Mikhail Bakunin
O sistema do mundo
Breve nota introdutória
É com muito orgulho que o Arquivo Bakunin em Português (ABP) apresenta a seus leitores e camaradas o primeiro capítulo da obra Considerações Filosóficas sobre o fantasma divino, sobre o mundo real e sobre o homem. Essas Considerações são um apêndice de Federalismo, Socialismo e Anti-teologismo (FSAT). Sua datação é baseada em uma carta de Bakunin enviada a Ogarev em 19 de novembro de 1870. O presente texto foi traduzido do espanhol de forma voluntária e coletiva pelos colaboradores do ABP. Os demais capítulos serão publicados de acordo com o término das traduções. No prólogo do volume 3 das Obras de Bakunin, publicadas por Ediciones Júcar em 1977, Max Nettlau diz que "a leitura destes dois escritos, Federalismo... e Considerações... , é um pouco difícil, porém o leitor é gradualmente iniciado no assunto e realizará o estudo do segundo mais bem preparado pelo estudo do primeiro." Nettlau recomenda primeiro a leitura do FSAT e depois o Considerações. Mas acima de tudo ele realça o elo de ligação epistemológica entre as duas obras. Em breve, além das traduções dos próximos capítulos de Considerações, estaremos disponibilizando para nossos leitores e demais camaradas de luta a digitalização de Federalismo, Socialismo e Anti-teologismo.
Os Editores,
Brasil, janeiro de 2011.
Considerações Filosóficas sobre o fantasma divino, sobre o mundo real e sobre o homem (1870)
Mikhail Bakunin
1 - O Sistema do Mundo
Não é este o lugar para entrar em especulações filosóficas sobre a natureza do ser. Mas como me vejo forçado a empregar muitas vezes a palavra natureza, creio que devo dizer aqui o que entendo por ela. Poderia dizer que a natureza é a soma de todas as coisas realmente existentes. Mas isso me daria uma idéia completamente morta da natureza, que apresenta a nós, ao contrário, todo movimento e toda a vida. Além disso, o que é a soma das coisas? As coisas tal como são hoje não serão amanhã; amanhã não haverão se perdido, senão inteiramente transformadas. Aproximarei-me muito mais da verdade dizendo que a natureza é a soma das transformações reais das coisas que se produzem e que se produzirão incessantemente em seu seio; e para dar uma idéia um pouco mais determinada do que possa ser essa soma ou essa totalidade, que chamo natureza, enunciarei, e creio poder estabelecer-la como um axioma, a proposição seguinte:
Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja por outra parte sua natureza particular, tanto desde o ponto de vista da qualidade como da quantidade, as mais diferentes e as mais semelhantes, grandes ou pequenas, próximas ou imensamente distantes, exercem necessária e inconscientemente, seja por via imediata e direta, seja por transmissão indireta, uma ação e uma reação perpétuas; e toda essa quantidade infinita de ações e de reações particulares, ao combinar-se em um movimento geral e único, produz e constitui o que chamamos vida, solidariedade e causalidade universal, a natureza.
Chame isso de deus, de absoluto, se os diverte, nada disso me importa, desde que não deis a essa palavra, deus, outro sentido que o que acabo de precisar: o da combinação universal, natural, necessária e real, mas de nenhum modo predeterminada nem preconcebida, nem prevista, dessa infinidade de ações e de reações particulares que todas as coisas realmente existentes exercem incessantemente umas sobre todas. Definida assim a solidariedade universal, a natureza, considerada no sentido do universo sem limites, se impõe como uma necessidade reacional a nosso espírito; mas não podemos abarcar-la nunca de uma maneira real, nem sequer pela imaginação ou pelo reconhecimento. Por que não podemos reconhecer mais que essa parte infinitamente pequena do universo que nos é manifestada por nossos sentidos; e quanto ao resto, nós supomos, sem poder constatar realmente sua existência.
É claro que a solidariedade universal, explicada desse modo, não pode ter o caráter de uma causa absoluta e primeira; não é, ao contrário, mais que uma resultante [1], produzida e reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares, cujo conjunto constitui precisamente a causalidade universal, a unidade composta, sempre reproduzida pelo conjunto indefinido das transformações incessantes de todas as coisas que existem e, ao mesmo tempo, criadora de todas as coisas; cada ponto atuando sobre o todo (eis ai o universo produzido), e o todo atuando sobre cada parte (eis ai o universo produtor e criador).
Havendo explicado bem, posso dizer agora, sem medo de dar lugar a algum mal entendido, que a causalidade universal, a natureza, cria os mundos. É ela que tem determinado a configuração mecânica, física, química, geológica e geográfica de nossa Terra, e que, depois de haver coberto sua superfície com todos os esplendores da vida vegetal e animal, continua criando ainda, no mundo humano, a sociedade com todos seus desenvolvimentos passados, presentes e futuros.
Quando o homem começa a observar com uma atenção perseverante e seguida essa parte da natureza que o rodeia e que encontra em si mesmo, acaba por perceber que todas as coisas são governadas por leis que lhe são inerentes e que constituem propriamente sua natureza particular; que nessa transformação e essa ação existe uma sucessão de fenômenos e de fatos que se repetem constantemente, nas mesmas circunstancias dadas, e que, sob a influencia de circunstâncias determinadas, novas, se modificam de uma maneira igualmente regular e determinada. Essa reprodução constante dos mesmos fatos pelos mesmos pelos mesmos procedimentos constitui propriamente a legislação da natureza: a ordem na infinita diversidade dos fenômenos e dos fatos.
A soma de todas as leis, conhecidas e desconhecidas, que trabalham no universo, constitui a lei única e suprema. Essas leis se dividem e se subdividem em leis gerais e em leis particulares e especiais. As leis matemáticas, físicas e químicas, por exemplo, são leis gerais que se manifestam em todo o que existe, em todas as coisas que tem uma existência real, leis que, em uma palavra, são inerentes a matéria, ou seja, ao ser real e unicamente universal, o verdadeiro substratum de todas as coisas existentes. Acrescentarei também que a matéria não existe nunca e em nenhuma parte como substratum, que ninguém pode perceber-la sob essa forma unitária e abstrata; que não existe e que só pode existir sob uma forma muito mais concreta, como matéria mais ou menos diversificada e determinada.
As leis do equilíbrio, da combinação e da ação mutua das forças ou do movimento mecânico; as leis da gravidade, do calor, da vibração dos corpos, da luz, da eletricidade, tanto como as de composição e decomposição química dos corpos, são absolutamente inerentes a todas as coisas existem, sem excetuar de nenhum modo as diferentes manifestações do sentimento, da vontade e do espírito; pois estas três coisas, que constituem propriamente o mundo ideal do homem, não são mais que funcionamentos completamente materiais da matéria organizada e viva , no corpo do animal em geral e sobre todo do animal humano em particular [2]. Por conseguinte, todas essas são gerais, as quais estão submetidos todas as ordens conhecidas e desconhecidas de existência real no mundo.
Mas existem leis particulares que são próprias apenas a certos ordens particulares de fenômenos, de fatos e de coisas, e que formam entre si sistemas ou grupos aparte: tais são, por exemplo, o sistema de leis geológicas; o das leis de organização animal; em suma, as leis que governam o desenvolvimento social e ideal do animal mais perfeito da Terra, o Homem.
Não se pode dizer que as leis que pertencem a um desses sistemas sejam absolutamente estranhas às que compõem os outros sistemas. Na natureza, tudo esta ligado muito mais intimamente do que se pensa, e do que os pedantes da ciência podem querer, no interesse de uma maior precisão em seu trabalho de classificação. Mas, no entanto, pode-se dizer que um tal sistema de leis pertence muito mais a tal ordem de coisas e de fatos que a outro, e que se, na sucessão em que lhes apresentei, as leis que dominam no sistema anterior continuam manifestando sua ação nos fenômenos e nas coisas que pertencem a todos os sistemas que se seguem, não existe ação retrógrada das leis dos sistemas seguintes sobre as coisas e os fatos dos sistemas anteriores.Assim , a leido progresso, que constitui o caráter essencial do desenvolvimento social da espécie humana, não se manifesta de nenhum modo na vida exclusivamente animal, e ainda menos na vida exclusivamente vegetal; enquanto que todas as leis do mundo vegetal e do mundo animal se encontram, sem dúvida, modificadas por novas circunstancias, no mundo humano.
Em fim; no próprio seio dessas grandes categorias de coisas, de fenômenos e de fatos, assim como das leis que lhe são particularmente inerentes, existe ainda divisões e subdivisões que nos mostram essas mesmas leis particularizando-se e especializando-se mais e mais, acompanhando, por assim dizer, a especialização mais e mais determinada, - e que volta mais restringida a medida que se determina mais - , dos próprios seres.
O homem não tem, para constatar todas essas leis gerais, particulares e especiais, outro meio que a observação atenta e exata do fenômenos e dos fatos que se sucedem tanto fora dele como nele mesmo. Distingue neles o que é acidental e variável do que se reproduz sempre e em todas as partes de uma maneira invariável. O procedimento invariável pelo qual se reproduz constantemente um fenômeno natural, seja exterior, seja interior; a sucessão invariável dos fatos que o constituem, são precisamente o que chamamos a lei desse fenômeno.
Essa constância e essa repetição não são, no entanto, absolutas. Deixam um vasto campo ao que chamamos impropriamente as anomalias e as exceções – maneira muito pouco justa, por que os fatos ao qual nos referimos provam sozinhos que essas regras gerais, reconhecidas por nós como leis naturais, não sendo mais que abstrações deduzidas por nosso espírito do desenvolvimento real das coisas, não estão em estado de abarcar, de esgotar, de explicar toda a infinita riqueza desse desenvolvimento.
Essa multiplicidade de leis tão diversas, e que nossa ciência separa em categorias diferentes, formam um único sistema orgânico e universal, um sistema no qual estão ligados os próprios seres que manifestam as transformações e os desenvolvimentos? É muito provável. Mas, o que é mais que provável, o que é verdade, é que não podemos chegar nunca, não só a compreender, senão também a abarcar esse sistema único e real do universo, sistema infinitamente extenso por uma parte e infinitamente especializado por outra; de modo que ao estudar-lo teremos que enfrentar dois infinitos: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno.
Os detalhes são inesgotáveis. Não será possível nunca ao Homem conhecer mais que uma parte infinitamente pequena deles. Nosso céu estrelado, com sua multidão de sóis, não são mais que um ponto imperceptível na imensidão do espaço, e ainda que possamos vê-lo, não sabemos quase nada dele.
Por necessidade, portanto, devemos nos contentar em conhecer um pouco o nosso sistema solar, do qual temos que presumir a perfeita harmonia com todo o resto do universo, por que se não existisse essa harmonia, ou ela se estabeleceria ou nosso mundo solar pereceria.
Já conhecemos muito bem este último desde o seu ponto de vista mecânico, e já começamos a conhecer-lo um pouco desde o ponto de vista físico, químico, até geológico. Nosso ciência dificilmente irá muito além disso. Se queremos um conhecimento mais concreto, devemos nos ater ao nosso globo terrestre. Sabemos que ele nasceu em um dado momento e presumimos que – não sei em que número indefinido de séculos ou de milhões de séculos – será condenado a perecer, assim como tudo o que existe nasce e morre, ou melhor, se transforma.
Como nosso globo terrestre, primeiro matéria em combustão e gasosa, condensou e esfriou; por vasta gama de evoluções geológicas teve que passar, antes de poder produzir em sua superfície toda essa infinidade de riqueza da vida orgânica, vegetal e animal, desde a simples célula até o Homem; como ela se manifestou e continua desenvolvendo-se no nosso mundo histórico e social; qual é o fim para o qual marchamos, impulsionados por essa ley suprema e fatal de transformação incessante que na sociedade animal se chama progresso: eis aqui as únicas questões que nos são acessíveis, as únicas que podem e devem ser realmente abarcadas, estudadas e resolvidas pelo Homem. Não formando mais que um ponto imperceptível na questão ilimitada e indifinível do universo, essas questões humanas e terrestres oferecem no entanto ao nosso espírito um mundo realemente infinito, não no sentido divino, ou seja, no sentido abstrato dessa palavra, não como o ser supremo criado pela bstração religiosa; infinito, ao contrário, pela riqueza dos seus detalhes, que nenhuma observação e nenhuma ciencia jamais conseguirão apreciar.
Para conhecer esse mundo, nosso mundo infinito, a observação sozinha não seria suficiente. Abandonada a própria sorte, voltaria a nos levar infalivelmente ao ser supremo, a deus, ao nada, como já o fez na história, como explicarei em breve. É preciso – continuando ainda na aplicação dessa faculdade de abstração, sem a qual não poderíamos nunca nos elevar de uma ordem de coisas inferior para uma ordem de coisas superior nem, portanto, compreender a hierarquia natural dos seres -, é necessário que nosso espírito se submirja ao mesmo tempo, com respeito e com amor, no estudo minucioso dos detalhes e do infinitamente pequeno, sem o qual não poderíamos conceber jamais a realidade vivente dos seres. É, portanto, unindo essas duas faculdades, esses dois atos do espírito em aparência tão contrários: a abstração e a análise escrupulosa, atenta e paciente dos detalhes, como podemos elevar-nos à concepção real de nosso mundo. É evidente que se nosso sentimento e nosso imaginação podem dar-nos apenas uma imagem, uma representação mais ou menos falsa deste mundo, só a ciência poderá nos dar uma idéia clara e precisa.
Qual é então essa curiosidade imperiosa que impulsiona o Homem a reconhecer o mundo a sua volta, a perseguir com uma incansável paixão os segredos dessa natureza da qual ele mesmo é, sobre esta Terra, a última e a mais perfeita criação? Esta curiosidade, é um simples luxo, um agradável passatempo, ou uma das principais necessidades inerentes ao seu ser? Não vacilo em dizer que de todas as necessidades que constituem a natureza do Homem, essa é a mais humana, e que o Homem não se distingue efetivamente dos animais das demais espécies senão por essa necessidade insaciável de saber, que não é realmente e completamente Homem senão pelo despertar e pela satisfação progressiva dessa imensa necessidade de saber. Para realizar-se na plenitude de seu ser, o Homem deve reconhecer-se, e nunca se conhecerá de uma maneira completa e real enquanto não tenha reconhecido a natureza a sua volta e da qual é produto. Portanto, ao contrário de renunciar sua humanidade, o Homem deve saber, deve pensar com seu pensamento todo o mundo real, e sem esperança de chegar nunca ao fundo, deve aprofundar mais e mais a coordenação e as leis, por que sua humanidade não existe senão a esse preço. Lhe é preciso reconhecer todas as regiões inferiores, anteriores e contemporâneas ao mesmo tempo, todas as evoluções mecânicas, físicas, químicas, geológicas, vegetais e animais, ou seja, todas as causa e todas as condições de seu próprio nascimento, de sua própria existência e de seu desenvolvimento, a fim de que possa compreender sua própria natureza e sua missão sobre a Terra, sua pátria e seu teatro único; a fim de que neste mundo da cega fatalidade, possa inaugurar seu mundo humano, o mundo da liberdade.
Tal é a tarefa do Homem: é inesgotável, é infinita e suficiente para satisfazer os espíritos e os corações mais orgulhosos e mais ambiciosos. Ser fugaz e imperceptível, perdido no meio do oceano sem bordas da transformação universal, com uma eternidade ignorada atrás de si, e uma eternidade imensa ante ele, o Homem que pensa, o Homem ativo, o Homem consciente de seu destino humano, permanece calmo e orgulhoso no sentimento de sua liberdade, que conquista emancipando-se por si mesmo mediante o Trabalho, mediante a Ciência, e emancipando, rebelando ao seu redor, em caso de necessidade, todos os Homens, seus semelhantes, seus irmãos. Se lhe perguntais depois disso seu intimo pensamento, sua última palavra sobre a unidade real do universo, vos dirá que é a eterna transformação, um movimento infinitamente detalhado, diversificado, e por causa disso mesmo, ordenado em si mesmo, mas sem começo, nem limite nem fim. É, portanto, o caminho inverso da providência: a negação de Deus.
Compreende-se que no universo assim entendido, não pode-se falar sobre idéias anteriores, nem de leis preconcebidas e preordenadas. As idéias, inclusive a de deus, não existem na Terra apenas sendo produzidas pelo cérebro. Se vê, portanto, que surge muito mais tarde que os fatos naturais, muito mais tarde que as leis que governam esses fatos. São justas quando são conforme essas leis, falsas quando lhe são contrárias. As leis da natureza, não se manifestam sob essa forma ideal ou abstrata de lei, senão pela inteligência humana, quando reproduzidas pelo cérebro, com base em observações mais ou menos exatas das coisas, dos fenômenos e da sucessão dos fatos, tomam essa forma de idéias humanas quase espontâneas. Anteriormente ao nascimento do pensamento humano, não são reconhecidas como leis, por ninguém, e não existem senão no estado de processos reais da natureza, processos que, como acabou de dizer-lhe mais acima, estão sempre determinados por um concurso indefinido de condições particulares, de influencias e de causas que se repetem regularmente. Essa palavra natureza, exclui como conseqüência, toda idéia mística ou metafísica de substancia, de causa final ou de criação providencial combinada e dirigida.
Mas desde que existe uma ordem na natureza, deve ter havido necessariamente um organizador, se dirá. De modo nenhum. Um organizador, ainda que fosse um Deus, não poderia senão prejudicar com sua arbitrariedade pessoal a ordem natural e o desenvolvimento lógico das coisas; e sabemos bem que a propriedade principal dos deuses de todas as religiões, é ser precisamente superiores, ou seja, contrários a toda lógica natural, e reconhecer apenas uma só lógica: a o absurdo e da iniqüidade. Por que, o que é a lógica senão o desenvolvimento natural das coisas, ou melhor, o processo natural pelo qual muitas causas determinantes, inerentes a essas coisas, produzem fatos novos? [3] Por conseguinte, me será permitido enunciar este axioma tão simples e ao mesmo tempo tão decisivo:
Tudo o que é natural é lógico, e tudo o que é lógico ou se encontra já realizado, ou deverá realizar-se no mundo natural, inclusive o mundo social [4].
Mas se as leis do muno natural e do mundo social [5] não foram criadas nem organizadas por ninguém, por que e como existem? O que lhes confere esse caráter invariável? Eis uma pergunta que não está em meu poder resolve-la e da qual, que eu saiba, ninguém encontrou e todavia nem encontrara jamais uma resposta. Engano-me: os teólogos e os metafísicos trataram de respondê-la pela suposição de uma causa primeira e suprema, de uma divindade criadora dos mundos, ou ao menos, como dizem os metafísicos panteístas, por uma alma divida ou de um pensamento absoluto aprisionado no universo, que se manifesta pelo movimento e a vida de todos os seres que nascem e morrem em seu seio. Nenhuma destas suposições suporta a menor crítica. Tem sido fácil para mim provar que idéia de um deus criador das leis naturais e sociais continha em si a negação completa destas leis, fazia com que sua própria existência, quer dizer, sua realização e sua eficácia, impossível; que um deus organizador desse mundo devia produzir nele necessariamente a anarquia [6], o caos; e consequentemente, de duas coisas uma, ou deus não existe, ou as leis naturais não existem; e como sabemos de uma maneira segura, pela experiência de cada dia e pela ciência, que não é outra coisa senão a experiência sistematizada dos séculos, que essas leis existem, portanto, devemos concluir que deus não existe.
Aprofundando o sentido destas palavras: leis naturais, voltaremos, pois, a encontrar que excluem de uma maneira absoluta a idéia e a própria possibilidade de um criador, de um organizador e de um legislador, por que a idéia de um legislador exclui por sua vez, de uma maneira também absoluta, a inerência das leis nas coisas, e desde o momento que uma lei não é inerente as coisas que governa, é necessariamente, em relação a essas coisas, uma lei arbitrária, quer dizer, fundada não em sua própria natureza, senão no pensamento e na vontade do legislador. Como conseqüência, todas as leis que emanam de um legislador, seja humano, seja divino, seja individual, seja coletivo, e ainda que fosse nomeado pelo sufrágio universal, são leis despóticas, necessariamente estranhas e hostis aos homens e as coisas que devem dirigir: não são leis, senão decretos aos que as obedecem, não por necessidade interior e por tendência natural, senão por que está sendo obrigado a fazer-lo por uma força exterior, divina ou humana; decretos arbitrários que a hipocrisia social, mais inconsciente do que conscientemente, da arbitrariamente o nome de lei.
Uma lei não é realmente uma lei natural somente quando é absolutamente inerente às coisas que se manifestam a nosso espírito; somente é uma lei natural quando constitui sua propriedade, sua própria natureza mais ou menos determinada, e não a natureza universal e abstrata de não sei qual substancia divina ou de um pensamento absoluto; substancia e pensamento estes necessariamente extra-terrestres, sobrenaturais e ilógicos, por que se não fossem, se aniquilariam na realidade e na lógica natural das coisas. As leis naturais são os processos naturais e reais, mais ou menos particulares, pelos quais existem todas as coisas. Portanto, aquele que queira compreender-las deve renunciar de uma vez por todas ao deus pessoal dos teólogos e a divindade impessoal dos metafísicos.
Mas o fato de que podemos negar com precisão total, a existência de um legislador divino, não se segue que podemos perceber como foram estabelecidas as leis naturais e sociais no mundo. Existem, são inseparáveis do mundo real, desse conjunto de coisas e de fatos do qual nós mesmos somos produtos, os efeitos, exceto no caso de nós nos tornar-mos causas – relativas – de seres, de coisas e de fatos novos. Eis tudo o que sabemos e que, penso eu, tudo o que podemos saber. Por outro lado, como poderíamos encontrar a “causa primeira”, uma vez que ela não existe? Já que o que chamamos causalidade universal não é mais que uma resultante de todas as causas particulares que atuam no universo. Perguntar por que existem leis naturais, não equivaleria a perguntar por que existe o universo – fora do qual nada existe - , por que existe o ser? Isto é um absurdo.
[1] Como todo indivíduo humano, em cada instante dado de sua vida, não é mais que a resultante de todas as causas que tem atuado em seu nascimento e também antes de seu nascimento, combinadas com todas as condições de seu desenvolvimento posterior, tanto como com todas as circunstancias que atuam nele neste momento atual.
[2] Falo, naturalmente, do espírito, da vontade e dos sentimentos que conhecemos, dos únicos que podemos conhecer: dos animais e do Homem do qual é, de todos o animais da Terra, é – desde o ponto de vista geral, não de cada faculdade tomada separadamente – sem dúvida o mais perfeito. Quanto ao espírito, a vontade e os sentimento extra-humanos e extra-terrestres do ser de que nos falam os teólogos e os metafísicos, devo confessar minha ignorância, por que nunca os encontrei e ninguém, que eu saiba, já teve relações diretas com eles. Mas se julgamos de acordo ao que nos dizem esses senhores, esse espírito é de tal modo incoerente e estúpido, essa vontade e esses sentimentos são de tal modo perversos, que não vale a pena ocupar-se deles somente para constatar todo o mal que fizeram sobre a Terra. Para provar a ação absoluta e direta das leis mecânicas, físicas e químicas, sobre as faculdades ideais do Homem, me contentarei com levantar essa pergunta: O que seria das mais sublimes combinações da inteligência se, desde o momento que Homem as concebe, se apenas o ar que se respira se descompô-se, ou se o movimento da Terra se detivesse, ou se o Homem se visse envolto inesperadamente em uma temperatura de 60 graus acima ou abaixo de zero?
[3] Dizer que deus não é contrário a lógica, é afirmar que, em toda a extensão de seu ser, é completamente lógico; que não contem nada que esteja por cima, ou o que quer dizer o mesmo, fora da lógica: que, por conseqüência, ele mesmo não é nada mais que a lógica , nada mais que essa corrente ou esse desenvolvimento natural das coisas reais; ou seja, que deus não existe. A existência de deus não pode, pois, ter outro significado que o da negação das leis naturais; aonde resulta este dilema inevitável: Deus existe, por tanto não existem leis naturais, não existe ordem na natureza, o mundo é um caos, ou então: O mundo está ordenado por si mesmo, por tanto, deus não existe.
[4] Não significa de nenhum modo, que tudo o que é lógico ou natural seja desde o ponto de vista humano, necesariamente útil,bom ou justo. As grandes catástrofes naturais; os terremotos na terra, as erupções vulcânicas, as inundações, as tempestades, as doenças epidêmicas, que devastam e destroem cidades e populações inteiras, são certamente fatos naturais produzidos logicamente por uma gama de causas naturais, mas ninguém dirá que são benéficas para a humanidade. O mesmo acontece com os fatos que se produzem na história: as mais horríveis instituições chamadas divinas e humanas; todos os crimes passados e presentes dos chefes, desses supostos benfeitores e tutores de nossa pobre espécie humana, e a mais desesperante estupidez dos povos que aceitam o seu julgo; as infâmias atuais dos Napoleões III, dos Bismarcks, de Alexandre II e tantos outros soberanos ou políticos e militares da Europa e a covardia incrível dessa burguesia de todos os países que os incentiva, os sustenta, ainda que odiando-os desde o fundo do seu coração; tudo isso nos mostra uma série de fatos naturais produzidos por causas naturais, e por conseqüência muito lógicas, o que não as impede de ser excessivamente funestas para a humanidade.
[5] Sigo o uso estabelecido, separando de certo modo o mundo social do mundo natural. É evidente que a sociedade humana, considerada em toda a extensão e em toda a amplitude de seu desenvolvimento histórico, é tão natural e está tão completamente subordinada a todas as leis da história, como o mundo animal e vegetal, por exemplo, da qual é a última e a mais alta expressão sobre a Terra.