece, a noção mais nobre que se pode formar da humanidade propriamente dita, distinta da animalidade. Mas mesmo assim, uma tal transformação só é possível — sob pena de cair em um misticismo muito perigoso — quando, por uma feliz abstração fundamental, se transporta à espécie inteira, ou ao menos à sociedade, o fim primitivo (o da nutrição e da conservação de si mesmo), que para os animais está limitado ao indivíduo ou, no máximo, se estende acidentalmente à família[12].
E numa nota que segue imediatamente a essa passagem, Auguste Comte acrescenta:
Um filósofo da escola metafísico-teológica pretendeu, em nossos dias, caracterizar o homem com esta fórmula retumbante: “Uma inteligência servida por órgãos...” A definição inversa seria evidentemente muito mais verdadeira, sobretudo para o homem primitivo, não aperfeiçoado por um Estado social muito desenvolvido… Por mais que a civilização avance, apenas num pequeno número de homens de elite a inteligência poderá adquirir, no conjunto do organismo, uma preponderância bastante marcada para tornar-se realmente o fim essencial de toda existência humana, em vez de ser apenas empregada como instrumento, como meio fundamental para obter uma satisfação mais perfeita das principais necessidades orgânicas: o que, abstraindo toda vã declamação, caracteriza certamente o caso mais comum[13].
A essa consideração soma-se outra que é muito importante. As diferentes funções que chamamos de faculdades animais não são de uma natureza tal que o animal possa optar por exercê-las ou não; todas essas faculdades são propriedades essenciais, necessidades inerentes à organização animal. As diferentes espécies, famílias e classes de animais distinguem-se umas das outras seja pela ausência total de algumas faculdades, seja pelo desenvolvimento preponderante de uma ou mais faculdades em detrimento das demais. No seio de cada espécie, família ou classe animal, nem todos os indivíduos estão igualmente dotados. O exemplar perfeito é aquele em que todos os órgãos característicos da ordem a que o indivíduo pertence estão harmonicamente desenvolvidos. A ausência ou a fraqueza de um desses órgãos constitui um defeito e, quando se trata de um órgão essencial, o indivíduo é um monstro. Monstruosidade ou perfeição, qualidades ou defeitos — tudo isso é dado ao indivíduo pela natureza, ele traz tudo isso ao nascer. Mas, desde o momento em que uma faculdade existe, ela deve ser exercida, e enquanto o animal não tiver atingido a idade de seu declínio natural, tende necessariamente a desenvolver-se e a fortalecer-se por meio desse exercício repetido que cria o hábito, base de todo desenvolvimento animal; e quanto mais se desenvolve e se exercita, mais se transforma, no animal, em uma força irresistível à qual ele deve obedecer.
Acontece algumas vezes que a doença, ou circunstâncias exteriores mais poderosas do que essa tendência fatal do indivíduo, impedem o exercício e o desenvolvimento de uma ou várias de suas faculdades. Então os órgãos correspondentes se atrofiam, e todo o organismo é afetado pelo sofrimento, mais ou menos, dependendo da importância dessas faculdades e de seus órgãos correspondentes. O indivíduo pode morrer devido a isso, mas enquanto vive, enquanto ainda lhe restam faculdades, deve exercê-las sob pena de morte. Portanto, não é o senhor de tudo, é, ao contrário, seu agente involuntário, seu escravo. É o motor universal, ou a combinação das causas determinantes e produtivas do indivíduo, inclusive suas faculdades, o que age nele e por ele. É essa mesma causalidade universal, inconsciente, fatal e cega, é esse conjunto de leis mecânicas, físicas, químicas, orgânicas, animais e sociais, o que impulsiona todos os animais, até o homem, à ação, e o que é o verdadeiro, o único criador do mundo animal e humano. Aparecendo em todos os seres orgânicos e vivos como um conjunto de faculdades ou propriedades das quais algumas são inerentes a todos e outras próprias a espécies, famílias ou classes particulares, constitui de fato a lei fundamental da vida e imprime a cada animal, incluindo o homem, essa tendência fatal a realizar por si mesmo todas as condições vitais de sua própria espécie, ou seja, a satisfazer todas as suas necessidades. Como organismo vivo, dotado dessa dupla propriedade de sensibilidade e irritabilidade, e, como tal, experimentando já o sofrimento, já o prazer, todo animal, inclusive o homem, é forçado, por sua própria natureza, a comer e beber acima de tudo e a se movimentar, tanto para buscar seu alimento quanto para obedecer a uma necessidade superior de seus músculos; é forçado a se conservar, a se abrigar, a se defender contra tudo o que ameaça sua alimentação, sua saúde, todas as condições de sua vida; obrigado a amar, a se reproduzir, obrigado a refletir, na medida de suas capacidades intelectuais, nas condições de sua conservação e de sua existência; obrigado a querer todas essas condições para si; e guiado por uma espécie de previsão, baseada na experiência, e da qual nenhum animal está absolutamente desprovido, é obrigado a trabalhar, na medida de sua inteligência e força muscular, para garantir essas condições para um amanhã mais ou menos distante.
Fatal e irresistível, em todos os animais, sem exceção do homem mais civilizado, essa tendência imperiosa e fundamental da vida constitui a própria base de todas as paixões animais e humanas: instintiva, dir-se-ia quase mecânica nas organizações mais inferiores; mais inteligente nas espécies superiores, só chega a uma plena concepção de si no homem; porque, dotado em grau superior da faculdade tão preciosa de combinar, agrupar e expressar integralmente seus pensamentos: único capaz de abstrair, em seu pensamento, o mundo exterior e até o seu próprio mundo interior, somente o homem é capaz de se elevar até a universalidade das coisas e dos seres; e, do alto dessa abstração, considerando-se a si mesmo como um objeto de seu próprio pensamento, pode comparar, criticar, ordenar e subordinar suas próprias necessidades, sem poder naturalmente sair nunca das condições vitais de sua própria existência; o que lhe permite, dentro desses limites sem dúvida muito restritos, e sem que possa mudar nada na corrente universal e fatal dos efeitos e das causas, determinar de maneira abstratamente reflexiva seus próprios atos, e lhe dá, perante a natureza, uma falsa aparência de espontaneidade e independência absolutas. Iluminado pela ciência e guiado pela vontade abstratamente reflexiva do homem, o trabalho animal, ou seja, essa atividade fatalmente imposta a todos os seres vivos, como uma condição essencial de sua vida — atividade que tende a modificar o mundo exterior conforme as necessidades de cada um e que se manifesta no homem com a mesma fatalidade que no último animal desta Terra — se transforma, no entanto, pela consciência do homem, em um trabalho sábio e livre.
Animalidade, Humanidade
Quais são as necessidades do homem e quais são as condições de sua existência?
Ao examinarmos mais de perto essa questão, descobriremos que, apesar da distância infinita que parece separar o mundo humano do mundo animal, no fundo, os pontos cardeais da existência humana mais refinada e da existência animal menos desenvolvida são idênticos: nascer, desenvolver-se e crescer, trabalhar para comer, manter sua existência individual no meio social da espécie, amar, reproduzir-se e, depois, morrer. A esses pontos se acrescenta apenas um novo para o homem: o de pensar e conhecer a si mesmo faculdade e necessidade que se encontram sem dúvida em grau inferior, embora já bastante sensível, nos animais que, por sua organização, mais se aproximam do homem, mas que só chegam, neste último, a um poder tão imperativo e persistentemente dominante que transformam, com o tempo, toda a sua vida. Como bem observou um dos pensadores mais ousados e simpáticos de nossos dias, Ludwig Feuerbach, o homem faz tudo o que os animais fazem, só que ele é chamado a fazê-lo — e graças a essa faculdade tão extensa de pensar, graças a esse poder de abstração que o distingue dos animais de todas as outras espécies, é forçado a fazê-lo — de maneira cada vez mais humana. Essa é toda a diferença, mas ela é imensa. Contém em germe toda a nossa civilização, com todas as maravilhas da indústria, da ciência e das artes; com todos os seus desenvolvimentos religiosos, filosóficos, estéticos, políticos, econômicos e sociais — em uma palavra, todo o mundo da história.
Tudo o que vive, disse eu, impelido por uma fatalidade que lhe é inerente e que se manifesta em cada ser como um conjunto de faculdades ou propriedades, tende a realizar-se nessa plenitude de seu ser. O homem, ser pensante ao mesmo tempo que vivo, para realizar-se nessa plenitude deve conhecer a si mesmo. Essa é a causa do imenso atraso que encontramos em seu desenvolvimento e o que faz com que, para chegar ao estado atual da civilização nos países mais avançados, estado ainda tão pouco conforme ao ideal para o qual almejamos, tenha sido necessário não sei quantas dezenas ou centenas de séculos. Dir-se-á que, nessa investigação de si mesmo, através de todas as suas peregrinações e transformações históricas, teve de esgotar primeiramente todas as brutalidades, todas as iniquidades e todas as desgraças possíveis, para realizar apenas esse pouco de razão e justiça que reina hoje no mundo.
Impulsionado sempre por essa mesma fatalidade que constitui a lei fundamental da vida, o homem cria seu mundo humano, seu mundo histórico, conquistando passo a passo, sobre o mundo exterior e sobre sua própria bestialidade, sua liberdade e sua dignidade humana. Conquistas pela ciência e pelo trabalho.
Todos os animais são forçados a trabalhar para viver; todos, sem se dar conta disso e sem ter a menor consciência, participam, na medida de suas necessidades, de sua inteligência e de sua força, da obra tão lenta de transformação da superfície do nosso globo num lugar favorável à vida animal. Mas esse trabalho só se torna propriamente humano quando começa a servir para a satisfação não apenas das necessidades fixas e fatalmente circunscritas da vida animal, mas também das do ser social, que pensa e fala, que tende a conquistar e realizar plenamente sua liberdade.
O cumprimento dessa imensa tarefa, que a natureza particular do homem lhe impõe como uma necessidade inerente ao seu ser — o homem é forçado a conquistar sua liberdade —, não é apenas uma obra intelectual e moral; é, antes de tudo, na ordem do tempo e do ponto de vista do nosso desenvolvimento racional, uma obra de emancipação racional. O homem só se torna realmente homem, só conquista a possibilidade de sua emancipação interior à medida que consegue romper as correntes de escravidão que a natureza exterior faz pesar sobre todos os seres vivos. Essas correntes, começando pelas mais grosseiras e aparentes, são as privações de toda espécie, a ação incessante das estações e dos climas, a fome, o frio, o calor, a umidade, a seca e tantas outras influências materiais que atuam diretamente sobre a vida animal e que mantêm o ser vivo numa dependência quase absoluta diante do mundo exterior; os perigos permanentes que, sob a forma de fenômenos naturais de toda espécie, o ameaçam e o oprimem por todos os lados, tanto mais porque, sendo ele próprio um ser natural e nada mais que um produto dessa mesma natureza que o comprime, envolve e penetra, leva, por assim dizer, o inimigo em si mesmo e não tem meio algum de escapar dele. Daí nasce esse medo perpétuo que sente e que constitui o fundo de toda existência animal, medo que, como demonstrarei mais adiante, constitui a base primeira de toda religião. Daí resulta também, para o animal, a necessidade de lutar durante toda a vida contra os perigos que o ameaçam do exterior; de sustentar sua própria existência, como indivíduo, e sua existência social, como espécie, em detrimento de tudo o que o rodeia: coisas, seres orgânicos e vivos. Daí a necessidade do trabalho para os animais de toda espécie.
Toda a animalidade trabalha e só vive se trabalha. O homem, ser vivo, não está isento dessa necessidade, que é a lei suprema da vida. Para manter sua existência, para desenvolver-se na plenitude de seu ser, ele deve trabalhar. Existe, no entanto, entre o trabalho do homem e o dos animais de todas as outras espécies uma diferença enorme: o trabalho dos animais é rotineiro, porque sua inteligência é rotineira; o do homem, ao contrário, é essencialmente progressivo, porque sua inteligência é em alto grau progressiva.
Nada prova melhor a inferioridade decisiva de todas as outras espécies animais em relação ao homem do que esse fato incontestável e incontável: os métodos, tanto quanto os produtos do trabalho coletivo ou individual de todos os outros animais, métodos e produtos frequentemente tão engenhosos que se poderia acreditar que foram dirigidos e produzidos por uma inteligência cientificamente desenvolvida, não variam e quase não se aperfeiçoam. As formigas, as abelhas, os castores e outros animais que vivem em repúblicas fazem hoje exatamente o que faziam há três mil anos, o que prova que não há progresso. São tão sábios e tão toscos agora como há trinta ou quarenta séculos. Constata-se um movimento progressivo no mundo animal. Mas são as próprias espécies, as famílias e as classes que se transformam lentamente, impulsionadas pela luta pela vida, essa lei suprema do mundo animal, em consequência da qual as organizações mais inteligentes e mais enérgicas substituem sucessivamente as organizações inferiores, incapazes de sustentar por muito tempo essa luta contra elas. Sob esse ponto de vista e somente sob esse ponto de vista há, incontestavelmente, no mundo animal, movimento e progresso. Mas no seio mesmo das espécies, das famílias e das classes de animais, não há nenhum ou quase nenhum.
O trabalho do homem, considerado tanto do ponto de vista dos métodos quanto do ponto de vista dos produtos, é tão aperfeiçoável e progressivo quanto seu espírito. Pela combinação de sua atividade cerebral ou nervosa com sua atividade muscular, de sua inteligência cientificamente desenvolvida com sua força física; pela aplicação de seu pensamento progressivo ao seu trabalho que, sendo exclusivamente animal, instintivo, quase maquinal e cego no início, torna-se cada vez mais inteligente, o homem cria seu mundo humano. Para se ter uma ideia da imensa trajetória que percorreu e dos enormes progressos de sua indústria, basta comparar a choupana do selvagem com aqueles palácios luxuosos de Paris que os selvagens prussianos se julgam providencialmente destinados a destruir; e as pobres armas das populações primitivas com aqueles terríveis instrumentos de destruição que parecem ter-se tornado a palavra da civilização germânica.
O que todas as outras espécies de animais, tomadas em conjunto, não conseguiram fazer, o homem fez sozinho. Ele realmente transformou uma grande parte da superfície do globo; fez dela um lugar favorável à existência, à civilização humana. Dominou e venceu a natureza. Transformou esse inimigo, esse déspota no início tão terrível, em um servidor útil, ou ao menos, em um aliado tão poderoso quanto fiel.
É preciso compreender o verdadeiro sentido dessas expressões: vencer a natureza, dominar a natureza. Corre-se o risco de cair em um mal-entendido muito incômodo e tanto mais fácil quanto os teólogos, os metafísicos e os idealistas de todas as espécies nunca deixam de utilizá-las para demonstrar a superioridade do homem-espírito sobre a natureza-matéria. Pretendem que existe um espírito fora da matéria, e subordinam naturalmente a matéria ao espírito. Não satisfeitos com essa subordinação, fazem a matéria proceder do espírito, apresentando este último como criador da primeira. Já colocamos as coisas em seu devido lugar quanto a essa insensatez, da qual não precisamos mais nos ocupar aqui. Não conhecemos nem reconhecemos outro espírito senão o espírito animal considerado em sua mais alta expressão como espírito humano. E sabemos que esse espírito não é um ser à parte, fora do mundo material, mas que não é outra coisa senão o próprio funcionamento dessa matéria organizada e viva, da matéria animalizada e especialmente do cérebro.
Para dominar a natureza, no sentido dos metafísicos, o espírito deveria, de fato, existir completamente à margem da matéria. Mas nenhum idealista conseguiu ainda responder a esta questão: não tendo a matéria limite em seu comprimento, nem em sua largura, nem em sua profundidade, e supondo que o espírito reside fora dessa matéria, que ocupa em todos os sentidos possíveis toda a infinitude do espaço, qual poderia ser, então, o lugar do espírito? Ou ele deve ocupar o mesmo lugar que a matéria, estar exatamente difundido por toda parte como ela, com ela, ser inseparável da matéria, ou então não pode existir. Mas se o espírito puro é inseparável da matéria, então está perdido na matéria e não existe senão como matéria; o que equivale a dizer que só existe a matéria. Ou então seria preciso supor que, mesmo sendo inseparável da matéria, permanece fora dela. Mas onde, se a matéria ocupa todo o espaço? Se o espírito está fora da matéria, deve ser limitado por ela. Mas como o imaterial poderia ser limitado ou contido pelo material, o infinito pelo finito? Se o espírito é absolutamente estranho à matéria e independente dela, não é evidente que ele não deve, que não pode exercer sobre ela a menor ação, ter sobre ela qualquer poder? — pois somente o que é material pode agir sobre coisas materiais.
Vê-se claramente que, de qualquer maneira que se coloque essa questão, chega-se necessariamente a um absurdo monstruoso. Ao se obstinar em fazer coexistir duas coisas tão incompatíveis como o espírito puro e a matéria, chega-se à negação de uma e de outra, ao nada. Para que a existência da matéria seja possível, é preciso que ela seja — ela, que é o ser por excelência, o ser único, em uma palavra, tudo o que é — é preciso, digo, que seja a base única de toda coisa existente, o fundamento do espírito. E para que o espírito possa ter uma consistência real, é preciso que provenha da matéria, que seja uma manifestação dela, seu funcionamento, seu produto. O espírito puro, como demonstrarei mais adiante, não é outra coisa senão a abstração absoluta, o nada.
Mas, a partir do momento em que o espírito é produto da matéria, como pode ele modificar a matéria? Uma vez que o espírito humano não é outra coisa senão o funcionamento do organismo humano, e que esse organismo é produto completamente material desse conjunto indefinido de causas e efeitos, dessa causalidade universal que chamamos de natureza, onde adquire ele o poder necessário para transformar a natureza? Entendamo-nos bem: o homem não pode deter nem alterar esse fluxo universal de efeitos e causas; é incapaz de modificar qualquer lei da natureza, já que ele não existe e não age — seja conscientemente, seja inconscientemente — senão em virtude dessas leis. Eis aí um furacão que sopra e quebra tudo em seu caminho, impulsionado por uma força que parece lhe ser inerente. Se tivesse podido ter consciência de si mesmo, teria podido dizer: sou eu quem, por minha ação e minha vontade espontânea, destrói o que a natureza criou; e estaria enganado. É uma causa de destruição, sem dúvida, mas uma causa relativa, efeito de uma série de outras causas; não é mais do que um fenômeno fatalmente determinado pela causalidade universal, por esse conjunto de ações e reações contínuas que constitui a natureza. O mesmo se dá com os atos que podem ser realizados por todos os seres organizados, animados e inteligentes. Desde o instante em que nascem, não são a princípio mais do que produtos; mas mal nascem, ainda continuando a ser produtos e novamente produtos até sua morte, por essa mesma natureza que os criou, tornam-se por sua vez causas relativamente ativas — uns com consciência e sentimento do que fazem, outros inconscientemente, como todas as plantas. Mas façam o que fizerem, uns e outros não são mais do que causas relativas, ativas em seu próprio seio e segundo as leis da natureza, nunca contra elas. Cada um age segundo suas faculdades ou segundo as propriedades e leis que lhe são momentaneamente inerentes, que constituem todo o seu ser, mas que não estão irrevogavelmente associadas à sua existência; isso prova que, quando morre, essas faculdades, essas propriedades, essas leis não morrem; elas lhe sobrevivem, aderidas a novos seres e que, por outro lado, não têm nenhuma existência fora dessa contemporaneidade e dessa sucessão de seres reais, de modo que não constituem nenhum ser imaterial ou separado, pois estão eternamente ligadas às transformações da matéria inorgânica, orgânica e animal, ou melhor, não são outra coisa senão transformações regulares do ser único — da matéria — da qual cada ser, mesmo o mais inteligente e aparentemente voluntário, o mais livre, em cada momento de sua vida, pense o que pensar, empreenda o que empreender, faça o que fizer, não é senão um representante, um funcionário, um órgão involuntário e fatalmente determinado pela corrente universal dos efeitos e das causas.
A ação dos homens sobre a natureza, tão fatalmente determinada pelas leis naturais como toda outra ação no mundo, é a continuação, muito indireta sem dúvida, da ação mecânica, física e química de todos os seres inorgânicos, compostos e elementares; a continuação mais direta da ação das plantas sobre seu meio natural, e a continuação imediata da ação mais e mais desenvolvida e consciente de si de todas as espécies animais. Não é, de fato, outra coisa senão a ação animal, mas dirigida por uma inteligência progressiva, pela ciência; pois essa inteligência progressiva e essa ciência não são, por outro lado, senão uma transformação nova da matéria no homem; do que resulta que, quando o homem age sobre a natureza, é a própria natureza que reage sobre si mesma. Vê-se, portanto, que nenhuma rebelião do homem contra a natureza é possível.
O homem nunca pode lutar contra a natureza; portanto, não pode nem vencê-la nem dominá-la; ainda que eu tenha dito que ele empreende e realiza atos que são em aparência os mais contrários à natureza, ele obedece ainda às leis da natureza. Nada pode subtraí-lo a ela, ele é seu escravo absoluto. Mas esse escravo não é um, pois toda escravidão supõe dois seres que existem um fora do outro, e dos quais um está submetido ao outro. O homem não está fora da natureza, pois não é nada mais do que natureza; portanto, não pode ser escravo.
Qual é, então, o significado dessas palavras: combater, dominar a natureza? Há aí um eterno mal-entendido que se explica pelo duplo sentido que se associa ordinariamente a essa palavra natureza. Ora ela é considerada como o conjunto universal das coisas e dos seres, bem como das leis naturais; contra a natureza entendida assim, eu disse, não há luta possível; visto que ela abarca e contém tudo, é a onipotência absoluta, o ser único. Ora entende-se por essa palavra natureza o conjunto mais ou menos restrito dos fenômenos, das coisas e dos seres que rodeiam o homem, em uma palavra, seu mundo exterior. Contra essa natureza exterior, a luta não somente é possível, é fatalmente necessária, fatalmente imposta pela natureza universal a tudo o que vive, a tudo o que existe; porque todo ser que existe e que vive, como já disse, carrega em si esta dupla lei natural: 1. Não poder viver fora de seu meio natural ou de seu mundo exterior; 2. Não poder manter-se nele senão existindo, senão vivendo em seu detrimento, senão lutando constantemente contra ele. É, pois, esse mundo ou essa natureza exterior o que o homem, armado das faculdades e das propriedades de que a natureza universal o dotou, pode e deve vencer, pode e deve dominar; nascido na dependência, primeiro quase absoluta, dessa natureza exterior, deve submetê-la por sua vez e conquistar sobre ela sua própria liberdade e sua humanidade.
Antes de toda civilização e de toda história, numa época extremamente remota e durante um período de tempo que pode ter durado não se sabe quantos milhares de anos, o homem não foi a princípio senão uma besta selvagem entre tantas outras bestas selvagens, um gorila talvez, ou um parente muito próximo do gorila. Animal carnívoro ou antes omnívoro, era, sem dúvida, mais voraz, mais feroz, mais cruel que seus primos de outras espécies. Travou uma guerra de destruição como eles, e trabalhou como eles. Tal foi seu estado de inocência, preconizado por todas as religiões possíveis, o estado ideal tão louvado por J. J. Rousseau. O que foi que o arrancou desse paraíso animal? Sua inteligência progressiva que se aplicava de maneira natural, necessária e sucessiva ao seu trabalho animal. Mas em que consiste o progresso da inteligência humana? Do ponto de vista formal, consiste sobretudo no maior hábito de pensar que se adquire pelo exercício do pensamento, e na consciência mais precisa e mais clara de sua própria atividade. Mas tudo o que é formal não adquire qualquer realidade senão em relação ao seu objeto: e qual é o objeto dessa atividade formal que chamamos pensamento? É o mundo real. A inteligência humana não se desenvolve, não progride senão pelo conhecimento das coisas e dos fatos reais; pela observação reflexiva e pela constatação cada vez mais exata e detalhada das relações que existem entre eles, e da sucessão regular dos fenômenos naturais, das diferentes ordens de seu desenvolvimento, ou, em uma palavra, de todas as leis que lhes são próprias. Uma vez que o homem adquiriu o conhecimento dessas leis, às quais estão submetidas todas as existências reais, inclusive a sua, aprende primeiro a prever certos fenômenos, o que lhe permite preveni-los ou proteger-se contra aquelas de suas consequências que poderiam ser incômodas ou prejudiciais para ele. Além disso, esse conhecimento das leis que presidem o desenvolvimento dos fenômenos naturais, aplicado ao seu trabalho muscular e ao princípio puramente instintivo ou animal, permite-lhe, com o tempo, tirar proveito desses mesmos fenômenos naturais e de todas as coisas cujo conjunto constitui o mundo exterior e que lhe eram, no início, hostis, mas que, graças a esse latrocínio científico, acabam por contribuir poderosamente para a realização de seus fins.
Para dar um exemplo muito simples, o vento, que no início o esmaga com a queda de árvores arrancadas por sua força ou que derruba sua choça selvagem, é mais tarde obrigado a moer seu trigo. É assim que um dos elementos mais destruidores, o fogo, devidamente organizado, proporcionou ao homem um calor benéfico e um alimento menos selvagem, mais humano. Observou-se que os macacos mais inteligentes, uma vez aceso o fogo, se aproximam para se aquecer, mas nenhum foi capaz de acendê-lo, nem sequer de mantê-lo alimentando-o com mais lenha. É certo também que se passaram muitos séculos antes que o homem selvagem, tão pouco inteligente quanto os macacos, aprendesse essa arte hoje tão rudimentar, tão trivial e ao mesmo tempo tão preciosa de atiçar e manipular o fogo para seu próprio uso. Nem as mitologias antigas deixaram de divinizar o homem ou, melhor dizendo, os homens que primeiro souberam tirar proveito do fogo. E, em geral, devemos supor que as artes mais simples, que hoje constituem as bases da economia doméstica das populações menos civilizadas, exigiram imensos esforços de invenção das primeiras gerações humanas. Isso explica a lentidão desesperadora do desenvolvimento humano durante os primeiros séculos, comparada ao desenvolvimento rápido dos nossos dias.
Tal é, portanto, a maneira como o homem transformou e continua transformando, vencendo e dominando seu meio, a natureza exterior. É por uma rebelião contra as leis dessa natureza universal que, abrangendo tudo o que existe, constitui também sua própria natureza? Ao contrário, é pelo conhecimento e pela observação mais respeitosa e mais rigorosa dessas leis que ele consegue, não apenas se emancipar sucessivamente do jugo da natureza exterior, mas também submetê-la, ao menos em parte, por sua vez.
Mas o homem não se contenta com essa ação sobre a natureza propriamente exterior. Enquanto inteligência, capaz de abstrair seu próprio corpo e toda a sua pessoa, e de considerá-los como um objeto exterior, o homem, sempre impulsionado por uma necessidade inerente ao seu ser, aplica o mesmo procedimento, o mesmo método para modificar, corrigir e aperfeiçoar sua própria natureza. É um jugo natural interior que o homem deve também sacudir. Esse jugo se apresenta a ele tanto sob a forma de suas imperfeições e fraquezas como também sob a forma de suas doenças individuais, tanto corporais quanto intelectuais e morais; depois, sob a forma mais geral de sua brutalidade ou de sua animalidade, colocada frente à sua humanidade, pois esta última se realiza nele progressivamente, pelo desenvolvimento coletivo de seu meio social.
Para combater essa escravidão interior, o homem também não dispõe de outro meio senão a ciência das leis naturais que regem seu desenvolvimento individual e coletivo, e a aplicação dessa ciência tanto à sua educação individual (por meio da higiene, da ginástica do corpo, dos afetos, do espírito e da vontade, e por uma instrução racional) quanto à transformação progressiva da ordem social. Pois não apenas ele próprio, considerado como indivíduo, mas também seu meio social, essa sociedade humana da qual é produto imediato, não é por sua vez nada além de um produto da natureza universal e onipotente, com o mesmo título que os formigueiros, as colmeias, as repúblicas dos castores e todas as outras espécies de associações animais; e assim como essas associações foram incontestavelmente formadas e vivem hoje de acordo com as leis naturais que lhes são próprias, do mesmo modo a sociedade humana, em todas as fases de seu desenvolvimento histórico, obedece na maioria das vezes sem o saber a leis tão naturais quanto aquelas que regem as associações animais, ainda que uma parte delas lhe seja exclusivamente inerente. O homem, por toda a sua natureza tanto interior quanto exterior, não é outra coisa senão um animal que, graças à organização comparativamente mais perfeita de seu cérebro, está unicamente dotado de uma maior dose de inteligência e de sensibilidade do que os animais de outras espécies. A base do homem, considerado como indivíduo, é portanto completamente animal, e por isso a base da sociedade humana não poderia ser outra senão também animal. Apenas, como a inteligência do homem-indivíduo é progressiva, a organização dessa sociedade deve sê-lo também. O progresso é precisamente a lei natural fundamental e exclusivamente inerente à sociedade humana.
Ao reagir sobre si mesmo e sobre o meio social do qual é, como acabei de dizer, o produto imediato, o homem não devemos nunca esquecer, não faz senão obedecer ainda às leis naturais que lhe são próprias e que atuam nele com uma fatalidade implacável e irresistível. Último produto da natureza sobre a Terra, o homem continua, por assim dizer, por seu desenvolvimento individual e social, a obra, a criação, o movimento e a vida. Seus pensamentos e seus atos mais inteligentes e mais abstratos e, como tais, os mais distantes daquilo que se chama comumente natureza não são nada além de criações ou manifestações novas. Frente a essa natureza universal, o homem não pode ter nenhuma relação exterior, nem de escravidão nem de luta, porque carrega em si essa natureza e nada é fora dela. Mas ao estudar suas leis, ao identificar-se de certo modo com elas, ao transformá-las, por um processo psicológico próprio de seu cérebro, em ideias e convicções humanas, ele se emancipa do triplo jugo que lhe impõem, primeiro, a natureza exterior, depois, sua própria natureza individual interior, e, por fim, a sociedade da qual é produto.
Depois de tudo o que foi dito, me parece evidente que nenhuma rebelião contra o que chamo de causalidade ou natureza universal é possível para o homem; a natureza o envolve, o penetra, está tanto fora dele quanto dentro dele mesmo, constitui todo o seu ser. Ao rebelar-se contra ela, ele se rebela contra si mesmo. É evidente que é impossível para o homem conceber sequer a veleidade ou a necessidade de uma rebelião desse tipo, já que, não existindo fora da natureza universal e carregando-a em si, encontrando-se a cada instante de sua vida em plena identidade com ela, não pode se considerar nem se sentir diante dela como um escravo. Ao contrário, é estudando e apropriando-se, por assim dizer, com o pensamento, das leis naturais dessa natureza — leis que se manifestam igualmente em tudo o que constitui seu mundo exterior e em seu próprio desenvolvimento individual: corporal, intelectual e moral — que ele consegue sacudir, sucessivamente, o jugo da natureza exterior, o de suas próprias imperfeições naturais e, como veremos mais adiante, o de uma organização social autoritariamente constituída.
Mas então, como pôde surgir no espírito do homem esse pensamento histórico da separação entre espírito e matéria? Como pôde conceber a tentativa impotente, ridícula, mas igualmente histórica, de uma revolta contra a natureza? Esse pensamento e essa tentativa são contemporâneos da criação histórica da ideia de deus; foram sua consequência necessária. O homem entendeu no início pela palavra natureza apenas aquilo que hoje chamamos de natureza exterior, incluindo o seu próprio corpo; e o que chamamos de natureza universal, ele chamou de deus. Desde então, as leis da natureza deixaram de ser leis inerentes, passando a ser manifestações da vontade divina, mandamentos de deus impostos de cima à natureza e ao homem. A partir disso, o homem, tomando partido por esse deus criado por ele mesmo contra a natureza e contra si, declarou-se em rebelião contra a natureza e fundou sua própria escravidão política e social.
Tal foi a obra histórica de todos os dogmas e cultos cristãos.
Religião
Nenhuma grande transformação política e social se realizou no mundo sem ter sido acompanhada e muitas vezes precedida por um movimento análogo nas ideias religiosas e filosóficas que orientam a consciência, tanto dos indivíduos quanto da sociedade … Desafiamos quem quer que seja a sair desse círculo[14].
Por outro lado, a história não nos mostra que os sacerdotes de todas as religiões, excetuando os dos cultos perseguidos, foram sempre aliados da tirania? E esses últimos, mesmo ao combaterem e amaldiçoarem os poderes que lhes são contrários, não disciplinam seus próprios fiéis com vistas a uma nova tirania? A escravidão intelectual, de qualquer natureza que seja, terá sempre como corolário a escravidão política e social. Hoje, o cristianismo sob todas as suas diferentes formas, e com ele essa metafísica doutrinária, deísta ou panteísta, que não é outra coisa senão uma teologia mal disfarçada, constituem em conjunto o obstáculo mais formidável à emancipação da sociedade; e a prova disso é que todos os governantes, todos os homens de Estado, todos os homens que se consideram, seja oficialmente, seja oficiosamente, como pastores do povo e cuja imensa maioria hoje em dia, sem dúvida, não é cristã, nem sequer deísta, mas incrédula, que não crê, como Bismarck, como o conde de Cavour, como Muraviev, o enforcador, e Napoleão III, o deposto, nem em Deus nem no diabo protegem, no entanto, com visível interesse, todas as religiões, contanto que essas religiões ensinem, como de fato todas ensinam, a resignação, a paciência, a submissão.
Esse interesse unânime dos governantes de todos os países na manutenção do culto religioso prova o quanto é necessário, no interesse dos povos, que ele seja combatido e derrubado…[15]
Ao lado da questão simultaneamente negativa e positiva da emancipação e da organização do trabalho sobre bases de igualdade econômica; ao lado da questão exclusivamente negativa da abolição do poder político e da liquidação do Estado, da destruição das ideias e dos cultos religiosos, esta é uma das mais urgentes, porque, enquanto as ideias religiosas não forem radicalmente extirpadas da imaginação dos povos, a emancipação popular completa será impossível.
Para o homem cuja inteligência se elevou ao nível atual da ciência, a unidade do universo ou do ser real é, doravante, um fato consumado. Mas é impossível negar que esse fato, que para nós é de tal evidência que não conseguimos sequer compreender como possa ser ignorado, se encontra em flagrante contradição com a consciência universal da humanidade, que, abstraindo da diferença das formas sob as quais se manifestou na história, sempre se pronunciou unanimemente pela existência de dois mundos distintos: o mundo espiritual e o mundo material, o mundo divino e o mundo real. Desde os fetichistas que adoram, no meio que os rodeia, a ação de uma potência sobrenatural encarnada em algum objeto material, até os metafísicos mais sutis e transcendentes, a imensa maioria dos homens, todos os povos, acreditaram e ainda acreditam na existência de alguma divindade extra-mundana…[16]
Parece-me, portanto, urgente resolver por completo a seguinte questão:
Sendo o homem, juntamente com a natureza universal, um só todo, e não sendo mais do que o produto material de uma sucessão indefinida de causas materiais, como pôde surgir, estabelecer-se e enraizar-se tão profundamente na consciência humana a ideia dessa dualidade a suposição da existência de dois mundos opostos, um espiritual e outro material?
A ação e a reação incessantes do todo sobre cada ponto, e de cada ponto sobre o todo, constituem, como eu disse, a lei geral, suprema, e a própria realidade desse ser único que chamamos o universo, que é sempre, ao mesmo tempo, produtor e produto. Eternamente ativo, onipotente, fonte e resultado eterno de tudo o que é, de tudo o que nasce, age, reage e depois morre em seu seio essa solidariedade universal, essa causalidade mútua, esse processo eterno de transformações reais, tão universais quanto infinitamente detalhadas e que se produzem no espaço infinito a natureza formou, entre uma infinidade de outros mundos, a nossa Terra, com toda a escala de seus seres, desde os elementos químicos mais simples, desde as primeiras formações da matéria com todas as suas propriedades mecânicas e físicas, até o homem. Ela os reproduz continuamente, os desenvolve, os nutre, os conserva; depois, quando chega seu término e muitas vezes antes os destrói ou, melhor dizendo, os transforma em novos seres. É, portanto, a onipotência contra a qual não há independência nem autonomia possíveis, o ser supremo que abrange e penetra com sua ação irresistível toda a existência dos seres; e entre os seres vivos, não há um só que não traga em si, ainda que mais ou menos desenvolvido, o sentimento ou a sensação dessa influência suprema e dessa dependência absoluta. Pois bem: essa sensação e esse sentimento constituem o próprio fundo de toda religião.
A religião, como se vê, assim como todas as outras coisas humanas, tem sua primeira origem na vida animal. É impossível dizer que algum animal, exceto o homem, tenha uma religião determinada, porque até mesmo a religião mais grosseira supõe um grau de reflexão ao qual nenhum animal, fora o homem, chegou até hoje. Mas também é impossível negar que, na existência de todos os animais, sem exceção, encontram-se todos os elementos, por assim dizer, materiais e instintivos que constituem a religião exceto, sem dúvida, sua parte puramente ideal, a qual deve destruí-la mais cedo ou mais tarde: o pensamento. De fato, qual é a essência real de toda religião? É justamente esse sentimento de dependência absoluta do indivíduo, passageiro diante da natureza eterna e onipotente.
É difícil observar esse sentimento e analisar todas as suas manifestações nos animais das espécies inferiores; no entanto, podemos afirmar que o instinto de conservação, presente mesmo nas organizações relativamente mais pobres ainda que em grau menor do que nas superiores não passa de um hábito prudente formado em cada animal sob a influência desse sentimento, que não é outro senão o primeiro fundamento do sentimento religioso. Nos animais dotados de uma organização mais complexa e que se aproximam mais do homem, ele se manifesta de maneira muito mais perceptível para nós: no medo instintivo e pânico, por exemplo, que se apodera deles diante da aproximação de uma grande catástrofe natural, como um terremoto, um incêndio de floresta, uma forte tempestade, ou mesmo à chegada de algum feroz predador, um prussiano da floresta. E, de modo geral, pode-se dizer que o medo é um dos sentimentos predominantes na vida animal. Todos os animais que vivem em liberdade são ferozes, o que prova que vivem num medo instintivo constante, que têm sempre o sentimento do perigo ou seja, de uma influência onipotente que os persegue, os penetra e os envolve sempre e em toda parte. Esse temor o “temor a deus”, diriam os teólogos é o começo da prudência, ou seja, da religião. Mas nos animais isso não chega a ser uma religião, pois lhes falta a potência da reflexão que fixa o sentimento e determina o objeto, transformando esse sentimento em uma noção abstrata, capaz de ser expressa em palavras. Por isso, teve-se razão ao dizer que o homem é religioso por natureza: ele é como todos os animais; mas só ele, nesta Terra, tem consciência de sua religião.
A religião, disse-se, é o primeiro despertar da razão. Sim, mas sob a forma da sem-razão. A religião, disse há pouco, começa pelo temor. E, de fato, o homem, ao despertar para os primeiros fulgores daquele sol interior que se chama consciência de si mesmo, e ao sair lentamente, passo a passo, da sonolência magnética de uma existência inteiramente instintiva que levava enquanto ainda se encontrava no estado de pura inocência isto é, no estado animal tendo nascido, como todo animal, no temor diante desse mundo exterior que o produz e o destrói, teve como primeiro objeto de sua nascente reflexão esse mesmo temor. Pode-se ainda supor que, no homem primitivo, ao despontar da inteligência, esse terror instintivo devia ser mais forte que nos outros animais, primeiro, porque nasce muito menos armado que eles, e sua infância é muito mais longa; depois, porque essa mesma reflexão, mal desabrochada e ainda sem força suficiente para reconhecer e utilizar os objetos exteriores, devia, no entanto, arrancá-lo da união, da harmonia instintiva na qual, como primo do gorila, devia estar imerso junto com o restante da natureza antes que seu pensamento despertasse. A primeira reflexão o isolava, de certo modo, no meio daquele mundo exterior que, tornando-se-lhe estranho, devia aparecer-lhe através do prisma de sua imaginação infantil excitada e ampliada pelo efeito mesmo dessa reflexão nascente como uma potência sombria e misteriosa, infinitamente mais hostil e ameaçadora do que realmente era.
Não é apenas difícil é impossível termos uma noção exata das primeiras sensações e imaginações religiosas do homem selvagem. Em seus detalhes, sem dúvida, elas deviam ser tão diversas quanto as tribos primitivas que as experimentaram e conceberam, ou quanto os climas, as características dos lugares e outras circunstâncias determinantes em que se desenvolveram. Mas como, em última instância, tratavam-se de sensações e imaginações humanas, elas devem ter-se resumido, apesar dessa grande diversidade de detalhes, em alguns pontos idênticos, de caráter geral, que não é difícil identificar. Seja qual for a origem dos diversos agrupamentos humanos, seja qual for a causa das diferenças analíticas entre as raças humanas quer os homens tenham tido como antepassado um único Adão-gorila, ou primo do gorila, ou o que é mais provável tenham surgido de vários antepassados formados independentemente pela natureza, em diversos pontos do globo e em épocas diferentes o certo é que a faculdade que constitui e cria propriamente a humanidade no homem a reflexão, a capacidade de abstração, a razão, ou seja, a faculdade de combinar ideias permanece sempre a mesma em toda parte, assim como as leis que regem suas manifestações. Assim, nenhum desenvolvimento humano pode ocorrer contrariamente a essas leis. Isso nos dá o direito de supor que as fases principais observadas no desenvolvimento religioso inicial de um único povo devem ter-se repetido em todos os outros agrupamentos primitivos da Terra.
A julgar pelos relatos unânimes dos viajantes que, desde o século passado, visitaram as ilhas da Oceania, e daqueles que, em nossos dias, penetraram o interior da África, o fetichismo deve ter sido a primeira religião a religião de todos os povos selvagens ainda próximos do estado natural. Mas o fetichismo nada mais é do que a religião do medo. É a primeira expressão humana daquele sentimento de dependência absoluta, misturado ao terror instintivo que se encontra no fundo de toda vida animal e que, como já observei, constitui o vínculo religioso dos indivíduos pertencentes às espécies mais inferiores com a onipotência da natureza. Quem ignora a influência e o impacto produzidos sobre todos os seres vivos pelos grandes fenômenos da natureza como o nascer e o pôr do sol, o luar, a alternância das estações, a sucessão do frio e do calor, ou ainda as catástrofes naturais, ou as relações tão variadas e mutuamente destrutivas entre as espécies animais e vegetais? Tudo isso constitui, para cada animal, um conjunto de condições de existência, uma espécie de caráter, uma natureza e eu me arriscaria até a dizer um culto pois, nos animais, em todos os seres vivos, encontra-se uma espécie de adoração da natureza: mistura de medo e alegria, esperança e inquietude — a alegria de viver e o temor de deixar de viver — que, como sentimento, se assemelha muito à religião humana. Não faltam nem mesmo a invocação e a oração. Observemos o cão domesticado, implorando um carinho ou um olhar do seu dono: não é a imagem do homem ajoelhado diante de seu deus? Não projeta esse cão, com sua imaginação e com um começo de reflexão desenvolvida pela experiência, a onipotência natural que o obsedia, em seu dono, da mesma forma que o crente a projeta em seu deus? Qual é, então, a diferença entre o sentimento do cão e o do homem? Nem mesmo é a reflexão em si: é o grau de reflexão ou melhor, é a capacidade de fixá-la e concebê-la como pensamento abstrato, de generalizá-la por meio do nome. Pois a palavra humana tem esta peculiaridade: incapaz de nomear as coisas reais que atuam imediatamente sobre nossos sentidos, ela só expressa a noção ou generalidade abstrata. E como palavra e pensamento são duas formas distintas, mas inseparáveis, de um mesmo ato da reflexão humana, esta, ao fixar o objeto do terror e da adoração animal ou do primeiro culto do homem generaliza-o, transforma-o, por assim dizer, num ser abstrato, tentando designá-lo com um nome. O objeto realmente adorado por tal indivíduo é sempre este: aquela pedra, aquele pedaço de madeira, aquele trapo. É assim que, com o primeiro despertar do pensamento manifestado pela palavra, começa o mundo exclusivamente humano o mundo das abstrações.
Essa faculdade de abstração, fonte de todos os nossos conhecimentos e ideias, é sem dúvida a única causa de todas as emancipações humanas. Mas o primeiro despertar dessa faculdade no homem não produz imediatamente sua liberdade.
Quando começa a se formar, destacando-se lentamente da instintividade animal, manifesta-se primeiro, não sob a forma de uma reflexão racional, que tem consciência e conhecimento de sua própria atividade, mas sob a forma de uma reflexão imaginativa, inconsciente do que faz e que, justamente por isso, sempre toma seus próprios produtos por seres reais, aos quais atribui ingenuamente uma existência independente, anterior a todo conhecimento humano, sem atribuir a si mesmo outro mérito senão o de tê-los descoberto fora de si. Por esse processo, a reflexão imaginativa do homem povoa seu mundo exterior de fantasmas que lhe parecem mais perigosos, mais poderosos, mais terríveis que os seres reais que o cercam; ela não liberta o homem da escravidão natural que o oprime, senão para colocá-lo imediatamente sob o peso de uma escravidão mil vezes mais dura e mais assustadora ainda: a da religião.
É a reflexão imaginativa do homem que transforma o culto natural, cujos elementos encontramos nos animais, em um culto humano, sob a forma elementar do fetichismo. Vimos os animais adorarem instintivamente os grandes fenômenos da natureza, que exercem de fato em sua existência uma ação imediata e poderosa; mas nunca ouvimos falar de animais que adorassem um inofensivo pedaço de madeira, um trapo, um osso ou uma pedra, enquanto encontramos esse culto na religião primitiva dos selvagens e até mesmo no catolicismo. Como explicar essa anomalia — ao menos em aparência — tão estranha e que, em termos de bom senso e de sentimento da realidade das coisas, nos apresenta o homem como muito inferior aos mais modestos animais?
Esse absurdo é produto da reflexão imaginativa do selvagem. Ele não apenas sente, como os outros animais, a onipotência da natureza: ele a torna objeto de sua constante reflexão, fixa-a, tenta localizá-la e, ao mesmo tempo, a generaliza, dando-lhe um nome qualquer; faz dela o centro ao redor do qual se agrupam todas as suas imaginações infantis. Incapaz ainda de abarcar com seu próprio pensamento o universo, nem mesmo o globo terrestre, nem mesmo o ambiente tão restrito no qual nasceu e vive, ele procura por todos os lados, perguntando-se: onde reside essa onipotência, cujo sentimento, agora reflexivo e fixado, o obseda? E, por um jogo, por uma aberração de sua fantasia ignorante, que hoje nos seria difícil explicar, ele a associa àquele pedaço de madeira, àquele trapo, àquela pedra. Isso é o puro fetichismo, a mais religiosa, ou seja, a mais absurda das religiões.
Depois, e muitas vezes juntamente com o fetichismo, vem o culto dos feiticeiros. É um culto, senão mais racional, ao menos mais natural, e que nos surpreenderá menos do que o fetichismo. Estamos mais habituados a ele, pois ainda hoje, no seio mesmo desta civilização da qual tanto nos orgulhamos, estamos cercados de feiticeiros: os espiritualistas, os médiuns, os clarividentes com seu magnetismo, os padres da Igreja católica, grega e romana, que pretendem ter o poder de forçar o bom Deus, com a ajuda de algumas fórmulas misteriosas, a descer sobre a água, até transformar-se em pão e vinho todos esses dominadores da divindade submetida aos seus encantamentos, não são também feiticeiros? É verdade que a divindade adorada e invocada por nossos feiticeiros modernos, enriquecida por vários milhares de anos de extravagância humana, é muito mais complicada do que o deus da feitiçaria primitiva, pois esta não tem por objeto senão a representação, já fixada sem dúvida, mas ainda muito pouco determinada, da onipotência material, sem nenhum outro atributo, intelectual ou moral. A distinção entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, ainda é desconhecida. Não se sabe o que a onipotência ama, o que detesta, o que não quer: ela não é nem boa nem má, não é nada além de onipotência. No entanto, o caráter divino já começa a delinear-se: ele é egoísta, vaidoso, gosta de bajulações, de genuflexões, da humilhação e da imolação dos homens, de sua adoração e de seus sacrifícios, e persegue e castiga cruelmente os que não querem se submeter: os rebeldes, os orgulhosos, os ímpios. Esse é, como se sabe, o fundo principal da natureza divina em todos os deuses antigos e modernos, criados pela insensatez humana. Já existiu no mundo ser mais atrozmente invejoso, vaidoso, egoísta, vingativo, sanguinário do que o Jeová dos judeus, mais tarde o deus-pai dos cristãos?
No culto da feitiçaria primitiva, deus ou essa onipotência indeterminada do ponto de vista intelectual e moral aparece primeiramente como inseparável da pessoa do feiticeiro; ele próprio é deus, como o fetiche. Mas, com o tempo, o papel de homem sobrenatural, de homem-deus, para um homem real sobretudo para um selvagem que, sem nenhum meio de se proteger da curiosidade indiscreta de seus crentes, permanece do amanhecer ao anoitecer exposto às suas investigações torna-se impossível. O bom senso, o espírito prático de um povo selvagem que se desenvolvem lentamente, é verdade, mas que se desenvolvem pela experiência da vida, e apesar de todos os delírios religiosos acabam por lhe demonstrar a impossibilidade prática de que um homem, sujeito a todas as fraquezas e doenças humanas, possa ser um deus. O feiticeiro permanece, então, para seus crentes selvagens, um ser sobrenatural, mas apenas por instantes, quando está possuído[17]. Mas possuído por quem? Pela onipotência, por deus. Portanto, a divindade encontra-se ordinariamente fora do feiticeiro. Onde buscá-la? O fetiche, o deus-coisa, foi superado; o feiticeiro, o homem-deus, também. Todas essas transformações, nos tempos primitivos, devem ter levado séculos. O selvagem, já mais avançado, um pouco desenvolvido e enriquecido com a tradição de vários séculos, busca então a divindade muito longe de si, mas ainda assim nos seres realmente existentes: na floresta, no campo, em um rio, e mais tarde no sol, na lua, no céu. O pensamento religioso começa a abranger o universo.
O homem não pôde chegar a esse ponto, como disse, senão após uma longa série de séculos. Sua faculdade de abstração, sua razão, já se fortaleceram e se desenvolveram pelo conhecimento prático das coisas e pela observação de suas relações ou de sua causalidade mútua, enquanto a aparição regular de certos fenômenos lhe deu a primeira noção de algumas leis naturais. Começa a se inquietar com o conjunto dos fatos e suas causas. Ao mesmo tempo, começa também a conhecer-se a si mesmo e, graças sempre a essa potência de abstração que lhe permite considerar-se como objeto, separa seu ser exterior e vivente de seu ser pensante, seu exterior de seu interior, seu corpo de sua alma; e como não tem a menor ideia das ciências naturais e ignora até mesmo o nome dessas ciências aliás completamente modernas chamadas fisiologia e antropologia, fica deslumbrado por essa descoberta de seu próprio espírito em si mesmo, e naturalmente, necessariamente, imagina que sua alma, esse produto de seu corpo, é, ao contrário, o princípio e a causa do corpo. Mas uma vez que fez essa distinção entre o interior e o exterior, entre o espiritual e o material em si mesmo, projeta-a necessariamente sobre seu deus: começa a buscar a alma invisível desse universo visível. É assim que deve ter nascido o panteísmo religioso dos hindus.
Devemos nos deter neste ponto, porque é aqui que propriamente começa a religião no pleno sentido da palavra e, com ela, também a teologia e a metafísica. Até então, a imaginação religiosa do homem, obcecada pela representação fixa de uma onipotência indeterminada e inalcançável, havia procedido naturalmente, buscando-a por meio da investigação experimental: primeiro nos objetos mais próximos, nos fetiches; depois nos feiticeiros; mais tarde nos grandes fenômenos da natureza; e, por fim, nos astros mas sempre associando-a a algum objeto real e visível, por mais distante que fosse. Agora, ela se eleva até a ideia de um deus-universo, uma abstração. Até então, todos os seus deuses haviam sido seres particulares, mas ainda assim realmente existentes. Agora, pela primeira vez, tem uma divindade universal: o ser dos seres, substância criadora de todos os seres limitados e particulares, a alma universal, o grande todo. Eis, portanto, o verdadeiro deus que começa e, com ele, a verdadeira religião.
Filosofia, Ciência
Devemos agora examinar o procedimento pelo qual o homem chegou a esse resultado, a fim de reconhecer, por sua origem histórica, a verdadeira natureza da divindade. E, antes de tudo, a primeira questão que se apresenta é esta: o grande todo da religião panteísta não é absolutamente o mesmo ser único que chamamos de natureza universal?
Sim e não. Sim, porque ambos os sistemas o da religião panteísta e o sistema científico e positivista abarcam o mesmo universo. Não, porque o abarcam de uma maneira diferente.
Qual é o método científico? É o método realista por excelência. Vai dos detalhes ao conjunto e da constatação, do estudo dos fatos, à sua compreensão, às ideias pois suas ideias não são senão a exposição fiel das relações de coordenação, de sucessão e de ação ou de causalidade mútua que realmente existem entre as coisas e os fenômenos reais; sua lógica nada mais é do que a lógica das coisas. Como no desenvolvimento histórico do espírito humano, a ciência positiva chega sempre depois da teologia e depois da metafísica, o homem chega à ciência já preparado e consideravelmente corrompido por uma espécie de educação abstrata. Traz, portanto, muitas ideias abstratas, elaboradas tanto pela teologia quanto pela metafísica, e que, para a primeira, foram objeto de fé cega; para a segunda, objeto de especulações transcendentes e de jogos de palavras mais ou menos engenhosos, de explicações e demonstrações que não explicam nem demonstram absolutamente nada, porque são feitas fora de qualquer experimentação real, e porque a metafísica não tem outra garantia para a existência dos próprios objetos sobre os quais raciocina além das seguranças ou do mandamento imperativo da teologia.
O homem, outrora teólogo e metafísico, mas cansado da teologia e da metafísica por causa da esterilidade de seus resultados na teoria e por suas consequências tão funestas na prática, leva naturalmente todas essas ideias para a ciência mas as leva não como princípios certos que devem, como tais, servir de ponto de partida: leva-as como questões que a ciência deve resolver. Ele só chegou à ciência porque começou justamente a colocá-las em dúvida. E duvida delas porque uma longa experiência com a teologia e a metafísica que criaram essas ideias lhe mostrou que nem uma nem outra oferecem qualquer garantia séria quanto à realidade de suas criações. O que ele duvida e rejeita, antes de tudo, não são tanto essas criações, essas ideias, mas sim os métodos, os caminhos e os meios pelos quais a teologia e a metafísica as criaram. Ele rejeita o sistema das revelações e a crença no absurdo porque é absurdo (Credo quia absurdum, Tertuliano) dos teólogos, e não quer se submeter ao despotismo dos teólogos, dos sacerdotes e das fogueiras da Inquisição. Rejeita a metafísica precisamente e sobretudo porque, tendo aceitado sem crítica ou com uma crítica ilusória, excessivamente complacente e fácil, as criações e as ideias fundamentais da teologia as do universo, de deus e da alma, ou de um espírito separado da matéria construiu sobre essas bases os seus sistemas e, partindo do absurdo, terminou sempre no absurdo. Portanto, o que o homem busca, antes de tudo, ao sair da teologia e da metafísica, é um método verdadeiramente científico um método que lhe proporcione, em primeiro lugar, certeza completa da realidade das coisas sobre as quais raciocina.
Mas o homem não tem outro meio de se assegurar da realidade de uma coisa, de um fenômeno ou de um fato, senão o de tê-los realmente encontrado, constatado, reconhecido em sua própria integridade, sem mistura de fantasias, suposições ou invenções do espírito humano. A experiência torna-se, portanto, a base da ciência. Não se trata aqui da experiência de um único homem. Nenhum homem, por mais inteligente ou curioso que seja, por mais bem dotado que esteja sob todos os pontos de vista, pode ter visto tudo, encontrado tudo, experimentado tudo por si mesmo. Se a ciência de cada um se limitasse às suas próprias experiências pessoais, haveria tantas ciências quanto homens, e toda ciência morreria com cada pessoa. Não haveria ciência.
A ciência tem, portanto, como base, a experiência coletiva não apenas de todos os homens contemporâneos, mas também de todas as gerações passadas. Mas não admite nenhum testemunho sem crítica. Antes de aceitar um testemunho, seja de um contemporâneo, seja de alguém já morto, se eu quiser evitar o erro, devo, primeiro, investigar o caráter e a natureza dessa pessoa, bem como o estado de espírito e o método que ela seguia. Devo me assegurar, antes de tudo, de que essa pessoa é ou foi honesta, que detesta a mentira, que busca a verdade com boa-fé e zelo; que não era nem fantasiosa, nem poeta, nem metafísica, nem teóloga, nem jurista, nem o que se chama de político e, como tal, interessada nas mentiras políticas e que era considerada uma pessoa honesta e buscadora da verdade pela grande maioria de seus contemporâneos. Existem pessoas, por exemplo, que são muito inteligentes, muito instruídas, livres de qualquer preconceito ou devaneio fantasioso, que têm, em suma, um espírito realista, mas que, por serem muito preguiçosas para se dar ao trabalho de constatar a existência e a natureza real dos fatos, acabam supondo ou inventando-os. É assim que se faz estatística na Rússia. O testemunho dessas pessoas, evidentemente, não tem valor algum. Há outras, também muito inteligentes e honestas demais para mentir ou afirmar algo de que não têm certeza, mas cujo espírito se encontra sob o domínio da metafísica, da religião ou de alguma preocupação idealista qualquer. O testemunho dessas pessoas, ao menos no que diz respeito a objetos ligados à sua mania particular, deve ser igualmente rejeitado, porque elas têm o infortúnio de sempre confundir lanternas com bexigas. Mas, se uma pessoa une uma grande inteligência realista, desenvolvida e devidamente preparada pela ciência, à vantagem de ser, ao mesmo tempo, uma pesquisadora zelosa e escrupulosa da realidade das coisas, seu testemunho torna-se precioso.
E, no entanto, também não devo aceitá-lo sem crítica. Em que consiste essa crítica? Na comparação das coisas que ele me afirma com os resultados da minha própria experiência pessoal. Se o testemunho dele estiver em harmonia com a minha experiência, se não tenho razão alguma para rejeitá-la, eu o aceito como uma nova confirmação do que já reconheci por mim mesmo. Mas, se for contrário a ela, devo rejeitá-la sem investigar quem está com a razão, ele ou eu? De modo algum. Sei por experiência que meu conhecimento das coisas pode ser falho. Comparo, então, os resultados dele com os meus e os submeto a novas observações e experiências. Se necessário, recorro ao juízo e às experiências de um terceiro e até de muitos observadores cujo caráter científico sério me inspire confiança, e chego, não sem esforço às vezes, por meio da modificação dos resultados dele ou dos meus, a uma convicção comum. Mas em que consiste a experiência de cada um? No testemunho dos sentidos, guiados pela inteligência. Não aceito, por minha conta, nada que eu não tenha encontrado materialmente, visto, ouvido e, se necessário, tocado com os dedos. Esse é, para mim, pessoalmente, o único meio de me assegurar da realidade de uma coisa. E só confio no testemunho daqueles que procedem exatamente do mesmo modo.
Disso tudo resulta que a ciência, desde o início, está fundada na coordenação de uma massa de experiências pessoais, contemporâneas e passadas, constantemente submetidas a uma crítica mútua rigorosa. Não se pode imaginar uma base mais democrática do que essa. Essa é a base constitutiva e primeira, e todo conhecimento humano que, em última instância, não repousa sobre ela, deve ser excluído como desprovido de qualquer certeza e de qualquer valor científico. No entanto, a ciência não pode se deter apenas nessa base, que lhe fornece apenas uma quantidade incontável de fatos naturais muito diversos, devidamente constatados por observações ou experiências pessoais também incontáveis. A ciência propriamente dita só começa com a compreensão das coisas, dos fenômenos e dos fatos. Compreender uma coisa, cuja realidade tenha sido previamente constatada o que teólogos e metafísicos sempre esquecem de fazer é descobrir, reconhecer e constatar, por aquele mesmo método empírico que serviu para assegurar inicialmente sua existência real, todas as suas propriedades; ou seja, todas as suas relações, tanto imediatas quanto indiretas, com outras coisas existentes o que equivale a determinar os diferentes modos da sua ação real sobre tudo o que está fora dela. Compreender um fenômeno ou um fato é descobrir e constatar as fases sucessivas do seu desenvolvimento real; é reconhecer sua lei natural.
Essas constatações de propriedades e essas descobertas de leis naturais têm como única fonte, em primeiro lugar, observações e experiências realmente realizadas por tal ou tal pessoa, ou por várias pessoas ao mesmo tempo. Mas, por mais numeroso que seja esse grupo, e ainda que todos sejam sábios renomados, a ciência só aceita seu testemunho com a condição essencial de que, ao mesmo tempo em que anunciam os resultados de suas pesquisas, forneçam também um relatório extremamente detalhado e preciso do método que utilizaram, bem como das observações e experiências que realizaram para chegar a tais resultados. Assim, todos os interessados pela ciência podem reproduzir por conta própria, seguindo o mesmo método, essas mesmas observações e experiências. Somente quando esses novos resultados forem confirmados e obtidos por muitos outros observadores e experimentadores, são considerados como conquistas definitivas da ciência. E mesmo assim, pode ocorrer que novas experiências e observações, feitas segundo um método e de um ponto de vista diferente, destruam ou modifiquem profundamente esses primeiros resultados. Nada é mais antipático à ciência do que a fé, e a crítica nunca disse sua última palavra. Ela sozinha, representante do grande princípio da rebeldia na ciência, é a guardiã severa e incorruptível da verdade.
É assim que, sucessivamente, pelo trabalho dos séculos, vai-se estabelecendo pouco a pouco na ciência um sistema de verdades ou de leis naturais universalmente reconhecidas. Uma vez estabelecido esse sistema sempre acompanhado da exposição mais detalhada possível dos métodos, das observações e das experiências, bem como da história das investigações e dos desenvolvimentos que permitiram sua formulação, de forma que possa sempre ser submetido a novas verificações e críticas ele se converte na segunda base da ciência. Serve como ponto de partida para novas investigações que, necessariamente, o desenvolvem e o enriquecem com novos métodos.
O mundo, apesar da infinita diversidade de seres que o compõem, é uno. O espírito humano que, ao tomá-lo como objeto, se esforça por reconhecê-lo e compreendê-lo, também é uno ou idêntico, apesar da quantidade incontável de seres humanos distintos, presentes e passados, pelos quais ele se expressa. Essa identidade se prova pelo fato incontestável de que, sempre que um ser humano pensa independentemente do seu ambiente, natureza, raça, posição social, ou grau de desenvolvimento intelectual e moral, mesmo que divague ou fantasie, seu pensamento se desenvolve sempre segundo as mesmas leis. E é isso, precisamente, que, na imensa diversidade das épocas, dos climas, das raças, das nações, das posições sociais e das individualidades, constitui a grande unidade do gênero humano. Consequentemente, a ciência que nada mais é do que o conhecimento e a compreensão do mundo pelo espírito humano deve também ser una.
Ela é, incontestavelmente, una. Mas, imensa como o mundo, ultrapassa as faculdades intelectuais de um único ser humano, mesmo que fosse o mais inteligente de todos. Nenhum é capaz de abarcar a ciência em sua totalidade e, ao mesmo tempo, em seus detalhes infinitos ainda que esses detalhes sejam iguais em importância, embora diferentes entre si. Quem quiser se apegar apenas à generalidade, desprezando os detalhes, cairá novamente na metafísica ou na teologia. Pois a generalidade científica se distingue das generalidades metafísicas e teológicas justamente por isso: ela não se estabelece, como essas últimas, por uma abstração que elimina os detalhes, mas sim pela coordenação concreta dos próprios detalhes. A grande unidade científica é concreta: é a unidade na infinita diversidade. Já a unidade teológica e metafísica é abstrata: é a unidade no vazio. Para abarcar a unidade científica em toda a sua realidade infinita, seria necessário conhecer, em detalhe, todos os seres cujas relações naturais diretas e indiretas constituem o universo, o que evidentemente ultrapassa as capacidades de um indivíduo, de uma geração, ou mesmo da humanidade inteira.
Ao querer abarcar a universalidade da ciência, o homem se detém, esmagado pelo infinitamente grande. Mas, ao penetrar nos detalhes da ciência, encontra outro limite: o infinitamente pequeno. Além disso, ele só pode realmente reconhecer aquilo cuja existência real lhe é testemunhada por seus sentidos e os sentidos só alcançam uma parte infinitamente pequena do universo infinito: o globo terrestre, o sistema solar, e, no máximo, aquela porção do firmamento visível a partir da Terra. Tudo isso, diante da imensidão do espaço, não passa de um ponto imperceptível.
O teólogo e o metafísico aproveitam essa ignorância forçada e necessariamente eterna do homem para promover suas divagações e seus sonhos. Mas a ciência despreza esse consolo trivial, detesta essas ilusões tão ridículas quanto perigosas. Quando se vê obrigada a interromper suas investigações por falta de meios para prossegui-las, ela prefere dizer: “Não sei”, a apresentar como verdades hipóteses cuja verificação é impossível. A ciência foi ainda mais longe: demonstrou com certeza irrefutável o absurdo e a nulidade de todas as concepções teológicas e metafísicas mas não as destruiu para substituí-las por novos absurdos. Chegando ao seu limite, ela afirma honestamente: “Não sei”, e jamais tirará conclusões daquilo que não conhece.
A ciência universal é, portanto, um ideal que o homem jamais poderá realizar. Estará sempre condenado a se contentar com a ciência de seu mundo, estendendo, na melhor das hipóteses, esse mundo até as estrelas visíveis e, ainda assim, conhecerá muito pouco sobre ele. A ciência real não abrange mais do que o sistema solar, principalmente nosso planeta e tudo o que nele se produz e acontece. Mas mesmo dentro desses limites, a ciência é imensa demais para ser dominada por um único homem ou por uma geração inteira tanto mais porque, como já foi observado, os detalhes desse mundo se perdem no infinitamente pequeno, e sua diversidade não possui limites definíveis.
Essa impossibilidade de abarcar, de um só golpe, o imenso conjunto e os infinitos detalhes do mundo visível levou à divisão da ciência una e indivisível em muitas ciências particulares. Essa divisão é tanto mais natural e necessária quanto corresponde às ordens diversas que existem realmente no mundo, bem como aos diferentes pontos de vista sob os quais o espírito humano é, por assim dizer, forçado a encará-las: matemática, mecânica, astronomia, física, química, geologia, biologia, sociologia, e até mesmo a história do desenvolvimento da espécie humana tais são as principais divisões que, por assim dizer, se estabeleceram por si mesmas na ciência. Cada uma dessas ciências particulares, em seu desenvolvimento histórico, formou e carrega consigo um método próprio de investigação e verificação de coisas e fatos, de deduções e conclusões que, se não são sempre exclusivamente seus, são ao menos particularmente característicos. Mas todos esses métodos diferentes têm uma única base comum: no fim das contas, todos se reduzem à constatação pessoal e real das coisas e dos fatos pelos sentidos. E todas essas ciências, dentro dos limites das faculdades humanas, têm o mesmo fim: a edificação da ciência universal, a compreensão da unidade e da universalidade real dos mundos a reconstrução científica do grande todo, do universo.
Esse objetivo, tal como acabo de formulá-lo, não se encontra em flagrante contradição com a evidente impossibilidade de o homem jamais poder realizá-lo? Sim, sem dúvida; e, no entanto, o homem não pode renunciar a ele e jamais renunciará. Auguste Comte e seus discípulos podem pregar-nos a moderação e a resignação: o homem nunca será moderado nem resignado. Essa contradição está na própria natureza humana, e sobretudo na natureza do nosso espírito: armado com essa formidável potência de abstração, ele não reconhece e jamais reconhecerá nenhum limite à sua curiosidade imperiosa e apaixonada, ávida de saber e de abarcar tudo. Basta que lhe digam: “Você não irá além”, para que, com todo o poder dessa curiosidade irritada pelo obstáculo, ele tenda a se lançar ao além. Nesse aspecto, o bom deus da Bíblia mostrou-se muito mais clarividente que Auguste Comte e os positivistas, seus discípulos: querendo, sem dúvida, que o homem comesse do fruto proibido, proibiu-lhe comê-lo. Essa falta de moderação, essa desobediência, essa revolta do espírito humano contra todo limite imposto seja em nome de deus, seja em nome da ciência constituem sua honra, o segredo de seu poder e de sua liberdade. É ao buscar o impossível que o homem sempre realizou e reconheceu o possível; e os que se limitaram prudentemente ao que lhes parecia possível jamais deram um único passo adiante. Aliás, diante da imensa trajetória percorrida pelo espírito humano nos três mil anos mais ou menos conhecidos pela história, quem ousaria afirmar o que será possível ou impossível dentro de três, cinco ou dez mil anos?
Essa tendência ao eternamente desconhecido é tão irresistível no homem, está tão profundamente enraizada em nosso espírito, que, se lhe fecharem o caminho científico, ele abrirá, para satisfazê-la, um novo caminho: o místico. E é preciso outro exemplo além do próprio fundador da filosofia positiva, Auguste Comte, que concluiu sua grande carreira filosófica como se sabe com a elaboração de um sistema positivo bastante místico? Sei muito bem que alguns de seus discípulos atribuem essa última criação desse espírito eminente que pode ser considerado, depois ou mesmo junto a Hegel, o maior filósofo do nosso século a uma lamentável aberração causada por grandes desgraças e, sobretudo, pela surda e implacável perseguição dos sábios patenteados e acadêmicos, inimigos naturais de toda nova iniciativa e de toda grande descoberta científica[18]. Mas, deixando de lado essas causas acidentais às quais, infelizmente, nem mesmo os maiores gênios escaparam, pode-se demonstrar que o sistema de filosofia positiva de Auguste Comte abre de fato a porta ao misticismo.
A filosofia positiva nunca se apresentou francamente como ateia. Sei muito bem que o ateísmo está presente em todo o seu sistema; que esse sistema o da ciência real, fundamentando-se essencialmente na imanência das leis naturais, exclui a possibilidade da existência de deus, assim como a existência de deus excluiria a possibilidade dessa ciência. Mas nenhum dos representantes reconhecidos da filosofia positiva, a começar por seu fundador Auguste Comte, quis jamais dizê-lo abertamente. Sabem disso eles próprios, ou estariam inseguros quanto a esse ponto? Parece-me muito difícil admitir sua ignorância a respeito de uma questão de tamanha importância para toda a posição da ciência no mundo; tanto mais quanto que, em cada linha que escrevem, transpira a negação de deus, o ateísmo. Penso, portanto, que seria mais justo acusar sua boa-fé ou, para falar de modo mais cortês, atribuir seu silêncio a um instinto ao mesmo tempo político e conservador. Por um lado, não querem entrar em conflito com os governos, nem com o idealismo hipócrita das classes dominantes, que com toda razão veem no ateísmo e no materialismo instrumentos revolucionários de destruição, perigosíssimos para a ordem atual das coisas. Talvez tenha sido somente graças a esse silêncio prudente e a essa posição ambígua assumida pela filosofia positiva que ela conseguiu penetrar na Inglaterra, país onde a hipocrisia religiosa continua sendo uma potência social, e onde o ateísmo ainda é considerado um crime contra essa sociedade[19]. Sabe-se que, nesse país da liberdade política, o despotismo social é imenso. Na primeira metade deste século, o grande poeta Shelley, amigo de Byron, não foi ele forçado a emigrar e privado de seu filho apenas por esse crime de ateísmo? É de se espantar, então, que homens eminentes como Buckle, Stuart Mill e Herbert Spencer tenham aproveitado com alegria a possibilidade que lhes oferecia a filosofia positiva de conciliar a liberdade de suas investigações científicas com o canto religioso, despoticamente imposto pela opinião pública inglesa àqueles que desejam fazer parte da sociedade?
Os positivistas franceses suportam, é verdade, com muito menos resignação e paciência esse jugo que eles mesmos se impuseram, e não estão, de modo algum, orgulhosos de terem se comprometido assim por seus irmãos, os positivistas ingleses. Também não deixam de protestar, de tempos em tempos, e de maneira bastante enérgica, contra a aliança que estes últimos lhes propõem concluir, em nome da ciência positiva, com inocentes aspirações religiosas não dogmáticas, mas indeterminadas e muito vagas, como costumam ser hoje todas as aspirações teóricas das classes privilegiadas, fatigadas e desgastadas pelo gozo prolongado de seus privilégios. Os positivistas franceses protestam energicamente contra qualquer transação com o espírito teológico, transação que rejeitam como uma desonra. Mas, se consideram um insulto a suposição de que possam transigir com ele, por que continuam provocando tal suposição com suas reticências? Ser-lhes-ia muito fácil pôr fim a todos os equívocos se proclamando abertamente o que de fato são: materialistas, ateus. Até o presente, têm desprezado fazê-lo e, como se temessem desenhar de forma precisa e clara demais sua verdadeira posição, preferiram sempre explicar seu pensamento com circunlóquios talvez mais científicos, mas muito menos claros do que essas simples palavras. Pois bem, é precisamente essa clareza que os assusta e que não querem admitir de modo algum. E isso por uma dupla razão.
Certamente, ninguém questionará nem o valor moral nem a boa-fé individual dos espíritos eminentes que hoje representam o positivismo na França. Mas o positivismo não é apenas uma teoria professada livremente; é ao mesmo tempo uma seita de caráter político e sacerdotal. Basta ler com atenção o Cours de Philosophie Positive de Auguste Comte sobretudo o fim do terceiro volume e os três primeiros, cuja leitura o senhor Littré, em seu prefácio, recomenda aos operários[20] para perceber que a principal preocupação política do ilustre fundador do positivismo filosófico era a criação de um novo sacerdócio, não mais religioso, desta vez, mas científico, chamado, segundo ele, a governar o mundo doravante. A imensa maioria dos homens, segundo a pretensão de Auguste Comte, é incapaz de se governar por si mesma. Quase todos, diz ele, são impróprios para o trabalho intelectual não porque são ignorantes e suas preocupações cotidianas os tenham impedido de adquirir o hábito de pensar, mas porque a natureza os criou assim: na maioria dos indivíduos, a região posterior do cérebro que corresponde, segundo o sistema de Gall, aos instintos mais universais, porém também mais grosseiros da vida animal está muito mais desenvolvida do que a região frontal, que contém os órgãos puramente intelectuais. Daí resulta, em primeiro lugar, que a vil multidão não está destinada a gozar da liberdade, pois essa liberdade levaria necessariamente a uma deplorável anarquia espiritual; e, em segundo lugar, que ela experimenta sempre felizmente para a sociedade a necessidade instintiva de ser comandada. Felizmente também, sempre se encontram alguns homens que receberam da natureza a missão de mandar sobre essa massa e de submetê-la a uma disciplina salutar, tanto espiritual quanto temporal. Antigamente, antes da necessária, mas lamentável revolução que atormenta a sociedade humana há três séculos, esse ofício de alto comando pertencia ao sacerdócio clerical, à igreja dos padres, pela qual Auguste Comte professa uma veneração cuja franqueza, ao menos, me parece excessivamente honesta. Amanhã, depois dessa mesma revolução, pertencerá ao sacerdócio científico, à academia dos sábios, que estabelecerão uma nova disciplina um poder muito forte para o maior bem da humanidade.
Tal é o credo político e social que Auguste Comte legou aos seus discípulos. Dele resulta a necessidade de se prepararem para ocupar dignamente uma missão tão elevada. Como homens que se sabem chamados a governar mais cedo ou mais tarde, possuem o instinto de conservação e o respeito por todos os governos constituídos o que lhes é tanto mais fácil quanto que, fatalistas à sua maneira, consideram todos os governos, mesmo os piores, como transições não apenas necessárias, mas também salutares no desenvolvimento histórico da humanidade[21]. Os positivistas, como se vê, são homens como é apropriado, e não “quebra-vidraças”. Detestam as revoluções e os revolucionários. Não querem destruir nada e, certos de que chegará sua hora, esperam pacientemente que as coisas e os homens que lhes são contrários se destruam por si mesmos. Enquanto isso, fazem uma propaganda perseverante, à voz baixa, atraindo as naturezas mais ou menos doutrinárias e antirrevolucionárias que encontram entre a juventude estudiosa da Escola Politécnica e da Escola de Medicina sem desprezar, por vezes, descer até os ateliês da indústria para semear ali o ódio às opiniões vagas, metafísicas e revolucionárias, e a fé, naturalmente mais ou menos cega, no sistema político e social preconizado pela filosofia positiva. Mas cuidarão bem de não provocar contra si os instintos conservadores das classes governantes, nem despertar, ao mesmo tempo, as paixões subversivas das massas com uma propaganda demasiadamente franca de seu ateísmo e materialismo. Dizem isso claramente em todos os seus escritos mas de modo que apenas um pequeno número de iniciados possa escutar.
Não sendo nem positivista, nem candidato a qualquer governo, mas um franco revolucionário socialista, não tenho necessidade de me deter diante de tais considerações. Quebrarei, pois, os vidros e tratarei de colocar os pontos nos is.
Os positivistas jamais negaram diretamente a possibilidade da existência de Deus; nunca disseram, como os materialistas, de cuja perigosa e revolucionária solidariedade se afastam: “Deus não existe, e sua existência é absolutamente impossível”, porque ela é incompatível do ponto de vista moral com a imanência, ou, para falar ainda mais claramente, com a própria existência da justiça; e do ponto de vista material com a imanência ou a existência das leis naturais ou de qualquer ordem no mundo; incompatível, portanto, com a própria existência do mundo.
Essa verdade tão evidente, tão simples, e que creio ter desenvolvido suficientemente ao longo deste escrito, constitui o ponto de partida do materialismo científico. Antes de tudo, trata-se apenas de uma verdade negativa. Ainda não afirma nada é apenas a negação necessária, definitiva e poderosa desse funesto fantasma histórico que a imaginação dos primeiros homens criou, e que, há quatro ou cinco mil anos, pesa sobre a ciência, sobre a liberdade, sobre a humanidade, sobre a vida. Armados com essa negação irresistível e irrefutável, os materialistas estão imunizados contra o retorno de todos os fantasmas divinos, antigos e novos, e nenhum filósofo inglês proporá a eles uma aliança com um incognoscível religioso (palavras de Herbert Spencer) qualquer.
Os positivistas franceses estão convencidos dessa verdade negativa, sim ou não? Sem dúvida que sim e todos tão energicamente quanto os próprios materialistas. Se não estivessem, teriam de renunciar à própria possibilidade da ciência, pois sabem melhor que ninguém que entre o natural e o sobrenatural não há transação possível, e que essa imanência das forças e das leis, sobre a qual fundamentam todo o seu sistema, contém diretamente a negação de Deus. Por que, então, em nenhum de seus escritos se encontra a expressão franca e simples dessa verdade, de modo que qualquer um possa saber com clareza a que ponto estão? Ah! É porque são conservadores políticos e prudentes filósofos que se preparam para assumir o governo da vil e ignorante multidão em suas mãos. Eis como expressam essa mesma verdade:
Deus não se encontra no domínio da ciência; sendo Deus, segundo a definição dos teólogos e dos metafísicos, o absoluto e não tendo a ciência por objeto senão o que é relativo, ela nada tem a ver com Deus, que não pode ser, para ela, senão uma hipótese inverificável.
Laplace dizia a mesma coisa com mais franqueza de expressão: no meu sistema do mundo, não tive necessidade dessa hipótese. Eles, porém, não acrescentam que a admissão dessa hipótese implicaria necessariamente na negação e na anulação da ciência e do mundo. Não, eles se contentam em dizer que a ciência não tem poder para verificar isso e que, portanto, não podem aceitar isso como uma verdade científica.
Notem que os teólogos — não os metafísicos, mas os verdadeiros teólogos — dizem absolutamente a mesma coisa: sendo Deus o ser infinito, onipotente, absoluto, eterno, o espírito humano, a ciência humana, é incapaz de se elevar até ele. Daí resulta a necessidade de uma revelação especial, determinada pela graça divina; e essa verdade revelada, que como tal é impenetrável à análise do espírito profano, torna-se a base da ciência teológica.
Uma hipótese só é uma hipótese precisamente porque ainda não foi verificada. Mas a ciência distingue dois tipos de hipóteses: aquelas cuja verificação parece possível, provável; e aquelas cuja verificação é totalmente impossível. A hipótese divina, com todas as suas diferentes variações: Deus criador, Deus alma do mundo, ou o que se chama a imanência divina, causa primeira e causa final, essência íntima de todas as coisas, alma imortal, vontade espontânea etc., tudo isso cai necessariamente na última categoria. Tudo isso, tendo um caráter absoluto, é absolutamente inverificável do ponto de vista da ciência, que só pode reconhecer a realidade das coisas determinadas e finitas, e que, sem pretender aprofundar a essência íntima, deve limitar-se a estudar suas relações exteriores e suas leis.
Mas tudo o que é inverificável do ponto de vista científico é, por isso mesmo, necessariamente nulo do ponto de vista da realidade? De modo algum, e eis aqui uma prova: O universo não se limita ao nosso sistema solar, que não passa de um ponto imperceptível no espaço infinito, e que sabemos que vemos estar rodeado por outros sistemas solares. Mas o nosso próprio firmamento, com todos os seus milhões de sistemas, não é, por sua vez, senão outro ponto imperceptível na infinitude do espaço, e é altamente provável que esteja rodeado por milhares de bilhões, e bilhões de bilhões de outros sistemas solares. Em uma palavra, a natureza do nosso espírito nos obriga a imaginar o espaço como infinito e cheio de uma infinidade de mundos desconhecidos. Eis aí uma hipótese que se impõe imperiosamente ao espírito humano hoje e que, no entanto, permanecerá eternamente inverificável para nós. Agora imaginamos somos igualmente forçados a pensar que toda essa imensidão infinita de mundos eternamente desconhecidos é regida pelas mesmas leis naturais, e que neles dois mais dois são quatro, como aqui, desde que a teologia não se intrometa. Eis aí uma segunda hipótese que a ciência jamais poderá verificar. Enfim, a mais simples lei da analogia nos obriga, por assim dizer, a pensar que muitos desses mundos senão todos estão povoados por seres organizados e inteligentes, que vivem e pensam segundo a mesma lógica real que se manifesta em nossa vida e em nosso pensamento. Eis uma terceira hipótese, menos urgente sem dúvida que as duas anteriores, mas que exceto para aqueles que a teologia preencheu de egoísmo e vaidade terrestre se impõe necessariamente ao espírito de cada um. Ela é tão inverificável quanto as outras duas. Dirão então os positivistas que todas essas hipóteses são nulas, e que seus objetos estão desprovidos de toda realidade?
A isso, o senhor Littré o eminente e hoje universalmente reconhecido chefe do positivismo na França responde com palavras tão belas e eloquentes que não posso resistir ao prazer de citá-las:
Eu também procurei traçar, sob o nome de imensidão, o caráter filosófico daquilo que o senhor Spencer chama de o incognoscível. O que está além do saber positivo seja materialmente, o fundo do espaço sem limites, seja intelectualmente, o encadeamento sem fim das causas é inacessível ao espírito humano. Mas inacessível não equivale a inexistente. A imensidão, tanto material quanto intelectual, associa-se estreitamente aos nossos conhecimentos e, por essa aliança, transforma-se numa ideia positiva e do mesmo tipo; quero dizer que, ao tocá-la e abordá-la, essa imensidão se apresenta com seu duplo caráter: realidade e inacessibilidade. É um oceano que bate em nossa praia e para o qual não temos nem barco nem vela mas cuja visão clara é tão salutar quanto grandiosa[22].
Devemos, sem dúvida, ficar contentes com essa bela explicação, pois a entendemos em nosso próprio sentido que será certamente também o do ilustre chefe do positivismo. Mas o que há de lamentável é que os teólogos também se regozijarão com ela, ao ponto de, para mostrar seu agradecimento ao ilustre acadêmico por essa magnífica declaração a favor de seus próprios princípios, serem capazes de lhe oferecer gratuitamente a vela e o barco que, segundo ele, estão em falta e dos quais eles alegam possuir a posse exclusiva, para realizar uma exploração real, uma verdadeira viagem de descobrimento nesse oceano desconhecido. Advertindo-o, é claro, de que, no momento em que ele ultrapassar os limites do mundo visível, será necessário mudar de método, pois o método científico como ele mesmo sabe muito bem não se aplica às coisas eternas e divinas.
E, de fato, como poderiam os teólogos ficar insatisfeitos com a declaração do senhor Littré? Ele declara que a imensidão é inacessível ao espírito humano; os teólogos nunca disseram outra coisa. Em seguida acrescenta que sua inacessibilidade não exclui de modo algum sua realidade. E é isso tudo o que eles desejam. A imensidão, Deus, é um ser real, e é inacessível para a ciência, o que não significa de modo algum que seja inacessível para a fé. A partir do momento em que é simultaneamente a imensidão e um ser real, ou seja, a onipotência, pode muito bem encontrar um meio, se quiser, de se fazer conhecer ao homem, à margem e escancaradamente diante da ciência; e esse meio é conhecido; sempre se chamou, na história, de revelação imediata. Dirão que isso é um meio pouco científico. Sem dúvida, e é por isso que é bom; dirão que é absurdo; nada melhor: é por isso mesmo que é divino.
Credo quia absurdum.
Você me tranquilizou completamente — dirá o teólogo — ao afirmar, ao confessar-me, também do seu ponto de vista científico, o que a minha fé sempre me fez entrever e intuir: a existência real de Deus. Uma vez que eu tenha certeza desse fato, não precisarei mais da sua ciência. Deus, ao existir, reduz-o a nada. Ela teve uma razão de existir na medida em que a ignorou, a negou. A partir do momento em que ela reconhece sua existência, ela deve se curvar diante de nós e se anular diante dele.
No entanto, existem na declaração do senhor Littré algumas palavras que, devidamente compreendidas, poderiam estragar a festa dos teólogos e dos metafísicos: A imensidão, tanto material quanto intelectual, diz‑se, associa‑se por um laço estreito aos nossos conhecimentos, e torna‑se, por essa aliança, em uma ideia positiva do mesmo gênero. Estas últimas palavras, ou não significam nada, ou significam isto:
A região imensa, infinita, que começa além do nosso mundo visível, é para nós inacessível, não porque seja de uma natureza diferente ou porque esteja submetida a leis contrárias às que governam nosso mundo natural e social[23], mas unicamente porque os fenômenos e as coisas que preenchem esses mundos desconhecidos, e que constituem a realidade, estão fora do alcance de nossos sentidos. Não nos é possível compreender coisas das quais não podemos determinar, constatar a existência real. Tal é o único caráter dessa inacessibilidade. Mas, sem poder conceber a menor ideia das formas e das condições de existência das coisas e dos seres que preenchem esses mundos, sabemos perfeitamente bem que não pode haver lugar neles para um animal que se chama o absoluto; ainda que fosse apenas por essa simples razão, que estando excluído de nosso mundo visível, por mais imperceptível que seja o ponto formado por este último na imensidão dos espaços, seria um absoluto limitado, ou seja, um não-absoluto, a menos que exista da mesma maneira que entre nós: que não seja neles, assim como aqui, um ser perfeitamente invisível e imperceptível. Mas então nos cabe, ao menos, um fragmento, e por esse fragmento podemos julgar o resto. Depois de tê-lo buscado bem, depois de tê-lo considerado atentamente e estudado em sua procedência histórica, chegamos a esta convicção: que o absoluto é um ser absolutamente nulo, um puro fantasma, criado pela imaginação infantil dos homens primitivos e iluminado pelos teólogos e pelos metafísicos; nada mais que um milagre do espírito humano, que buscava a si mesmo, através de seu desenvolvimento histórico. Nulo é o absoluto na Terra, nulo deve ser também na imensidão dos espaços. Em uma palavra, o absoluto, deus, não existe e não pode existir.
Mas, a partir do momento em que o fantasma divino desaparece e que não pode mais se interpor entre nós e essas regiões desconhecidas da imensidão, por mais desconhecidas que nos sejam e que o serão eternamente, essas regiões já não nos oferecem nada de estranho, porque, mesmo sem conhecer a forma das coisas, dos seres e dos fenômenos que se produzem na imensidão, sabemos que não podem ser nada além de produtos materiais de causas materiais, e que, se houver inteligência, essa inteligência, como entre nós, será sempre, e em toda parte, um efeito; jamais a causa primeira. Tal é o único sentido que se pode associar, segundo minha opinião, à afirmação do senhor Littré, de que a imensidão, por sua aliança com o nosso mundo conhecido, se converte em uma ideia positiva e da mesma ordem.
Entretanto, nessa mesma declaração encontra-se uma expressão que me parece infeliz e que poderia alegrar os teólogos e os metafísicos: O que está além do saber — diz ele — seja materialmente, o fundo do espaço sem limites, seja intelectualmente, o encadeamento das causas sem fim, é inacessível. Por que esse encadeamento das causas sem fim parece mais imaterial ao senhor Littré do que o fundo do espaço sem limites? Todas as causas atuantes nos mundos conhecidos e desconhecidos, nas regiões infinitas do espaço, assim como em nosso globo terrestre, são materiais[24]; por que, então, parece dizer o senhor Littré e pensar que seu encadeamento não o seja? Ou, tomando a questão ao inverso, não sendo o intelectual outra coisa para nós senão a reprodução ideal por nosso cérebro da ordem objetiva e real, ou ainda da sucessão material de fenômenos materiais, por que a ideia do fundo do espaço sem limites não seria tão intelectual quanto a do encadeamento das causas sem fim?
Isso nos conduz a outra convicção, que os positivistas costumam opor à necessidade demasiado impaciente de saber, tanto dos metafísicos quanto dos materialistas. Refiro-me a essas questões da causa primeira e das causas finais, assim como da essência íntima das coisas, que são tantas formas diferentes de colocar uma mesma questão: a da existência ou da não existência de deus.
Os metafísicos, como se sabe, estão sempre em busca da causa primeira, ou seja, de um deus criador do mundo. Os materialistas dizem que essa causa nunca existiu. Os positivistas, sempre fiéis ao seu sistema de reticências e de afirmações ambíguas, contentam-se em dizer que a causa primeira não pode ser objeto da ciência, que é uma hipótese que a ciência não pode verificar. Quem tem razão, os materialistas ou os positivistas? Sem dúvida, os primeiros.
O que faz a filosofia positiva ao recusar-se a se pronunciar sobre essa questão da causa primeira? Nada. Ela apenas a exclui do domínio científico, declarando-a cientificamente inverificável, o que quer dizer, em simples linguagem humana, que essa causa primeira talvez exista, mas que o espírito humano é incapaz de concebê-la. Os metafísicos estarão, sem dúvida, descontentes com essa declaração porque, diferindo nisso dos teólogos, imaginam tê-la reconhecido com a ajuda das especulações transcendentes do pensamento puro. Mas os teólogos estarão muito contentes, porque sempre proclamaram que o pensamento puro nada pode sem a ajuda de Deus, e que, para reconhecer a causa primeira, o ato da criação divina, é preciso ter recebido a graça divina.
É assim que os positivistas abrem a porta para os teólogos e podem continuar sendo seus amigos na vida pública, apesar de fazerem ateísmo científico em seus livros. Agem como conservadores políticos e prudentes.
Os materialistas são revolucionários. Negam Deus, negam a causa primeira. Não se contentam em negá-la, provam seu absurdo e sua impossibilidade.
O que é a causa primeira? É uma causa de natureza absolutamente diferente daquela quantidade inumerável de causas reais, relativas, materiais, cuja ação mútua constitui a própria realidade do universo. Ela rompe, ao menos no passado, essa cadeia eterna de causas, sem começo e sem fim, da qual o próprio senhor Littré fala como de uma coisa segura, o que deveria obrigá-lo, me parece, a dizer também que a causa primeira, que seria necessariamente uma negação, é um absurdo. Mas ele não o diz. Diz muitas coisas excelentes, mas não quer dizer estas simples palavras, que teriam tornado impossível todo mal-entendido: A causa primeira nunca existiu, nunca pôde existir. A causa primeira é uma causa que ela mesma não tem causa ou que é causa de si mesma. É o absoluto que cria o universo, o puro espírito que cria a matéria: um absurdo.
Não repetirei os argumentos pelos quais creio ter demonstrado suficientemente que a suposição de um deus criador implica a negação da ordenação e da própria existência do universo. Mas, para provar que não calunio os positivistas, vou citar as próprias palavras do senhor Littré. Eis o que ele diz em sua Preface d’un disciple (Cours de Philosophie positive, de Augusto Comte, 2ª edição, tomo I):
O mundo é constituído pela matéria e pelas forças da matéria: a matéria, cuja origem e essência nos são inacessíveis; as forças, que são imanentes à matéria. Para além desses dois termos, matéria e força, a ciência positiva não conhece nada (pág. IX).
Eis aí uma declaração bem francamente materialista, não é verdade? Pois bem, encontram-se ali algumas palavras que parecem reabrir a porta ao mais ardente espiritualismo, não científico, mas religioso.
O que significam estas palavras, por exemplo: a origem e a essência da matéria nos são inacessíveis. Admitis, então, a possibilidade de que o que chamais de matéria possa ter tido uma origem, ou seja, um começo no tempo, ou ao menos na ideia, como dizem misticamente os panteístas, que ela possa ter sido produzida por algo ou por alguém: que não fosse outra matéria? Admitis a possibilidade de um deus?
Para os materialistas, a matéria, ou mais precisamente o conjunto universal das coisas passadas, presentes e futuras[25], não tem origem nem no tempo, nem numa ideia panteísta, nem em qualquer outro tipo de absoluto. O universo, isto é, o conjunto de todas essas coisas, com todas as suas propriedades que, sendo-lhes inerentes e formando propriamente sua essência, determinam as leis de seu movimento e de seu desenvolvimento, e são sucessivamente os efeitos e as causas dessa quantidade infinita de ações e reações parciais, cuja totalidade constitui a ação, a solidariedade e a causalidade universais; esse universo, essa eterna e universal transformação sempre reproduzida por essa infinidade de transformações parciais que se produzem em seu seio, esse ser absoluto e único, não pode ter nem começo nem fim. Todas as coisas atualmente existentes, inclusive os mundos conhecidos e desconhecidos, com tudo o que pôde desenvolver-se em seu seio, são os produtos da ação mútua e solidária de uma quantidade infinita de outras coisas, das quais uma parte, infinitamente numerosa, sem dúvida, não existe mais sob suas formas primitivas, pois seus elementos se combinaram em coisas novas, mas que, durante todo o tempo de sua existência, foram produzidas e mantidas da mesma maneira que o são hoje as coisas presentes, que o serão amanhã as coisas do futuro.
Para não recair na abstração metafísica, é preciso ter bem claro o que se entende por essa palavra causa, ou forças agentes e produtoras. É preciso compreender que as causas não têm existência ideal, separada, que não são nada fora das coisas reais, que não são nada mais que coisas. As coisas não obedecem a leis gerais, como gostam de dizer os positivistas, cujo doutrinarismo governamental busca um apoio natural nessa falsa expressão. As coisas, consideradas em seu conjunto, não obedecem a essas leis, porque fora delas não há ninguém nem nada que possa ditá-las e impô-las. Fora delas, essas leis não existem nem como abstração nem como ideia, porque todas as ideias não são senão a constatação e a explicação de um fato existente, e é preciso, para que se tenha a ideia de uma lei qualquer, que tenha existido primeiro o fato. Além disso, sabemos que todas as ideias, mesmo as das leis naturais, não se produzem nem existem como ideias, nesta Terra, senão no cérebro humano.
Portanto, se as leis, assim como as causas e as forças naturais, não têm nenhuma existência fora das coisas, devem, por pouco que existam — e sabemos por experiência que existem — devem, digo, existir no conjunto das coisas, constituir a sua própria natureza; não em cada coisa isoladamente tomada, mas em seu conjunto universal, que abarca todas as coisas passadas, presentes e futuras. Mas vimos que esse conjunto, que chamamos de universo ou de causalidade universal, não é outra coisa senão o resultado eternamente reproduzido de uma infinidade de ações e reações naturalmente exercidas pela quantidade infinita das coisas que nascem, existem e depois desaparecem em seu seio. O universo, não sendo senão uma resultante incessantemente reproduzida de novo, não pode ser considerado como um ditador, nem como um legislador. Ele mesmo não é nada fora das coisas que vivem e morrem em seu seio, ele só é por elas, graças a elas. Não pode impor-lhes leis. Donde resulta que cada coisa traz em si sua lei, isto é, o modo de seu desenvolvimento, de sua existência e de sua ação parcial. A lei, a ação parcial, essa forma ativa de uma coisa que constitui uma causa de coisas novas — três expressões diferentes para significar a mesma ideia — tudo isso é determinado pelo que chamamos de propriedades ou pela própria essência dessa coisa, tudo isso constitui propriamente a natureza.
Nada mais irracional, mais antipositivista, mais metafísico, o que digo, mais místico e mais teológico do que dizer, por exemplo, frases como esta: A origem e a essência da matéria nos são inacessíveis (pág. IX), ou ainda: O físico, sabiamente convencido, doravante, de que a intimidade das coisas lhe está fechada (pág. XXV). Era aceitável, ou ao menos desculpável da parte dos físicos especialistas, que, para se livrarem de todos os aborrecimentos que podiam causar-lhes as objeções por vezes muito insistentes dos metafísicos e dos teólogos, lhes respondessem evasivamente, e tinham, de certo modo, o direito de fazê-lo, porque todas as questões de alta filosofia lhes interessavam, de fato, muito pouco, e apenas lhes impediam de cumprir sua missão tão útil, que consistia no estudo exclusivo dos fenômenos reais e dos fatos. Mas da parte de um filósofo positivista que se atribui a missão de fundar todo o sistema da ciência humana sobre bases inquebrantáveis, e de determinar de uma vez por todas seus limites intransponíveis; da parte de um inimigo tão declarado de todas as teorias metafísicas, uma resposta semelhante, uma declaração impregnada no mais alto grau do espírito metafísico, é imperdoável.
Não quero falar dessa substância inacessível da matéria, porque a própria matéria, tomada nessa generalidade abstrata, é um fantasma criado pelo espírito humano, como tantos outros fantasmas, por exemplo o do espírito universal, que não é nem mais nem menos real, nem mais nem menos racional do que a matéria universal. Se por matéria em geral o senhor Littré entende a totalidade das coisas existentes, então direi que a substância dessa matéria está precisamente composta por todas essas coisas ou, se quiser decompô-las em corpos simples, conhecidos e desconhecidos, direi que a substância da matéria está composta pelo conjunto total desses elementos químicos primitivos e de todas as suas combinações possíveis. Mas provavelmente conhecemos apenas a menor parte dos corpos simples que constituem a matéria ou o conjunto material do nosso planeta; é provável também que muitos elementos que consideramos como corpos simples se decomponham em novos elementos que nos são ainda desconhecidos. Enfim, ignoraremos sempre uma infinidade de outros elementos simples, que, provavelmente, constituem o conjunto material dessa infinidade de mundos, para nós eternamente desconhecidos, que enchem a imensidão do espaço. Eis aí o limite natural diante do qual se detêm as investigações da ciência humana. Não é um limite metafísico, nem teológico, mas real e, como digo, inteiramente natural, e que nada tem de indigno nem de absurdo para nosso espírito. Não podemos conhecer senão aquilo que cai ao menos sob um de nossos sentidos, senão aquilo que podemos experimentar materialmente e cuja existência real constatamos. Dai-nos ao menos a coisa mais insignificante caída desses mundos invisíveis e, com esforço paciente, reconstruiremos esses mundos, ao menos em parte, como Cuvier, com a ajuda de alguns ossos dispersos de animais antediluvianos encontrados na Terra, reconstruiu seu organismo inteiro; como, com a ajuda dos hieróglifos encontrados nos monumentos egípcios e assírios, se reconstruíram as línguas que pareciam perdidas para sempre. Vi também em Boston e em Estocolmo dois indivíduos cegos de nascença, surdos e mudos, sem outro sentido que o tato, o olfato e o paladar, levados, por um prodígio de maravilhosa paciência, a compreender, com a ajuda do primeiro desses sentidos, o que lhes era dito por sinais traçados na palma da mão, e a expressar por escrito seus pensamentos sobre uma quantidade de coisas que não se poderiam compreender sem já possuir uma inteligência bastante desenvolvida. Mas compreender aquilo que nenhum de nossos sentidos pode perceber, e o que, de fato, não existe para nós como ser real — eis o que é realmente impossível, e contra o qual seria tão ridículo quanto inútil se rebelar.
E então, pode-se dizer de maneira tão absoluta que esses mundos não existem de modo algum para nós? Sem falar da obsessão contínua que essa imensidão de mundos desconhecidos exerce em nosso espírito, ação reconhecida e eloquentemente expressada pelo senhor Littré mesmo, e que certamente constitui uma relação real, posto que o espírito do homem, enquanto produto, manifestação ou função do corpo humano, é um ser real, podemos admitir que o nosso universo visível, esses milhares de estrelas que brilham em nosso firmamento, fica fora de toda solidariedade e de toda relação de ação mútua com o imenso universo infinito e para nós invisível? Nesse caso deveríamos considerar nosso universo como restrito, como contendo sua causa em si mesmo, como o absoluto, mas absoluto e limitado ao mesmo tempo é uma contradição, um absurdo demasiado evidente para que possamos nos deter nisso um instante. É evidente que nosso universo visível, por imenso que possa nos parecer, não é mais que um conjunto material, de corpo muito restrito, ao lado de uma quantidade infinita de outros universos semelhantes; que é, por conseguinte, um ser determinado, finito, relativo, e que, como tal, se encontra em relação necessária de ação e reação com todos esses universos invisíveis: que, produto dessa solidariedade ou dessa causalidade infinitamente universal, leva em si, sob a forma de suas próprias leis naturais e das propriedades que lhe são particularmente inerentes, toda a sua influência, seu caráter, sua natureza, toda a sua essência. De sorte que, ao reconhecer a natureza do nosso universo visível, estudamos implicitamente, indiretamente, a do universo infinito, e sabemos que nessa imensidade invisível há, sem que jamais o conheçamos, mas que nenhum desses mundos, nenhuma dessas coisas pode apresentar nada que seja contrário ao que chamamos leis do nosso universo. Sob este aspecto, deve existir em toda a imensidade uma similitude e até uma identidade absoluta da natureza, porque, de outro modo, nosso mundo não poderia existir. Não pode existir senão em conformidade incessante com a imensidade que compreende todos os universos desconhecidos.
Mas se dirá: nós também não conhecemos nem poderemos conhecer nunca o nosso universo visível? E, de fato, é muito pouco provável que a ciência humana chegue nunca a um conhecimento algo satisfatório dos fenômenos que passam em uma dessas inúmeras estrelas, das quais a mais próxima está quase duzentas e setenta e cinco mil vezes mais afastada da Terra que o nosso sol. Tudo que a observação científica pôde constatar até aqui é que todas essas estrelas são outros tantos sóis de sistemas planetários diferentes, e que esses sóis, inclusive o nosso, exercem entre si uma ação mútua, cuja determinação algo precisa, permanecerá ainda provavelmente por muito tempo, se não sempre, à margem do poder científico do homem. Eis o que diz Augusto Comte a respeito:
Os espíritos filosóficos aos quais o estudo profundo da astronomia é estranho, e os próprios astrônomos, não distinguiram suficientemente até aqui, no conjunto de nossas investigações celestes, o ponto de vista que posso chamar solar, aquele que merece verdadeiramente o nome de universal. Esta distinção me parece, no entanto, indispensável para separar claramente a parte da ciência que implica uma inteira perfeição, da que, por sua natureza, sem ser, sem dúvida, puramente conjectural, parece que tem que permanecer sempre no estágio da infância, ao menos comparativamente à primeira. A consideração do sistema solar do qual constituímos parte nos oferece evidentemente um assunto de estudo bem circunscrito, suscetível de uma exploração completa, e que deveria nos conduzir aos conhecimentos mais satisfatórios. Ao contrário, o pensamento do que chamamos o universo é por si mesmo necessariamente indefinido, de sorte que, por extensos que se queira supor no futuro nossos conhecimentos reais nesse gênero, não poderíamos jamais nos elevar à verdadeira concepção do conjunto dos astros[26]. A diferença é extremamente notável hoje, pois, ao lado da alta perfeição adquirida nos dois últimos séculos pela astronomia solar, não possuímos ainda, em astronomia sideral, o primeiro e o mais simples elemento de toda investigação positiva, a determinação dos intervalos estelares. Sem dúvida, temos razão ao presumir que essas distâncias não tardariam a ser avaliadas, ao menos entre certos limites, no que respeita a várias estrelas, e que, por consequência, conheceremos, por esses mesmos astros, outros diversos elementos importantes, que a teoria está disposta a deduzir desse primeiro dado fundamental, assim como suas massas, etc. Mas a importante distinção estabelecida acima não será afetada de nenhum modo. Quando conseguirmos, um dia, estudar completamente os movimentos relativos de algumas estrelas múltiplas, essa ação, que será, aliás, muito preciosa, sobretudo se pudesse concernir ao grupo do qual constitui parte nosso sol, provavelmente, não nos deixará, é evidente, menos afastados de um verdadeiro conhecimento do universo, que deve nos escapar inevitavelmente sempre.
Existe em todas as classes de nossas investigações, e sob todas as grandes relações, uma harmonia constante e necessária entre a extensão de nossas verdadeiras necessidades intelectuais e o alcance efetivo, atual ou futuro, de nossos conhecimentos reais[27]. Essa harmonia, que teria o cuidado de assinalar em todos os fenômenos, não é, como os filósofos vulgares tentaram acreditar, o resultado e o indício de uma causa final[28]. Deriva-se simplesmente desta necessidade evidente: só temos necessidade de conhecer aquilo que pode agir sobre nós de maneira mais ou menos direta[29]; e por outro lado, pelo próprio fato de que tal influência existe, converte-se para nós, mais cedo ou mais tarde, em um meio seguro de conhecimento[30]. Essa relação se verifica de maneira notável no caso presente. O estudo mais perfeito possível das leis do sistema solar do qual fazemos parte é, para nós, de um interesse capital, e também conseguimos dar-lhe uma precisão admirável. Ao contrário, se a noção exata do universo nos está necessariamente proibida, é evidente que ele nos oferece, excetuando nossa insaciável curiosidade, pouca importância real[31]. A aplicação cotidiana da astronomia mostra que os fenômenos internos de cada sistema solar, os únicos que podem afetar seus habitantes, são essencialmente independentes dos fenômenos mais gerais relativos à ação mútua dos sóis, aproximadamente como nossos fenômenos meteorológicos em relação aos fenômenos planetários[32]. Nossos quadros dos acontecimentos celestes, feitos há muito tempo, ao não considerarem no universo nenhum outro mundo além do nosso, harmonizam-se até aqui rigorosamente com as observações diretas, com algumas minuciosas precisões que hoje lhes acrescentamos. Essa independência, tão manifesta, encontra-se, por outro lado, plenamente explicada pela imensa desproporção que sabemos, com certeza, existir entre as distâncias mútuas dos sóis e os pequenos intervalos entre nossos planetas[33]. Se, conforme uma grande verossimilhança, os planetas providos de atmosfera, como Mercúrio, Vênus, Júpiter etc., estão efetivamente habitados, podemos considerar seus habitantes como uma espécie de concidadãos, posto que dessa espécie de pátria comum deve resultar necessariamente uma certa comunidade de pensamentos e até mesmo de interesses[34], enquanto que os habitantes dos outros sistemas solares devem ser para nós inteiramente estrangeiros[35]. É preciso, pois, separar mais profundamente do que se tem o hábito de fazer, o ponto de vista solar e o ponto de vista universal, a ideia de mundo (que compreende exclusivamente o primeiro) e a do universo; o primeiro é o mais elevado ao qual podemos realmente chegar, e é por isso o único que interessa de fato. Assim, sem renunciar inteiramente à esperança de obter alguns conhecimentos siderais, é preciso considerar a astronomia positiva como consistindo essencialmente no estudo geométrico e mecânico do pequeno número de corpos celestes que compõem o mundo do qual fazemos parte[36].
Mas se a ciência positiva, isto é, a ciência séria e única digna desse nome, fundada sobre a observação dos fatos reais e não sobre a imaginação de fatos ilusórios, deve renunciar ao conhecimento real ou um pouco satisfatório do universo, do ponto de vista astronômico, com mais razão deve renunciar a ele do ponto de vista físico, químico e orgânico: Nosso modo de observar — diz mais adiante Augusto Comte — compõe-se em geral de três procedimentos distintos: 1. A observação propriamente dita, isto é, o exame direto dos fenômenos, tais como se apresentam naturalmente; 2. A experiência, isto é, a contemplação do fenômeno, mais ou menos modificado pelas circunstâncias artificiais, que se estabeleceriam expressamente, visando uma exploração mais perfeita; 3. A comparação, isto é, a consideração gradual de uma continuação de casos análogos, nos quais os fenômenos se simplificam cada vez mais. A ciência dos corpos organizados, que estuda os fenômenos de acesso mais difícil, é também a única que permite verdadeiramente a reunião desses três meios. A astronomia, ao contrário, está necessariamente limitada ao primeiro. A experiência é ali evidentemente impossível, e quanto à comparação, existiria apenas se pudéssemos observar diretamente vários sistemas solares, o que não poderia acontecer. Resta, portanto, a simples observação, e esta, reduzida à menor extensão possível, pois não se refere mais do que a um só dos nossos sentidos (a visão). Medir os ângulos e contar o tempo transcorrido, tais são os únicos meios, de acordo com os quais nossa inteligência pode proceder à descoberta das leis que regem os fenômenos celestes (Tomo II páginas 13–14).
É evidente que nos será impossível para sempre, não só fazer experiências sobre os fenômenos físicos, químicos, geológicos e orgânicos que se produzem nos diferentes planetas do nosso sistema solar, sem falar já dos outros sistemas, e estabelecer comparações sobre todos os seus desenvolvimentos respectivos, mas ainda observá-los e constatar sua real existência, o que equivale a dizer que devemos renunciar à aquisição de um conhecimento que se aproxime sequer um pouco daquele que podemos e devemos alcançar no que diz respeito aos fenômenos do nosso globo terrestre. A inacessibilidade do universo para nós não é absoluta, mas sua acessibilidade, em comparação com a do nosso sistema solar, e ainda mais com a do nosso globo terrestre, é tão pequena que se assemelha à inacessibilidade absoluta.
Na prática, parece que ganhamos muito pouco por não ser absoluta. Mas do ponto de vista da teoria, o ganho é imenso. E se é imenso para a teoria, o é, por reflexo, também para a prática social da humanidade, porque toda teoria se traduz, cedo ou tarde, em instituições e em fatos humanos. Qual é, então, esse interesse e essa vantagem teórica da não inacessibilidade absoluta do universo? Que o bom deus, o absoluto, é expulso do universo, assim como do nosso globo terrestre.
Desde o momento em que o universo nos é algo acessível, ainda que em uma medida infinitamente pequena, deve ter uma natureza semelhante à do nosso mundo conhecido. Sua inacessibilidade não é causada por uma diferença de natureza, mas pelo extremo afastamento material desses mundos, que torna impossível a observação de seus fenômenos. Materialmente deslocados do nosso globo terrestre, são também tão exclusivamente materiais quanto este último. Materiais e materialmente iluminados pelo nosso sistema solar, essa infinidade de mundos desconhecidos encontram-se necessariamente, entre si e com ele, em relações incessantes de ação e reação mútua. Nasceram, existem, perecem e se transformam sucessivamente no seio da causalidade infinitamente universal, como nasceu, como existe e como certamente perecerá, cedo ou tarde, o nosso mundo solar, e as leis fundamentais dessa gênese ou dessa transformação material devem ser as mesmas, modificadas sem dúvida, segundo as infinitas circunstâncias que provavelmente diferenciam o desenvolvimento de cada mundo tomado isoladamente. Mas a natureza dessas leis e do seu desenvolvimento deve ser a mesma, por causa dessa ação e reação incessantes que se realizam durante a eternidade entre elas. De modo que, sem precisar atravessar os espaços intransponíveis, podemos estudar as leis universais dos mundos em nosso sistema solar, que, sendo seu produto, deve implicá-las todas, e ainda mais de perto, em nosso próprio planeta, o globo terrestre, que é o produto imediato do nosso sistema solar. Portanto, ao estudar e reconhecer as leis da Terra, podemos ter a certeza de estudar ao mesmo tempo e reconhecer as leis do universo.
E aqui podemos ir diretamente aos detalhes: observá-los, experimentá-los e compará-los. Por mais restrito que seja, em relação ao universo, nosso globo é ainda um mundo infinito. Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que nosso mundo, no sentido mais restrito dessa palavra, nossa Terra é igualmente inacessível, isto é, inesgotável. A ciência nunca chegará ao último termo, nem dirá sua última palavra. Isso deve nos desesperar? Pelo contrário, se a tarefa fosse limitada, ela esfriaria muito rápido o espírito do homem, que, uma vez por todas, diga-se o que se diga e faça-se o que se faça, nunca se sente tão feliz como quando pode romper e atravessar um limite. E muito felizmente para ele, a ciência da natureza é tal que, quanto mais limites o espírito atravessa, mais novos limites surgem que provocam sua curiosidade insaciável.
Há um limite que jamais o espírito científico poderá atravessar de maneira absoluta: é precisamente o que o senhor Littré chama de natureza íntima ou o ser íntimo das coisas, o que os metafísicos da escola de Kant chamam de coisa em si (das Ding an sich). Essa expressão, eu disse, é tão falsa quanto perigosa, porque, mesmo tendo o aspecto de excluir o absoluto do domínio da ciência, o reconstitui, o confirma como um ser real. Porque quando digo que há em todas as coisas existentes, as mais comuns, as mais conhecidas, inclusive eu mesmo, um fundo íntimo, inacessível, eternamente desconhecido, e que, como tal, fica necessariamente fora e absolutamente independente da sua existência fenomênica e dessas múltiplas relações de causas relativas a efeitos relativos que determinam e encadeiam todas as coisas existentes, estabelecendo entre elas uma espécie de unidade incessantemente reproduzida — afirmo por isso mesmo que todo esse mundo fenomênico, o mundo aparente, sensível, conhecido, não é mais do que uma espécie de envoltório exterior, uma crosta no fundo da qual se oculta como um núcleo o ser não determinado pelas relações externas, o ser não relativo, não dependente, o absoluto. Vê-se que o senhor Littré, provavelmente por causa de seu profundo desprezo pela metafísica, permaneceu ele mesmo na metafísica de Kant, que se perde, como se sabe, nessas antinomias ou contradições que pretendem ser inconciliáveis e insolúveis: do finito e do infinito, do exterior e do interior, do relativo e do absoluto, etc. É claro que ao estudar o mundo com a ideia fixa da insolubilidade dessas categorias que parecem, por um lado, absolutamente opostas, e por outro, tão estreitamente, tão absolutamente encadeadas que não se pode pensar numa sem pensar imediatamente na outra, é claro, digo, que se aproximar do mundo existente com um preconceito metafísico na cabeça será sempre incapaz de compreender algo da natureza das coisas. Se os positivistas franceses tivessem desejado levar em consideração a crítica preciosa que Hegel, em sua Lógica, que é certamente um dos livros mais profundos escritos em nosso século, fez de todas essas antinomias kantianas, teriam se assegurado sobre essa pretensa impossibilidade para reconhecer a natureza íntima das coisas. Teriam compreendido que nenhuma coisa pode realmente ter em seu interior uma natureza que não se manifeste em seu exterior; ou, como disse Goethe, em resposta a não sei mais qual poeta alemão que pretendia que nenhum espírito criado pudesse penetrar até o interior da natureza (In’s Innere der Natur dringt kein erschaffene Geist):
Já faz vinte anos que ouço repetir a mesma coisa,
e a amaldiçoo, mas em segredo.
A natureza não tem nem núcleo nem casca;
ela é tudo ao mesmo tempo.
Schon zwanzig Jahre hör’ ich’s wiederholen,
Und fluche drauf, aber verstohlen.
Natur hat weder Kern noch Schale;
Alles ist sie auf einem Male.
Peço perdão ao leitor por esta longa dissertação sobre a natureza das coisas. Mas trata-se de um interesse supremo: o da exclusão real e completa, o da destruição final do absoluto, que, desta vez, não se contenta apenas em perambular como um fantasma lamentável pelos confins do nosso mundo visível, na imensidão infinita do espaço, mas que, animado pela metafísica completamente kantiana dos positivistas, quer se infiltrar sorrateiramente no fundo de todas as coisas conhecidas, de nós mesmos, e fincar sua bandeira no próprio seio do nosso mundo terrestre.
A intimidade das coisas, dizem os positivistas, nos é inacessível. O que entendem por essas palavras: a intimidade das coisas? Para nos esclarecer sobre esse ponto, vou citar integralmente a frase do senhor Littré:
O físico, prudentemente convencido de agora em diante de que a intimidade das coisas lhe está vedada, não se deixa distrair por quem lhe pergunta por que os corpos são quentes e pesados; buscaria isso em vão, e não o busca. O mesmo ocorre no domínio biológico: não há lugar para perguntar por que a substância viva se constitui em formas nas quais os aparelhos estão, com maior ou menor exatidão, ajustados ao fim, à função. Esse ajuste é uma das propriedades imanentes dessa substância, assim como alimentar-se, contrair-se, sentir, pensar. Essa visão, estendida às perturbações, as abarca sem dificuldade; e o espírito que deixa de se prender à busca da impossível conciliação entre fatalidades e finalidades, não encontra nada que seja ininteligível, ou seja, contraditório, daquilo que é proporcionado pelo mundo (págs. XXV-XXVI).
Eis, sem dúvida, uma maneira bem cômoda de filosofar, e um meio seguro de evitar todas as contradições possíveis. Pergunta-se, com relação a um fenômeno: Por que é assim? E responde-se: Porque é assim. Após isso, não resta senão uma única coisa a fazer: constatar a realidade do fenômeno e sua ordem de coexistência ou de sucessão com outros fenômenos mais ou menos ligados a ele; assegurar-se, pela observação e pela experiência, de que essa coexistência e essa sucessão se reproduzem nas mesmas circunstâncias, em toda parte e sempre, e, uma vez adquirida essa convicção, transformá-las em uma lei geral. Compreendo que os especialistas científicos possam — e devam — fazer isso; porque, se agissem de outro modo, se intercalassem suas próprias ideias na ordem dos fatos, a filosofia positiva correria sério risco de não ter por base de seus raciocínios senão fantasias mais ou menos engenhosas, e não fatos. Mas não compreendo que um filósofo que deseje compreender a ordem dos fatos possa se contentar com tão pouco. Compreender é muito difícil, eu sei, mas é indispensável se se deseja fazer filosofia séria.
A um homem que me perguntasse: Qual é a origem e a substância da matéria em geral, ou melhor, do conjunto das coisas materiais, do universo? Eu não me contentaria em responder de forma doutoral, e de maneira tão ambígua que poderia me fazer suspeito de teologismo: A origem e a essência da matéria nos são inacessíveis. Eu lhe perguntaria primeiro de qual matéria ele deseja falar. Trata-se somente do conjunto dos corpos materiais, compostos ou simples, que constituem nosso globo, e, em sua maior extensão, nosso sistema solar, ou de todos os corpos conhecidos e desconhecidos cujo conjunto infinito e indefinido forma o universo?
Se for da primeira, direi que a matéria do nosso globo terrestre certamente tem uma origem, pois houve uma época, tão remota que nem ele nem eu podemos imaginar, mas uma época determinada em que nosso planeta não existia; nosso planeta nasceu no tempo, e é preciso buscar a origem da nossa matéria planetária na matéria do nosso sistema solar. Mas, não sendo nosso sistema solar em si um mundo absoluto nem infinito, e sim muito restrito, circunscrito, e não existindo, por conseguinte, mais que relações incessantes e reais de ação e reação mútuas com um infinito de mundos semelhantes, não pode ser um mundo eterno. Que é certo que, compartilhando a sorte de tudo que goza de uma existência determinada e real, deverá desaparecer um dia, em não sei quantos milhões de milhões de séculos, e que, como nosso planeta, sem dúvida muito antes dele, deve ter tido um começo no tempo; de onde resulta que é preciso buscar a origem da matéria solar na matéria universal.
Agora, se me pergunta qual foi a origem da matéria universal, desse conjunto infinito de mundos que chamamos universo infinito, responderei que sua pergunta contém um absurdo; que me sugere, por assim dizer, a resposta absurda que gostaria de ouvir de mim. Essa questão se traduz na seguinte: Houve um tempo em que a matéria universal, o universo infinito, o ser absoluto e único não existiam? Ou não existia mais que a ideia, e necessariamente, depois de ter sido durante uma eternidade infinita no passado um deus preguiçoso ou um deus impotente, um deus inacabado, teve repentinamente a ideia — e sentiu num momento dado, em uma época determinada no tempo, o poder e a vontade — de criar o universo? Que, depois de ter sido durante uma eternidade um deus não criador, se tornou, por não sei qual milagre de desenvolvimento interior, um deus criador?
Tudo isso está necessariamente contido nessa questão da origem da matéria universal. Mesmo admitindo por um instante esse absurdo de um deus criador, chegaríamos forçosamente a reconhecer a eternidade do universo. Porque deus não é deus senão se lhe supõe a absoluta perfeição; mas a absoluta perfeição exclui toda ideia, toda possibilidade de desenvolvimento. Deus não é deus senão porque sua natureza é imutável. O que é hoje, foi ontem e será sempre. É um deus criador e onipotente hoje, por conseguinte, o foi em toda a eternidade; portanto, não é em uma época determinada, mas em toda a eternidade que criou os mundos, o universo. Por conseguinte, o universo é eterno. Mas, sendo eterno, não foi criado e nunca houve um deus criador.
Nessa ideia de um deus criador, há essa contradição: que toda criação, ideia e fato tomados da experiência humana, supõe uma época determinada no tempo, enquanto que a ideia de deus implica a eternidade: daí resulta um absurdo evidente. O mesmo raciocínio se aplica também ao absurdo de um deus organizador e legislador dos mundos. Em uma palavra, a ideia de deus não suporta a menor crítica. Mas, ao cair deus, o que resta? A eternidade do universo infinito.
Eis aí, portanto, uma verdade concernente ao absoluto e que, no entanto, possui o caráter de uma certeza absoluta: o universo é eterno e não foi criado por ninguém. Essa verdade é muito importante para nós, porque reduz a nada, de uma vez por todas, a questão da origem da matéria universal que o senhor Littré considera tão difícil de resolver e destrói, ao mesmo tempo, pela raiz, a ideia de um ser espiritual absoluto preexistente ou coexistente, a ideia de Deus.
No conhecimento do absoluto, podemos avançar um passo, conservando ainda a garantia de uma certeza absoluta.
Lembremo-nos de que há uma verdadeira eternidade no mundo que existe. É-nos muito difícil imaginá-la, a tal ponto que a própria ideia mais abstrata de eternidade encontra dificuldade para alojar-se em nossa pobre cabeça, ah! Tão rapidamente passageira. Contudo, é certo que existe uma verdade irrefutável que se impõe com todo o caráter de uma necessidade absoluta ao nosso espírito. Não nos é permitido recusá-la. Eis, portanto, posto de lado de uma vez o bom Deus, a segunda questão que se apresenta a nós: nessa eternidade que se abre infinita e ilimitada atrás do momento presente, houve alguma época determinada no tempo em que começou pela primeira vez a organização da matéria universal, ou do ser, em mundos separados e organizados? E houve um tempo em que toda a matéria universal pôde ter permanecido no estado de matéria capaz de organização, mas ainda não organizada?
Suponhamos que, antes de poder organizar-se espontaneamente em muitos separados, a matéria universal tenha tido de passar por não sei que quantidade inumerável de desenvolvimentos prévios, dos quais jamais poderíamos formar sequer uma sombra da sombra de qualquer ideia. Esses desenvolvimentos podem ter requerido um tempo que, por sua imensidão relativa, ultrapassa tudo o que podemos imaginar. Mas como se trata, desta vez, de desenvolvimentos materiais, e não de um absoluto imutável, esse tempo, por mais imenso que fosse, foi necessariamente um tempo determinado e, como tal, infinitamente menor que a eternidade. Chamemos de X todo o tempo decorrido desde a primeira formação suposta dos mundos no universo até o momento presente; chamemos de Y todo o tempo que duraram esses desenvolvimentos prévios da matéria universal antes que ela pudesse organizar-se em mundos separados; X mais Y representa um período de tempo que, por mais relativamente imenso que seja, é uma quantidade determinada e, portanto, infinitamente inferior à eternidade. Chamemos de Z sua soma (X mais Y igual a Z); pois bem, depois de Z, resta sempre a eternidade. Estendam X e Y quanto quiserem, multipliquem ambos pelos números mais imensos que possam imaginar ou escrever com a letra mais comprimida numa linha do comprimento da distância da Terra à estrela visível mais distante; vocês aumentarão Z na mesma proporção, mas, por mais que a façam crescer, por mais imensa que venha a ser, ela será sempre menor que a eternidade, terá sempre atrás de si a eternidade.
Qual é a conclusão à qual vocês seriam levados? Que, durante uma eternidade, a matéria universal — essa matéria cuja ação espontânea unicamente pôde criar e organizar os mundos, uma vez que vimos desaparecer o fantasma do criador e do ordenador divino — permaneceu inerte, sem movimento, sem desenvolvimento prévio, sem ação; e que, depois, em um dado momento determinado, sem nenhuma razão, nem por alguém fora dela, nem por ela mesma, dentro da eternidade, pôs-se repentinamente a mover-se, a desenvolver-se, a agir, sem que nenhuma causa, seja exterior ou interior, a tenha impelido? Isso é um absurdo tão evidente quanto o de um deus criador. Mas vocês são forçados a aceitar esse absurdo, quando supõem que a organização dos mundos no universo teve um começo determinado qualquer, por mais imensamente distante que vocês representem esse começo em relação ao momento presente. De onde resulta, com uma evidência absoluta, que a organização do universo ou da matéria universal em mundos separados é tão eterna quanto seu próprio ser.
Eis aí, portanto, uma segunda verdade absoluta que carrega todas as garantias de uma certeza perfeita: o universo é eterno e sua organização também o é. E nesse universo infinito não há o menor lugar para o bom Deus! Já é muito, não é verdade? Mas vejamos se não podemos dar ainda mais um passo adiante.
O universo está organizado eternamente numa infinitude de mundos separados e que permanecem uns fora dos outros, mas, no entanto, conservam entre si relações necessárias e incessantes. É o que Auguste Comte chama de ação mútua dos sóis, ação que nenhum homem jamais pôde experimentar, nem sequer observar, mas sobre a qual o próprio ilustre fundador da filosofia positiva ele, que é tão severo com tudo o que traz o caráter de uma hipótese inverificável fala, no entanto, como de um fato positivo que não pode ser objeto de nenhuma dúvida. E fala assim porque esse fato se impõe imperiosamente, por si só e com uma necessidade absoluta, ao espírito humano, desde o momento em que esse espírito se liberta do jugo embrutecedor do fantasma divino.
A ação mútua dos sóis resulta necessariamente de sua existência separada. Por imensos que possam ser supondo que a imensidão real dos maiores ultrapasse tudo o que podemos imaginar em extensão e tamanho todos são, no entanto, seres determinados, relativos, finitos, e, como tais, nenhum pode carregar exclusivamente em si a causa e a base de sua própria existência; nenhum existe nem pode existir senão por essas relações incessantes, ou por sua ação e reação mútuas, seja de modo imediato e direto, seja indireto, com todos os demais. Essa cadeia infinita de ações e reações perpétuas constitui a verdadeira unidade do universo infinito. Mas essa unidade universal não existe, em sua plenitude infinita, como uma unidade concreta e real que compreenda efetivamente toda essa quantidade ilimitada de mundos com a inexaurível riqueza de seus desenvolvimentos; ela não existe, digo, e não se manifesta como tal para ninguém. Não pode existir para o universo, que, não sendo mais do que uma unidade coletiva eternamente resultante da ação mútua dos mundos espalhados na imensidão sem limites do espaço, não possui nenhum órgão para concebê-la; e não pode existir para ninguém fora do universo, porque fora do universo não há nada. Ela só existe, como ideia ao mesmo tempo necessária e abstrata, na consciência do homem.
Essa ideia é o último grau do saber positivo, o ponto em que a positividade e a abstração absoluta se encontram. Um passo além nessa direção, e caímos nas fantasmagorias metafísicas e religiosas. Por conseguinte, é proibido, sob pena de absurdidade, fundar qualquer coisa sobre essa ideia. Sendo o termo último do saber humano, ela não pode servir-lhe de base.
Uma determinação importante e final que resulta, não dessa ideia, mas do fato da existência de uma quantidade infinita de mundos separados que exercem incessantemente uns sobre os outros uma ação mútua que constitui propriamente a existência de cada um, é que cada um desses mundos não é eterno; todos tiveram um começo e todos terão um fim, por mais distantes que estejam uns dos outros. No seio dessa causalidade universal que constitui o ser eterno e único, o universo, os mundos nascem, se formam, existem, exercem uma ação conforme a sua natureza; depois se desorganizam, morrem ou se transformam, assim como fazem as menores coisas aqui na Terra. Em toda parte reina a mesma lei, a mesma ordem, a mesma natureza. Nunca poderemos saber nada além disso. Uma infinidade de transformações que ocorreram na eternidade passada, uma infinidade de outras que se produzem neste exato momento, na imensidão do espaço, nos serão eternamente desconhecidas. Mas sabemos que em toda parte está presente a mesma natureza, o mesmo ser. Que isso nos baste!
Não nos perguntaremos mais, portanto, qual é a origem da matéria universal — ou, melhor dizendo, do universo considerado como a totalidade de um número infinito de mundos separados e mais ou menos organizados, porque essa questão supõe um disparate: a criação. E porque sabemos que o universo é eterno. Mas poderíamos perguntar: Qual é a origem do nosso mundo solar? Porque sabemos, com certeza, que ele nasceu, que se formou numa época determinada, no tempo. Só que, tão logo tivermos formulado essa pergunta, teremos de reconhecer imediatamente que ela não tem para nós solução possível.
Reconhecer a origem de uma coisa é reconhecer todas as causas, ou melhor, todas as coisas cuja ação simultânea e sucessiva, direta ou indireta, a produziram. É evidente que, para determinar a origem do nosso sistema solar, deveríamos conhecer até o último detalhe não apenas toda aquela infinidade de mundos que existiam na época de seu nascimento e cuja ação coletiva, direta ou indireta, o produziu, mas também todos os mundos passados e todas as ações cósmicas das quais esses mesmos mundos foram produto. Ou seja, a origem do nosso sistema solar se perde na cadeia de causas ou de ações infinita no espaço, eterna no passado e, portanto, por mais real ou material que seja, jamais poderemos determiná-la.
Mas, se nos é impossível reconhecer no passado eterno e na imensidão infinita do espaço a origem do nosso sistema solar, ou seja, a soma indefinida das causas cuja ação combinada o produziu e continuará a reproduzi-lo enquanto não desaparecer, poderemos investigar essa origem ou essas causas em seu efeito, isto é, na realidade presente do nosso sistema solar, que ocupa na imensidão do espaço uma extensão circunscrita e, portanto, determinável, senão já determinada. Pois notem bem: uma causa só é causa quando se realiza em seu efeito. Uma causa que não se tenha traduzido num produto real não seria mais do que uma causa imaginária, um ser sem realidade; de onde resulta que toda coisa, sendo necessariamente produzida por uma soma indefinida de causas, carrega em si a combinação real de todas essas causas e, na realidade, não é nada mais do que essa combinação efetiva das causas que a produziram. Essa combinação é todo o seu ser real, sua intimidade, sua substância.
A questão concernente à substância da matéria universal ou do universo contém, portanto, uma suposição absurda: a da origem, da causa primeira dos mundos, ou seja, da criação. Sendo toda substância nada mais do que a realização efetiva de um número indefinido de causas combinadas numa ação comum, para explicar a substância do universo seria necessário investigar sua origem ou suas causas e essa origem não existe, pois é eterna. O mundo universal existe: ele é o ser absoluto, único e supremo, fora do qual nada poderia existir; como deduzi-lo, então, de alguma coisa? O pensamento de se elevar acima ou de se colocar fora do ser único implica o nada e seria necessário poder fazê-lo para deduzir sua substância de uma origem que não estivesse nele. Tudo o que podemos fazer é constatar primeiramente esse ser único e supremo, que se impõe a nós com absoluta necessidade, e depois estudar seus efeitos no mundo que nos é realmente acessível: primeiro em nosso sistema solar, mas depois e sobretudo em nosso globo terrestre.
Posto que a substância de uma coisa nada mais é do que a combinação real ou a realização de todas as causas que a produziram, é evidente que, se pudermos reconhecer a substância do nosso mundo solar, reconheceremos ao mesmo tempo todas as suas causas, ou seja, toda aquela infinidade de mundos cuja ação combinada, direta ou indireta, se realizou em sua criação — reconheceríamos o universo.
Eis-nos, então, chegados a um círculo vicioso: para reconhecer as causas universais do mundo solar, devemos reconhecer sua substância; mas para reconhecer esta última, devemos conhecer todas essas causas. A essa dificuldade, que num primeiro momento parece insolúvel, há, no entanto, uma saída, e eis qual é: A natureza íntima ou a substância de uma coisa não se reconhece apenas pela soma ou pela combinação de todas as causas que a produziram; ela se reconhece igualmente pela soma de suas diferentes manifestações, ou de todas as ações que exerce no exterior.
Toda coisa não é senão aquilo que faz: seu fazer, sua manifestação exterior, sua ação incessante e múltipla sobre todas as coisas que estão fora dela, é a exposição completa de sua natureza, de sua substância, ou daquilo que os metafísicos, o senhor Littré entre eles, chamam de seu ser íntimo. Ela não pode ter nada que não esteja em seu exterior: em uma palavra, sua ação e seu ser são um só.
Poder-se-ia estranhar que se fale da ação de todas as coisas, mesmo as aparentemente mais inertes, tão habituados estamos a não associar o sentido dessa palavra senão aos atos acompanhados de certa agitação visível de movimentos aparentes, e sobretudo da consciência, animal ou humana, daquele que age. Mas, falando propriamente, não existe na natureza um só ponto que esteja em repouso nunca, pois tudo se encontra, em cada momento, na infinitesimal parte de cada segundo, agitado por uma ação e uma reação incessantes. O que chamamos imobilidade, repouso, não passam de aparências grosseiras, noções completamente relativas. Na natureza tudo é movimento e ação: ser não significa outra coisa senão fazer. Tudo o que chamamos propriedades das coisas: propriedades mecânicas, físicas, químicas, orgânicas, animais, humanas não são senão diferentes modos de ação. Toda coisa só é determinada ou real pelas propriedades que possui; e só as possui na medida em que as manifesta, pois suas propriedades determinam suas relações com o mundo exterior, ou seja, seus diferentes modos de ação sobre o mundo exterior; donde resulta que toda coisa só é real na medida em que se manifesta, que age. A soma de suas diferentes ações, eis aí todo o seu ser[37].
Que significam, pois, estas palavras: O físico, prudentemente convencido, doravante, de que a intimidade das coisas lhe está vedada, etc? As coisas nada mais fazem do que se mostrar ingenuamente, plenamente, em toda a sua integridade, a quem apenas tem interesse em observá-las, sem preconceito e sem ideia fixa metafísica, teológica; e o físico da escola positivista, que procura o meio-dia às quatorze horas, como se diz, e nada compreendendo nessa ingênua simplicidade das coisas reais, das coisas naturais, declarará gravemente que há em seu seio um ser íntimo que conservam dissimuladamente para si, e os metafísicos, os teólogos, jubilosos com essa descoberta, que aliás lhe haviam sugerido, se apoderarão dessa intimidade, desse em-si das coisas, para alojar nele o bom deus.
Toda coisa, todo ser existente no mundo, seja qual for sua natureza, tem, pois, este caráter geral: ser o resultado imediato da combinação de todas as causas que contribuíram para produzi-lo, direta ou indiretamente; o que implica, por via de transmissões sucessivas, a ação, por mais distante ou antiga que seja, de todas as causas passadas e presentes ativas no universo infinito; e como todas as causas ou ações que se produzem no mundo são manifestações de coisas realmente existentes; e como toda coisa só existe realmente na manifestação de seu ser, cada uma transmite, por assim dizer, seu próprio ser à coisa cuja ação especial contribui para produzir; donde resulta que cada coisa, considerada como um ser determinado, nascido no espaço e no tempo, ou como produto, carrega em si a impressão, o traço, a natureza de todas as coisas que existiram e que existem atualmente no universo, o que implica necessariamente a identidade da matéria ou do ser universal.
Não sendo cada coisa, na integridade de seu ser, senão um produto, suas propriedades e seus modos diferentes de ação sobre o mundo exterior, que, como vimos, constituem todo o seu ser, são necessariamente também produtos. Como tais, não são propriedades autônomas, pois não se derivam senão da própria natureza das coisas, independentemente de toda causalidade exterior. Na natureza ou no mundo real, não existe ser independente, nem propriedade independente. Tudo está ali, ao contrário, em dependência mútua. Derivando-se de uma causalidade exterior, as propriedades de uma coisa lhe são, por conseguinte, impostas; constituem, consideradas em conjunto, seu modo de ação obrigatório, sua lei. Por outro lado, não se pode propriamente dizer que essa lei seja imposta à coisa, porque essa expressão suporia uma existência da coisa, prévia ou separada de sua lei, enquanto que aqui a lei, a ação, a propriedade constituem o próprio ser da coisa. Seguindo-a, manifesta sua própria natureza íntima, existe. Donde resulta que todas as coisas reais, em seu desenvolvimento e em todas as suas manifestações, são fatalmente dirigidas por suas leis, mas que essas leis lhes são tão pouco impostas, que constituem, ao contrário, todo o seu ser[38].
Descobrir, coordenar e compreender as propriedades, ou os modos de ação ou as leis de todas as coisas existentes no mundo real, tal é, pois, o verdadeiro e único objeto da ciência.
Até que ponto é realizável esse programa pelo homem?
O universo nos é de fato inacessível. Mas estamos seguros agora de encontrar sua natureza idêntica em toda parte e suas leis fundamentais em nosso sistema solar, que é seu produto. Também não podemos remontar até a origem, isto é, até as causas produtoras do nosso sistema solar, porque essas causas se perdem na infinitude do espaço e de um passado eterno. Mas podemos estudar a natureza desse sistema em suas próprias manifestações. E mesmo aqui nos deparamos com um limite que não poderemos ultrapassar. Nunca poderemos observar, nem por consequência reconhecer a ação do nosso mundo solar sobre a infinita quantidade de mundos que preenchem o universo. No máximo, poderemos reconhecer alguma vez, de maneira excessivamente imperfeita, algumas relações que existem entre o nosso sol e alguns dos sóis incontáveis que brilham no firmamento. Mas esses conhecimentos imperfeitos, misturados necessariamente a hipóteses pouco verificáveis, nunca poderiam constituir uma ciência séria. Será forçoso, portanto, nos contentarmos mais ou menos com o conhecimento cada vez mais aperfeiçoado e detalhado das relações interiores do nosso sistema solar. E mesmo aqui nossa ciência, que não merece esse nome senão na medida em que se funda na observação dos fatos, e sobretudo na constatação real de sua existência, e depois dos modos reais de sua manifestação e desenvolvimento, encontra um novo limite que parece ter que permanecer sempre intransponível: é a impossibilidade de constatar, e por consequência também de observar, os fatos físicos, químicos, orgânicos, inteligentes e sociais que acontecem em alguns planetas que constituem parte do nosso sistema solar, excetuada a nossa Terra, que está aberta às nossas investigações.
A astronomia chegou a determinar as trajetórias percorridas por cada planeta do nosso sistema ao redor do sol, a rapidez do seu movimento duplo, sua forma, seu volume e seu peso. Isso é imenso. Por outro lado, pelas razões mencionadas, é indubitável para nós que as substâncias que os constituem devem ter todas as propriedades físicas das nossas substâncias terrestres. Mas quase nada sabemos sobre sua formação geológica, menos ainda sobre sua organização vegetal e animal, que provavelmente ficará para sempre inacessível à curiosidade do homem. Fundando-nos nessa verdade, doravante incontestável para nós, de que a matéria universal é profundamente idêntica em toda parte e sempre, devemos necessariamente concluir que sempre e em toda parte, nos mundos mais infinitamente distantes e nos mais próximos do universo, todos os seres são corpos materiais pesados, quentes, luminosos, elétricos, e que em toda parte se decompõem em corpos ou elementos químicos simples, e que por consequência, onde quer que se encontrem condições de existência e desenvolvimento idênticas, ao menos semelhantes, devem ocorrer fenômenos semelhantes. Essa certeza é suficiente para nos convencer de que em nenhuma parte podem se produzir fenômenos e fatos contrários ao que sabemos das leis da natureza; mas é incapaz de nos dar a menor ideia sobre os seres, necessariamente materiais, que podem existir nos outros mundos e até nos planetas do nosso próprio sistema solar. Nessas condições, o conhecimento científico desses mundos é impossível, e devemos renunciar a ele de uma vez por todas.
Se é verdade, como supõe Laplace, cuja hipótese ainda não foi suficiente nem universalmente aceita, se é verdade que todos os planetas do nosso sistema se formaram da matéria solar, é evidente que uma identidade muito mais considerável ainda deve existir entre os fenômenos de todos os planetas desse sistema e entre eles e os do nosso globo terrestre. Mas essa evidência ainda não poderia constituir a verdadeira ciência, porque a ciência é como São Tomás: deve apalpar e ver para aceitar um fenômeno ou um fato, e as construções a priori, as hipóteses mais racionais, não têm valor para ela senão quando se verificam mais tarde por demonstrações a posteriori. Todas essas razões nos remetem, para o conhecimento pleno e concreto, à Terra.
Ao estudar a natureza do nosso globo terrestre, estudamos ao mesmo tempo a natureza universal, não na multiplicidade infinita de seus fenômenos, que nos serão sempre desconhecidos, mas em sua substância e em suas leis fundamentais, sempre e em toda parte idênticas. Eis o que deve e pode nos consolar da nossa ignorância forçada sobre os desenvolvimentos inumeráveis dos infinitos mundos dos quais jamais teremos uma ideia, e nos assegurar ao mesmo tempo contra todo perigo de um fantasma divino que, se fosse de outro modo, poderia vir-nos de outro mundo.
Somente na Terra pode a ciência pôr um pé seguro. Aqui está em sua casa e anda em plena realidade, tendo todos os fenômenos, por assim dizer, sob sua mão, sob seus olhos, podendo constatá-los, palpá-los. Mesmo os desenvolvimentos passados, tanto materiais quanto intelectuais, do nosso globo terrestre, apesar de que os fenômenos que os acompanharam tenham desaparecido, estão abertos às nossas investigações científicas. Os fenômenos que se sucederam já não estão ali, mas ficaram suas marcas visíveis e distintas; tanto as dos desenvolvimentos passados das sociedades humanas, quanto as dos desenvolvimentos orgânicos e geológicos do nosso globo terrestre. Ao estudar essas marcas, podemos reconstruir, de certo modo, seu passado.
Quanto à formação primeira do nosso planeta, prefiro deixar falar o gênio tão profundo e cientificamente desenvolvido de Augusto Comte[39] do que minha própria insuficiência, demasiado vivamente reconhecida em tudo que se refere às ciências naturais:
No entanto, devo proceder ao exame geral do que implica um certo caráter de positividade nas hipóteses cosmogônicas. Será, sem dúvida, supérfluo estabelecer especialmente sobre isso, este preliminar indispensável: que toda ideia de criação propriamente dita deve aqui ser radicalmente desviada, porque, por sua natureza, é inteiramente imperceptível[40] e a única investigação razoável, se realmente acessível, deve referir-se unicamente às transformações sucessivas do céu, limitando-se, ao menos no princípio, àquela que pôde produzir imediatamente seu estado atual... A questão real consiste, pois, em decidir se o estado presente do céu oferece alguns indícios apreciáveis de um estado anterior mais simples, cujo caráter geral seja suscetível de ser determinado. A esse respeito, a separação fundamental que me ocupei em constituir solidamente entre o estudo necessariamente inacessível do universo e o estudo necessariamente muito positivo do nosso mundo solar, introduz naturalmente uma distinção profunda que restringe muito o campo das investigações efetivas. Concebe-se, em efeito, que possamos conjecturar, com alguma esperança de sucesso, sobre a formação do sistema solar de que fazemos parte...[41]
[1]Como todo indivíduo humano, em cada momento de sua vida, ele nada mais é do que o resultado de todas as causas que atuaram em seu nascimento e também antes de seu nascimento, combinadas com todas as condições de seu desenvolvimento subsequente, bem como com todas as circunstâncias que atuam nele naquele momento.
[2]Falo, naturalmente, do espírito, da vontade e dos sentimentos que conhecemos, dos únicos que podemos conhecer: os do animal e do homem o qual, de todos os animais da Terra, é — do ponto de vista geral, não do de cada faculdade tomada isoladamente — sem dúvida o mais perfeito. Quanto ao espírito, à vontade e aos sentimentos extrahumanos e extramundanos do ser de que nos falam os teólogos e os metafísicos, devo confessar minha ignorância, porque nunca os encontrei e ninguém, que eu saiba, teve relações diretas com eles. Mas se julgarmos de acordo com o que nos dizem esses senhores, esse espírito é de tal modo incoerente e estúpido, essa vontade e esses sentimentos são de tal modo perversos, que não vale a pena ocupar-se deles senão para constatar todo o mal que causaram sobre a Terra. Para provar a ação absoluta e direta das leis mecânicas, físicas e químicas, sobre as faculdades ideais do homem, contentar-me-ei em colocar esta pergunta: O que seria das mais sublimes combinações da inteligência se, no momento em que o homem as concebe, se decompusesse apenas o ar que respira, ou se o movimento da Terra parasse, ou se o homem se visse envolvido inopinadamente numa temperatura de 60 graus acima ou abaixo de zero?
[3]Dizer que Deus não é contrário à lógica é afirmar que, em toda a extensão de seu ser, Ele é completamente lógico; que não contém nada que esteja acima, ou, o que quer dizer o mesmo, fora da lógica: que, portanto, Ele mesmo não é nada mais do que a lógica, nada mais do que essa corrente ou esse desenvolvimento natural das coisas reais; ou seja, que Deus não existe. A existência de Deus não pode, portanto, ter outra significação senão a de negação das leis naturais; daí resulta este dilema inevitável: Deus existe, portanto não há leis naturais, não há ordem na natureza, o mundo apresenta um caos, ou então: O mundo está ordenado em si, portanto, Deus não existe.
[4]Não resulta de modo algum disso que tudo o que é lógico ou natural seja, do ponto de vista humano, necessariamente útil, bom e justo. As grandes catástrofes naturais; os terremotos, as erupções vulcânicas, as inundações, as tempestades, as doenças pestilenciais, que devastam e destroem cidades e populações inteiras, são certamente fatos naturais produzidos logicamente por uma série de causas naturais, mas ninguém dirá que são benéficas para a humanidade. O mesmo acontece com os fatos que ocorrem na história: as mais horríveis instituições chamadas divinas e humanas; todos os crimes passados e presentes dos chefes, desses supostos benfeitores e tutores de nossa pobre espécie humana, e a desesperadora estupidez dos povos que aceitam seu jugo; as infâmias atuais dos Napoleões III, dos Bismarck, de Alexandre II e de tantos outros soberanos ou políticos e militares da Europa, e a incrível covardia dessa burguesia de todos os países que os anima, os sustenta, mesmo aborrecendo-os no fundo do seu coração; tudo isso apresenta uma série de fatos naturais produzidos por causas naturais e, portanto, muito lógicos, o que não os impede de serem excessivamente funestos para a humanidade.
[5]Sigo o uso estabelecido, separando de certo modo o mundo social do mundo natural. É evidente que a sociedade humana, considerada em toda a extensão e em toda a amplitude de seu desenvolvimento histórico, é tão natural e está tão completamente subordinada a todas as leis da história, como o mundo animal e vegetal, por exemplo, do qual é a última e a mais alta expressão sobre a Terra.
[6]Foi necessário uma grande dose de extravagância teológica e metafísica para imaginar uma alma imaterial que vive aprisionada no corpo completamente material do homem, quando está claro que o que é material é o único que pode ser internado, limitado, contido em uma prisão material. Era necessário ter a fé robusta de Tertuliano, manifestada por esta frase tão célebre: “creio no que é absurdo!” para admitir duas coisas tão incompatíveis como essa pretendida imaterialidade da alma e sua dependência imediata das modificações materiais, dos fenômenos patológicos que se produzem no corpo do homem. Para nós, que não podemos acreditar no absurdo e que não estamos de nenhum modo dispostos a adorar o absurdo, a alma humana — todo esse conjunto de faculdades afetivas, intelectuais e volitivas que constituem o mundo ideal ou espiritual do homem — não é nada mais do que a última e mais alta expressão de sua vida animal, das funções completamente materiais de um órgão material, o cérebro. A faculdade de pensar, enquanto potência formal, seu grau e sua natureza particular e, por assim dizer, individual em cada homem, tudo isso depende, antes de tudo, da conformação mais ou menos feliz de seu cérebro. Mas depois, essa faculdade se consolida pela saúde do corpo em primeiro lugar, por uma boa higiene e por uma boa alimentação; depois, se desenvolve e se fortifica por um exercício racional, pela educação e pela instrução, pela aplicação dos bons métodos científicos, assim como a força e a destreza musculares do homem se desenvolvem pela ginástica.
A natureza, ajudada principalmente pela organização viciosa da sociedade, cria infelizmente, algumas vezes, idiotas, indivíduos humanos muito estúpidos. Algumas vezes, cria também homens de gênio. A imensa maioria dos seres humanos nasce igual ou mais ou menos igual: não idênticos, mas equivalentes no sentido de que, em cada um, os defeitos e as qualidades se compensam aproximadamente, de modo que, considerados em seu conjunto, um vale o que o outro vale. É a educação que produz as enormes diferenças que nos desesperam hoje. Daí, tiro esta conclusão: que, para estabelecer a igualdade entre os homens, é preciso estabelecê-la absolutamente na educação das crianças.
Não falei até aqui mais do que da faculdade formal de conceber pensamentos. Quanto aos próprios pensamentos, que constituem o fundo de nosso mundo intelectual e que os metafísicos consideram como criações espontâneas e puras de nosso espírito, não foram em seu início nada mais do que simples constatações, naturalmente muito imperfeitas no começo, de fatos naturais e sociais, e conclusões, ainda menos racionais, tiradas desses fatos. Tal foi o começo de todas as representações, imaginações, alucinações e ideias humanas, de onde se vê que o conteúdo de nosso pensamento, nossos pensamentos propriamente ditos, nossas ideias, longe de terem sido criados por uma ação espontânea do espírito, ou de serem inatos, como ainda pretendem hoje os metafísicos, nos foram dados desde o princípio pelo mundo das coisas e dos fatos reais, tanto exteriores quanto interiores. O espírito do homem, ou seja, o trabalho ou a própria função de seu cérebro, provocado pelas impressões que lhe transmitem seus nervos, não aporta a elas mais do que uma ação formal que consiste em comparar e combinar essas coisas e esses fatos em sistemas justos ou falsos. Justos, se são conformes à ordem realmente inerente às coisas e aos fatos; falsos, se lhes são contrários. Por meio da palavra, as ideias elaboradas assim se precisam e se fixam no espírito do homem e se transmitem uns aos outros, de modo que as noções individuais sobre as coisas, as ideias individuais de cada um, ao se encontrarem, ao se controlarem e ao se modificarem mutuamente, e se confundindo, harmonizando-se em um só sistema, acabam formando a consciência comum ou o pensamento coletivo de uma sociedade de homens mais ou menos extensa, pensada, sempre modificável e sempre impulsionada para frente pelos novos trabalhos de cada indivíduo; e transmitido pela tradição de uma geração para outra, esse conjunto de imaginações e pensamentos, enriquecendo-se e se expandindo cada vez mais pelo trabalho coletivo dos séculos, forma, em cada época da história, em um meio social mais ou menos extenso, o patrimônio coletivo de todos os indivíduos que compõem esse meio.
Toda nova geração encontra em seu berço um mundo de ideias, de imaginações e de sentimentos que lhe é transmitido sob forma de herança comum pelo trabalho intelectual e moral de todas as gerações passadas. Esse mundo não se apresenta desde o início ao homem recém-nascido, em sua forma ideal, como sistema de representações e ideias, como religião, como doutrina; o menino seria incapaz de recebê-lo nessa forma; ele se impõe a ele como um mundo de fatos, encarnado e realizado nas pessoas e nas coisas que o cercam, e falando aos seus sentidos por tudo o que ouve e vê desde os primeiros dias de seu nascimento. Porque as ideias e representações humanas, que no início não foram nada mais do que o produto de fatos naturais e sociais — no sentido de que não foram no começo nada mais do que a repercussão ou reflexão no cérebro do homem, e a reprodução, por assim dizer, ideal e mais ou menos racional por esse órgão absolutamente material do pensamento humano —, adquirem mais tarde, depois de terem sido bem estabelecidas, da maneira que acabei de explicar, na consciência coletiva de uma sociedade qualquer, esse poder de se tornarem, por sua vez, causas produtoras de novos fatos, não propriamente naturais, mas sociais. Modificam a existência, os hábitos e as instituições humanas, em uma palavra, todas as relações que existem entre os homens na sociedade, e, por sua encarnação até nos fatos e nas coisas cotidianas da vida de cada um, tornam-se sensíveis, palpáveis para todos, até para as crianças. De modo que cada nova geração se penetra delas, desde sua mais tenra infância; e quando chega à idade viril em que começa propriamente o trabalho de seu próprio pensamento, aguerrida, exercitada e necessariamente acompanhada de uma crítica nova, encontra em si o mesmo que na sociedade que a rodeia, todo um mundo de pensamentos e representações estabelecidas que lhe servem de ponto de partida e lhe dão, de certo modo, o material ou a matéria-prima para seu próprio trabalho intelectual e moral. A esse número pertencem as imaginações tradicionais e comuns que os metafísicos — enganados pela forma absolutamente insensível e imperceptível, de acordo com a qual, desde o exterior, penetram e se imprimem no cérebro das crianças, antes que tenham chegado à consciência de si mesmas — chamam de ideias inatas. Mas ao lado dessas ideias gerais, tais como as de Deus ou da alma — ideias absurdas, mas sancionadas pela ignorância universal e pela estupidez dos séculos, até o ponto de que hoje mesmo não se poderia falar abertamente e em uma linguagem popular contra elas sem correr o risco de ser apedrejado pela hipocrisia burguesa —, ao lado dessas ideias completamente abstratas, o adolescente encontra na sociedade no qual se desenvolve, e, como consequência da influência exercida por essa mesma sociedade em sua infância, encontra em si mesmo uma quantidade de outras ideias muito mais determinadas sobre a natureza e sobre a sociedade, ideias que se referem mais de perto à vida real do homem, à sua existência cotidiana. Tais são as ideias sobre a justiça, sobre os deveres, sobre os direitos de cada um, sobre a família, sobre a propriedade, sobre o Estado, e muitas outras mais particulares ainda que regulam as relações dos homens entre si. Todas essas ideias que o homem encontra encarnadas em seu próprio espírito pela educação que, independentemente de toda ação espontânea desse espírito, sofreu em sua infância, ideias que, quando chega à consciência de si, se apresentam a ele como ideias geralmente aceitas e consagradas pela consciência coletiva da sociedade em que vive, todas essas ideias foram produzidas, disse, pelo trabalho intelectual e moral coletivo das gerações passadas. Como foram produzidas? Pela constatação e por uma espécie de consagração dos fatos realizados, porque nos desenvolvimentos práticos da humanidade, tanto quanto na ciência propriamente dita, os fatos realizados precedem sempre as ideias, o que prova mais uma vez que o conteúdo do pensamento humano, seu fundo real, não é uma criação espontânea do espírito, mas é sempre dado pela experiência reflexiva das coisas reais.
[7]Essa ideia da irresponsabilidade moral dos animais é admitida por todos. Mas ela não está de acordo, em todos os seus pontos, com a verdade. Podemos constatar isso pela experiência cotidiana, em nossas relações com os animais domesticados e adestrados. Nós os criamos, não em vista de sua utilidade ou de sua moralidade próprias, mas conforme nossos interesses e nossos fins; os habituamos a dominar, a conter seus instintos, seus desejos, ou seja, desenvolvemos neles uma força interior que não é outra coisa senão a vontade. E quando agem contrariamente aos hábitos que quisemos lhes dar, nós os castigamos; portanto, os consideramos, os tratamos como seres responsáveis, capazes de compreender que infringiram a lei que lhes impusemos, e os submetemos a uma espécie de jurisdição doméstica. Tratamo-los, em uma palavra, como o bom deus dos cristãos trata os homens — com esta diferença: nós o fazemos por nossa utilidade, e ele por sua glória; nós, para satisfazer nosso egoísmo, ele para contentar e alimentar sua infinita vaidade.
[8]Eis aqui dois jovens que trazem à sociedade duas naturezas diferentes, desenvolvidas por duas educações distintas — ou apenas duas naturezas diferentes desenvolvidas pela mesma educação. Um deles toma uma resolução viril, para usar essa expressão favorita do senhor Gambetta; o outro não toma nenhuma ou toma uma má. Há, no sentido jurídico dessas palavras, um mérito da parte do primeiro e uma falta da parte do segundo? Sim; se se quiser conceder-me que esse mérito e essa falta são igualmente involuntários, igualmente produtos da ação combinada e fatal da natureza e da educação, e que, por conseguinte, ambos constituem, um não propriamente um mérito, o outro não propriamente uma falta, mas dois fatos, dois resultados diferentes, dos quais um está de acordo com o que, em um momento dado da história, chamamos de verdadeiro, justo e bom, e o outro com o que, no mesmo momento histórico, é reputado como mentira, injustiça e mal. Levemos essa análise mais adiante. Tomemos dois jovens dotados de naturezas mais ou menos iguais e que receberam a mesma educação. Suponhamos que, encontrando-se também em uma posição social aproximadamente igual, ambos tenham tomado uma boa resolução. Um se mantém firme e se desenvolve cada vez mais na direção que se impôs. O outro se desvia e sucumbe. Por quê? Qual é a razão dessa diferença no desfecho? É preciso buscá-la ou na diferença de suas naturezas e temperamentos por mais imperceptível que essa diferença tenha podido ser no início ou na desigualdade que já existia entre o grau de força intelectual e moral adquirida por cada um no momento em que começaram sua existência livre, ou, por fim, na diferença de suas condições sociais e das circunstâncias que influíram mais tarde em suas vidas ou em seu desenvolvimento. Porque todo efeito tem uma causa, o que demonstra claramente que, em cada instante de sua vida, em cada um de seus pensamentos, de seus atos, o homem, com sua consciência, sua inteligência e sua vontade, está sempre determinado por uma multidão de ações ou causas tanto exteriores quanto interiores, mas igualmente independentes dele próprio, e que exercem sobre ele uma dominação fatal, implacável. Onde está, então, sua responsabilidade?
Um homem não tem vontade; envergonha-se disso e dizem-lhe que deve ter uma, que deve dar a si mesmo uma vontade. Mas como ele a dará? Por um ato de sua vontade? Isso equivale a dizer que ele deve ter a vontade de ter vontade: o que constitui evidentemente um círculo vicioso, um absurdo.
Mas dir-se-á: ao negar o princípio da responsabilidade do homem, ou melhor, ao constatar o fato da irresponsabilidade humana, vocês não destroem as bases de toda moral? Esse temor e essa crítica são perfeitamente justos se estivermos falando da moral teológica e metafísica, dessa moral divina que serve, senão de base, ao menos de consagração e explicação ao direito jurídico. (Veremos mais adiante que os fatos econômicos constituem as únicas bases reais desse direito.) São, no entanto, injustos se estivermos falando da moral puramente humana e social. Essas duas morais, como veremos depois, se excluem mutuamente; a primeira não é, idealmente, senão a ficção e, na realidade, a negação da segunda, e esta última só poderá triunfar pela destruição radical da primeira. Portanto, longe de me assustar com essa destruição da moral teológica e metafísica, que considero como uma mentira tão historicamente natural quanto fatal, ao contrário, apelo por ela com toda a minha alma, e tenho a íntima convicção de estar fazendo o bem ao cooperar com essa destruição na medida das minhas forças.
Dir-se-á ainda que, ao atacar o princípio da responsabilidade humana, destruo o fundamento principal da dignidade humana. Isso seria perfeitamente justo se essa dignidade consistisse na execução de tours de force sobre-humanos, impossíveis, e não no pleno desenvolvimento teórico e prático de todas as nossas faculdades e na realização, tão completa quanto possível, da missão que nos é traçada e, por assim dizer, imposta por nossa natureza. A dignidade humana e a liberdade individual, tais como as concebem os teólogos, os metafísicos e os juristas, dignidade e liberdade fundadas na negação em aparência tão altiva da natureza e de toda dependência natural, nos conduzem lógica e diretamente ao estabelecimento de um despotismo divino, pai de todos os despotismos humanos. A ficção teológica, metafísica e jurídica da dignidade e liberdade humanas tem por consequência fatal a escravidão e o rebaixamento reais dos homens na Terra. Ao passo que os materialistas, partindo da dependência fatal dos homens em relação à natureza e suas leis e, portanto, de sua irresponsabilidade natural, chegam necessariamente à queda de toda autoridade divina, de toda tutela humana e, por conseguinte, ao estabelecimento de uma liberdade real e completa para cada um e para todos. Eis também a razão pela qual todos os reacionários desde os soberanos mais despóticos até os republicanos burgueses aparentemente mais revolucionários se mostram hoje partidários tão ardentes do idealismo teológico, metafísico e jurídico, e por que os socialistas revolucionários conscientes e sinceros hastearam a bandeira do materialismo.
Mas dir-se-á: a vossa teoria explica, desculpa, legitima e estimula todos os vícios, todos os crimes. Ela os explica, sim; ela os legitima ao mostrar como os vícios e os crimes são efeitos naturais de causas naturais. Mas de forma alguma os estimula; ao contrário, é somente pela aplicação mais ampla dessa teoria à organização da sociedade humana que se poderá combatê-los e chegar a extirpá-los, atacando, não tanto os indivíduos afetados por eles, mas as causas naturais das quais esses vícios e crimes são os produtos naturais e fatais.
Por fim, dir-se-á: eis dois homens — um cheio de qualidades, o outro cheio de defeitos; o primeiro, honesto, inteligente, justo, bom, cumpridor escrupuloso de todos os deveres humanos e respeitador dos direitos alheios; o segundo, um ladrão, um bandido, um mentiroso desavergonhado, um violador cínico de tudo o que é sagrado para os homens; e, na vida política, um republicano, o outro um Napoleão III, um Muraviev ou um Bismarck. Direis que não há nenhuma diferença a fazer entre eles?
Não, não direi isso. Mas essa diferença eu já faço em minhas relações cotidianas com o mundo animal. Há animais extremamente repulsivos, maus, outros muito úteis e nobres. Tenho antipatia e uma aversão pronunciada por uns, e muita simpatia por outros. E, no entanto, sei muito bem que não é culpa do sapo ser um sapo, nem da serpente venenosa ser uma serpente venenosa, nem é culpa do porco encontrar imenso prazer em se revolver na lama; mas tampouco é mérito do cavalo, no sentido voluntário da palavra, ser um belo cavalo; nem do cão, ser um animal inteligente e fiel. Isso não me impede, de forma alguma, de esmagar o réptil e lançar o porco à lama, nem de querer bem e estimar muito o cavalo e o cão.
Dir-se-á que sou injusto? Não. Reconheço que uns, considerados do ponto de vista da natureza ou da causalidade universal, são tão inocentes do que chamo de seus defeitos quanto os outros o são de suas qualidades. No mundo natural, não há propriamente, no sentido moral dessas palavras, nem qualidades nem defeitos, mas apenas propriedades naturais mais ou menos bem ou mal desenvolvidas nas diferentes espécies e variedades animais, assim como em cada indivíduo tomado separadamente. O mérito do indivíduo animal consiste apenas nisso: ser um exemplar bem-sucedido, completamente desenvolvido em sua espécie e em sua variedade; e o único mérito destas últimas é pertencerem a uma ordem de organização relativamente superior. O defeito, para o indivíduo animal, é ser um exemplar mal-sucedido, imperfeitamente desenvolvido; e, para a variedade e a espécie, é pertencerem a uma ordem de organização inferior. Se uma serpente pertencesse a uma classe extremamente venenosa e fosse pouco venenosa, isso seria um defeito; se fosse muito venenosa, seria uma qualidade.
Ao estabelecer entre os animais de diferentes espécies uma diferença judicial — ao declarar uns repulsivos, antipáticos e maus, e outros bons, simpáticos e úteis —, não os julgo do ponto de vista absoluto, natural, mas do ponto de vista relativo, humano, de suas relações comigo. Reconheço que uns me são desagradáveis e prejudiciais, e que, ao contrário, outros me são agradáveis e úteis. Não é o que todos fazem em seus julgamentos sobre os homens? Um homem que pertence a essa variedade social chamada de bandidos, ladrões, proclamará os Mandrin e os Troppmann como os maiores homens do mundo; os diplomatas e argumentadores do sabre incham de orgulho ao falar de Napoleão III ou de Bismarck; os padres adoram Loyola; os burgueses têm por ideal Rothschild ou Thiers. Além disso, há variedades mistas que buscam seus heróis em homens ambíguos, de caráter menos pronunciado: os Ollivier, os Jules Favre. Cada variedade social, em uma palavra, possui uma medida moral própria que aplica a todos os homens ao julgá-los. Quanto à medida universalmente humana, ela ainda não existe para todo o mundo senão como uma frase banal, sem que ninguém pense em aplicá-la de maneira séria e real.
Essa lei geral da moral humana, existe de fato? Sim, sem dúvida, ela existe. Está fundada na própria natureza do homem, não enquanto ser exclusivamente individual, mas enquanto ser social; constitui propriamente a natureza e, por conseguinte, também o verdadeiro fim de todos os desenvolvimentos da sociedade humana, e distingue-se essencialmente da moral teológica, metafísica e jurídica por isto: não é uma moral individual, mas social. Voltarei a isso ao falar da sociedade.
[9]Veremos mais adiante, e já sabemos agora, que essa definição do bem e do mal é considerada hoje como a única real, como a única séria e válida, para todas as classes privilegiadas diante do proletariado que elas exploram.
Creio poder dizer, sem exageração alguma, que existe muito mais idealismo real, no sentido do desinteresse e do sacrifício de si mesmo, nas massas populares do que em qualquer outra classe da sociedade. Que esse idealismo tome com muita frequência formas barrocas, que seja acompanhado de uma cegueira e de uma deplorável estupidez, não deve nos surpreender. O povo, graças ao governo dos homens de elite, está submerso em todos os lugares por uma ignorância crassa. Os burgueses o desprezam muito por suas crenças religiosas; deveriam desprezá-lo também pelo que ainda resta de crenças políticas; porque a tolice de umas anda de mãos dadas com a de outras, e os burgueses se aproveitam de ambas. Mas eis o que os burgueses não compreendem: é que o povo, que, por falta de ciência e de uma existência suportável, continua a ter fé nos dogmas da teologia e se embriaga de ilusões religiosas, aparece por isso mesmo muito mais idealista e, se não mais inteligente, muito mais intelectual do que o burguês que, não acreditando em nada, não esperando nada, se contenta com sua existência cotidiana, excessivamente mesquinha e estreita. A religião, como a teologia, é, sem dúvida, uma grande tolice, mas como sentimento e como aspiração é um complemento e uma espécie de compensação, ilusória sem dúvida, das misérias de uma existência oprimida, e uma protesto muito real contra essa opressão cotidiana. É, portanto, uma prova da riqueza natural, intelectual e moral do homem e da imensidão de seus desejos instintivos. Proudhon teve razão ao dizer que o socialismo não tem outra missão do que realizar racional e efetivamente na Terra as promessas ilusórias e místicas cuja realização é postergada pela religião para o céu. Essas promessas, no fundo, se resumem a isso: o bem-estar, o pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas, a liberdade na igualdade e na fraternidade universal. O burguês que, ao perder a fé religiosa, não se faz socialista — e, com poucas exceções, esse é o caso de todos os burgueses —, se condena por isso a uma desoladora mediocridade intelectual e moral; e é em nome dessa mediocridade que a burguesia reclama o governo das massas, que, apesar de sua ignorância deplorável, as supera incontestavelmente pela elevação instintiva do espírito e do coração.
Quanto aos sábios, esses bem-aventurados privilegiados de Augusto Comte, devo dizer que não se poderia imaginar nada mais deplorável do que a sorte de uma sociedade cujo governo fosse colocado em suas mãos; e isso por muitas razões que terei oportunidade de desenvolver mais adiante, e que me limitarei a enumerar aqui: 1. Porque basta dar a um sábio dotado do maior gênio uma posição privilegiada para paralisar ou ao menos diminuir e falsear seu espírito, tornando-o um títere político e social. Basta levar em conta a missão verdadeiramente digna de piedade que desempenham atualmente a maioria dos sábios na Europa, em todas as questões políticas e sociais que agitam a opinião, para se convencer disso: a ciência privilegiada e patenteada se transforma, na maioria dos casos, em tolices e covardias patenteadas, e isso porque não estão de modo algum distantes de seus interesses materiais e das miseráveis preocupações de sua vaidade pessoal. Vendo o que acontece a cada dia no mundo dos sábios, poderia também acreditar-se que, entre todas as ocupações humanas, a ciência tem o privilégio particular de desenvolver o egoísmo mais refinado e a vaidade mais feroz nos homens; 2. Porque entre o ínfimo número de sábios que estão realmente desligados de todas as preocupações e vaidades temporais, há poucos, muito poucos, que não estejam contaminados por algum vício, capaz de contrabalançar todas as demais qualidades: esse vício é o orgulho da inteligência e o desprezo profundo, disfarçado ou franco, por todo aquele que não é tão sábio quanto eles. Uma sociedade que fosse governada por sábios teria, portanto, o governo do desprezo, ou seja, o mais esmagador despotismo e a mais humilhante escravidão que uma sociedade humana pode sofrer. Seria necessariamente também o governo da tolice, porque nada é tão estúpido quanto a inteligência orgulhosa de si mesma. Em uma palavra, seria uma segunda edição do governo dos sacerdotes. E, por outro lado, como instituir praticamente um governo de sábios? Quem os nomearia? Seria o povo? Mas este é ignorante, e a ignorância não pode se estabelecer como juiz da ciência dos sábios. Seriam, então, as academias? Então pode-se estar certo de que teríamos o governo da sábia mediocridade; porque ainda não houve exemplo de uma academia saber apreciar um homem de gênio e fazer-lhe justiça durante sua vida. As academias dos sábios, como os concílios e os conclaves dos sacerdotes, não canonizam seus santos senão depois da morte; e quando fazem uma exceção para um vivo, estejam convencidos de que esse vivo é um grande pecador, ou seja, um audaz intrigante ou um tolo.
Amemos, pois, a ciência, respeitemos os sábios sinceros e sérios, escutemos com grande reconhecimento os ensinamentos, os conselhos que, do alto de seu saber transcendente, se dignem nos dar; mas não os aceitemos senão com a condição de passá-los e repassá-los pela nossa própria crítica. Mas em nome da salvação da sociedade, em nome de nossa dignidade e liberdade, bem como pela salvação de seu próprio espírito, não lhes deem nunca entre nós nem posição nem direitos privilegiados. Para que sua influência sobre nós possa ser útil e verdadeiramente saudável, é preciso que não tenham outras armas senão a propaganda igualmente livre para todos, a persuasão moral fundamentada na argumentação científica.
Uma criada deixou uma família russa de meu conhecimento, em Londres, por essa dupla razão: o senhor e a senhora nunca iam à igreja e a cozinheira não usava crinolina. Somente os operários da Inglaterra, para grande desespero das classes dominantes e de seus pregadores, ousam rejeitar francamente e publicamente o culto divino. Consideram esse culto como uma instituição aristocrática e burguesa, contrária à emancipação do proletariado. Não duvido que, no fundo do zelo excessivo que as classes dominantes começam a demonstrar hoje pela instrução popular, exista a esperança secreta de fazer passar, de contrabando, para a massa proletária, algumas dessas mentiras religiosas que adormecem os povos e asseguram a tranquilidade de seus exploradores. Que ilusão inútil! O povo aceitará a instrução, mas deixará a religião para aqueles que dela necessitem a fim de se consolar de sua derrota inevitável. O povo tem sua própria religião: é a do triunfo próximo da justiça, da liberdade, da igualdade e da solidariedade universais sobre esta Terra, pela revolução mundial e social.
Além dessa ideia, que é ao mesmo tempo positiva e abstrata, não podemos compreender nada, porque fora dela não resta nada a ser compreendido. Como ela abarca tudo, não tem exterior, tem apenas um interior imenso, infinito, que devemos esforçar-nos por compreender na medida de nossas forças. E desde o princípio da ciência real encontramos uma verdade preciosa, descoberta pela experiência universal e constatada pela reflexão; ou seja, pela generalização dessa experiência; essa verdade de que todas as coisas e todos os seres realmente existentes, quaisquer que sejam suas diferenças mútuas, possuem propriedades comuns, propriedades matemáticas, mecânicas, físicas e químicas, que constituem propriamente toda a sua essência. Todas as coisas, todos os corpos ocupam, em primeiro lugar, um espaço; todos são pesados, quentes, luminosos, elétricos e todos sofrem transformações químicas. Nenhum ser real existe fora dessas condições, nenhum pode existir sem essas propriedades essenciais que constituem seu movimento, sua ação, suas transformações incessantes. Mas as coisas intelectuais — dir-se-á — as instituições religiosas, políticas, sociais; as produções da arte, os atos da vontade, enfim, as ideias, existem fora dessas condições? De modo algum. Tudo isso não tem realidade senão no mundo exterior e nas relações dos homens entre si, e tudo isso só existe em condições geográficas, climatológicas, etnográficas, econômicas, evidentemente materiais. Tudo isso é um produto combinado de circunstâncias materiais e do desenvolvimento dos sentimentos, das necessidades humanas, das aspirações e do pensamento humanos. Mas todo esse desenvolvimento, como já repeti algumas vezes e demonstrei, é o produto de nosso cérebro, que é um órgão completamente material do corpo humano. As ideias mais abstratas não têm existência real senão para os homens, neles e por eles. Escritas ou impressas em um livro, não passam de signos materiais, uma reunião de letras materiais e visíveis, desenhadas ou impressas sobre algumas folhas de papel. Só se tornam ideias quando um homem as lê, as compreende e as reproduz em seu espírito, pois a intelectualidade exclusiva das ideias é uma grande ilusão; elas são, de outra forma, materiais, mas tão materiais quanto os seres materiais mais grosseiros. Em uma palavra, tudo o que se chama mundo espiritual, divino e humano, reduz-se à ação combinada do mundo exterior e do corpo humano, que, de todas as coisas existentes na Terra, apresenta a organização material mais complicada e mais completa. Mas o corpo humano apresenta as mesmas propriedades matemáticas, mecânicas e físicas, e está igualmente submetido à ação química, como todos os demais corpos existentes. Mais do que isso, cada corpo composto: animal, vegetal ou inorgânico, pode ser decomposto pela análise química em um certo número de corpos elementares ou simples, aceitos como tais porque não se conseguiu decompô-los em corpos mais simples. Eis aí, portanto, os verdadeiros elementos constitutivos do mundo real, inclusive do mundo humano, individual e social, intelectual e divino. Não se trata daquela matéria uniforme, informe e abstrata de que fala a filosofia positiva e a metafísica materialista; trata-se da associação indefinida de elementos ou de corpos simples, dos quais cada um possui todas as propriedades matemáticas, mecânicas e físicas, e dos quais cada um se distingue pelas ações químicas que lhe são próprias. Reconhecer todos os elementos reais ou corpos simples, cujas diversas combinações constituem todos os corpos compostos, orgânicos e inorgânicos, que enchem o universo; reconstituir pelo pensamento e no pensamento, com a ajuda de todas as propriedades e ações inerentes a cada um, e jamais admitir uma teoria que não esteja severamente verificada pela observação e pela experimentação mais rigorosas; reconstituir — digo — ou reconstruir mentalmente todo o universo, com a infinita diversidade de suas evoluções astronômicas, geológicas, biológicas e sociais; tal é o fim ideal e supremo da ciência: um fim que nenhum homem nem nenhuma geração realizará, sem dúvida, jamais, mas que, permanecendo, no entanto, o objeto de uma tendência irresistível do espírito humano, imprime à ciência, considerada em sua mais alta expressão, uma espécie de caráter religioso de forma alguma mística nem sobrenatural, um caráter inteiramente realista e racional, mas que exerce ao mesmo tempo, sobre os que são capazes de senti-lo, toda a ação exaltante das aspirações infinitas.
Portanto, a matéria absoluta, uniforme e única de que fala o senhor Littré não é nada mais do que uma abstração, uma entidade metafísica que não tem existência senão em nosso espírito. O que existe realmente são os corpos diferentes, compostos ou simples, supondo todos os corpos diferentes, orgânicos e inorgânicos, decompostos em seus elementos simples, que têm igualmente todas as propriedades físicas em graus diversos, e quimicamente diferenciados no sentido de que, por uma lei de afinidade que lhes é própria, cada um, ao combinar-se com alguns outros em proporções determinadas, pode compor com eles corpos novos mais complicados, dando lugar a fenômenos diversos próprios de cada combinação particular. Portanto, se pudermos conhecer todos os elementos químicos ou corpos simples e todos os modos de suas combinações mútuas, poderemos dizer que conhecemos a substância da matéria, ou melhor, das coisas materiais que constituem o universo.
Primeiramente, o que é um homem de gênio? É uma natureza individual que, sob um ou vários aspectos — os quais, do ponto de vista humano, intelectual e moral, são sem dúvida dos mais importantes — está muito melhor organizada que a maioria dos homens; é uma organização superior, um instrumento comparativamente muito mais perfeito. Deixamos de lado as ideias inatas. Nenhum homem nasce com qualquer ideia. O que cada homem traz consigo é uma faculdade natural e formal, maior ou menor, de conceber as ideias que encontra estabelecidas, seja em seu próprio meio social, seja em um meio estranho, mas que de um modo ou de outro entra em comunicação com ele; de concebê-las primeiro, depois de reproduzi-las pelo trabalho formal de seu próprio cérebro, e de dar-lhes, por esse trabalho interior, às vezes, um novo desenvolvimento, uma nova forma e uma nova extensão. Nisso consiste unicamente a obra dos maiores gênios. Nenhum deles, portanto, traz tesouros íntimos ao nascer. O espírito e o coração dos maiores homens de gênio nascem nulos, assim como seu corpo nasce nu. O que nasce com eles é um magnífico instrumento, cuja perda intempestiva é sem dúvida uma grande desgraça; porque os bons instrumentos, na organização social e com a higiene atuais, são bastante raros. Mas o que a humanidade perde com eles não é um conteúdo real qualquer, é a possibilidade de criar um.
Para julgar o que podem ser esses supostos tesouros inatos e o ser íntimo de uma natureza de gênio, imaginai-a transportada, desde sua mais tenra infância, para uma ilha deserta.
Supondo que ela não pereça, o que será dela? Uma besta selvagem, que andará sucessivamente ereta e de quatro patas, como os macacos, vivendo a vida e o pensamento dos macacos, expressando-se como eles, não por meio de palavras, mas por sons, incapaz, por conseguinte, de pensar, e até mais tola que o último dos macacos: porque estes últimos, vivendo em sociedade, desenvolvem-se até certo grau, enquanto que nossa natureza genial, não tendo nenhuma relação com seres semelhantes a ela, necessariamente permaneceria na idiotice. Tomai essa mesma natureza genial aos vinte anos, quando já se desenvolveu consideravelmente, graças aos tesouros sociais que recebeu de seu ambiente e que elaborou e reproduziu em si essa facilidade ou esse poder do gênio formal com que a natureza a dotou. Transportai-a para o deserto e forçai-a a viver ali durante vinte ou trinta anos fora de todas as nossas relações humanas. O que será dela? Um louco, um selvagem místico, talvez o fundador de alguma nova religião; mas não de uma daquelas grandes religiões que no passado tiveram o poder de agitar profundamente os povos e fazê-los progredir, segundo o método — próprio do espírito religioso. Não, inventará alguma religião solitária, monótona, impotente e ridícula ao mesmo tempo.
O que significa isso? Isso significa que nenhum homem, nem mesmo o gênio mais poderoso, possui propriamente nenhum tesouro em si, senão que todos aqueles que distribui com ampla profusão foram tomados por ele dessa sociedade, a quem tem o ar de oferecê-los mais tarde. Pode-se dizer que, sob esse aspecto, os homens de gênio são precisamente os que mais tomam da sociedade e os que, por conseguinte, lhe devem tudo.
A criança mais felizmente dotada pela natureza permanece por muito tempo sem ter formado em si mesma a sombra do que se poderia chamar de seu ser íntimo. Sabe-se que todo o ser intelectual das crianças é projetado no início exclusivamente para o exterior; primeiro elas são toda impressão e observação; somente quando nasce nelas um começo de reflexão e de domínio sobre si, ou seja, de vontade, começam a ter um mundo interior, um ser íntimo. Dessa época data, para a maioria dos homens, a lembrança de si mesmos. Mas esse ser íntimo, desde o seu nascimento, nunca permanece exclusivamente interior; à medida que se desenvolve, manifesta-se completamente para o exterior e se expressa pela mudança progressiva de todas as relações da criança com os homens e as coisas que a rodeiam. Essas relações múltiplas, muitas vezes imperceptíveis e que passam a maior parte do tempo despercebidas, são outras tantas ações exercidas pela autonomia relativa, nascente e crescente, da criança em relação ao mundo exterior; ações muito reais, embora despercebidas, cuja totalidade, em cada instante da vida da criança, expressa todo o seu ser íntimo e que se perde, não sem imprimir sua marca ou sua influência, por mais fraca que seja, na massa das relações humanas, que constituem, todas juntas, a realidade da vida social.
O que disse da criança também é verdade para o adolescente. Suas relações se multiplicam à medida que se desenvolve seu ser íntimo, ou seja, os instintos e os movimentos da vida animal, assim como seus pensamentos e seus sentimentos humanos, e sempre de uma maneira positiva, como atração e como cooperação, ou de uma maneira negativa, como rebeldia e como repulsa, todo o seu ser íntimo se manifesta na totalidade de suas relações com o mundo exterior. Nada do que realmente existe pode deixar de se manifestar completamente ao exterior, tanto nos homens como nas coisas mais inertes e menos demonstrativas. É a história do barbeiro do Rei Midas: não se atrevendo a contar seu terrível segredo a ninguém, confiou-o à Terra e a Terra o divulgou, e foi assim que se soube que o Rei Midas tinha orelhas de asno. Existir realmente para os homens, assim como para tudo o que existe, não significa outra coisa senão manifestar-se.
Chegamos agora ao exemplo proposto: um jovem de gênio morre com a idade de vinte anos, no momento em que ia realizar algum grande ato, ou anunciar ao mundo alguma sublime concepção. Levou algo consigo para o túmulo? Sim, uma grande possibilidade, não uma realidade. Na medida em que essa possibilidade se realizou nele, até o ponto de converter-se em seu ser íntimo, estejam certos de que, de uma maneira ou de outra, ela já se manifestou em suas relações com o mundo exterior. As concepções geniais, assim como esses grandes atos heroicos que por momentos abrem uma nova direção na vida dos povos, não nascem espontaneamente nem no homem de gênio nem no ambiente social que o rodeia, que o alimenta, que o inspira, seja positivamente, seja de uma maneira negativa. O que o homem de gênio inventa ou faz encontra-se já há muito tempo em estado de elementos que se desenvolvem e que tendem a se concentrar e a formar-se cada vez mais, nesta mesma sociedade à qual ele leva, seja sua invenção, seja seu ato. E no próprio homem de gênio, a invenção, a concepção sublime ou o ato heroico não se produzem espontaneamente; são sempre o produto de uma longa preparação interior, que à medida que se desenvolve nunca deixa de manifestar-se de uma maneira ou de outra.
Suponhamos, pois, que o homem de gênio morre no mesmo momento em que ia terminar esse longo trabalho interior e manifestá-lo ao mundo assombrado. Enquanto inacabado, esse trabalho não é real; mas enquanto preparação é, ao contrário, muito real, e como tal, estejam bem certos, manifestou-se completamente, seja nos atos, seja nos escritos, seja nas conversas desse homem. Porque se um homem não faz nada, não escreve, não diz nada, estejam certos, não inventa nada também, e não se faz nele nenhuma preparação interior; portanto, pode morrer tranquilamente, sem deixar após si o sentimento de alguma grande concepção perdida.
Tive na minha juventude um querido amigo, Nikolai Stankevitch (1813–1840). Era verdadeiramente uma natureza genial: uma grande inteligência, acompanhada de um grande coração. E, no entanto, esse homem não fez nem escreveu nada que possa conservar seu nome na história. Haveria aí um ser íntimo, perdido sem manifestação e sem rastro? Não. Stankevitch, apesar de que, ou precisamente por isso, foi o ser menos pretensioso e o menos ambicioso do mundo; foi o centro vivo de um grupo de jovens em Moscou, que viveram, por assim dizer, durante vários anos, de sua inteligência, de seus pensamentos, de sua alma. Eu pertenci a esse número, e o considero de certa forma como meu criador. Do mesmo modo criou outro homem, cujo nome ficará imperecível na literatura e na história do desenvolvimento intelectual e moral da Rússia; foi meu amigo Vissarion Belinski (fevereiro de 1810), o mais enérgico lutador pela causa da emancipação popular sob o imperador Nicolau. Morreu em 1848 (26 de maio), no momento mesmo em que a polícia secreta havia dado ordem de prendê-lo; morreu abençoando a República que acabava de ser proclamada na França.
Volto a Stankevitch. Seu ser íntimo estava completamente manifestado em suas relações com seus amigos, em primeiro lugar, e depois com todos os que tiveram a dita de se aproximarem dele; uma verdadeira dita, porque era impossível viver perto dele sem se sentir de certo modo melhorado e enobrecido. Em sua presença, nenhum pensamento covarde ou trivial, nenhum instinto mau parecia possível; os homens mais ordinários deixavam de o ser sob sua influência. Stankevitch pertencia a essa categoria de naturezas ao mesmo tempo ricas e requintadas que David Strauss caracterizou tão bem, há mais de trinta anos, em seu folheto intitulado, se não me engano, O gênio religioso (Über das religiöse Genie). Há homens dotados de um grande gênio, diz ele, que não o manifestam por nenhum grande ato histórico, nem por nenhuma criação, seja científica, seja artística, seja industrial; que nunca empreenderam nada, nem fizeram nem escreveram nada, e cuja ação se concentrou e se resumiu em sua vida pessoal, e que, no entanto, deixaram atrás de si uma marca profunda na história, pela ação exclusivamente pessoal, é verdade, mas ao mesmo tempo muito poderosa, que exerceram em seu entorno imediato, sobre seus discípulos. Essa ação se estende e se perpetua, primeiro pela tradição oral e mais tarde pelos escritos, pelos atos históricos de seus discípulos ou dos discípulos de seus discípulos. O doutor Strauss afirma, me parece que com muita razão, que Jesus, enquanto personagem histórico e real, foi um dos maiores representantes, um dos mais magníficos exemplares dessa categoria particular de homens de gênio íntimos. Stankevitch também o era, embora, sem dúvida, em uma medida muito menor que Jesus.
Creio ter dito o suficiente para demonstrar que no homem não há ser íntimo que não esteja completamente manifestado na soma total de suas relações exteriores ou de seus atos no mundo exterior. Mas, a partir do momento em que isso é evidente para o homem dotado do maior gênio, deve sê-lo ainda mais para todo o restante dos seres reais: animais, plantas, coisas inorgânicas e corpos simples. Todas as funções animais, cuja combinação harmoniosa constitui a unidade animal, a vida, a alma, o eu animal, não são mais que uma relação perpétua de ação e de reação com o mundo exterior; por conseguinte, uma manifestação incessante, independentemente da qual nenhum ser íntimo animal poderia existir, pois o animal só vive na medida em que seu organismo funciona. O mesmo se dá com as plantas. Quereis analisar, dissecar o animal? Encontrareis nele diferentes sistemas de órgãos: nervos, músculos, ossos, depois diferentes compostos, todos materiais, todos visíveis e quimicamente redutíveis. Encontrareis nele, tanto quanto nas plantas, células orgânicas e, levando mais longe a análise, corpos químicos simples. Eis aí todo o seu ser íntimo: é perfeitamente exterior e fora disso ele não tem nada. E todas essas partes materiais, cujo conjunto, ordenado de uma certa maneira que lhe é própria, constitui o animal, manifestam-se completamente por sua própria ação mecânica, física, química e orgânica também durante a vida animal; apenas mecânica, física e química depois de sua morte: todas se encontram em perpétuo movimento de ações e reações incessantes, e esse movimento é todo o seu ser.
O mesmo acontece com todos os corpos orgânicos, inclusive os corpos simples. Tomai um metal ou uma pedra: haverá, em aparência, algo mais inerte e menos expansivo? Pois bem, isso se move, atua, se manifesta sem cessar, e não existe senão na medida em que faz isso. A pedra e o metal têm todas as propriedades físicas e, na qualidade de corpos químicos simples ou compostos, encontram-se compreendidos em um processo muito lento às vezes, mas incessante, de composição e decomposição molecular. Essas propriedades, eu disse, são tantos modos de ação e de manifestação ao exterior. Mas tirai todas as suas propriedades da pedra, do metal — o que restará? A abstração de uma coisa, nada.
De tudo isso resulta, com uma evidência irrecusável, que o ser íntimo das coisas, inventado pelos metafísicos, com grande satisfação dos teólogos, declarado real pela própria filosofia positiva, é um não-ser, assim como o ser íntimo do universo, Deus, é também um não-ser; e que tudo o que tem uma existência real se manifesta integralmente em suas propriedades, em suas relações ou em seus atos.
As leis permanecem, mas as coisas parecem, o que equivale a dizer que essas coisas cessam de ser e se tornam coisas novas. E, no entanto, são coisas existentes e reais; na medida em que suas leis não têm existência efetiva senão se estiverem contidas nelas, não sendo de fato mais que enquanto são o modo real da genuína existência das coisas, de modo que, consideradas à parte, à margem dessa existência, tornam-se abstrações fixas e inertes, em não-seres.
A ciência, que se ocupa somente do que é expressável e constante, isto é, das generalidades mais ou menos desenvolvidas e determinadas, perde aqui seu domínio e abaixa a bandeira diante da vida, que é a única que está em relação com o aspecto vivente e sensível, mas imperceptível e indecível das coisas. Tal é o real e pode-se dizer o único limite da ciência, um limite verdadeiramente intransponível. Um naturalista, por exemplo, que é ele mesmo um ser real e vivo, disseca um coelho; esse coelho é igualmente um ser real, e foi, ao menos algumas horas atrás, uma individualidade vivente. Depois de o dissecar, o naturalista o descreve; pois bem, o coelho que sai da descrição é um coelho em geral, que se parece com todos os coelhos, privado de toda individualidade, e que, por conseguinte, nunca terá força para existir, e permanecerá eternamente um ser inerte e não vivente, nem corporal sequer, mas uma abstração, a sombra fixada de um ser vivo. A realidade vivente lhe escapa e só se dá à vida que, sendo ela mesma fugidia e passageira, pode perceber e, de fato, percebe sempre tudo o que vive, isto é, tudo o que passa ou foge.
O exemplo do coelho, sacrificado à ciência, nos interessa pouco, porque ordinariamente nos interessamos muito pouco pela vida individual dos coelhos. Não é o mesmo com a vida individual dos homens, que a ciência e os homens de ciência, habituados a viver entre abstrações, isto é, a sacrificar sempre as realidades fugidias e viventes às suas sombras constantes, seriam igualmente capazes, se lhes fosse permitido, de imolar ou ao menos subordinar em benefício de suas generalizações abstratas.
A individualidade humana, assim como a das coisas mais inertes, é igualmente imperceptível e, por assim dizer, inexistente para a ciência. Também os indivíduos vivos devem ser presumidos e protegidos contra ela, para não serem imolados, como o coelho, em benefício de uma abstração qualquer, assim como devem precaver-se ao mesmo tempo contra a teologia, contra a política e contra a jurisprudência, que, participando igualmente desse caráter abstrativo da ciência, têm a tendência fatal de sacrificar os indivíduos em benefício da mesma abstração, chamada por cada um com nomes diferentes: a primeira a chama verdade divina; a segunda, bem público; e a terceira, justiça.
Longe de mim querer comparar as abstrações benfazejas da ciência com as abstrações perniciosas da teologia, da política e da jurisprudência. Estas últimas devem cessar de reinar, devem ser igualmente extirpadas da sociedade humana — sua salvação, sua emancipação, sua humanização definitiva não se dão senão a esse preço — enquanto que as abstrações científicas, ao contrário, devem ocupar seu lugar, não para reinar sobre a sociedade humana, segundo o sonho liberticida dos filósofos positivistas, mas para iluminar seu desenvolvimento espontâneo e vivente. A ciência pode ser aplicada à vida, mas nunca encarnar-se na vida. Porque a vida é a ação imediata e vivente, o movimento ao mesmo tempo espontâneo e fatal das individualidades vivas. A ciência não é mais que abstração, sempre incompleta e imperfeita. Se quisesse impor-se a ela como doutrina absoluta, como autoridade governativa, a empobreceria, a falsearia e a paralisaria. A ciência não pode sair das abstrações: esse é seu reino. Mas as abstrações e seus representantes imediatos, de qualquer natureza que sejam: sacerdotes, políticos, juristas, economistas e sábios, devem cessar de governar as massas populares. Todo o progresso do porvir está aí. É a vida e o movimento da vida, a ação individual e social dos homens, devolvidos à sua completa liberdade. É a extinção absoluta do princípio mesmo da autoridade. E como? Pela propaganda mais amplamente popular da ciência livre. Assim, a massa social não terá fora de si uma verdade chamada absoluta que a dirija e governe, representada por indivíduos muito interessados em conservá-la exclusivamente em suas mãos, porque lhes dá força, e com a força, a riqueza, o poder de viver às custas do trabalho da massa popular. Essa massa terá uma verdade, sempre relativa, mas real, uma luz interior que iluminará seus movimentos espontâneos e que tornará inútil toda autoridade e toda direção exteriores…
…Tomai a ciência social que quiserdes: a história, por exemplo, que considerada em sua extensão mais vasta, compreende todas as outras. Pode-se dizer, é verdade, que até hoje a história, como ciência, não existe. Os historiadores mais ilustres, que tentaram traçar o quadro geral das evoluções históricas da sociedade humana, inspiraram-se até agora em um ponto de vista exclusivamente ideal, considerando a história seja sob o aspecto de seus desenvolvimentos religiosos, estéticos ou filosóficos, seja sob o da política ou do nascimento e decadência dos Estados, ou, finalmente, do ponto de vista jurídico, inseparável, aliás, deste último, que constitui propriamente a política interna dos Estados. Quase todos negligenciaram igualmente ou até ignoraram o ponto de vista antropológico e o ponto de vista econômico, que formam, contudo, a base real de todo desenvolvimento humano. Buckle, em sua admirável introdução à História da civilização na Inglaterra, que carrega o selo de um verdadeiro gênio, expôs os princípios efetivos da ciência histórica; infelizmente, não pôde concluir senão essa introdução, e a morte prematura lhe impediu de escrever a obra anunciada. Por outro lado, o senhor Karl Marx, muito antes de Buckle, anunciou essa grande, justa e fecunda ideia: que todos os desenvolvimentos intelectuais e políticos da sociedade não são outra coisa senão a expressão ideal de seus desenvolvimentos materiais ou econômicos. Mas ainda não se escreveu, que eu saiba, obra histórica em que essa ideia admirável tenha recebido, ainda que não fosse mais que o começo de alguma realização. Em uma palavra, a história como ciência não existe.
…Isso não impedirá, sem dúvida, que os homens de gênio mais organizados para as especulações científicas do que a imensa maioria de seus contemporâneos, não se entreguem também mais exclusivamente do que os outros ao cultivo das ciências, e prestem grandes serviços à humanidade, mas sem ambicionar outra influência social que a influência natural que um espírito jamais deixa de exercer em seu meio, nem outra recompensa que a satisfação de sua nobre paixão e, às vezes, também o reconhecimento e a estima de seus contemporâneos.
A ciência, ao se tornar patrimônio de todos, casará de certo modo com a vida imediata e real de cada um. Ganhará em utilidade e graça o que perderá em ambição e pedantismo doutrinário. Tomará na vida o lugar que o contraponto deve ocupar, segundo Beethoven, nas composições musicais. A alguém que lhe perguntou se era necessário saber contraponto para compor boa música, ele respondeu: “Sem dúvida, é absolutamente necessário conhecer o contraponto; mas é tão necessário esquecê-lo depois de aprendido, se se quer compor algo bom”. O contraponto forma, de certo modo, o esqueleto regular, mas perfeitamente inanimado e sem graça, da composição musical, e como tal deve desaparecer absolutamente sob a graça espontânea e viva da criação artística. Assim como o contraponto, a ciência não é o fim, não é mais que um dos meios mais necessários e magníficos dessa outra criação, mil vezes mais sublime ainda que todas as composições artísticas: a vida e a ação imediatas e espontâneas dos indivíduos humanos na sociedade.
Essa é, pois, a natureza desse ser íntimo, que realmente permanece sempre fechado para a ciência. É o ser imediato e real dos indivíduos, como coisas: é o eternamente passageiro, são as realidades fugitivas da transformação eterna e universal, realidades que só o são na medida em que deixam de ser e que só podem deixar de ser porque são; enfim, as individualidades palpáveis, mas não expressáveis das coisas. Para poder determiná-las seria preciso conhecer todas as causas das quais são efeitos, e todos os efeitos dos quais são causas; perceber todas as suas relações naturais de ação e reação em todas as coisas que existem e que existiram no mundo. Como seres vivos, percebemos, sentimos essa realidade, ela nos envolve, a sofrermos e exercemos, muitas vezes ao nosso capricho, em todo momento. Como seres pensantes, fazemos necessariamente abstração dela, porque nosso próprio pensamento não começa senão com essa abstração e por ela. Essa contradição fundamental entre nosso ser real e nosso ser pensante é a fonte de todos os nossos desenvolvimentos históricos, desde o gorila, nosso antepassado, até o senhor Bismarck, nosso contemporâneo; a causa de todas as tragédias que ensanguentaram a história humana, mas também de todas as comédias que a alegraram; criou as religiões, a arte, a indústria, os Estados, enchendo o mundo de contradições horríveis e condenando os homens a sofrimentos terríveis; sofrimentos que só poderão acabar com o abandono de todas as abstrações que criou em seu desenvolvimento histórico e que hoje se resumem definitivamente na ciência, pela volta dessa ciência à vida.
[10] Augusté Comte, Cours de Philosophie positive, tomo III, página 464.
[11] É incontestável que, na imensa maioria dos seres que a possuem, a vida animal não constitui mais do que um simples aperfeiçoamento complementar, acrescentado, por assim dizer, à vida orgânica (vegetal) ou fundamental. E isso, justamente, seja para lhe fornecer materiais para uma reação inteligente sobre o mundo exterior, seja para preparar ou facilitar seus atos (a digestão, a busca e a escolha dos alimentos) por meio das sensações, das diversas locomoções e da inervação, seja, enfim, para protegê-la melhor das influências desfavoráveis. Os animais mais elevados e, sobretudo, o ser humano, são os únicos nos quais essa relação geral pode, de certo modo, parecer totalmente invertida, e nos quais a vida vegetal deve parecer, ao contrário, essencialmente destinada a manter a vida animal, que se torna aparentemente o objetivo principal e o traço predominante da existência orgânica. Mas, no próprio ser humano, essa admirável inversão da ordem geral do mundo vivente só começa a se tornar compreensível com a ajuda de um desenvolvimento muito notável da inteligência e da sociabilidade, que tende cada vez mais a transformar artificialmente — (e, na teoria de Comte, de maneira muito aristocrática, no sentido de um pequeno número de inteligências privilegiadas, naturalmente sustentadas e alimentadas pelo trabalho muscular das massas, devendo governar, segundo essa teoria, o restante da humanidade) — a espécie em um único indivíduo, imenso e eterno, dotado de uma ação constantemente progressiva sobre a natureza exterior. É somente desse ponto de vista que se pode considerar com justiça essa subordinação voluntária e sistemática da vida vegetal à vida animal como o tipo ideal para o qual tende incessantemente a humanidade civilizada, ainda que tal ideal nunca deva se realizar plenamente... A base e o germe das propriedades essenciais da humanidade devem, incontestavelmente, ser tomados da ciência biológica pela ciência social... Mesmo diante do ser humano, a biologia, necessariamente limitada ao estudo exclusivo do indivíduo, deve manter rigorosamente a noção primordial da vida animal subordinada à vida vegetal, como lei geral do reino orgânico, cuja única exceção aparente constitui o objeto especial de uma ciência fundamental distinta (a sociologia). É preciso, por fim, acrescentar a esse tema que, mesmo nos organismos superiores, a vida orgânica, além de constituir a base e o fim, permanece como a única inteiramente comum a todos os diversos tecidos que os compõem, ao mesmo tempo em que é também a única que se exerce de maneira necessariamente contínua, pois a vida animal é, ao contrário, essencialmente intermitente. Augusto Comte, Cours de Philosophie positive, tomo III, páginas 207–209.
[12] Auguste Comte, Cours de Philosophie positive, tomo III, página 93.
[13] Por estas palavras, Augusto Comte prepara evidentemente as bases de seu sistema sociológico e político, que culmina, como se sabe, no governo das massas condenadas fatalmente, segundo ele, a nunca sair do estado precário do proletariado por uma espécie de teocracia composta de sacerdotes, não da religião, mas da ciência, ou desse pequeno número de homens de elite tão bem organizados que a subordinação completa dos interesses materiais da vida às preocupações ideais ou transcendentais do espírito, que é um pium desideratum de uma realização impossível para a massa dos homens, se torna neles uma realidade. Essa conclusão prática de Augusto Comte repousa sobre uma observação muito falsa. Não é justo dizer que as massas, seja qual for a época da história, não se preocuparam mais do que com seus interesses materiais. Poder-se-ia, ao contrário, reprovar-lhes, por tê-los negligenciado demais até aqui, o fato de os haverem sacrificado muito facilmente a tendências platonicamente ideais, a interesses abstratos e fictícios, que sempre foram recomendados à sua fé por esses homens de elite a quem Augusto Comte concede tão generosamente a direção exclusiva da humanidade: tais foram as tendências e os interesses religiosos, patrióticos, nacionais e políticos, até os de liberdade exclusivamente política, muito reais para as classes privilegiadas e sempre cheios de ilusão e de decepção para as massas. É lamentável, sem dúvida, que as massas tenham sempre dado estúpida fé a todos os charlatães oficiais e oficiosos que, com um fim na maioria das vezes muito interessado, lhes pregaram o sacrifício de seus interesses materiais. Mas essa estupidez se explica pela sua ignorância, e que as massas ainda são excessivamente ignorantes, quem duvida disso? O que é injusto afirmar é que as massas são menos capazes de se elevar acima de suas preocupações materiais do que as outras classes da sociedade, menos do que os sábios, por exemplo. O que vemos hoje na França, não nos dá a prova do contrário? Onde encontraremos neste momento o verdadeiro patriotismo, capaz de sacrificar tudo? Certamente não será na sábia burguesia, é somente no proletariado das cidades; e, no entanto, a pátria só é boa mãe para os burgueses, para o trabalhador tem sido sempre uma madrasta.
[14] No manuscrito segue um parágrafo que o autor utilizou em O Império knuto-germânico, segunda parte, e que, por conseguinte, apagou neste original, anotando à margem em russo a palavra: Utilizado. (Nota de Diego Abad de Santillán).
[15] Segue um fragmento que Bakunin removeu por tê-lo utilizado em O Império knuto-germânico, segunda parte. (Nota de Diego Abad de Santillán).
[16] Bakunin usou um fragmento que viria a seguir e, variando ligeiramente sua forma, incluiu-o no O Império knuto-germânico, segunda parte. (Nota de Diego Abad de Santillán).
[17] Assim como um padre católico, que é verdadeiramente sagrado quando realiza seus mistérios cabalísticos; assim como o Papa, que só é infalível quando, inspirado pelo Espírito Santo, define os dogmas da fé.
[18] Dir-se-ia que os sábios quiseram demonstrar a posteriori quão pouco capazes são os representantes da ciência para governar o mundo, e que somente a ciência, e não os sábios, seus sacerdotes, é chamada a dirigi-lo.
[19] Não se é cavaleiro ali senão com a condição de ir à igreja. O domingo, na Inglaterra, é um verdadeiro dia de hipocrisia pública. Estando em Londres, experimentei um verdadeiro desgosto ao ver tantas pessoas, que de modo algum se preocupavam com o bom Deus, irem solenemente à igreja com seus livros de orações na mão, esforçando-se por esconder um tédio profundo sob um aspecto de humildade e contrição. Em sua defesa, é preciso dizer que, se não fossem à igreja e se ousassem confessar sua indiferença em relação à religião, não só seriam muito mal recebidas na sociedade aristocrática e burguesa, como correriam o risco de ser abandonadas por seus empregados.
[20] Prefácio de um discípulo, pág. XLIX: Cours de Philosophie positive, de Auguste Comte, 2ª edição.
[21] Considero também tudo o que foi feito e tudo o que se faz no mundo real, seja natural ou social, como um produto necessário de causas naturais. Mas estou longe de pensar que tudo o que é necessário ou fatal seja bom. Um vento forte acaba de arrancar uma árvore. Isso era necessário, mas não bom. A política de Bismarck parece triunfar durante algum tempo na Alemanha e na Europa. Esse triunfo é necessário, porque é o produto fatal de muitas causas reais, mas de modo algum é saudável, nem para a Europa nem para a Alemanha.
[22] Cours de Philosophie positive de Augusto Comte, tomo I, Prefácio de um discípulo, pp. XLIV-XLV.
[23] Confesso que sempre experimento repugnância em empregar estas palavras: Leis naturais que governam o mundo. A ciência natural tomou a palavra “lei” da ciência e da prática jurídica, que naturalmente a precederam na história da sociedade humana. Sabe-se que todas as legislações primitivas tiveram, no início, um caráter religioso e divino; a jurisprudência, como a política, é filha da teologia. As leis não foram, portanto, nada mais do que mandamentos divinos impostos à sociedade humana, à qual tinham a missão de governar. Transportada mais tarde às ciências naturais, essa palavra “lei” conservou nelas por muito tempo seu sentido primitivo, e isso com muita razão, porque durante todo o longo período de sua infância e adolescência, as ciências naturais, ainda submetidas às inspirações da teologia, consideraram a própria natureza como submetida a uma legislação e a um governo divinos. Mas, a partir do momento em que chegamos a negar a existência do legislador divino, não podemos falar de uma natureza governada e de leis que a governam. Não existe nenhum governo na natureza, e o que chamamos de leis naturais não constituem outra coisa senão diferentes modos regulares do desenvolvimento dos fenômenos e das coisas, que se produzem, de uma maneira desconhecida para nós, no seio da causalidade universal.
[24] A inteligência dos animais, que se manifesta em sua mais alta expressão como inteligência humana, como espírito, é o único ser intelectual cuja existência foi realmente constatada, a única inteligência que conhecemos; não existe outra na Terra. Devemos considerá-la, sem dúvida, como uma das causas diretamente ativas em nosso mundo; mas, como já demonstrei, sua ação não é de modo alguma espontânea, pois, longe de ser uma causa absoluta, é, ao contrário, uma causa essencialmente relativa, no sentido de que, antes de se tornar por sua vez uma causa de efeitos relativos, foi o efeito das causas materiais que produziram o organismo humano, do qual é uma das funções; e quando atua como causa de efeitos novos no mundo exterior, continua ainda sendo produzida pela ação material de um órgão material, o cérebro. É, pois, o mesmo que a vida orgânica de uma planta; vida que, produzida por causas materiais, exerce uma ação natural e necessária sobre seu meio; uma causa completamente material. Não a chamamos de intelectual senão para distinguir sua ação especial, que consiste na elaboração dessas abstrações que chamamos pensamentos e na determinação consciente da vontade — da ação especial da vida animal, que consiste nos fenômenos da sensibilidade, da irritabilidade e do movimento voluntário, e da ação especial da vida vegetal, que consiste nos fenômenos da nutrição. Mas todas essas três ações, assim como a ação mecânica, física e química dos corpos inorgânicos, são igualmente materiais; cada uma é ao mesmo tempo um efeito material e uma causa material. Não há outros efeitos nem outras causas em nosso mundo, nem na imensidão. Só existe o material, e o espiritual é seu produto. Infelizmente, essas palavras “material”, “matéria”, formaram-se numa época em que o espiritualismo dominava, não só na teologia e na metafísica, mas também na própria ciência, o que fez com que, sob esse nome de matéria, se formasse uma ideia abstrata e completamente falsa de algo que seria não só estranho, mas absolutamente oposto ao espírito; e é precisamente essa maneira absurda de entender a matéria que prevalece ainda hoje, não só entre os espiritualistas, mas também entre muitos materialistas. É por isso que muitos espíritos contemporâneos rejeitam com horror essa verdade, incontestável, no entanto, de que o espírito não é outra coisa senão um dos produtos, uma das manifestações do que chamamos matéria. E, de fato, a matéria tomada nessa abstração, como ser morto e passivo, não poderia produzir absolutamente nada, nem o mundo vegetal, sem falar já do mundo animal e intelectual. Para nós, a matéria não é de modo algum esse substrato inerte produzido pela abstração humana: é o conjunto real de tudo o que é, de todas as coisas realmente existentes, inclusive as sensações, o espírito e a vontade dos animais e dos homens. A palavra genérica para a matéria assim concebida seria o ser, o ser real, que é a evolução ao mesmo tempo; ou seja, o movimento que resulta sempre e eternamente da soma infinita de todos os movimentos parciais, até os infinitamente pequenos, o conjunto total das ações e reações mútuas e das transformações incessantes de todas as coisas que se produzem e que desaparecem sucessivamente, a produção e a reprodução eterna de tudo por cada ponto e de cada ponto por tudo, a causalidade mútua e universal.
[25] Os positivistas se rebelam francamente, e com muita razão, contra as abstrações metafísicas ou contra as entidades que não representam mais do que nomes, e não coisas. E, no entanto, servem-se eles próprios de algumas entidades metafísicas, com grande prejuízo para a positividade de sua ciência. Por exemplo, o que significa essa palavra matéria, que representa algo absoluto, uniforme e único, uma espécie de substratum universal de todas as coisas determinadas, relativas e realmente existentes? Mas, quem jamais viu essa matéria absoluta, uniforme e única? Ninguém, que eu saiba. O que todo mundo viu e vê a cada instante da vida é uma quantidade de corpos materiais, compostos ou simples e diferentemente determinados. O que se entende por essas palavras: corpos materiais? Corpos materiais realmente existentes no espaço e que, apesar de toda a sua diversidade, possuem em comum todas as propriedades físicas. Essas propriedades comuns constituem sua natureza material comum, e é a essa natureza comum que, abstração feita de todas as coisas nas quais ela se manifesta, se dá esse nome absoluto ou metafísico de matéria. Mas uma natureza comum, um caráter comum, não existem por si mesmos, e só são reais em relação àqueles que se encontram associados.
[26] Eis aí uma limitação contra a qual é impossível protestar, porque não é arbitrária, absoluta, e não implica, para o espírito, a proibição de penetrar nessas regiões imensas e desconhecidas. Decorre da natureza ilimitada do próprio objeto e contém este simples aviso: por mais longe que o espírito possa penetrar, jamais poderá esgotar esse objeto, nem chegar ao termo ou ao fim da imensidão, pela simples razão de que esse termo ou esse fim não existem.
[27] Mas, assim como a extensão das necessidades intelectuais do homem, considerado não como indivíduo isolado, nem mesmo como geração presente, mas como humanidade passada, presente e futura, é sem limites, o alcance efetivo dos conhecimentos humanos em um porvir indefinido também o é.
[28] Eis aí uma dessas bofetadas no bom Deus, das quais está cheio o livro de Augusto Comte.
[29] O que equivale a dizer que temos necessidade de saber tudo. O número de coisas que atuam sobre mim é sempre infinitamente pequeno. Mas essas coisas que são, em relação a mim, causas imediatamente ativas, não existem e, por conseguinte, tampouco atuam sobre mim senão porque elas mesmas se encontram também submetidas à ação imediata de outras causas que atuam diretamente sobre elas e indiretamente, por meio delas, sobre mim. Tenho necessidade de conhecer as coisas que exercem sobre mim uma ação imediata; mas, para compreendê-las, tenho necessidade de conhecer as que atuam sobre elas, e assim por diante até o infinito. Donde resulta que devo saber tudo.
[30] Do que concluo logicamente que nenhum mundo, por mais distante e invisível que esteja, está fechado de maneira absoluta ao conhecimento do homem.
[31] Provavelmente Augusto Comte quer dizer com isso que tal conhecimento não nos oferece uma importância prática imediata e que só pode influir de maneira muito indireta e muito fraca sobre a organização de nossa existência material na Terra; porque essa curiosidade insaciável da inteligência humana é uma força moral pela qual o homem se distingue talvez mais do que por qualquer outra coisa do restante do mundo animal, e cuja satisfação é, por conseguinte, muito importante para o triunfo de sua humanidade.
[32] Então essa independência está longe de ser absoluta; pois basta que nosso planeta mude um pouco de posição em relação ao Sol para que todos os fenômenos meteorológicos da Terra sejam consideravelmente modificados; o que certamente também aconteceria ao nosso sistema solar, se o nosso Sol tomasse uma nova posição em relação aos outros sóis.
[33] Mas não sendo essa desproporção absoluta, e sim apenas relativa, resulta também que a independência do nosso sistema solar em relação aos outros sóis é igualmente apenas relativa. Ou seja, se tomarmos como medida de tempo a vida de uma geração, ou alguns séculos, o efeito sensível da dependência certa em que se encontra o nosso sistema solar, no que se refere ao universo, parece absolutamente nulo.
[34] A comunidade de pensamentos implica sempre a dos interesses.
[35] Sempre em um sentido relativo: mais estrangeiros, mas não totalmente. Confessemos que tanto uns como outros, se existem apenas, nos são pouco mais ou menos igualmente estrangeiros, pois não sabemos e nunca poderemos nos assegurar com alguma certeza de que existem.
[36] Cours de Philosophie positive, por Augusto Comte, 2a. edición. tomo II, págs. 10–12.
[37] Esta é uma verdade universal que não admite nenhuma exceção e que se aplica igualmente às coisas inorgânicas em aparência mais inertes, aos corpos mais simples, assim como às organizações mais complexas: à pedra, ao corpo químico simples, tanto quanto ao homem de gênio e a todas as coisas intelectuais e sociais. O homem não tem realmente em seu interior senão aquilo que manifesta de algum modo em seu exterior. Esses chamados gênios desconhecidos, esses espíritos vaidosos e enamorados de si mesmos, que se lamentam eternamente por nunca conseguirem trazer à luz os tesouros que dizem carregar dentro de si, são sempre, de fato, os indivíduos mais miseráveis em relação ao seu ser íntimo: não carregam dentro de si nada. Tomemos, por exemplo, um homem de gênio que houvesse morrido ao entrar na virilidade, no momento em que estava prestes a descrever, criar, manifestar grandes coisas, e que levou ao túmulo, como geralmente se diz, as mais sublimes concepções, perdidas para sempre para a humanidade. Eis aí um exemplo que parece provar exatamente o contrário desta verdade; eis aí um ser íntimo muito real, muito sério, e que não teria se manifestado. Mas examinemos mais de perto esse exemplo, e veremos que ele não contém senão exagerações ou apreciações completamente falsas.
[38] Existe realmente em todas as coisas um aspecto ou, se quiserdes, uma espécie de ser íntimo que não é inacessível, mas que é imperceptível para a ciência. Não é de modo algum o ser íntimo de que fala o senhor Littré com todos os metafísicos, e que constituiria, segundo eles, o em-si das coisas, e o porquê dos fenômenos; é, ao contrário, o aspecto menos essencial, menos interior, o mais exterior e ao mesmo tempo o mais real e o mais passageiro, o mais fugidio das coisas e dos seres: é sua materialidade imediata, sua real individualidade, tal como se apresenta unicamente aos nossos sentidos, e que nenhuma reflexão do espírito poderia reter, nem nenhuma palavra poderia expressar, repetindo uma observação muito curiosa que Hegel fez, segundo eu penso, pela primeira vez. Já falei dessa particularidade da palavra humana de não poder expressar mais que generalidades, mas não a existência imediata das coisas, nessa crueza realista, cuja impressão imediata nos é trazida pelos nossos sentidos. Tudo o que puderes dizer de uma coisa para determiná-la, todas as propriedades que lhe atribuíres ou que encontrarás nela, serão determinações gerais, aplicáveis em graus diferentes e em uma quantidade incontável de combinações diversas, a muitas outras coisas. As determinações ou prescrições mais detalhadas, as mais íntimas, as mais materiais que pudesses fazer serão sempre determinações gerais, de modo algum individuais. A individualidade de uma coisa não se expressa. Para indicá-la deveis, ou levar o vosso interlocutor à sua presença, fazê-lo ver, ouvir, tocar, ou deveis determinar seu lugar e seu tempo, tanto quanto suas relações com outras coisas já determinadas e conhecidas. Ela foge, escapa a todas as outras determinações. Mas foge, escapa igualmente a si mesma, porque não é outra coisa senão uma transformação incessante: é, era, não é mais, ou bem é outra coisa. Sua realidade constante é desaparecer ou transformar-se. Mas essa realidade constante é seu aspecto geral, sua lei, o objeto da ciência. Essa lei, tomada e considerada à parte, não é mais que uma abstração, desprovida de todo caráter real, de toda existência real. Não existe realmente, não é uma lei efetiva, senão nesse processo real e vivo de transformações imediatas, fugidias, imperceptíveis e indecíveis. Tal é a dupla natureza, a natureza contraditória das coisas: a de ser em realidade o que incessantemente cessa de ser, e não existir realmente no que permanece geral e constante, no meio de suas transformações perpétuas.
[39] Cours de Philosophie positive, tomo II, pág. 219.
[40] Aqui está uma daquelas expressões equivocadas, para não dizer hipócritas, que detesto nos filósofos positivistas. Augusto Comte ignorava que a ideia da criação e de um criador não só é imperceptível, como também absurda, ridícula, impossível? Poder-se-ia até crer que ele mesmo não estava bem seguro de si, como prova a recaída no misticismo que marcou o fim de sua carreira e à qual já fiz alusão mais acima. Mas seus discípulos, pelo menos, alertados por essa queda de seu mestre, deveriam compreender, enfim, todo o perigo que existe em ficar ou, pelo menos, em deixar o público nessa incerteza sobre uma questão cuja solução, seja afirmativa ou negativa, deve exercer uma influência tão grande sobre todo o futuro da humanidade.
[41] O manuscrito se interrompe aqui. No verso da última página, Bakunin escreveu estas linhas: Desenvolver a ideia de que não é somente a ciência, mas também a vida, que age de forma abstrativa, frente às individualidades reais e passageiras. Não envio para comprar, a cozinheira não compra e não mata este coelho, mas o coelho em geral: os animais. A vida é uma transição incessante do individual para o abstrato e do abstrato para o indivíduo. É este segundo momento que falta à ciência; uma vez no abstrato não pode sair dele.