Título: A anarquia da tradução
Autor: Nick Mamatas
Data: 06.07.2019
Fonte: Adquirido em 27/12/2024 de https://blog.pmpress.org/2019/06/07/the-anarchy-of-translation/
Notas: Tradução por C. L. Pfeil.

Estar no ramo da tradução leva a uma hiperconsciência da tradução e de seus contratempos. Ultimamente, tenho lido muito mais trabalhos de tradução e, nesses dias, procuro logo as notas de tradução. Recentemente, adquiri dois livros: o venerável Japanese Tales of Mystery and Imagination [Contos Japoneses de Mistério e Imaginação], de Edogawa Rampo (trad. James B. Harris), e o selvagem Lonely Hearts Killer [Assassino dos Corações Solitários], de Tomoyuki Hoshino (trad. Adrienne Carey Hurley).

O livro de Rampo é muito bom. Copyright 1956, publicado em Rutland, Vermont! (Eu morava nas proximidades em Brattleboro, mas, sem carro, Rutland parecia um sonho distante) e um dos primeiros livros de ficção popular traduzidos do japonês, o método Harris/Rampo de tradução deve ter sido exaustivo. Rampo, como nos foi dito, “embora seja totalmente capaz de ler e entender inglês, não tem a habilidade de escrever ou falar inglês”. Enquanto isso, o tradutor “um euro-asiático de ascendência anglo-japonesa, embora completamente fluente em japonês falado, é completamente incapaz de ler ou escrever o idioma...” Não é uma piada: o pequeno volume de contos levou cinco anos para ser traduzido. O autor lia a frase em japonês repetidamente e depois explicava “o significado e a nuance corretos”, então o tradutor escrevia uma frase em inglês na máquina de escrever para o autor ler. Cada frase era redigida várias vezes “até que o autor ficasse totalmente satisfeito com o que havia sido escrito em inglês”.

Eu digo o seguinte - as traduções dos Japanese Tales se sustentam. Infelizmente, não temos muita interação com os autores originais de nossos livros na sede do Haikasoru, mas entramos em contato com eles quando podemos, muitas vezes para elucidar alguma terminologia científica ou para elucidar ou aprovar um pouco de explicação cultural. Na maioria das vezes, porém, estou falando sobre o contato com o autor durante o processo editorial, não durante o processo de tradução. E não há como conseguirmos cinco anos para trabalhar em um livro.

E então há o Lonely Hearts Killer, publicado recentemente pela editora radical de Oakland, PM Press. (Ouso mencionar política em um blog sobre local de trabalho? Eh, minha chefe viu o estado da minha mesa. Tenho certeza de que ela sabe que as teorias dos anarquistas estão em alta!) O romance é sobre a morte de um imperador, ao qual Hurley nos diz que o autor se refere como okami. A palavra significa “‘imperador’, os ‘superiores’ ou ‘os poderes constituídos’, mas também ‘proprietária’ ou ‘gerente feminina’...” Tennō (imperador celestial) é a expressão mais comum. No romance, o imperador é sucedido por sua irmã, o que torna okami apropriado. Além disso, Hoshino usou katakana em vez de kanji para a palavra, o que também tem implicações sobre como o termo é lido em japonês e como ele se destaca nas páginas. No final das contas, Hurley escolheu o termo Majesty [Majestade] (negrito incluído) para transmitir a mensagem. Mas, ainda assim, o ponto quase não foi percebido - “majestade” não tem a mesma conotação feminina, embora o uso do negrito sugira uma peculiaridade e singularidade no papel do imperador. É claro que a extensa nota de tradução também ajudou!

Problemas semelhantes surgem o tempo todo com obras de Haikasoru. Se um personagem tem um nome de família que se traduz em “Termômetro”, por exemplo - e não, não é um nome de família japonês padrão -, chamamos o personagem de “Sra. Termômetro”? Mesmo que o livro seja sobre uma utopia médica futurista? (No final das contas, o tradutor e eu decidimos não fazê-lo. Só soou bobo.) Em uma fantasia medieval, como chamamos os líderes de clãs se o herdeiro do imperador é “príncipe”... o que, por si só, já é meio insatisfatório? Bem, poderíamos escolher “duque” ou “barão”, mas isso não capta muito bem o provincianismo dos proprietários distantes - os chefes de clã também não são exatamente pares; eles estão abaixo do que um ocidental poderia chamar de duque ou barão. “Chefe do clã” talvez seja uma tradução próxima e quase literal, mas isso me soou um pouco como ‘Chefe Presidente’. Há também “laird”, mas esse termo tem uma especificidade regional que afastaria muitos leitores da história. No final, optei por “headman” [1]. Embora a tradução ainda não tenha terminado, pode ser que encontremos outra coisa... Embora a tradução ainda não tenha terminado, pode ser que encontremos outra coisa... Como estamos fazendo ficção popular aqui, tento minimizar ao máximo as notas editoriais e as notas de rodapé. Felizmente, graças à popularidade da cultura pop japonesa nos dias de hoje, muitos de nossos leitores estão familiarizados com os termos japoneses e os apetrechos da vida cotidiana. Até o momento, não tivemos que explicar ou pedir desculpas.

Traduttore, tradittore, dizem os italianos, que se traduz como “tradutor, traidor”. Ou “o tradutor é um traidor”. Ou “todo tradutor é um traidor”. Veja, mesmo a frase incisiva sobre a falta de confiabilidade das traduções não pode ser traduzida de forma perfeita e inequívoca! Mas acho que a maioria das traduções, quando feitas por pessoas comprometidas com o trabalho, não traem o espírito do texto. No entanto, elas podem trair a letra do texto ou as regras de um idioma para obter um significado mais internacionalista e menos específico do ponto de vista cultural. O tradutor não é um traidor, o tradutor é um anarquista!


[1] Nota do tradutor: "headman", em tradução literal para o português, significa "homem cabeça", ou seja, se refere ao homem que comanda algo, que está na "cabeça" de algo.