Título: O que é Autoridade?
Data: 1871
Fonte: Adquirido em 02/04/2024 de https://www.marxists.org/reference/archive/bakunin/works/various/authrty.htm
Notas: Título original (de postagem): What is Authority? Traduzido pelo Coletivo Editorial Letra A.

O que é autoridade? Será o poder inevitável das leis naturais que se manifestam na necessária ligação e sucessão dos fenómenos nos mundos físico e social? Na verdade, contra estas leis a revolta não somente é proibida – é até impossível. Podemos entendê-las mal ou nem conhecê-las, mas não podemos desobedecê-las; porque elas constituem a base e as condições fundamentais da nossa existência; eles nos envolvem, nos penetram, regulam todos os nossos movimentos. pensamentos e atos; mesmo quando acreditamos que os desobedecemos, nós apenas mostramos sua onipotência.

Sim, somos absolutamente escravos destas leis. Mas nessa escravidão não há humilhação, ou melhor, não é escravidão de forma alguma. Pois a escravidão supõe um senhor externo, um legislador fora daquele a quem ele comanda, enquanto essas leis não estão fora de nós; eles são inerentes a nós; eles constituem o nosso ser, todo o nosso ser, físicamente , intelectualmente e moralmente; vivemos, respiramos, agimos, pensamos, desejamos apenas através dessas leis. Sem eles não somos nada, não somos. De onde, então, poderíamos derivar o poder e o desejo de nos rebelarmos contra eles?

Na sua relação com as leis naturais, apenas uma liberdade é possível ao homem - a de reconhecê-las e aplicá-las numa escala sempre crescente de conformidade com o objeto de emancipação humanizadora individual e coletiva que ele persegue. Estas leis, uma vez reconhecidas, exercem uma autoridade que nunca é contestada pela massa dos homens. É preciso, ao menos, ser no fundo um tolo ou um teólogo ou pelo menos um metafísico, jurista ou economista burguês para nos rebelarmos contra a lei segundo a qual duas vezes dois são quatro. É preciso ter fé para imaginar que o fogo não queimará nem a água afogará, exceto, na verdade, recorrendo a algum subterfúgio fundado, por sua vez, em alguma outra lei natural. Mas estas revoltas, ou melhor, estas tentativas ou fantasias tolas de uma revolta impossível, são decididamente a excepção: pois, em geral, pode-se dizer que a massa dos homens, na sua vida quotidiana, reconhece o governo do bom senso - isto é, da soma das leis gerais geralmente reconhecidas – de uma forma quase absoluta.

A grande desgraça é que um grande número de leis naturais, já estabelecidas como tais pela ciência, permanecem desconhecidas das massas, graças à vigilância daqueles governos tutelares que existem, como sabemos, apenas para o bem do povo. Há outra dificuldade - nomeadamente, que a maior parte das leis naturais relacionadas com o desenvolvimento da sociedade humana, que são tão necessárias, invariáveis, fatais, como as leis que governam o mundo físico, não foram devidamente estabelecidas e reconhecidas pela própria ciência.

Uma vez que tenham sido reconhecidas pela ciência, e depois da ciência, por meio de um extenso sistema de educação e instrução popular, tenham passado para a consciência de todes, a questão da liberdade estará inteiramente resolvida. As autoridades mais teimosas devem admitir que então não haverá necessidade nem de organização política, nem de direcção, nem de legislação, três coisas que, quer emanem da vontade do soberano, quer do voto de um parlamento eleito por sufrágio universal, e que deveriam mesmo conformam-se ao sistema de leis naturais - o que nunca foi o caso e nunca será o caso - são sempre igualmente fatais e hostis à liberdade das massas pelo próprio fato de lhes imporem um sistema de leis externas e, portanto, leis despósticas.

A liberdade do homem consiste unicamente nisto: que ele obedeça às leis naturais porque ele próprio as reconheceu, não porque elas lhe tenham sido impostas externamente por qualquer vontade extrínseca, divina ou humana, coletiva ou individual.

Suponhamos uma academia erudita, composta pelos mais ilustres representantes da ciência; suponhamos esta academia encarregada da legislação e da organização da sociedade, e que, inspirada apenas pelo mais puro amor à verdade, não formula nada além das leis, mas as leis em absoluta harmonia com as últimas descobertas da ciência. Bem, eu sustento, pela minha parte, que tal legislação e tal organização seriam uma monstruosidade, e isso, e aquilo por duas razões: primeiro, que a ciência humana é sempre e necessariamente imperfeita, e que, comparando o que descobriu com o que ainda está por descobrir, podemos dizer que ainda está no seu berço. Para que tentássemos forçar a vida prática dos homens, tanto coletiva como individual, a uma conformidade estrita e exclusiva com os mais recentes dados da ciência, deveríamos condenar a sociedade, bem como os indivíduos, a sofrerem o martírio num leito de Procusto, que logo acabaria por deslocá-los e sufocá-los, permanecendo a vida sempre uma coisa infinitamente maior que a ciência.

A segunda razão é esta: uma sociedade que deveria obedecer à legislação emanada de uma academia científica, não porque entendesse o carácter racional desta legislação (neste caso a existência da academia se tornaria inútil), mas porque esta legislação, emanada de a academia, foi imposta em nome de uma ciência que venerava sem compreender - tal sociedade seria uma sociedade, não de homens, mas de brutos. Seria uma segunda versão daquelas missões no Paraguai que se submeteram por tanto tempo ao governo dos jesuítas. Ela desceria segura e rapidamente ao estágio mais baixo da idiotice.

Mas há ainda uma terceira razão que tornaria tal governo impossível - nomeadamente que uma academia científica investida de uma soberania, por assim dizer, absoluta, mesmo que fosse composta pelos homens mais ilustres, acabaria infalivelmente e rápidamente na sua própria corrupção moral e intelectual. Ainda hoje, com os poucos privilégios que lhes são permitidos, tal é a história de todas as academias. O maior gênio científico, a partir do momento em que se torna uma acadêmico, um sábio oficialmente licenciado, inevitavelmente cai no ócio. Ele perde sua espontaneidade, sua resistência revolucionária e aquela energia problemática e selvagem característica dos maiores gênios, sempre chamados a destruir velhos mundos cambaleantes e lançar as bases dos novos. Ele sem dúvida ganha em polidez, em sabedoria utilitária e prática, mas em poder de pensamento. Em uma palavra, ele se torna corrompido.

É característica do privilégio e de toda posição privilegiada matar a mente e o coração dos homens. O homem privilegiado, seja do ponto de vista prático ou econômico, é um homem depravado na mente e no coração. Esta é uma lei social que não admite excepções e é aplicável a todas as nações, classes, corporações e indivíduos. É a lei da igualdade, a condição suprema da liberdade e da humanidade. O principal objetivo deste tratado é precisamente demonstrar esta verdade em todas as manifestações da vida social.

Um corpo científico ao qual o governo da sociedade fosse confiado acabaria rápidamente por não se dedicar mais à ciência de forma alguma, mas a um assunto completamente diferente; e esse caso, como é o caso de todos os poderes estabelecidos, seria a sua própria perpetuação eterna, tornando a sociedade presa aos seus cuidados cada vez mais estúpida e, consequentemente, mais necessitada do seu governo e direção.

Mas o que é verdade para as academias científicas também é verdade para todas as assembleias constituintes e legislativas, mesmo aquelas escolhidas por sufrágio universal. Neste último caso poderão renovar a sua composição, é verdade, mas isso não impede a formação dentro de alguns anos um corpo de políticos, privilegiados de fato mas não de direito, que, dedicando-se exclusivamente à direcção da os assuntos públicos de um país, finalmente formaram uma espécie de aristocracia ou oligarquia política. Vejamos os Estados Unidos da América e a Suíça.

Consequentemente, nenhuma legislação externa e nenhuma autoridade. Uma, aliás, sendo inseparável da outra, e ambas tendendo à servidão da sociedade e à degradação dos próprios legisladores.

Segue-se daí que rejeito toda autoridade? Longe de mim tal pensamento. No que diz respeito às botas, refiro-me à autoridade do sapateiro; em relação a casas, canais ou ferrovias, consulto o arquiteto ou o engenheiro. Para tal ou tal conhecimento especial, recorro a tal ou tal sábio. Mas não permito que nem o sapateiro, nem o arquitecto, nem o sábio me imponham a sua autoridade. Ouço-os livremente e com todo o respeito que a sua inteligência, o seu carácter, o seu conhecimento merecem, reservando sempre o meu incontestável direito à crítica e à censura. Não me contento em consultar uma única autoridade em qualquer ramo especial; Consultei vários; Comparo suas opiniões e escolho aquela que me parece mais sólida. Mas não reconheço nenhuma autoridade infalível, mesmo em questões especiais; Consequentemente, qualquer que seja o respeito que eu possa ter pela honestidade e sinceridade de tal ou tal indivíduo, não tenho fé absoluta em ninguém. Tal fé seria fatal para a minha razão, para a minha liberdade e até para o sucesso das minha obrigações; transformar-me-ia imediatamente num escravo estúpido e num instrumento da vontade e dos interesses dos outros.

Se me curvo diante da autoridade dos especialistas e confesso a minha disponibilidade para seguir, até certo ponto e pelo tempo que me pareça necessário, as suas indicações e mesmo as suas orientações, é porque a sua autoridade não me é imposta por ninguém, nem pelos homens nem por Deus. Caso contrário, eu os repeliria com horror e apelaria ao diabo que seguisse seus conselhos, suas orientações e seus serviços, certo de que eles me fariam pagar, pela perda de minha liberdade e respeito próprio, por tais migalhas. da verdade, envolto em uma multidão de mentiras, como eles poderiam me dar.

Curvo-me diante da autoridade de especialistas porque ela me é imposta pela minha própria razão. Estou consciente da minha própria incapacidade de compreender, em todos os seus detalhes e desenvolvimento positivo, qualquer porção muito grande do conhecimento humano. A maior inteligência não seria igual à compreensão do todo. Daí resulta, tanto para a ciência como para a indústria, a necessidade da divisão e associação do trabalho. Eu recebo e dou - assim é a vida humana. Cada um dirige e é dirigido por sua vez. Portanto, não existe uma autoridade fixa e constante, mas uma troca contínua de autoridade e subordinação mútua, temporária e, acima de tudo, voluntária.

Esta mesma razão proíbe-me, então, de reconhecer uma autoridade fixa, constante e universal, porque não existe homem universal, nenhum homem capaz de apreender em toda aquela riqueza de detalhes, sem a qual é impossível a aplicação da ciência à vida, todos os ciências, todos os ramos da vida social. E se tal universalidade pudesse algum dia ser realizada num único homem, e se ele quisesse aproveitar-se dela para nos impor a sua autoridade, seria necessário expulsar esse homem da sociedade, porque a sua autoridade levaria inevitavelmente todos os outros à escravidão e à imbecilidade. Não creio que a sociedade deva maltratar os homens de gênio como tem feito até agora: assim como não penso que deveria conceder demais a eles, muito menos conceder-lhes quaisquer privilégios ou direitos exclusivos; e isso por três razões: primeiro, porque muitas vezes confundiria um charlatão com um gênio; segundo, porque, através de tal sistema de privilégios, poderia transformar em charlatão até mesmo um verdadeiro gênio, desmoralizá-lo e degradá-lo; e, finalmente, porque estabeleceria um senhor acima de si mesmo.