Murray Bookchin
Municipalismo Libertário
Local de trabalho e comunidade são os polos em que se tem centrado, ao longo da história, a teoria e pratica social radical. Com o aparecimento do Estado-Nação e da revolução industrial, a economia adquiriu proeminência sobre a comunidade, não só na ideologia capitalista como também nas várias modalidades de socialismo libertário e autoritário surgidas no século passado. Esta mudança de tônica do polo ético para o econômico foi de enorme alcance, conferindo aos diversos socialismos inquietantes atributos burgueses. Tal evolução foi particularmente nítida no conceito marxista de emancipação humana através do domínio da natureza, projeto que implicando o domínio do homem pelo homem, justificava o aparecimento da sociedade de classes como condição prévia dessa emancipação.
Infelizmente, a ala libertaria do socialismo não propôs com a necessária coerência, o primado da moral sobre o econômico, provavelmente em razão do nascimento do sistema de fábrica (lugar clássico da exploração capitalista) e do proletariado industrial como agente de uma nova sociedade. O próprio sindicalismo revolucionário, apesar de todo o seu fervor moral, concebeu a organização social sindicalista pós-revolucionária nos moldes da sociedade industrial, o que testemunha bem a mudança de tônica do comunitarismo para o industrialismo, dos valores comunitários para os da fábrica. Obras que gozaram de prestigio quase sagrado no meio sindicalista revolucionário, como “O organismo econômico da revolução” de Santillan, exaltam o significado da fábrica e do posto de trabalho, para não falar já do papel messiânico do proletariado. Todavia, o local de trabalho (a fábrica na sociedade industrial) foi, ao longo da história, não só lugar de exploração, mas de subordinação hierárquica. Não serviu para “disciplinar”, “unir” e “organizar” o proletariado para mudança revolucionária mas, pelo contrário, para acostumar à obediência. O proletariado, como qualquer setor oprimido da sociedade, liberta-se abandonando os hábitos industriais e participando ativamente na vida comunitária.
Da Tribo à Cidade
O município é espaço econômico e espaço humano de transformação do grupo quase tribal em corpo político de cidadãos. A política – gestão da cidade (polis) – tem sido desvirtuada em governo do estado tal como a palavra polis tem sido impropriamente traduzida por estado. Esta degradação da cidade em estado repugna aos antiautoritários, dado que o estado é instrumento das classes dominantes, monopólio institucionalizado da violência necessária para assegurar o domínio e a exploração do homem pelo homem. O estado desenvolveu-se lentamente a partir de base mais ampla de relações hierárquicas até se converter no Estado-Nação e, mais modernamente, no estado totalitário. Por outro lado, a família, o local de trabalho, as associações, as relações interpessoais e, de modo geral, a esfera privada da vida, são fenômenos especificamente sociais, distintos do âmbito estatal. O social e o estatal misturam-se; os despotismos arcaicos não foram senão ampliação da estrutura familiar patriarcal e, na atualidade, a absorção do social pelo estado totalitário nada mais é que o alargamento da burocracia a esferas não meramente administrativas. Esta mistura do social e do estatal apenas prova que os modos de organização social não existem em formas puras. A “pureza” é termo que só pode ser introduzido no pensamento social a expensas da realidade concreta. A História na apresenta a categoria política como forma pura,m assim como não oferece qualquer exemplo de relações sociais não hierárquicas (acima do nível do bando ou aldeia) ou de instituições estatais puras (até época recente). O aparecimento da cidade abre espaço a uma humanidade universal distinta da tribo agro-pastoril, a um civismo inovador distinto da comunidade fechada na tradição e que exprime na gestão da polis por um corpo de cidadãos livres. Aproximações a uma política não estatal encontram-se na democracia ateniense, no town meetings da Nova Inglaterra ou nas assembleias de seção da comuna de Paris de 1793,. Experiências por vezes duradouras, por vezes efêmeras, que embora inquinada por traços opressivos característicos das relações sociais do seu tempo, permitem conceber um modelo político não parlamentar (burocrático e centralizado), mas cívico.
A Cidade e a Urbe
A era moderna caracteriza-se pela urbanização, degradação do conceito de cidade (civitas, corpo político de cidadãos livres) em urbe (conjunto de edifícios, praças, isto é, o fato físico da cidade). Os dois conceitos foram distintos em Roma até a época imperial e é elucidativo que a sua confusão corresponda ao declínio da cidadania. Os Gracos tinham procurado transformar a urbe em cidade, dar primazia ao cidadão, ao político sobre o econômico. Fracassaram e, sob o império, a urbe devorou a cidade. A distinção entre os conceitos de cidade e urbe encontra-se em outros países como a França, onde Rousseau já assinalava que “as casas fazem o aglomerado urbano (ville) mas só os cidadãos fazem a cidade (cité)”. Vistos como simples eleitores ou contribuintes – quase um eufemismo para súditos – os habitantes da urbe tornam-se abstrações, meras criaturas do estado. Um povo cuja única função política é eleger deputados não é, de fato povo, mas “massa”. A politica entendida como categoria distinta do estatal, implica a reencarnação das massas num sistema articulado de assembleias, a constituição de um corpo político atuando num espaço de livre expressão, de racionalidade comum e de decisão radicalmente democrática.
Sem autogestão nas esferas econômicas, ética e política, não será possível transformar os homens de objetos passivos à sujeitos ativos. O espaço cívico (bairro, cidade) é o berço em que o homem se civiliza e civilizar é sinônimo de politizar, de transformar a “massa”em corpo político deliberativo, racional e ético. Formando e fazendo funcionar tais assembleias, os cidadãos formam-se a si mesmos, porque a política nada é se não for educativa e não promover a formação do caráter.
O município não é apenas o local onde se vive, a casa, serviços de higiene e salubridade, de previdência, emprego e cultura. A passagem da tribo à cidade representa uma transformação radical da sociedade primitiva (de caça e colheita) à sociedade agrícola e desta à de manufatura. A revolução urbana não foi menos profunda que a revolução agrícola ou que a industrial.
Município e democracia direta
Ao exaltar a atividade legislativa e executiva por delegados na comuna de Paris de 1871, Marx prestou um péssimo serviço ao pensamento social radical. Já Rousseau afirmava que o poder popular não pode se delegado sem ser destruído. Ou há assembleia popular dotada de plenos poderes ou o poder pertence ao estado. A delegação deturpou a comuna de Paris de 1871, os sovietes e, mais geralmente, os sistemas republicanos em nível municipal e nacional. A expressão democracia representativa é, em si mesma, contraditória. O povo, ao delegar em órgãos que o excluem da discussão e decisão e definem o âmbito das funções administrativas, lança as bases do poder estatal. A supremacia da assembleia sobre os órgãos administrativos é a única garantia da supremacia do cidadão sobre o estado, crucial numa sociedade como a nossa, repletos de peritos que a extrema especialização e complexidade torna indispensáveis.
A supremacia da assembleia é particularmente importante no período de transição de uma sociedade administrativamente centralizada para uma sociedade descentralizada. A democracia libertária só é concebível se assembleias populares, em todos os níveis, mantiverem sob a maior vigilância e escrupuloso controle os seus órgãos federais ou confederais de coordenação. Isto não suscita problemas importantes do ponto de vista estrutural. Desde tempos remotos que as comunidades utilizam peritos e administradores sem perda da sua liberdade. A destruição das comunidades teve em geral origem estatal e não administrativa. Corporações sacerdotais e chefes serviram –se da ideologia e da ingenuidade publica, mais que da força, para reduzir primeiro e depois eliminar o poder popular.
O Estado Contra a Cidade
O estado nunca absorveu, no passado, a totalidade da vida social. Fato que Kropotkin assinalou implicitamente em O apoio mutuo, ao descrever a rica e complexa vida cívica das comunidades medievais. A cidade foi a principal força de oposição aos estados imperiais e nacionais, da antiguidade aos nossos dias. Augusto e seus sucessores fizeram da supressão da autonomia municipal a chave da administração imperial romana e o mesmo fizeram os monarcas absolutos da época da reforma. “Abater os muros da cidade” foi uma constante da política de Luis XIII e de Richelieu, política que ressurge em 1793-94, com a progressiva e implacável restrição dos poderes da Comuna pelo Comitê de Salvação Publica robespierrista. A “revolução urbana”, enquanto poder alternativo, isto é, desafio potencial ao poder central, foi uma obsessão do estado ao longo da história. Esta tensão subsiste ainda, como o demonstram os conflitos entre o estado e as municipalidades na Inglaterra e América.
Quando a urbanização tiver anulado a vida da cidade a ponto desta não ter mais identidade, cultura e espaço associativos próprios, as bases para uma democracia terão desaparecido e a questão das formas revolucionárias será mero jogo de sombras. Qualquer perspectiva radical em moldes libertários perderá significado. Por outro lado, é ingênuo supor que assembleias populares (de aldeia, de bairro, de cidade) possam alcançar o nível de uma vida publica libertária sem a existência de um movimento libertário consciente, bem organizado e com programa claro. E este não poderá surgir sem a contribuição de uma intelectualidade radical, vibrante de vida comunitária, como a intelectualidade francesa do Iluminismo, com a sua tradicional presença nos cafés e bairros de Paris. Intelectualidade bem diversa da que povoa academias e outras instituições culturais da sociedade ocidental. Se os anarquistas não reforçarem esse extrato de pensadores em declínio, com vida publica vivaz, em comunicação ativa com o ambiente social, terão de enfrentar o risco de uma transformação das ideias em dogmas e de si próprios em herdeiros presunçosos das grandes personalidades vivas do passado.
As Classes Sociais em Reformulação
Pode-se jogar com palavras como município, comunidade, assembleia e democracia direta, negligenciando diferenças de classes, étnicas e de sexo, que fizeram de termos como povo abstrações insignificantes. As assembleias de secção parisienses de 1793 não só estavam em oposição à comuna e à convenção mais burguesas, como eram, internamente campo de batalha entre assalariados e proprietário, democratas e realistas, radicais e moderados. Reduzir esta conflitualidade a meros interesses econômicos é tão incorreto como ignorar diferenças de classe e falar de fraternidade, liberdade e igualdade como se estas fossem meras expressões retóricas, esquecendo sua dimensão populista e utópica. Tanto se escreveu já sobre os conflitos econômicos nas revoluções inglesa, americana e francesa, que os historiadores futuros fariam melhor serviço se revelassem o medo burguês da revolução o seu conservadorismo inato e sua tendência para o compromisso com a ordem instituída.
Mais útil ainda seria revelar como as classes oprimidas da era revolucionária empurraram as revoluções “burguesas” para fora das balizas estabelecidas pela burguesia, para espaços de democracia a que esta sempre se acomodou com dificuldade e suspeição. Os vários “direitos” então alcançados foram-no apesar da burguesia e não graças a ela; graças sim aos agricultores americanos de 1770 e aos sans-culottes parisienses de 1790. E o futuro destes direitos torna-se cada vez mais incerto.
A recente evolução tecnológica, social e cultural e seu desenvolvimento futuro poderá alterar a tradicional estrutura de classes criada pela revolução industrial e permitir que, da redefinição do interesse geral daí resultante, possa emergir novamente a palavra Povo no vocabulário radical. Não como abstração obscurantista, mas como expressão extratos desenraizados, fluídos e tecnologicamente deslocados, não integrados numa sociedade cibernética e automatizada. A estas camadas desprezadas pela tecnologia poderão juntar-se os idosos e os jovens, para que o futuro se apresenta incerto por difícil definição do seu papel na economia e na cultura. Estas camadas já não se enquadram na elegante e simplista divisão de classes correspondente ao trabalho assalariado e ao capital.
O povo pode voltar, ainda, como referência ao interesse geral que se criou em torno de mobilizações publicas sobre temática ecológica, comunitária, moral, de igualdade de sexos ou cultural. Seria insensato subvalorizar o papel crucial destes problemas ideológicos, aparentemente marginais. Há 50 anos, já Borkenau fazia notar que a história do ultimo século mostrava que o proletariado podia enamorar-se mais do nacionalismo que do socialismo e ser mais facilmente conduzido pelo interesse patriótico que pelo de classe. Note-se também que a ideologia como o cristianismo e o islamismo ainda hoje mantém frente a ideologia sociais progressistas, nomeadamente ecológicas, feministas, étnicas, morais e contraculturais em que navegam elementos pacifistas e de cariz anárquico que aguardam ser integrados numa perspectiva coerente. Estão a desenvolver-se à nossa volta novos movimentos sociais que ultrapassam as tradicionais fronteiras de classe. Deste fermento pode nascer um interesse geral mais amplo pela sua finalidade, novidade e criatividade que os interesses economicamente orientados do passado.
A Comunidade e a fábrica
O “1984” Orwelliano traduz-se hoje pela megalópole de um estado muito centralizado e de uma sociedade profundamente institucionalizada. É nossa obrigação tentar opor a esta evolução social estatizante a ação política municipal. A revolução traduz-se sempre pelo aparecimento de um poder alternativo – sindicato, soviete, comuna – orientado contra o estado. O exato atento da história mostra que a fábrica, produto da racionalização burguesa, deixou de ser o local da revolução. Os operários mais revolucionários (espanhóis, russos, franceses e italianos) pertenceram sobretudo a estratos em transição, estratos agrários tradicionalmente em decomposição submetidos ao impacto corrosivo de uma cultura industrial. A luta operaria de hoje, que reflete os últimos sobressaltos de uma economia em extinção, é sobretudo defensiva, visando conservar um sistema industrial que esta sendo substituído por uma tecnologia de capital intensivo e cada vez mais cibernética. A fábrica deixou de ser o reino da liberdade (de fato foi sempre o reino da necessidade, da sobrevivência). Ao seu nascimento opuseram-se os setores artesanais, agrícolas e, em geral,o mundo comunitário. Obcecados pela ideia de socialismo cientifico e pela ingênua concepção de Marx e Engels, segundo a qual a fábrica servia para disciplinar, unir e organizar o proletariado, muitos radicais ignoraram o seu papel autoritário e hierarquizante. A abolição da fábrica e sua substituição por uma ecotécnica (caracterizada por trabalho criativo e aparelhos cibernéticos projetados para responder às necessidades humanas) é auspiciosa na perspectiva do socialismo libertário.
A revolução urbana desempenhou um papel bem diferente do da fábrica. Criou a ideia de uma humanidade universal e da sua socialização segundo linhas racionais e éticas. Removeu as limitações ao seu desenvolvimento decorrentes dos vínculos do parentesco e do peso sufocante do costume. A dissolução do município representaria grave regressão social, pela destruição da vida civil e do corpo de cidadãos que confere sentido ao conceito de política.
Para Um Municipalismo libertário
O anarquismo sempre sublinhou a necessidade de uma regeneração moral e de uma contracultura (no melhor sentido do termo), antagônica da cultura dominante. Daí a importância da ética, a coerência entre meios e fins e à defesa dos direitos humanos e cívicos contra qualquer forma de opressão e em qualquer aspecto da vida. A ideia de contra-instituíção é mais problemática. Vale a pena relembrar que no anarquismo houve sempre a par das tendências individualista e sindicalista, uma tendência comunalista. Esta ultima com forte orientação municipalista, como se depreende das obras de Proudhon e Kropotikin.
Todas as tendências radicais sofrem de certa dose de inércia intelectual, a libertária não menos que a socialista autoritária. A segurança da tradição pode ser suficientemente reconfortante para bloquear qualquer possibilidade inovadora. O anarquismo tem estado obcecado pelo problema do parlamentarismo e do estatismo, preocupação historicamente justificada mas que pode conduzir a uma mentalidade de estado de sítio, de cariz dogmático.
O municipalismo libertário pode ser o ultimo reduto de um socialismo orientado para instituições populares descentralizadas. É curioso que muitos anarquistas que se entusiasma com qualquer chácara coletivizada no contexto de uma economia burguesa encare com desgosto uma ação política municipal que comporte qualquer tipo de eleições, mesmo se estruturadas em assembleias de bairro e com mandatos revogáveis, radicalmente democráticos. Se anarquista viessem a integrar conselhos comunais, nada obrigaria a que sua politica se orientasse para um modelo parlamentar, sobretudo se confinada ao âmbito local, em oposição consciente ao estado e visando a legitimação de formas avançadas de democracia direta. A cidade e o estado não se identificam. As suas origens são diversas e os seus papeis históricos diferentes. O fato de o estado permear hoje todos os aspectos da vida, da família à fábrica, do sindicato à cidade, não significa que se deva abandonar toda e qualquer forma de relação humana.
Os fantasmas que devemos temer são os do dogmatismo e do imobilismo ritualístico. Estes representam para a autoridade sucesso mais completo que o obtido através da coação, pois significariam que o seu controle está próximo de bloquear a capacidade de pensar livre e criticamente e de resistir com as ideias, mesmo quando a capacidade de agir se encontra bloqueada pelos acontecimentos.