#title I ConOSL – Análise de Conjuntura de Médio Prazo (1985-2024)
#author Organização Socialista Libertária
#source Adquirido em 02/10/25 de https://socialismolibertario.net/2025/09/16/analise-de-conjuntura-de-medio-prazo/
#lang pt
#pubdate 2025-10-02T19:58:33
I ConOSL – Análise de Conjuntura de Médio Prazo (1985-2024)
Para entender o que está acontecendo (a conjuntura), é necessário pensar corretamente. E pensar corretamente significa ordenar e tratar, de maneira adequada, os muitos dados que são produzidos sobre a realidade. Pensar corretamente é condição indispensável para analisar corretamente o que está acontecendo em um país, em um momento dado da história desse país ou de qualquer outro. Isso exige [...] um sistema de conceitos, uma teoria. [...] Para se propor um programa, é necessário conhecer a realidade econômica, política, ideológica de nosso país. E o mesmo vale para se formular uma linha política suficientemente clara e concreta. [...] O partido precisa de um esquema claro para pensar coerentemente o país e a região [...] através da história. Precisamos ter um repositório eficaz para ordenar a massa crescente de dados referentes à nossa realidade econômica, política e ideológica. E precisamos ter um método para tratar esses dados. Para ver quais são os mais importantes, quais devem ser utilizados antes e depois. Para, assim, poder administrar corretamente nossas forças disponíveis para cada frente de trabalho.
Federação Anarquista Uruguaia
1972
Documento aprovado na 3ª sessão do I Congresso da Organização Socialista
Libertária (ConOSL), ocorrida em julho de 2025
2025
* SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Teoria social libertária e conjuntura brasileira
ASPECTOS DA CONJUNTURA INTERNACIONAL
Três períodos nas relações globais de poder
Crise do bloco socialista no contexto da Guerra Fria
Imperialismo dos Estados Unidos e sua hegemonia global
Reemergência da China, da Rússia e dos BRICS
Neoliberalismo, oligopólios transnacionais e desigualdades crescentes
Consenso liberal e liberalização da esquerda
Cultura neoliberal, conhecimento e crenças
Colapso ambiental global
Dimensões estruturais e conjunturais da crise econômica
Democracia liberal em xeque e ascensão da extrema-direita
Mulheres, comunidade LGBT+ e patriarcado
Povos racializados, originários e racismo
Outras contribuições sobre Oriente Médio, África e América Latina
Guerras entre Estados e guerras civis
Luta de classes, movimentos populares e retomada do anarquismo
Enfrentando neoliberalismo, autoritarismo e opressões nacionais
Enfrentando racismo, patriarcado e destruição ambiental
ASPECTOS DA CONJUNTURA BRASILEIRA
Efeitos do imperialismo estadunidense no Brasil
Imperialismo econômico: o papel do FMI e das corporações internacionais
Imperialismo político e cultural: a influência sobre a burocracia e a submissão ideológica
Bloco China-Rússia e BRICS como alternativa anti-imperialista para o Brasil?
Cinco períodos da história econômica e política recente
Transição tutelada, crise e inflação (1985-1990/4)
Implantação e consolidação do neoliberalismo (1990-2002)
Tentativa de conciliação do neoliberalismo com políticas sociais ou social-liberalismo (2003-2015)
Nova crise, golpismo e neoliberalismo em disparada (2016-2022)
Frente Ampla entre o social-liberalismo e o neoliberalismo (2023- )
Economia, sociedade e desigualdade social
Cidades, serviços públicos, crime organizado e indústria de transformação
Campo, reprimarização e agronegócio
Conformação do campo político contemporâneo
Marcos governamentais nos cinco períodos da história recente
Governos Sarney e Collor (1985-1992)
Governos Itamar e FHC (1992-2002)
Governos Lula e Dilma (2003-2016)
Governos Temer e Bolsonaro (2016-2022)
Governo Lula-Alckmin (2023 - )
Constituição de 1988 e relações Executivo-Legislativo
Burocratização da esquerda e expansão da extrema-direita
Política partidária e forças eleitorais
Papel político das Forças Armadas e do Judiciário
Monopólios na imprensa e nas redes sociais
Evangélicos, Teologia da Prosperidade e Teologia do Domínio
Ideologia neoliberal, think tanks e empreendedorismo
Educação e pesquisa sob o neoliberalismo
Classes sociais e luta de classes no Brasil contemporâneo
Classes dominantes, capitais e propriedades
Classes oprimidas: proletariado, campesinato e outras
Sindicalismo e organizações sindicais
Questão ambiental e degradação do meio ambiente
Gênero e sexualidade, mulheres e LGBT+s
Raça e etnia, negros e povos originários
Lutas, articulações e movimentos populares na cidade e no campo
Mobilizações feministas, LGBT+s, negras, indígenas e ambientais
* INTRODUÇÃO
** TEORIA SOCIAL LIBERTÁRIA E CONJUNTURA BRASILEIRA
1. Este documento sintetiza os resultados de um estudo realizado por nossa organização, que teve como objetivo aplicar os fundamentos do materialismo/realismo libertário e da teoria social libertária que defendemos à compreensão da conjuntura de médio prazo brasileira, envolvendo o período que vai de 1985 a 2024. Os fundamentos desse materialismo ou realismo libertário, assim como dessa teoria social libertária, foram esboçados num documento anterior, “Nossos Princípios e Estratégia Geral”, que pode ser lido online e em livro. Nele, se encontram os fundamentos teórico-metodológicos do presente estudo.
1. Porém, antes de apresentar este estudo, é importante entendermos o que ele é e o que ele não é. Ele não é um estudo sobre a estrutura do capitalismo-estatismo, e nem sobre a formação social brasileira, os quais servem para subsidiar nossa estratégia geral. Ele também não é um estudo simples sobre a conjuntura brasileira, com uma abordagem de curto prazo, e que serve para subsidiar nossas táticas. Em outros momentos, temos nos dedicado a tais estudos, que também são fundamentais e devem ser considerados complementares a este. A presente análise é um estudo da conjuntura – que definimos em outro momento como “cenário composto pelo conjunto de acontecimentos [...] que marca a vida social cotidiana” –, mas da conjuntura de médio prazo. Ele aborda o Brasil ao longo das últimas quatro décadas, tentando extrapolar as leituras mais imediatas e avaliar tendências mais duradouras, que acompanham ciclos econômicos, políticos e culturais de maior permanência.
1. Tendo em vista, como nos ensina Alfredo Errandonea, que o Brasil sempre esteve inserido num sistema internacional de dominação, e se manteve um país dependente, subordinado e periférico, esta análise de conjuntura de médio prazo se divide em duas partes. A primeira, que apresenta aspectos da conjuntura internacional, que julgamos relevante para entender não apenas o funcionamento do mundo contemporâneo, mas também seus impactos no Brasil. A segunda, que apresenta aspectos da conjuntura brasileira, que julgamos relevantes para entender o Brasil entre 1985 e 2024. Importante observar que muitos dados apresentados sobre o mundo e o Brasil são grandes médias; e não podemos esquecer que, muitas vezes, essas médias escondem as imensas desigualdades de classe, nacionais e regionais. Como não se trata de um trabalho acadêmico, escolhemos não citar as muitíssimas fontes que utilizamos. Além deste ser um estudo militante, isso tomaria um espaço enorme de um material já bastante longo. Foram centenas de livros, estudos acadêmicos, matérias jornalísticas e relatórios institucionais. Os inúmeros dados que apresentados foram retirados desse material, de bases e estudos internacionais (como Banco Mundial, FMI, ONU, OCDE, Oxfam etc.) e nacionais (IBGE, IPEA, ILAESE, DIEESE etc.).
* ASPECTOS DA CONJUNTURA INTERNACIONAL
** TRÊS PERÍODOS NAS RELAÇÕES GLOBAIS DE PODER
1. Observando a totalidade da realidade internacional, um aspecto central da conjuntura entre 1985 e 2024 diz respeito aos cenários que resultaram das relações globais de poder estabelecidas entre as grandes potências nacionais naqueles anos. Num primeiro momento, que se estende até a passagem para os anos 1990, o mundo presenciou os anos finais da Guerra Fria e a consequente bipolarização entre os Estados Unidos (EUA) e a União Soviética (URSS). Mas, em função da crise que se abateu sobre o chamado bloco socialista – cujo marco mais importante foi o fim da URSS, em 1991 (e, em menor medida, a queda do Muro de Berlim, em 1989) –, o mundo ingressou num segundo período, que foi o mais duradouro nesses anos analisados, de hegemonia absoluta e unipolar dos EUA. Com isso, o imperialismo estadunidense se expandiu globalmente, em termos econômicos, políticos e culturais. Entretanto, devido ao movimento permanente da realidade, tem se tornado cada vez mais evidente nos últimos anos, que o mundo entrou num terceiro período, caracterizado pela emergência da força social internacional da China e, junto a ela, pela retomada de força da Rússia e, em alguma medida, do sul global. Quase todos os grandes acontecimentos internacionais recentes possuem relação ou se explicam diretamente pela reação dos EUA a essa perda de espaço global.
** CRISE DO BLOCO SOCIALISTA NO CONTEXTO DA GUERRA FRIA
1. A ampla crise do chamado bloco socialista, que levou ao fim da Guerra Fria, se agravou consideravelmente ao longo dos anos 1980, e pode ser explicada por fatores externos e internos. Entre 1980 e 1985 havia já na União Soviética uma estagnação econômica marcada pela baixa produtividade e pela escassez de bens de consumo. Havia também uma crescente oposição interna à guerra decorrente da invasão do Afeganistão em 1979, e uma instabilidade no governo, que buscou ser superada com a ascensão de Mikhail Gorbatchov – primeiro, no Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e, em seguida, na própria URSS, entre 1985 e 1988. Naqueles anos, o PCUS negociava a retirada das tropas do Afeganistão, se reaproximava da Europa, iniciava negociações com os Estados Unidos para controle de armas nucleares e passava a convergir com o Ocidente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Marcos fundamentais desse período foram a “Perestroika”, reestruturação que permitiu o multipartidarismo e promoveu o empreendedorismo com vistas à retomada do crescimento econômico, e a “Glasnost”, abertura que ampliou liberdades de expressão, de imprensa, e que libertou prisioneiros políticos.
1. A URSS sucumbiu nos fins de 1991, como resultado de um conjunto de fatores. Primeiro, devido à vitória de um setor da burocracia soviética favorável às políticas liberalizantes de abertura ao Ocidente e ao capital privado, sob a liderança de Bóris Iéltsin, sobre outro setor dessa burocracia, que defendia uma linha mais conservadora (fechada e estatizante), e que fracassou numa tentativa de golpe de Estado em agosto de 1991. Segundo, em razão dos inúmeros protestos nacionalistas que se intensificaram de 1988 em diante, os quais atingiram as repúblicas do Báltico, do Cáucaso e da Ucrânia. E também dos processos de independência que se intensificaram depois que o PCUS perdeu as eleições de 1990. Terceiro, devido às dificuldades de sobrevivência do bloco socialista no contexto da Guerra Fria e do jogo de forças geopolítico, mesmo que a desintegração da URSS não fosse o objetivo dos EUA, que temia o destino dos recursos militares soviéticos. Fato é que o processo de abertura e de privatização de tudo aquilo que pertencia ao antigo Estado soviético integrou o leste europeu ao capitalismo ocidental e deu origem a novas classes dominantes locais; marcado por enorme corrupção, esse processo, além de transformar antigos burocratas em novos oligarcas, favoreceu o surgimento e o fortalecimento de organizações mafiosas, particularmente na Rússia.
1. Outros acontecimentos contribuíram com essa crise do bloco socialista e, entre as consequências dela, destacam-se a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a reunificação da Alemanha no ano seguinte, que também permitiu sua integração ao capitalismo ocidental. Esse foi o resultado de um movimento de aproximação entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental, que ganhou relevância nos anos 1970 e 1980. Nessas duas décadas, já no contexto da crise da URSS, tal movimento reduziu progressivamente as tensões entre ambos os países, permitindo certas visitas, condenando o uso da violência, reconhecendo a autonomia dos dois países, ainda que enfatizando que “o povo alemão é um só”. Os acontecimentos que desencadearam a queda do muro e a reunificação se deram em 1989: a flexibilização das fronteiras – inicialmente com a Hungria, o que permitiu muitos deslocamentos para a Alemanha Ocidental através da Áustria – e os protestos vitoriosos contra o governo exigindo reformas.
1. Além dessa integração dos países da antiga URSS e da Alemanha ao capitalismo ocidental, outro acontecimento que agravou essa crise foi o destino dos outros países administrados por partidos comunistas. Foram basicamente dois os caminhos tomados por esses países. Parte deles reforçou sua abertura progressiva ao capital privado e ocidental, ainda que mantendo governos de partido único e um controle estatal bem mais rigoroso na economia; o caso mais relevante é o da China, ainda que o Vietnã e o Laos também possam ser mencionados. Outra parte permaneceu mais fechada e plenamente estatizada, também com governos de partido único e maior proximidade com as experiências burocráticas dos tempos da Guerra Fria; tais são os casos de Cuba e da Coreia do Norte, mais isoladas no cenário internacional e vítimas de embargos promovidos pelos EUA.
** IMPERIALISMO DOS ESTADOS UNIDOS E SUA HEGEMONIA GLOBAL
1. As décadas que se seguiram ao fim da Guerra Fria proporcionaram condições para a concretização da vocação imperialista dos Estados Unidos, que assumiu uma posição hegemônica como grande potência imperialista e dominante no mundo. Com isso, as classes dominantes estadunidenses se impuseram globalmente, nos campos econômico, político e intelectual-moral (cultural). O marco norteador desse processo foi a chamada Doutrina Wolfowitz, que planejava garantir a hegemonia do EUA no mundo e estendê-la para além do Atlântico Norte.
1. Em termos (geo)econômicos, essa dominação se estabeleceu por meio de um tripé: hegemonia do dólar, supremacia financeira do mercado financeiro dos Estados Unidos e ascensão do neoliberalismo. O projeto econômico estadunidense baseado nesse tripé foi uma resposta à ascensão dos aliados (Europa Ocidental e Japão) e a fatores da luta de classes internos aos países do capitalismo central, com a decorrente queda nas taxas de lucro dos anos 1960 e 1970 (que ocorreu pela divisão de renda no centro do capitalismo). O movimento central ocorreu em 1971, quando o governo dos EUA, de forma unilateral, abandonou o sistema de Bretton Woods, rompeu unilateralmente com o padrão dólar-ouro e forçou o mundo a adotar taxas de câmbio flutuantes. Com a Crise do Petróleo de 1973 – que implicou desaceleração econômica e da produtividade; crescimento da inflação, do déficit público e do desemprego; evasão de reservas –, o dólar foi colocado como a única moeda para liquidar contratos petrolíferos. Desse modo, os EUA enfraqueceram os bancos nacionais e favoreceram os operadores privados no controle das finanças globais. As tentativas de colocar limites a essas medidas – encabeçadas inicialmente por Alemanha, França e Japão, e, depois, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) – fracassaram ainda na década de 1970. Além disso, os Estados Unidos aumentaram suas taxas de juros internas e acabaram com o controle sobre as movimentações internacionais de capital econômico. Com essas medidas, atraíram esses capitais do mundo todo, valorizando o dólar e fortalecendo os interesses financeiros de Wall Street; garantiram assim sua supremacia no sistema monetário-financeiro internacional. Enfim, esse processo foi reforçado por uma mudança em termos de ideário econômico, que converteu o neoliberalismo num consenso amplamente difundido, com protagonismo dos governos Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido).
1. Desde o fim da Guerra Fria, o dólar permaneceu a principal moeda mundial para transações e reservas. Os benefícios disso para os Estados Unidos foram e continuam sendo gigantescos, tendo em vista a possibilidade que eles têm de emitir dólares (e, com isso, pagar importações e passivos externos), de controlar o crédito e de definir taxas de juros (e, com isso, determinar os juros de sua própria dívida externa), assim como o gigantesco deslocamento de capital econômico internacional ao próprio país para aquisição de títulos públicos. Isso consolidou os EUA como local preferencial para aplicações e investimentos das classes dominantes e governos do mundo todo. Além disso, a partir dos anos 1990, os EUA promoveram internacionalmente as políticas neoliberais do Consenso de Washington, marcadas por desregulamentação, privatização e liberalização do comércio. Chegaram inclusive a experimentar, desde 1994, uma área de livre comércio com o Canadá e o México (NAFTA), cujos resultados foram nefastos para trabalhadores e o meio ambiente. Entretanto, apesar dessa ênfase na promoção do neoliberalismo, os EUA têm mantido um Estado bastante interventivo na economia, em especial com o desenvolvimento de seu complexo industrial-militar e com o protecionismo que favorece suas empresas transnacionais no mundo e setores de sua economia como aço, alumínio e agricultura. Durante o século XX, os Estados Unidos garantiram sua inserção privilegiada na divisão internacional do trabalho, se dedicando à produção de alto valor agregado (conhecimento e tecnologia), e controlando cadeias estratégicas produtivas e tecnológicas. Contaram, desde o fim da Guerra Fria, com um crescimento enorme de seu Produto Interno Bruto (PIB): nas três décadas entre 1991 e 2021, seu PIB se multiplicou por quase quatro vezes, e seu PIB per capita quase triplicou.[1] Essa descomunal força econômica vem usufruindo, ainda, de uma presença massiva de suas empresas em todo o mundo (multinacionais, transnacionais) e das políticas promovidas por instituições – multilaterais, inclusive – sob seu controle. O que permite ao imperialismo estadunidense – e, portanto, às classes dominantes dos EUA – determinar parte fundamental do processo de acumulação de capital econômico no mundo e, assim, das desigualdades de riqueza e de renda que derivam dele.
1. Em termos (geo)políticos, os EUA buscaram sair da crise dos anos 1970 expandindo sua dominação militar. Em um contexto de reveses político-militares em diferentes partes do globo, romperam com a política de “distensão” e partiram para confrontos mais diretos e abertos. O braço militar do imperialismo estadunidense foi reforçado, a partir dos anos 1980, com argumento do “destino manifesto”: a crença de que os EUA possuem a missão divina de expandir seu domínio pelo mundo e, com isso, conduzi-lo à salvação – algo que reforçou sua própria posição de “juízes” do mundo. Com o fim da URSS e as conquistas militares na Guerra do Golfo (1991), os Estados Unidos redesenharam sua estratégia geopolítica. Planejaram diversas intervenções visando estabelecer uma “nova ordem mundial”, ou seja, uma renovada hierarquia global, em cujo topo eles próprios estariam.
1. Para consolidar sua posição geopolítica, o império estadunidense atuou em duas frentes. Primeiro, ampliou sua força militar no globo e interviu direta e indiretamente em outros países. Os EUA articularam não apenas a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mas também sua hegemonia dentro dela. Entre 1999 e 2009, a OTAN expandiu para o leste e, além de países que já eram membros – como EUA, Reino Unido, França, Itália e Alemanha –, passou a contar com outros, como República Tcheca, Hungria, Polônia, Bulgária, Eslováquia, Estônia, Romênia e Croácia. Essa expansão permitiu que os EUA expandissem suas bases militares para todas as regiões estratégicas do mundo. Em 2015, havia 800 dessas bases fora do território dos EUA; na América Latina, há bases em inúmeros países, com destaque para Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Peru e Porto Rico. Tanto governos democratas quanto republicanos contribuíram com esse avanço. Dentre as inúmeras intervenções militares diretas levadas a cabo pelos EUA nesse período, se destacam as invasões do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003), assim como aquelas que afetaram países como Kuwait, Somália, Bósnia, Iugoslávia, Iêmen, Haiti, Líbia. Houve também intervenções indiretas, que estimularam golpes e mudanças de governo em distintos países. Apenas durante o governo de Bill Clinton (1993-2001), os Estados Unidos promoveram 48 intervenções militares; quase o triplo das 16 que foram realizadas durante toda a Guerra Fria. Numa segunda frente, o império estadunidense atuou para evitar o fortalecimento de potências concorrentes – as neutralizando ou colocando sob ameaça militar ou de sanções – e se esquivar de acordos internacionais que colocassem em xeque sua dominação imperialista. Os EUA fizeram tudo que puderam para neutralizar países como China, Rússia e Índia, com medidas que foram desde intervenções arbitrárias na ONU até instalação de bases militares em regiões próximas. Ainda fizeram todo o possível para controlar as rotas e a extração de recursos naturais, como no caso da energia e do petróleo na África, no Golfo Pérsico e na Bacia do Cáspio; intervieram em conflitos pelo mundo, direta e indiretamente, e lucraram muitíssimo com a venda de armas para países em conflito. Em ambas as frentes, independente das justificativas discursivas que receberam, essas intervenções tiveram como único fim contribuir com o aumento da força social global dos Estados Unidos, de sua burguesia e de sua burocracia. Seja para manter essa “nova ordem mundial”, seja para garantir o lucro de suas empresas, o protagonismo de seu governo e de suas forças armadas – por exemplo, impondo suas leis ao mundo e livrando seus empresários e militares dos tribunais internacionais –, o controle estratégico de rotas (como o Canal do Panamá) e recursos (como o petróleo e o gás). Foi por esse motivo que os EUA não assumiram compromissos concretos com a preservação do meio ambiente, como evidenciado nos boicotes promovidos ao Protocolo de Kyoto (para redução gases do efeito estufa, 1997) e à Convenção da Basileia (para destinação adequada de resíduos, 1989/1992).
1. Essa força imperialista foi ainda estimulada pela difusão massiva da cultura estadunidense pelo mundo, a partir de valores, hábitos e estilos de vida típicos dessa forma de capitalismo-estatismo. Dentre eles, além do já mencionado “destino manifesto”, se encontram o consumismo e o individualismo, que estimularam, por um lado, a criação de necessidades infinitas de consumo, assim como a aquisição e a substituição permanente de bens e serviços sem necessidade; e, por outro, as visões de que a felicidade é conquistada por meio do consumo, que a riqueza é o único critério de sucesso, que a meritocracia explica e justifica as desigualdades, que a competição de todos contra todos é normal e mesmo desejável etc. Essa difusão foi realizada de maneiras menos e mais conflitivas. No primeiro caso, ela envolveu tanto a transnacionalização da indústria cultural dos EUA – através do cinema (Hollywood), da televisão e do rádio; dos filmes, das séries, das músicas (rock, pop, hip-hop) –, quanto da disseminação do inglês como idioma global (para negócios, ciência e cultura) e da indústria da moda e seus próprios padrões internacionais de beleza. É óbvio que tais artes e formas de cultura não são, por si sós, imperialistas; ainda que estejam sendo mobilizadas no sentido colocado, elas também possuem potencial de conscientização e crítica, a depender de como forem mobilizadas. No segundo caso, os Estados Unidos passaram a pressionar o mundo todo para adotar seus próprios valores e práticas, em particular suas concepções arbitrárias de direitos humanos e democracia; resolveram classificar os países a partir desses critérios, impondo sanções e confrontando direta e indiretamente aqueles que não os cumprissem.
** REEMERGÊNCIA DA CHINA, DA RÚSSIA E DOS BRICS
1. Ao longo deste início de século XXI, duas potências históricas têm retomado seu espaço no mundo: China e Rússia. Ambas vêm se articulando com outros países do bloco econômico dos BRICS, na tentativa de estabelecer um contraponto à dominação protagonizada pelos EUA e seus aliados da Europa Ocidental.
1. Essa reemergência da China se consolidou sob a liderança de Deng Xiaoping (1978-1992) que, usufruindo dos desenvolvimentos industriais e rurais realizados durante o governo de Mao Tse-Tung (1949-1976), promoveu uma crescente abertura ao capital econômico privado do exterior (investimentos estrangeiros e comércio exterior), rompendo com o isolamento do período precedente. Isso se concretizou com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs): áreas em que se permitia a entrada desse capital estrangeiro para realização de parcerias com o capital econômico estatal chinês; e foi possibilitado pela liberação de uso do excedente da produção agrícola no comércio. Os anos 1980-1990 contaram com uma modernização da agricultura, da indústria e das áreas de ciência/tecnologia e defesa na China. Tal modernização se fez sentir diretamente na produção industrial, que cresceu em complexidade na passagem dos anos 1990 para os anos 2000 – por exemplo, diminuindo a produção têxtil, de baixo valor agregado, e aumentando a produção eletrônica, de alto valor agregado. E que foi reforçada pelo ingresso na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Tais condições alçaram a China à posição de potência industrial do mundo, em constante expansão. Em 30 anos (1993-2023), o PIB chinês se multiplicou por 40, indo de pouco menos de meio trilhão para quase US$ 18 trilhões. De 2010 em diante, a China permaneceu como segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos EUA, e com perspectivas de chegar à primeira posição nos próximos 10 anos. Trata-se de um crescimento econômico vultuoso, mas que foi feito às custas de uma dramática destruição ambiental e de um imenso aumento da exploração do trabalho e da desigualdade social. Apesar de ter conseguido retirar mais de 800 milhões de pessoas da extrema pobreza nas últimas quatro décadas, a China possui atualmente quase 10% dos milionários do mundo e centenas de bilionários.
1. Neste período mais recente, se destaca a liderança de Xi Jinping, que assumiu a presidência em 2013 e é o mandatário mais longevo, desde a fundação da República Popular da China, em 1949. Ele reforçou o controle sobre a máquina do Partido Comunista Chinês (PCC) e implantou uma série de medidas para modernizar o país, que já era uma potência econômica no início dos anos 2010. Usufruiu de uma reforma constitucional em 2018, que acabou com o limite de mandatos presidenciais, permitindo a ele um terceiro mandato a partir de 2022. Xi Jinping, além de sua importância como liderança política, também ganhou relevância filosófica. Ele atualizou o pensamento sobre o “socialismo com características chinesas” que, na visão dele, é uma continuação do marxismo-leninismo adaptado à realidade chinesa do século 21, e possui como fundamentos centralização em torno do PCC, abordagem econômica pragmática, características nacionalistas e elementos do confucionismo. Como grande projeto desse período se destaca a Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), anunciado em 2013: um projeto de infraestrutura global que conecta a China a várias partes do mundo. Fazem parte dele a construção de estradas, ferrovias, portos e aeroportos em diversos países, com o objetivo de facilitar o comércio dos produtos chineses e fortalecer as relações diplomáticas com países de todos os continentes, principalmente da Ásia e da África. Mais de 150 países, que somam 60% da população global, aderiram a esse projeto; com uma postura mais pragmática, o Brasil ainda não aderiu. A Nova Rota da Seda é um ponto de tensão geopolítico com os EUA, que tenta pressionar a China por meio de medidas tarifárias, e projetos de infraestrutura globais. A competição na área de alta tecnologia, como 5G e semicondutores, é outro campo de disputa entre China e EUA nos últimos anos.
1. Em nossa caracterização, a China não é socialista e nem um projeto de caminho ao socialismo. Trata-se de uma sociedade capitalista, mas com um papel mais determinante do Estado, quando comparada a países capitalistas ocidentais. Poderíamos falar de um capitalismo estatizante, que combina um governo autoritário de partido único (de um autointitulado partido “comunista”) – que, ainda assim, proporciona certas instâncias de participação em nível subnacional – com uma economia capitalista com grande participação e controle do Estado. As classes sociais continuam a existir, assim como as diferentes formas de dominação que as constituem, incluindo a exploração do trabalho. A economia chinesa é planificada, possui participação hegemônica da propriedade estatal e seu sistema financeiro também é estatizado. O governo possui maior controle sobre os investimentos internos e externos, assim como sobre o projeto de desenvolvimento nacional. Mesmo assim, é completamente descabido considerar que a China seja socialista simplesmente porque a economia é mais estatizada e/ou porque ela está submetida ao governo de um partido autointitulado comunista.
1. A reemergência da Rússia se deu com a superação das crises política e econômica dos anos 1990, posterior ao fim da URSS. Junto à ascensão e à manutenção do poder de Vladimir Putin, a Rússia retomou sua força econômica – baseada principalmente em recursos naturais (petróleo e gás), indústria militar e comércio com a Ásia (China, especialmente) – e suas ambições político-militares internacionais. Entre 2000 e 2013, multiplicou seu PIB por quase nove vezes, ainda que tenha enfrentado crises no período posterior. Tal crescimento, apesar de ter retirado muitas pessoas da extrema pobreza e melhorado as condições de vida da população em geral, se fez por meio de uma grande exploração do trabalho e com uma distribuição de riqueza e renda bastante desigual. Atualmente, há mais de 350 mil milionários e de uma centena de bilionários (ambos em dólares) no país. Do ponto de vista político, a Rússia de Putin tem se caracterizado como um governo nacionalista e autoritário, marcado pelo controle e pela repressão à oposição, aos dissidentes de gênero-sexualidade e à imprensa. O país contou com um grande aumento de seu orçamento militar – entre 1999 e 2012, ele se multiplicou por mais de 12 vezes –, que o recolocou com muitíssima força social no cenário geopolítico global. Os conflitos na Chechênia (2000-2009), a anexação da Criméia (2014), a intervenção na Síria (2015) e a atual guerra contra a Ucrânia (2022-) evidenciam a força militar dessa potência, que retoma seu espaço no mundo contemporâneo.
1. A Rússia também se caracteriza como um país de capitalismo estatizante, em que o Estado possui papel mais determinante que nas sociedades mais (neo)liberais do Ocidente, ainda que esse papel seja menos determinante do que na China. Ela combina um governo que concentra força no executivo – destacadamente de 2000 em diante, com Putin no poder –, com uma economia capitalista sob relevante controle do Estado. É um país que caminha para um nacionalismo econômico e se consolida como um bastião do (neo)conservadorismo global. Durante o século XXI, a Rússia vem ambicionando conformar uma burguesia nacional que, sob a direção de uma burocracia centralizada, tenha condições de rivalizar com o capital econômico euroamericano. Ela também tem fortalecido a Igreja Ortodoxa e movimentos nacionalistas e fascistas, promovendo um duro enfrentamento ao feminismo e à comunidade LGBT+; atualmente, o governo russo patrocina e apoia movimentos fundamentalistas religiosos e partidos de extrema-direita em diversos outros países, dentre os quais Alemanha, França e Hungria.
1. China e Rússia têm atualmente rearticulado o chamado tabuleiro eurasiano, atuando no sentido de construir uma ordem mundial multipolar e um contraponto à hegemonia dos Estados Unidos e à expansão da OTAN. A principal ferramenta internacional para isso tem sido os BRICS – bloco formado ao longo dos anos 2000 por essas duas potências, além de Brasil, Índia e África do Sul, e que integrou posteriormente outros países membros e parceiros. Sem dúvida, os BRICS contam com grande força econômica, ainda que não esteja claro o nível de conflito que seus membros estão dispostos a empreender contra o imperialismo estadunidense – por exemplo, no caso da substituição do dólar para as transações entre países do bloco. Mesmo que geopoliticamente tenha havido avanços na projeção dos interesses dos BRICS, em termos militares também não há evidências de interesses em operações mais articuladas e ofensivas para o enfrentamento da OTAN. Apesar disso, há certo consenso de que aquela hegemonia praticamente absoluta dos EUA no mundo chegou ao fim, e de que estamos caminhando cada vez mais para um cenário com traços de multipolaridade. É verdade que os países mais poderosos do bloco, China e Rússia – como qualquer Estado poderoso –, tenham vocações (e certas práticas locais e regionais) imperialistas. Por exemplo, recordemos o papel da China no Mar do Sul, com impactos nos povos do Vietnã e de outras nacionalidades, e no processo de “hanificação” (política de deslocamento ou incentivo à migração de cidadãos da etnia Han, grupo majoritário da China, para regiões habitadas por minorias étnicas), com impactos em povos tibetanos, uigures e mongóis. Recordemos também o papel da Rússia no Cáucaso e na supressão de rebeliões populares com justificativa geopolítica (“rivalidade com OTAN”), impactando Geórgia, Moldávia, Bielorrússia e mesmo Ucrânia.
1. Contudo, desde uma perspectiva global não parece adequado, neste momento, falar num conflito internacional entre dois países/blocos “imperialistas”. Isso porque, até o presente, os Estados Unidos continuam a manter sua hegemonia imperial no mundo, em razão da força social (econômica, política, militar, cultural etc.) que vêm conseguindo mobilizar internacionalmente. Mas também é importante ter em mente que, nessa análise do imperialismo mundial, não podemos nos restringir aos aspectos político-militares; é fundamental considerar os aspectos econômicos. Isso significa que a China, mesmo não sendo tão agressiva e intervencionista internacionalmente como os EUA, e apesar de não recorrer atualmente à força militar ostensiva, vem crescendo muito em força econômica global. Para isso, têm sido fundamentais os países para os quais a China exporta seus capitais e aos quais impõe altas taxas de exploração do trabalho; os países nos quais a China cria relações de dominação pelo mecanismo de empréstimos financeiros e onde ela se apropria de terras (especialmente na África e na América Latina). Enfim, é ainda importante notar que esse conflito entre EUA e China (Rússia, BRICS etc.) não é um conflito contraditório, de modo que ele pode ser capaz de trazer mudanças, mas não transformações que rompam com a lógica sistêmica do capitalismo-estatismo global.
** NEOLIBERALISMO, OLIGOPÓLIOS TRANSNACIONAIS E DESIGUALDADES CRESCENTES
1. Nos anos analisados, o capitalismo-estatismo global foi profundamente marcado pela progressiva urbanização e pelo intenso desenvolvimento tecnológico. Desde 2008, a população global vivendo nos campos foi superada em quantidade pela população morando nas cidades; em 2023, esta última representava 57% da população mundial. Essa sociedade cada vez mais urbana tem usufruído da automação, da informatização, das novas fontes de energia e da biotecnologia, que marcaram a terceira revolução industrial (Revolução Técnico-Científica). E, mais recentemente, da internet das coisas, da inteligência artificial e da robótica, que vêm marcando a quarta revolução industrial (Indústria 4.0). No contexto geoeconômico e geopolítico já discutido – o qual implica, por um lado, a hegemonia dominante dos Estados Unidos, e, por outro, o crescimento da força social do bloco China-Rússia (e dos BRICS) –, a Ásia vem conquistando mais importância que a América Latina.
1. Traço essencial desse período foi a ascensão do neoliberalismo. Com a crise do modelo fordista-keynesiano – marcada por queda nas taxas de lucro, dificuldade de crescimento, aumento de desemprego e inflação –, e no contexto dos dois choques do petróleo, em 1973 e 1979, emergiu esse novo modelo de acumulação de capitais. Economicamente chamado de “toyotismo” ou “acumulação flexível”, ele foi, em suma, o projeto das classes dominantes europeias e estadunidenses para reestabelecer sua dominação de classe e sua apropriação das riquezas nacionais e internacionais – um projeto cuja força social se sobrepôs àquela das alternativas socialdemocratas, dominantes no período anterior. O neoliberalismo ascendeu entre os anos 1970 e 1980, em diferentes países. Na América Latina, ele foi experimentado, de maneira precursora, como um projeto econômico no contexto da ditadura militar no Chile; na Europa e nos Estados Unidos, ele se tornou pouco depois um projeto mais ambicioso, sob Reagan e Thatcher. Consolidou-se ao longo dos anos 1980 como modelo de sociedade formalizado no Consenso de Washington, com desdobramentos de ordem econômica, política e cultural.
1. Dos anos 1990 em diante, com o fim da Guerra Fria, o neoliberalismo estabeleceu sua hegemonia global. Por meio de um discurso de eficácia e diminuição da intervenção de Estado, o que se viu na prática neoliberal foi uma política que apenas redirecionou os recursos e as políticas de Estado para as classes dominantes, destacadamente aquelas dos países centrais. Foi literalmente a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. As políticas neoliberais de abertura e desregulação econômica, de austeridade, de financeirização, de privatização de estatais, de flexibilização das relações de trabalho tiveram consequências nefastas para trabalhadores e trabalhadoras do mundo. E, mesmo que, juntamente a outras causas, os efeitos da Crise de 2008 e da pandemia de Covid-19 tenham evidenciado seus limites – com alguns analistas decretando inclusive seu fim –, não há dúvida que o neoliberalismo teve centralidade nos anos em questão, com destaque para duas de suas consequências.
1. A primeira foi a imensa internacionalização e concentração/centralização de capitais, que produziu um capitalismo-estatismo ultramonopolista,fundamentado em poderosíssimos oligopólios transnacionais, que se reforçaram com a privatização de empresas estatais. Para se ter uma ideia, 1% das empresas – na maioria instituições financeiras, como Barclays Bank, J.P. Morgan e Goldman Sachs – controlam 40% do sistema corporativo mundial; 16 grupos controlam quase todo o comércio de commodities no mundo – ou seja, os preços desses produtos primários, como aqueles que constituem o cerne das exportações brasileiras, não são estabelecidos pelas “leis de mercado”, mas pelo poder econômico e político, e pelos interesses especulativos dessas corporações. Esses oligopólios, que chamam a si mesmos de “mercado”, dominam o acesso às matérias primas mais importantes do mundo e administram orçamentos gigantescos: em 2013, controlavam US$ 50 trilhões, quando, a título de comparação, o PIB dos EUA era de US$ 17 trilhões. As decisões sobre o destino e a administração desse capital econômico, que é mobilizado permanentemente para a acumulação de seus proprietários, não possui qualquer participação popular ou transparência. Trata-se de uma verdadeira ditadura da burguesia internacional possibilitada por sua posse de capitais.
1. Essa complexa rede de oligopólios possui imensa força política, jurídica e cultural. Ela atua com lobbies, financiamento de campanhas eleitorais, cooptação da justiça, controle da informação, do ensino e da produção de conhecimento científico. Age para transformar os interesses das classes dominantes em “interesses gerais” – por exemplo, quando coloca critérios como “rentabilidade financeira”, “responsabilidade fiscal” e “confiança do mercado” como objetivos primordiais a serem atingidos pelas economias nacionais. Essa rede atua constantemente, em todos os campos, para proteger e maximizar seus lucros e suas propriedades; para intensificar a exploração do trabalho e garantir um nível permanente de desemprego, de forma a controlar os salários e os sindicatos; para manter seus privilégios tributários e fiscais, evitando pagamentos ou recebendo incentivos; para garantir a opacidade de seus negócios, complicando as fiscalizações; para conservar a desregulação dos paraísos fiscais; para deixar seus acionistas e administradores longe das responsabilizações, em casos de violações ambientais e trabalhistas.
1. A segunda grave consequência do neoliberalismo foi o crescimento brutal da desigualdade social. O que se viu, dos anos 1980 em diante, foi um enriquecimento sem precedentes das classes dominantes e um empobrecimento geral das classes oprimidas em diversos países, aumentando de maneira considerável a distância econômica (riqueza e renda) entre elas. Desde o início dos anos 2000, o 1% mais rico da população mundial possui mais riqueza que os 99% restantes somados. Em 2017, oito indivíduos possuíam a mesma riqueza que toda a metade mais pobre da população mundial. O pior é que essa desigualdade não para de aumentar; os ricos têm ficado cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais pobres.
1. As classes dominantes transnacionais têm visto sua riqueza aumentar exponencialmente devido à especulação financeira, à distribuição de lucros das grandes empresas, à sonegação (legal e ilegal) de impostos, aos extraordinários bônus e salários de gestores e administradores. Entre 2008 e 2024, o número de bilionários em dólares passou de 1125 para 2781, e a riqueza por eles acumulada mais do que triplicou, chegando no último ano a mais de US$ 14 trilhões. É tanta concentração de riqueza que ela sequer pode ser consumida, e termina funcionando apenas como mecanismo para gerar mais riqueza e poder. Uma pesquisa da Oxfam de 2016 identificou que 89% dos bilionários daquele ano eram homens e a maior parte da riqueza deles tinha origem em herança, favorecimento e nepotismo.
1. As classes oprimidas internacionais, por meio de seu trabalho, garantiram o enorme crescimento do PIB mundial, que se multiplicou por mais de oito vezes entre 1985 e 2023, chegando no último ano a US$ 105 trilhões. Nesse período, houve um aumento constante da produtividade e da exploração do trabalho, assim como da flexibilização e da precarização das relações de trabalho – em particular nos últimos anos, com o advento de aplicativos e plataformas como Uber etc. Ademais, as perdas de direitos foram crescentes, assim como as perdas salariais, que foram constantes e significativas, afetando centenas de milhões de trabalhadores em razão da falta de reajuste frente à inflação. Em termos dos empregos no mundo, a agricultura está empregando menos, os serviços mais, e a indústria permanecendo relativamente estável. Entre 1991 e 2022, os empregos na agricultura passaram de 43% para 26% da população; os empregos nos serviços passaram de 35% para 50%; os empregos na indústria passaram de 21% para 24% – ainda que muitos países estejam vivenciando uma perda de espaço da indústria de transformação, sejam eles centrais – como EUA, Reino Unido, França e Alemanha –, ou periféricos, como Argentina e Brasil. Dentre os países que se industrializaram nesses anos, o caso mais importante é, sem dúvida, a China. Nesse mesmo período (1991-2022), o desemprego global cresceu mais de 62%.[2] Nos últimos anos, se estima que, no mundo, mais de 800 milhões de pessoas estejam passando fome e 50 milhões estejam sendo vítimas das formas modernas de escravidão. De 2008 em diante, tem havido um endividamento muito grande das famílias, que continua a aumentar.
1. Nas últimas décadas, o crescimento do crime organizado pode ser entendido como uma consequência direta das lacunas deixadas pela globalização neoliberal em diversas regiões do mundo. Em muitos contextos, especialmente em comunidades marginalizadas, organizações criminosas preencheram esse vácuo, oferecendo alternativas à sobrevivência, como empregos informais, assistência social e até mesmo estruturas de poder paralelo que, em alguns casos, são mais eficazes e imediatas do que as instituições estatais. Organizações criminosas tradicionais, como a Cosa Nostra italiana, a Yakuza japonesa e as Tríades chinesas, conviveram e se adaptaram a esse novo cenário; ao mesmo tempo, surgiram novos agrupamentos, como os carteis latino-americanos e a Bratva russa. A Bratva, por exemplo, emergiu com a desintegração da União Soviética, aproveitando o colapso institucional para se estruturar e expandir suas operações ilícitas, muitas vezes com a conivência ou até apoio de figuras políticas e empresariais. Esse ambiente de fragilidade estatal é também o terreno fértil para o fortalecimento de redes transnacionais de crime organizado, operando como parte do próprio mercado global de bens e serviços. Hoje, cerca de 83% da população mundial vive em países com altos níveis de criminalidade, com a proliferação de atividades como o tráfico de seres humanos, de armas, prostituição, drogas sintéticas, falsificação de medicamentos e mineração ilegal. O comércio ilegal do crime organizado gera mais de US$ 2 trilhões anualmente, e o narcotráfico representa uma fatia considerável dessa soma, US$ 320 bilhões.
1. Nos anos 1980 e 1990, a “guerra às drogas” promovida pelos EUA levou à intensificação da militarização no combate ao narcotráfico, com impactos profundos na América Latina, especialmente na Colômbia e no México. Sob a justificativa de erradicar o tráfico de drogas e desmantelar carteis, os Estados Unidos impulsionaram políticas de repressão violenta, financiando governos e forças de segurança para enfrentar organizações criminosas. No entanto, essa estratégia teve efeitos colaterais devastadores: fortalecimento de grupos paramilitares, expansão da violência e transformação do narcotráfico em um fenômeno ainda mais descentralizado e resiliente. Além disso, há fortes indícios de que a própria CIA manteve relações com o tráfico de drogas durante esse período, facilitando o transporte de entorpecentes para financiar operações clandestinas, como no escândalo Irã-Contras da década de 1980. O envolvimento da CIA com traficantes nicaraguenses ligados à direita permitiu que grandes quantidades de cocaína entrassem nos EUA, resultando no aumento significativo do uso de crack, principalmente pelas camadas mais marginalizadas. Figuras como Daniel Noboa (Equador), Nayib Bukele (El Salvador) e Javier Milei (Argentina) conquistaram espaço adotando discursos duros contra o crime, prometendo políticas de repressão massiva e endurecimento penal como solução para o avanço do narcotráfico e da criminalidade. O Equador, que até poucos anos atrás era visto como uma rota de trânsito para entorpecentes, se tornou um centro de distribuição, armazenamento e processamento de drogas. Esse crescimento da atividade criminosa levou a uma escalada sem precedentes da violência; comparando os números desse país de 2019 e 2023, os homicídios se multiplicaram por mais de seis vezes. Esse drástico crescimento está diretamente ligado à presença cada vez maior de carteis mexicanos e grupos criminosos locais, que disputam o controle do território. O governo de Daniel Noboa tem respondido com medidas emergenciais, como a declaração de estados de exceção e operações militares, seguindo uma linha semelhante à de Bukele, em El Salvador.
1. As dificuldades econômicas – juntamente a outros acontecimentos, envolvendo guerras, conflitos, perseguições e catástrofes naturais – têm motivado imigrações, sobretudo para os Estados Unidos e os países da União Europeia. Há, atualmente, em comparação às últimas décadas, uma tendência de crescimento expressivo da imigração em geral – que, em 2022, chegou à cifra de 280 milhões no mundo – e da imigração ilegal em particular, que representa em torno de 20% do total das imigrações. Em muitas localidades, os imigrantes ocupam empregos precários, pouco valorizados e têm sido alvo de discriminação e xenofobia, frequentemente responsabilizados pelo aumento da criminalidade, pela sobrecarga de serviços públicos e programas sociais; ao mesmo tempo, são vítimas de teorias conspiratórias que os apresentam como inimigos internos a serviço de interesses estrangeiros. Obviamente, todas as imigrações, inclusive as ilegais, são legítimas e justas, pois são, na imensa maioria, oprimidos buscando melhorar sua condição de vida, muitas vezes nos países imperialistas que têm responsabilidade pela precariedade de sua vida pregressa. De maneira geral, as imigrações ilegais para os EUA são majoritariamente de latinos; aquelas para a Europa, de asiáticos, árabes e africanos. Nos EUA, a imigração ilegal mais do que triplicou entre 1990 e 2007, chegando neste último ano a mais de 12 milhões de pessoas; nos anos posteriores, esse número diminuiu um pouco. A maioria absoluta (mais de 1/3) desses imigrantes vem do México e integra a força de trabalho estadunidense; uma minoria vem de Índia, China, Filipinas e El Salvador. Os EUA possuem a maior população carcerária do mundo e os imigrantes latinos compõem uma parcela significativa de presidiários. Em 2014, cerca de 59% das pessoas em prisões estaduais ou federais pertenciam a minorias étnicas, com 37% de negros e 22% de latinos – ou seja, 3% de todos os homens negros e 1% de todos os homens latinos estavam presos. Na Europa, somente entre 2014 e 2017, a imigração ilegal aumentou 30%. Estima-se que, em 2017, o número desses imigrantes esteja entre 3,9 e 4,8 milhões. Em 2019, de todos os imigrantes ilegais que entraram na Europa, 30% eram da Ásia (principalmente do Afeganistão e do Paquistão), 21% eram do Oriente Médio e do Norte da África (sobretudo da Síria e do Iraque) e 17% da África Subsaariana (principalmente da Nigéria e da Eritreia), 32% outros países da Europa e Américas. Dos anos 1990 em diante, também tiveram relevância quantitativa imigrantes ilegais de países como Turquia, Marrocos, Somália, Egito e Argélia. Na Europa, os imigrantes são as principais vítimas do tráfico humano e da escravidão moderna – em 2017, havia cerca de um milhão de pessoas nessa condição apenas na União Europeia, sendo quase a metade de mulheres submetidas à prostituição e à escravidão sexual.
1. As consequências do neoliberalismo não são apenas sociais. Em contextos de altos níveis de estresse e falta de vínculos sociais, o neoliberalismo também vem tendo impacto na saúde mental da população global, ainda que de modo bem heterogêneo. Algumas regiões têm sido mais afetadas do que outras, as mulheres têm sido mais afetadas que os homens. Duas doenças chamam muito a atenção: a ansiedade e a depressão. Entre 1990 e 2019, a primeira cresceu 5% e a segunda 11%; entretanto, o que mais se destaca é o aumento que ambas tiveram com a pandemia. Apenas entre 2019 e 2021, a ansiedade cresceu 20% e a depressão 15% no mundo. Em 2021, se estimava que havia, dentre toda a população mundial, 4,4% com transtorno de ansiedade (Portugal, Brasil, Paraguai e Irã no topo da lista) e 4% com transtorno de depressão (Groelândia, Tunísia, Grécia e Palestina no topo da lista). Outras doenças mentais que têm relação com o capitalismo – mais especificamente com a concepção de beleza feminina que ele promove – são os distúrbios alimentares: anorexia e bulimia. Apesar de bem menos relevantes quantitativamente, eles atingem muitas pessoas: 0,2% da população mundial – na imensa maioria, meninas e mulheres.
1. Contudo, também é importante destacar outro fator relevante no crescimento dos diagnósticos de transtornos mentais: o papel desempenhado pela indústria farmacêutica e por setores do campo médico na ampliação do que é considerado patologia. Muitas vezes, o lobby dessas indústrias atua influenciando alterações nos critérios diagnósticos e promovendo a medicalização de comportamentos anteriormente considerados parte da normalidade ou da variação da experiência humana. A criação de novas categorias de transtornos ou a flexibilização de parâmetros clínicos pode contribuir para inflar artificialmente os números e, ao mesmo tempo, ampliar mercados consumidores para medicamentos psicotrópicos. Esse fato não nega o sofrimento real de milhões de pessoas na atualidade, especialmente em um contexto de crise social generalizada, mas alerta para a necessidade de uma crítica ao uso excessivo de diagnósticos e fármacos como única resposta ao mal-estar psíquico, muitas vezes ignorando suas raízes sociais, econômicas e políticas.
1. Se, por um lado, não há dúvida que, entre 1985 e 2024, o neoliberalismo foi um aspecto central da sociedade global, por outro lado, parece inegável que, atualmente, o cenário está se modificando. Três acontecimentos marcantes podem estar anunciando tais mudanças: os limites do próprio neoliberalismo evidenciados pela Crise de 2008, cujos efeitos ainda não se dissiparam, assim como pela pandemia; as mudanças geopolíticas, em função da ascensão do bloco China-Rússia e do enfraquecimento relativo da hegemonia dos EUA; o fortalecimento da extrema-direita, em particular em suas expressões antiliberais.
** CONSENSO LIBERAL E LIBERALIZAÇÃO DA ESQUERDA
1. Nas últimas décadas, a ascensão e a consolidação do neoliberalismo, somada ao colapso do antigo bloco socialista e à hegemonia global dos Estados Unidos, produziu crises em vários países que operavam com a dicotomia mais tradicional entre direita e esquerda. Isso porque um certo “consenso liberal-democrático” se estabeleceu como alternativa única, combinando, na economia, o mercado capitalista e seus mecanismos (como algo necessário e inevitável), e, na política, princípios como competição eleitoral multipartidária, sufrágio universal e divisão dos três poderes. Ainda que essa noção de democracia possa e deva ser questionada – dentre outros motivos, porque ignora as relações internacionais, a economia, e afasta os trabalhadores dos processos de decisão cotidianos mais relevantes –, o fato é que esse consenso liberal afetou diretamente partidos de esquerda em vários países.
1. Aqueles mais radicalizados foram estigmatizados sob o argumento de que a experiência real deixara evidente que o socialismo e o comunismo eram inviáveis; tinham “dado errado”. Muitos desses partidos se isolaram, deixaram de existir ou se ajustaram às bandeiras reformistas e mais moderadas. Os casos foram muitos, como o Partido Comunista da Espanha (PCE), o Partido Comunista do Chile (PCCh), as continuidades do Partido Comunista Italiano (PCI) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Aqueles menos radicalizados, mas que ainda operavam próximos de uma perspectiva socialdemocrata ou trabalhista mais clássica – de luta pelo Estado de bem-estar social – caminharam ao centro, adotando progressivamente perspectivas liberalizantes, ou mesmo liberais. Aqui, também, os casos foram muitos, como o Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD), o Partido Socialdemocrata da Suécia (SAP), o Partido Trabalhista da Grã-Bretanha, a Concertación do Chile e o Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil.
1. Dos anos 1990 em diante, ficou evidente esse movimento de liberalização da maioria da esquerda partidária mundial; ela se deslocou ao centro e, na maioria das ocasiões, acabou abandonando não apenas as perspectivas revolucionárias, mas mesmo o reformismo estrutural em favor das classes oprimidas. As alianças caminharam ao centro (ou até à direita), reforçando as frentes amplas – em especial dos anos 2010 em diante, com o crescimento da extrema-direita. Nas ocasiões em que “comunismo” e “socialismo” permaneceram na forma dos nomes desses partidos, perderam completamente seu conteúdo. Cada vez mais social-liberal, e no limite (neo)liberal progressista, essa “esquerda” reiteradamente tem reforçado que não há alternativa, e que o que resta é negociar, gerenciar a barbárie e tentar conseguir alguma melhoria no meio de tudo isso. Essa “esquerda” está crescentemente docilizada e pautada por um bom-mocismo cívico e republicano, que defende acriticamente o “jogo democrático” e as instituições da ordem. Mais uma vez, isso confirma aquilo que os anarquistas vêm apontando historicamente: a disputa eleitoral por parte de socialistas, comunistas etc. conduz à burocratização, à moderação, ao abandono de princípios e à traição das trabalhadoras e dos trabalhadores oprimidos.
1. Devido à sua posição proeminente no mundo, os EUA contribuíram de maneira determinante com esse processo. Seja pelo papel exercido pelo Partido Democrata, cada vez menos keynesiano e mais neoliberal, dos anos 1970 em diante. Seja pelo papel que suas fundações (como Open Society Foundations, Ford Foundation e Rockfeller Foundation) tiveram no financiamento e no estímulo de ONGs, grupos de pesquisa, think tanks, partidos e movimentos progressistas pelo mundo. Algo que evidencia manifestações de neocolonialismo que, não raro, se afirmam “decoloniais”. Mas houve também contribuições significativas da França, pela participação que vários de seus intelectuais, em geral vinculados ao pensamento pós-estruturalista, tiveram na criação e na difusão internacional da “virada pós-moderna”.
1. As teorias pós-modernas tiveram seu primeiro grande impulso durante os anos 1970, num contexto de refluxo das lutas populares na França, posterior à derrota das mobilizações do Maio de 68. Elas se fortaleceram depois, com aportes que vieram principalmente dos países do norte global, destacadamente dos Estados Unidos. Essa virada pós-moderna, ao criticar problemas da esquerda clássica – muitos deles realmente existentes, e que precisavam ser enfrentados –, terminou produzindo algo muito pior, pois desembocou em abordagens teóricas e políticas liberais ou liberalizantes; uma forma pós-iluminista de liberalismo. Os pós-modernos, ao criticarem o cientificismo e a razão instrumental, terminaram negando a ciência, a razão, a verdade, e estimulando o relativismo, as narrativas fragmentadas e o predomínio das emoções. Ao criticarem o dogmatismo teórico e os determinismos universalistas e objetivistas, terminaram negando a necessidade teorias sociais robustas, e os aspectos universais e objetivos da realidade e das lutas sociais, e estimulando a fragmentação e o ecletismo teórico, os particularismos e os subjetivismos. Ao criticarem o materialismo vulgar e as concepções exclusivamente macrossociais do poder, terminaram negando a materialidade da vida, a ação política estruturalmente transformadora – e, com isso, o próprio socialismo –, e estimulando o culturalismo, a substituição da realidade pelos discursos, o individualismo, quando não o niilismo e o conformismo. Ao criticarem o determinismo de classe, terminaram negando a perspectiva classista de análise e intervenção na realidade, e estimulando os particularismos e as identidades concorrentes – de gênero, sexualidade, idade, raça, etnia, nacionalidade, capacidade etc. – separadas da luta de classes, ou seja, um identitarismo cultural que, dentre outras coisas, se concentrou nas mudanças setoriais e individuais, na busca por representatividade e na inserção pelo consumo. Em resumo, as posições pós-modernas não apenas são incapazes de explicar a realidade, mas também de transformá-la na direção do socialismo. É preocupante o fato de elas terem se difundido, ao longo dos anos analisados, em vários setores da esquerda no mundo.
1. Esses dois elementos – adoção do consenso liberal-democrático e difusão do pós-modernismo – foram importantes nessa liberalização da esquerda partidária, cujos impactos foram e continuam sendo devastadores para a esquerda global de maneira geral. Isso porque, por um lado, essa liberalização se estendeu para outros âmbitos, incluindo movimentos populares, universidades, terceiro setor e amplos setores da sociedade; por outro, ela vem afastando a esquerda das classes oprimidas, da luta de classes, e submetendo-a ao crescente protagonismo de acadêmicos, personalidades públicas, influenciadores de internet etc. Ao longo das últimas décadas, o Partido Democrata, as fundações e outras instituições, majoritariamente do norte global, continuam incentivando e financiando iniciativas liberalizantes que têm afastado a esquerda de sua perspectiva socialista e mais radicalizada. Essa “esquerda”, em especial nas suas expressões partidárias, vêm se distanciando cada vez mais das pautas concretas da imensa maioria das classes oprimidas e aderindo crescentemente a uma agenda cujo impacto se resume a setores médios, intelectualizados e artísticos. Esse vácuo político em relação aos trabalhadores tem sido ocupado pela extrema-direita. Decorre disso que essa “esquerda”, na prática, adota políticas mais e mais liberalizantes, mas tenta compensar isso com discursos sem incidência considerável na realidade social. Exemplos não faltam. Incapaz de combater efetivamente a precarização do trabalho, o racismo, o patriarcado, e de construir alternativas de poder popular socializantes, essa “esquerda” passa a falar em empreendedorismo social e empoderamento individual; começa a disputar as terminologias para se referir aos negros, à população LGBT+ etc.; passa a se referir ao capitalismo chinês como socialismo ou a adotar um discurso radical de internet sem impacto na realidade. Os casos são incontáveis e podem ser vistos tanto nas redes sociais quanto fora delas.
** CULTURA NEOLIBERAL, CONHECIMENTO E CRENÇAS
1. O neoliberalismo implicou também a difusão de uma cultura neoliberal, que se destacou ao longo de todos os anos em questão. Propagada como um tipo de racionalidade, essa cultura passou a estimular os princípios neoliberais em todas as relações humanas e áreas da vida social. Ela promoveu a exaltação progressiva da competição (concorrência) de todos contra todos, a busca pessoal de ganhos de produtividade e eficiência, a responsabilização individual (“meritocracia”) e o tratamento do outro em termos de investimento e valorização; os indivíduos passaram cada vez mais a serem concebidos como consumidores e as relações sociais como relações comerciais. Com isso, a fragmentação do tecido social se reforçou, a solidariedade foi sendo minada e os projetos coletivos inviabilizados.
1. Mas, no campo cultural há outros marcos que devem ser mencionados. Possivelmente, o mais importante nas décadas analisadas foi o impacto da “revolução digital”, consolidada com o desenvolvimento e a difusão massiva dos computadores pessoais, da internet, dos smartphones e das redes sociais. Essa mudança se iniciou nos anos 1980 e vem se consolidando ao longo dos anos 2010 e 2020. Dentre muitos outros aspectos, ela modificou completamente a maneira como as pessoas se comunicam e se informam. A comunicação pessoal e grupal acelerou muito e facilitou as interações entre pessoas de um mesmo país e do exterior. A informação teve grande impacto, na medida em que o conteúdo online cresceu vertiginosamente, a grande imprensa perdeu sua hegemonia e outros meios se fortaleceram. Entre os anos 1990 e 2000, se difundiram os blogs e iniciativas como o Indymedia, que democratizaram a mídia, permitindo às pessoas “comuns” e ativistas políticos difundirem informações de maneira mais significativa. Com os smartphones e as redes sociais, a comunicação e o consumo de informações passaram à palma da mão. Hoje, aproximadamente 70% das pessoas no mundo possuem acesso à internet e utilizam redes sociais; há quase o mesmo número de smartphones e habitantes no planeta. Isso também tem reforçado a formação de bolhas, a difusão de fake news e outros fenômenos relacionados. Mesmo assim, não se pode considerar que as redes sociais sejam um mundo à parte. Por mais que tenham suas próprias dinâmicas, elas fazem parte da sociedade e não apenas reproduzem o que se passa em outros campos, mas possuem a capacidade de influenciar esses campos.
1. Em termos de religião, de acordo com dados de 2022, os cristãos constituem 32% da população mundial, seguidos pelos muçulmanos (26%), hindus (15%), sem filiação (14%) e outros. Três tendências mundiais se destacam. Primeiro, o crescimento que os muçulmanos vêm tendo; em 1970, eram aproximadamente 16% da população, e, em 2020, chegaram a 25% – a projeção é que nas próximas décadas se tornem a maior religião do mundo. Segundo, a tendência de diminuição relativa (percentual) dos cristãos em todo o norte global; em 1910, eles somavam 87% da população, e, em 2010, 69%. Terceiro, as mudanças que têm acontecido entre os cristãos, particularmente com os protestantes. Estes diminuem no norte global e aumentam no sul global, especialmente no Brasil, na China, na Índia e na Nigéria; em 2011, eles representavam 37% dos cristãos, contra 50% de católicos, 12% de ortodoxos e 1% de outros. Além disso, desde 1970 estão surgindo mais posições fundamentalistas, sobretudo em setores de cristãos (protestantes e católicos), muçulmanos, hindus e judeus. E as expressões religiosas mais alinhadas à esquerda, com destaque para a Teologia da Libertação, estão perdendo muitíssimo espaço. Por um lado, o neoliberalismo – ao desmantelar os serviços públicos, as redes de assistência social e os direitos trabalhistas – permitiu que movimentos religiosos ocupassem essas funções. Por outro, a crise da esquerda impediu que sindicatos, movimentos ou outras forças populares conseguissem disputar esse processo. Vale ainda destacar que o papado continua sendo um ator geopolítico de grande relevância. O falecido Papa Francisco manifestou posições progressistas em termos de justiça social, meio ambiente e acolhimento de migrantes; o atual Papa Leão XIV (eleito em 2025) sucede esse legado dentro dos limites da doutrina católica, mantendo a influência diplomática da Santa Sé no cenário internacional em uma perspectiva próxima da esquerda social-liberal.
1. Na educação, os anos estudados contaram com um aumento das pessoas com acesso à educação formal no mundo – elas passaram de 75% da população em 1985 para 87% em 2020. Entretanto, os problemas nesse âmbito continuam a ser muitos, e incluem: a situação estrutural dos estabelecimentos de ensino; as condições de trabalho, os salários e a formação dos professores; as privatizações e a penetração do “mercado” no setor público; a violência e a reprodução de opressões de classe, gênero e raça. A produção científica vem tendo um crescimento absoluto que, em linhas gerais, acompanha o aumento do PIB global. Trata-se, contudo, de uma produção concentrada – 50% dela é feita por apenas seis países: EUA, China, Reino Unido, Alemanha, Índia e Japão – e que tem sofrido mudanças em termos geográficos. Entre 1996 e 2018, a Europa continuou no topo dessa produção, mas, entre 2007 e 2008, o segundo lugar passou da América do Norte para a Ásia. Ao analisar a produção científica por país, vemos que, apesar de os EUA terem se mantido no topo durante todo o período analisado, em 2018 a China, cuja produção cresceu 20 vezes nesses anos, se equiparou aos EUA. A produção da Índia também teve um aumento significativo (de 7,5 vezes) nesses anos. Ainda assim, os países que atualmente concentram o maior percentual de doutores e que mais investem em conhecimento estão no norte global. Conhecimento que, obviamente, se alinha na maior parte dos casos aos interesses do grande capital e dos grandes Estados.
1. A grande imprensa, mesmo com as consideráveis mudanças causadas pela “revolução digital” – a qual implicou uma grande concorrência de mídias alternativas e redes sociais –, continua a ter bastante relevância e impacto no mundo. É inegável a influência que proprietários e empresas continuam a ter em diferentes países: Rupert Murdoch (Reino Unido), Silvio Berlusconi (Itália), Televisa e Carlos Slim (México), Globo (Brasil), Clarin (Argentina), cinco conglomerados (Japão), Vivendi (França), Bonnier (Suécia), Telefonica (Espanha), Disney, Warner, Sumner Redstone, R. Murdoch, Bill Gates e Google (Estados Unidos). Mesmo com a internet e certa democratização que ela trouxe nesse âmbito, a propriedade de tais meios intelectuais-morais (mídia global) continua profundamente concentrada. Na média, em cada país, as quatro maiores empresas de mídia controlam 79% das plataformas de mídia e 40% do conteúdo midiático. Ao avaliar não as possibilidades existentes de consumo, mas as informações realmente consumidas, essa concentração fica mais que evidente. Ademais, mesmo nesse novo mercado da internet, os monopólios já se formaram, com empresas como Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp etc.), Google e Amazon atingindo o topo das empresas monopolistas.
** COLAPSO AMBIENTAL GLOBAL
1. De 1950 a 2024, a população mundial mais que triplicou, indo de 2,5 bilhões para mais de 8 bilhões de pessoas. Nesse período, a economia mundial também cresceu imensamente; só nos últimos 40 anos, ela se multiplicou por mais de oito vezes, favorecendo sobretudo os países centrais e suas classes dominantes. Tal crescimento econômico foi motivado por uma produção cada vez maior de mercadorias, devido ao estimulo constante de desejos infinitos e padrões de consumo cada vez mais globalizados e inatingíveis para as imensas maiorias. Durante séculos, até meados do século XX, a visão hegemônica era de que a natureza constituía uma fonte infindável de recursos, que deveriam ser utilizados para a promoção do bem-estar humano. Especialmente a partir de 1950, práticas legitimadas por tal visão, levadas adiante tanto pelo bloco capitalista quanto pelo bloco socialista, levaram a um crescimento brutal da destruição do meio ambiente no mundo.
1. As classes dominantes globais, por meio dos grandes oligopólios transnacionais, são as maiores protagonistas dessa destruição ambiental global – um colapso, uma crise que ameaça a todos. As evidências disso são muitas e os dados são assustadores. Em termos ambientais, a mudança climática é, possivelmente, a consequência mais grave, muito em função dos eventos extremos – furacões, ondas de calor, incêndios, secas, inundações – que estão cada vez mais frequentes. De 1980 a 2024, a temperatura média da Terra subiu 1,5 grau, e 2024 foi o ano mais quente da história; o nível do mar está subindo e as geleiras estão derretendo. Mais da metade de toda a emissão de carbono da história ocorreu depois de 1990, e os países que a lideram são os Estados Unidos e a China, seguidos pelos países da União Europeia, a Índia, a Rússia e o Japão. Somente nos últimos 60 anos, o consumo de água no mundo dobrou. No que diz respeito à destruição da fauna e da flora, assim como à poluição da água, do ar, e à degradação da terra, alguns indicadores têm apresentado certa melhora desde os anos 1980, devido à difusão global da pauta ambiental. Mas, ainda assim, os números continuam alarmantes. Por volta de 70% da fauna do planeta foi destruída entre 1970 e 2020 e, por ano, 10 milhões de hectares de florestas vêm sendo devastados – nisso, o Brasil possui um lugar de destaque, ao lado de Bolívia, Peru, Indonésia e República Democrática do Congo. Globalmente, em torno de 2 bilhões de pessoas consomem água contaminada pela produção industrial, agrária, e pelo tratamento inadequado do lixo. Além disso, 40% de todo o solo do planeta está contaminado. Somente em 2021, a poluição do ar contribuiu com mais de 8 milhões de mortes humanas. As previsões para o futuro são catastróficas. Além do agravamento de todos os problemas mencionados, há outros riscos, como o colapso de ecossistemas inteiros, o crescimento de epidemias, doenças, fome (por aumento do custo dos alimentos) e migrações (pelo colapso da agricultura).
1. Institucionalmente, um marco na questão ambiental foi a realização, em 1972, da Conferência de Estocolmo da ONU, buscando compromisso dos chefes de Estado em relação à emergente pauta ecológica. Contudo, a burguesia internacional, em especial aquela vinculada aos setores de petróleo e carvão, iniciou uma reação nos anos seguintes, promovendo o negacionismo que se consolidou nos think tanks e partidos conservadores pelo mundo. Conforme desastres ambientais se acumularam, novas iniciativas internacionais foram realizadas, tais como a Eco-92, no Rio de Janeiro, o Protocolo de Kyoto, de 1997, e o Acordo de Paris, de 2015. Mas mesmo essas moderadíssimas iniciativas promovidas pelo ONU fracassaram. E fracassaram em função do jogo de forças econômicas e políticas globais: a instituição promotora dessas iniciativas (ONU) responde aos interesses da burguesia e da burocracia global, as quais são as grandes protagonistas da destruição ambiental. O próprio modelo desses acordos internacionais tende ao fracasso, pois aposta na sensibilização e na boa vontade do grande capital econômico e dos grandes Estados do mundo. Os conflitos contemporâneos, que contrapõem empresas capitalistas e Estados, destacadamente EUA e China, colocam ainda mais obstáculos a esses acordos, cuja violação amplia as possibilidades de vitória nos conflitos. Se é verdade que há, dentre as classes dominantes, setores com alguma preocupação que extrapola o curto prazo, e que visa principalmente sua autopreservação tendo em vista o colapso iminente, há outros setores que não possuem qualquer pretensão de ameaçar seus lucros e interesses mais imediatos.
** DIMENSÕES ESTRUTURAIS E CONJUNTURAIS DA CRISE ECONÔMICA
1. Atualmente, o capitalismo global vivencia um longo período de crise econômica, com elementos estruturais e conjunturais. Essa crise se intensificou a partir dos anos 1970 e se agravou fortemente depois da Crise de 2008 e da pandemia de Covid-19.[3]Alguns elementos mais estruturais dessa crise econômica já foram mencionados, visto que se acentuaram com o neoliberalismo: a concentração/centralização de capitais e o crescimento da desigualdade social. Mas, ainda sobre essa crise, parece importante fazer outros comentários. Na sociedade presente há uma completa incongruência entre produção e distribuição econômica, algo que exprime uma contradição mais ampla. Essa sociedade possui uma gigantesca capacidade social para a produção de riquezas – a qual, efetivamente, se realiza de forma social –, mas que, tendo em vista as relações de poder e a maneira completamente irracional que foi organizada, promove uma desigualdade brutal e níveis inaceitáveis de precarização, subocupação, desemprego e mesmo fome – visto que a apropriação das riquezas é, efetivamente, individual. Situação que só se reforça com os crescentes monopólios e com um desenvolvimento tecnológico voltado apenas à acumulação de capital econômico. Mas, mesmo com tal irracionalidade – sem a qual seria possível promover um grande crescimento/desenvolvimento, dentro de parâmetros ecológicos, e diminuir a quantidade de trabalho dos oprimidos –, em 2023, o PIB mundial correspondeu a uma média de R$ 21 mil (US$ 4200) por mês por família de quatro pessoas; e apenas a produção mundial de grãos e cereais correspondeu a quase 1kg por pessoa por dia. Ou seja, mesmo hoje, dentro da irracionalidade capitalista-estatista, não há qualquer justificativa racional, em termos de produção econômica ou quantidade de riqueza produzida, para a pobreza no mundo.
1. Esse quadro se mantém em função das relações sociais de poder e dominação, que beneficiam apenas um minúsculo grupo de ricos e poderosos, as classes dominantes. É porque uns poucos têm muitíssimo, que muitíssimos não têm quase nada. Nas últimas décadas, a burguesia mundial tem visto seus lucros aumentarem significativamente. E isso vem ocorrendo num ritmo mais rápido que o crescimento da produtividade e da renda dos trabalhadores. De modo que a tendência é de um aumento progressivo da pobreza e da desigualdade social. Por um lado, essa desigualdade aumenta o nível de dominação das classes oprimidas; por outro, ela limita o consumo, tendo em vista que a riqueza é finita e vem chegando cada vez menos aos de baixo. As ameaças de agravamento dessa crise permanecem constantes.
1. Tais aspectos da atual crise capitalista-estatista não possuem condições de ser solucionados por meio do crescimento econômico (“crescer o bolo”), dos acordos internacionais e nem das políticas de Estado. Com essa desigualdade social global – em que os de cima se apropriam de quase tudo, e os de baixo de quase nada –, o nível de crescimento necessário para uma mudança de alguma relevância nas condições de vida das classes oprimidas é absolutamente inviável, tanto do ponto de vista econômico, quanto ambiental. Assim como no caso da questão ambiental, os acordos internacionais, como aqueles firmados na ONU, são sistematicamente descumpridos para não colocar em xeque interesses nacionais e de classe. Enfim, os Estados, ainda que estejam sujeitos às pressões populares, estão estruturalmente vinculados aos interesses capitalistas; sua função é garantir a acumulação permanente e a manutenção de capitais. A imensa maioria da burocracia é financiada pelo grande capital econômico, defende seus interesses e usufrui desse próprio capital. A não ser em momentos que exigem medidas mais sérias para a manutenção da ordem, o Estado não intervém e nem intervirá seriamente para resolver essa questão.
1. No entanto, a presente crise também possui elementos mais conjunturais que, desde os anos 1970, vêm complicando a economia global. O processo nas últimas décadas é o seguinte: a crise se aprofunda devido a certos problemas, cuja solução, sempre instável e temporária, acaba produzindo outros problemas e reforçando os ciclos de crise, que ocorrem em intervalos de poucos anos. Nos anos 1970, o problema foi a inflação – que atingiu seu pico em 1974, chegando a 11,1% nos EUA e 13,1% na Europa; as tentativas de solução – que envolveram financeirização, monetarismo, aumento dos juros e destruição dos sindicatos – resultaram em outro problema. Dos anos 1980 até meados dos anos 1990, esse problema foi a dívida pública – que, entre 1980 e 1997, mais do que dobrou e chegou a um pico jamais retomado de mais de 80% do PIB global; as tentativas de solução – que envolveram políticas de austeridade, desregulação da dívida privada, aumento do crédito privado, privatizações e mais reformas neoliberais – resultaram na instabilidade financeira que conduziu à Crise de 2008, cujos efeitos são sentidos até o presente. Essa crise foi resultado da financeirização neoliberal e consequência direta da busca por lucros privados. Mas como de praxe, para mitigar os efeitos da crise, os Estados socorreram o setor privado da economia, injetando dinheiro em bancos e sistemas financeiros. O financiamento desses gastos foi feito, na maior parte dos casos, com emissão de moeda e redução das taxas de juros. Ainda que o endividamento público não tenha crescido, o endividamento privado, das empresas e famílias, explodiu. Os bancos centrais tiveram seus escopos ampliados e vêm sendo cada vez mais blindados de qualquer intervenção popular, mesmo que por meio de governos eleitos. As consequências da Crise de 2008 foram “socializadas” com as trabalhadoras e os trabalhadores do mundo, acelerando a precarização, o desemprego, a queda de salários, de direitos, e os cortes em políticas sociais. O principal problema que resultou de tudo isso foi o enorme crescimento da desigualdade social, que se agravou com a pandemia e se tornou preocupante até para as instituições das classes dominantes globais.
** DEMOCRACIA LIBERAL EM XEQUE E ASCENSÃO DA EXTREMA-DIREITA
1. Mesmo que, até hoje, a maioria da população mundial não viva sob regimes de democracia liberal burguesa, não há dúvida de que os anos de vigência do consenso liberal fizeram com que ela avançasse significativamente no mundo, em particular no Ocidente. Entretanto, desde o início do século XXI, essa limitada democracia está em xeque, e já convive com uma ascensão expressiva da extrema-direita, em países ocidentais e não ocidentais. Trataremos essa direita como “extrema-direita”, e não como fascista, neofascista etc. Ainda que haja similaridades entre ela e o fascismo histórico, entendemos que o termo “extrema-direita” evita polêmicas desnecessárias.
1. Como mencionamos, o neoliberalismo implicou um ganho enorme de força social dos oligopólios transnacionais e uma imensa ampliação da desigualdade social. Somados ao redirecionamento dos recursos anteriormente utilizados para apaziguar os conflitos sociais – que existiam, sobretudo, nos países centrais, durante o fordismo-keynesianismo –, esses fatores tiveram consequências sobre a democracia liberal de diferentes países. Os oligopólios avançaram não apenas em força econômica, mas também em força política; passaram a controlar cada vez mais as decisões políticas e reforçaram a dominação de classe. Burguesias e burocracias trabalharam de maneira ativa para reduzir a participação popular nos processos decisórios e para enfraquecer as organizações e movimentos de trabalhadores em todo o mundo. De modo que a já restritíssima democracia liberal está se tornando cada vez menos democrática. Ainda que os rituais formais sejam mantidos, as decisões relevantes estão sendo transferidas para a burguesia e seus oligopólios. Nesse movimento, as relações entre burocracias e burguesias estão se reconfigurando. As próprias eleições, também limitadíssimas para promover mudanças significativas, têm servido cada vez menos. Visando minimizar o “risco” de governos eleitos simpáticos aos trabalhadores, as classes dominantes vêm retirando do âmbito das decisões governamentais tudo aquilo que é importante para elas. Outro fator de perda de legitimidade dessas democracias são os acontecimentos que deixam claro que, havendo oposição, mesmo restrita, a certos interesses hegemônicos, a vontade popular pode não ser respeitada. Isso se tornou evidente no plebiscito da dívida na Grécia, em 2015, e nos golpes de novo tipo ocorridos na América Latina: Honduras, em 2009; Paraguai, em 2012; Brasil, em 2016; Bolívia, em 2019.
1. O contexto das últimas décadas – marcado pela crise ambiental, econômica e política, que envolve a crise da esquerda mais tradicional; pela fragmentação do tecido social; pelo crescimento do islamismo e das imigrações (latinas, asiáticas, árabes e africanas) para os EUA e a Europa; pelo ganho de espaço de movimentos feministas, LGBT+s, antirracistas e ecológicos – proporcionou estímulos para a reorganização e o ganho de força social da extrema-direita, sobretudo depois da Crise de 2008. Ou seja, essa direita é, em grande medida, uma reação às crises e às mudanças do último período. Ainda que, em análises mais específicas, seja necessário fazer distinções entre lideranças e bases, e sobre as diferentes tonalidades que marcam o apoio dessa direita, é possível afirmar que ela possui eixos estruturantes mais gerais e traços mais específicos, os quais fundamentam práticas políticas e guerras culturais permanentes, além de variarem conforme cada contexto. Um desses eixos mais gerais é a naturalização das hierarquias e das desigualdades sociais, assumindo que alguns humanos são mais “humanos” que outros, que cada grupo ou pessoa tem seu devido lugar na sociedade e deve se manter assim, que só os fortes sobrevivem etc. Com isso, essa extrema-direita produz uma oposição entre o “verdadeiro povo”, de um lado – nós, superiores, os “homens de bem” que devem ser protegidos –, e os “inimigos do povo”, de outro – eles, inferiores, os “parasitas”, “ratos” ou criminosos que devem ser destruídos. Essa formação do “nós” e do “eles” é profundamente identitária; as identidades coletivas são fatores aglutinadores fortíssimos.
1. Frequentemente, os membros dessa extrema-direita apresentam suas posições como antissistêmicas – “contra tudo que está aí” ou a velha “revolução na ordem” fascista –, ainda que elas reforcem o capitalismo-estatismo. Concebem um projeto autoritário de sociedade, visto que ele pressupõe dominação em variados níveis, “lei e ordem”, disciplina hierarquizada e visão única de mundo. Realizam diagnósticos irreais da realidade, baseados em teorias da conspiração, análises distorcidas e informações falsas – fato que tem contribuído para uma desintegração compreensiva, reforçada pelo espírito de seita. Via de regra, suas conclusões escondem as verdadeiras contradições do capitalismo e do Estado. Tem sido comum, também, que esses membros adotem posições anti-intelectuais e promovam ataques à educação e às universidades; que seus diagnósticos reforcem a própria autovitimização, na medida em que julgam progressos de oprimidos e mudanças sociais (reais ou imaginadas) como ameaças ou opressões desse “nós” – produzindo, com isso, frustrações, ressentimentos e medos; que eles defendam soluções simples, com alta carga emocional e de intolerância, para questões complexas – soluções que, conforme o contexto, podem combinar posições xenofóbicas, etnocêntricas, racistas, nacionalistas, masculinistas, misóginas, homofóbicas, transfóbicas etc.
1. Quando, no parágrafo anterior, falamos “frequentemente”, “é comum” e “conforme o contexto”, é porque essa extrema-direita global é complexa e diversificada. Ela tem mostrado significativa capacidade de adaptação aos diferentes contextos e às distintas realidades de cada povo, país e região. Em cada circunstância, essas hierarquias e desigualdades são definidas de maneira específica. O “inimigo do povo” pode ser o imigrante árabe ou latino, o negro, o muçulmano, o indígena, a mulher, o LGBT+, o “corrupto”, o militante de esquerda etc. E a identidade coletiva que os agrega pode ser nacional, étnica, religiosa, cultural, mas também de gênero, de sexualidade e de raça. Essa direita pode estar mais vinculada ao fascismo e o nazismo históricos, ou pode possuir pautas e referenciais e mais contemporâneos. Ela pode ser (neo)liberal ou desenvolvimentista; pode se apoiar ou se opor à globalização, ao Ocidente, ao nacionalismo ou à religião; pode até se dividir por rivalidades religiosas ou nacionais, como nos casos do conflito entre Turquia e Israel, e da guerra entre Rússia e Ucrânia.
1. Essa radicalização à direita vem encontrando apoio consistente em diversos países, em parte considerável das burguesias, burocracias e mesmo das classes oprimidas. Há lideranças vinculadas a essa extrema-direita que chegaram ao poder pelas eleições em diferentes países, que incluem EUA, Itália, Reino Unido, Rússia, Israel, Polônia, Hungria, Turquia, Índia, Filipinas, Argentina e Brasil. Entretanto, essa direita também tem ampliado sua força social por meio de inúmeros movimentos e grupos, que operam dentro e principalmente fora da institucionalidade do Estado. Isso é realidade nos mencionados países e em outros, como França, Alemanha, Suécia, El Salvador, África do Sul e Japão. No Ocidente, a liderança dessa direita está no trumpismo estadunidense, que tem repercussão em países da Europa e da Oceania. Nessas regiões, essa direita faz dos imigrantes grandes inimigos e conquista trabalhadores brancos que se sentem abandonados pelos partidos. Parte dos países considera a Rússia inimiga, como a Itália e a Polônia, e parte como aliada, como a França, a Alemanha e os EUA. Em Israel, onde já se praticava um regime de apartheid racista e colonial contra o povo palestino, ocorreu uma radicalização à direita sob a coalizão liderada por Benjamin Netanyahu, que decidiu avançar para uma política aberta e intensificada de extermínio. Na Turquia, Recep Erdogan endureceu o governo com apoio dos nacionalistas de direita do Partido de Ação Nacionalista (MHP), e transformou o povo curdo em uma ameaça nacional. Na Índia, Nerendra Modi se tornou o representante do hindutva, um movimento fundamentalista de ultradireita, e passou a apostar em políticas de criminalização e marginalização das comunidades muçulmanas. Na América Latina, a extrema-direita é mais unificada e age como correia de transmissão do trumpismo e sob a influência da direita ibérica, em especial do Vox espanhol e do Chega português. Possui um discurso moralista, meritocrático e que mobiliza as populações contra a “corrupção”, a criminalidade, os direitos dos mais pobres e das minorias. No Brasil, o elemento religioso também é proeminente, em particular aquele dos evangélicos pentecostais e neopentecostais.
** MULHERES, COMUNIDADE LGBT+ E PATRIARCADO
1. Entre 1985 e 2024, a condição material das mulheres e da população LGBT+ no mundo deixa evidente que os efeitos do patriarcado continuam fazendo vítimas e oprimindo duramente. Entretanto, nesses anos também é inegável que houve avanços, não apenas nas lutas em torno das pautas de gênero e sexualidade, mas nas conquistas efetivas em diversos países e no mundo, de maneira geral. Nesses anos, as questões relativas às mulheres e à comunidade LGBT+ tiveram grande relevância no debate público e um impacto crescente na realidade social. Aquelas que envolvem o feminismo se destacaram em todo o período analisado; aquelas relativas ao ativismo LGBT+ se fortaleceram especialmente da virada de século em diante. No entanto, é bastante preocupante que o mercado capitalista e o Estado, por meio das classes dominantes, venham tentando se beneficiar dessas pautas. E, pior que isso; desde a ascensão da extrema-direita, essas próprias conquistas estão sendo ameaçadas.
1. Em termos geográficos, comparando os indicadores disponíveis sobre a condição feminina global, há dados para afirmar que o patriarcado se manifesta de modo duríssimo no norte e no centro da África (em países como Egito, Sudão, Chade, Nigéria e Somália) e no Oriente Médio (em países como Irã, Afeganistão, Jordânia e Iêmen). E de maneira menos brutal em países nórdicos (como Noruega, Suécia e Finlândia) e na Europa Ocidental (em países como Holanda e Suíça). Em sentido semelhante, os dados sobre a condição da comunidade LGBT+ no mundo permitem destacar que a opressão dessa população se manifesta de maneira muitíssimo intensa no norte da África e no Oriente Médio. Um país que se destaca negativamente em quase todas as avaliações relativas às mulheres e aos LGBT+ é a Rússia, profundamente misógina e homofóbica. Localidades um pouco mais abertas, mas onde ainda há muito preconceito e opressão, são: Europa Ocidental, América do Sul (em países como Brasil, Chile e Uruguai), Austrália e África do Sul. A condição de regiões e países centrais ou periféricos, assim como fatores culturais, incluindo a religião, ajudam a explicar esse quadro.
1. Entre 1991 e 2022, as mulheres do mundo passaram a trabalhar mais no setor de serviços e menos na agricultura, acompanhando a tendência geral do trabalho no mundo. Entretanto, na indústria, cujo setor manteve seu percentual de empregos, as mulheres passaram de 24% para 14% da força de trabalho. Ou seja, a indústria global tem se tornando mais masculina. Na última década, as áreas que as mulheres mais trabalharam (fora de casa e remunerado) foram: serviços de cuidado, saúde, educação, atendimento ao consumidor, setor público, varejo e entretenimento; o desemprego entre elas se manteve estável no período, em torno de 5%. Em relação ao trabalho doméstico não remunerado, quando comparadas aos homens, as mulheres realizaram quase o triplo do trabalho feito por eles, de acordo com dados de 2023 – ainda que seja importante destacar que, nos últimos dez anos, essa desigualdade tenha diminuído levemente. Esse trabalho, vinculado ao cuidado com a família (filhos, idosos e outros familiares) e com a casa, é motivo de significativos desgastes, exaustões e de doenças físicas e mentais, em especial no caso das mulheres que também trabalham fora de casa. Cada vez mais, as mulheres que cuidam estão precisando de cuidado. Esses são fatos que permitem falar de uma dupla dominação/exploração dessas mulheres, no âmbito do trabalho e do lar. As regiões com maior desigualdade na realização do trabalho doméstico são o norte da África, o Oriente Médio, o centro e o sul da Ásia. Quanto mais pobres as famílias, mais as mulheres são penalizadas. Os dados sobre a comunidade LGBT+ no mundo mostram que, em média, há em torno de 10% de pessoas de sexualidade dissidente. Em 2023, eram 3% lésbicas e gays, 4% bissexuais e 3% de outras sexualidades. Esses 10% constituem a média global de países que têm números bem mais baixos, como o Japão e o Peru, cada um com 3%, e bem mais altos, como o Brasil, com 15%.
1. Nas últimas décadas, a causa das mulheres e da comunidade LGBT+ foram endossadas por instituições burguesas, em nível internacional e nacional, o que se explica pelo crescimento do neoliberalismo progressista no mundo. Internacionalmente, a ONU promoveu, ao longo dos anos em questão, bandeiras favoráveis a esses grupos sociais – marcos importantes foram a Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, a criação da ONU Mulheres, em 2010, e as diversas políticas com foco nos direitos humanos em geral, e da população LGBT+ em particular. Nacionalmente, os Estados buscaram dar respostas a esses setores da população e atualizar as políticas públicas. Foram muitos os políticos que perceberam que esses nichos oferecem muitas possibilidades de votos. Além disso, essa imensa quantidade de mulheres e de LGBT+s – respectivamente, metade, e 10% da população global – fez com que muitas empresas capitalistas notassem que era possível se “engajar” nas pautas de gênero e sexualidade para aumentar seus lucros. Para isso, as abordagens liberais do feminismo e do ativismo LGBT+, que pautam a ONU e as políticas de Estado progressistas, caíram como uma luva. Muitas empresas passaram a adotar um discurso favorável a tais causas, oferecendo produtos e serviços customizados para esse público, pregando o consumo como meio de emancipação e disputando avidamente o dinheiro feminino e o “pink money”. Junto a esses esforços, marcados por enfoques quase totalmente liberais, os movimentos feminista e LGBT+ – com sua pluralidade, que será discutida adiante, mas que reúne setores com linhas que vão do liberalismo ao socialismo – encabeçou reivindicações e lutas, muitas das quais foram vitoriosas.
1. Fato é que essas iniciativas – marcadas tanto pelas posições liberais, vinculadas às instituições burguesas, quanto pelas lutas e movimentos de outros espectros políticos – tiveram impacto na realidade. Nos anos analisados, as mulheres viram sua igualdade jurídica se consolidar por meio de direitos burgueses, tais como direito de propriedade, de herança e voto. E presenciaram desenvolvimentos consideráveis nas políticas de Estado, como a repressão institucional à violência doméstica – que praticamente não existia em 1985 e que, em 2023, era lei na maioria dos países –, a proibição de discriminações, de desigualdade salarial – entre mulheres e homens, para as mesmas funções –, e a licença maternidade. As mulheres também ganharam espaço na burocracia de Estado – incluindo chefias de Estado, ministérios e parlamentos – e nas estruturas de dominação das empresas, incluindo a alta e a média gestão. A comunidade LGBT+ também contou com certos direitos burgueses e políticas de Estado em seu favor. O direito que mais se estendeu internacionalmente foi a permissão legal para os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo; em 1985, ele existia em 81 países e, em 2024, passou a 133. Cresceram ainda, mas de modo menos significativo, a partir dos anos 2000, as possibilidades jurídicas de casamento de pessoas do mesmo sexo, adoção de filhos e, mais recentemente, reconhecimento de um terceiro gênero. Em linhas gerais, essa comunidade vem tendo mais simpatia das populações, em particular dos mais jovens. A cada geração, o respeito pela comunidade LGBT+ tem aumentado, assim como o reconhecimento das distintas orientações sexuais e identidades de gênero. Um estudo de 2021, que levou em conta 27 países, mostrou – por meio de uma comparação entre os “Boomers”, a “Geração X”, os “Millennials” e a “Geração Z” – que esse respeito e esse reconhecimento são cada vez maiores entre as gerações mais novas.
1. Apesar disso, entendemos que tais direitos burgueses, políticas de Estado e, sobretudo, conquistas de posições nas estruturas de dominação, precisam ser avaliados criticamente. Isso porque, se é verdade que eles evidenciam o ganho de força social que o feminismo e o movimento LGBT+ tiveram no mundo nesse período, também é inegável que sua priorização e sua celebração acrítica deixam clara a hegemonia das abordagens liberais dentro do feminismo e do movimento LGBT+ global. Deve-se considerar, em primeiro lugar, que esses progressos institucionais nem sempre se refletem na realidade – porque, em muitos casos, essas leis simplesmente não são cumpridas. Em segundo lugar, quando esses progressos não são conquistas populares, mas benesses governamentais, eles não contribuem com o ganho de força social do movimento popular. Em terceiro lugar, também não há qualquer conquista para nossa estratégia quando mais mulheres ou LGBT+s se tornam parte das classes dominantes. Vale lembrar que, em nossa concepção, o caminho para a emancipação de mulheres e LGBT+s não passa pelo mercado e nem pelo Estado.
1. Alguns dados de 2024 mostram que, apesar desse cenário um pouco menos desfavorável, a situação das mulheres no mundo todo é ainda é muito dura. As mulheres recebem em média 20% a menos que os homens para realizar as mesmas funções; a cada 11 minutos uma mulher ou menina é morta por um membro de sua própria família; um terço das mulheres já sofreu violência física ou sexual de seu parceiro, violência sexual de não parceiros ou ambas; todo dia, mais de 12 mil meninas estão sob risco de mutilação genital; as mulheres possuem menos de 2/3 dos direitos acessados pelos homens; 40% das mulheres vivem em países com leis de aborto restritivas; 800 mulheres morrem todo dia por complicações relacionadas ao parto; 270 milhões de mulheres não têm acesso a formas modernas de contracepção. A situação global da comunidade LGBT+ não é menos preocupante. Em 2019, o sexo homossexual era punido com morte na Mauritânia, no Sudão, na Arábia Saudita, no Iêmen, no Irã, no Afeganistão e no Paquistão; em 2022, a maioria da população de muitos países – incluindo Indonésia, Paquistão, Irã, China e Rússia – pensava que a homossexualidade nunca se justifica; em 2019, as chamadas terapias de conversão (“cura gay”) eram permitidas em praticamente toda a África, todo o Oriente Médio e em quase toda a Ásia. Enfim, há uma ameaça de piora nesse quadro, colocando em xeque mesmo os avanços antes mencionados, devido ao recente fortalecimento da extrema-direita. A questão do patriarcado e as pautas das mulheres, de gênero, da comunidade LGBT+ e de sexualidade são fundamentais e precisam ser enfrentadas com a devida atenção e por meio de estratégias e táticas adequadas.
** POVOS RACIALIZADOS, ORIGINÁRIOS E RACISMO
1. Analisar a condição material de todas as raças e etnias oprimidas no mundo é uma tarefa inviável, tendo em vista que são inúmeros povos e que os dados e indicadores sobre eles são limitados. De todo modo, é impossível não destacar que, nas últimas quatro décadas, a condição desses povos racializados e originários – ou pelo menos daqueles que são mais conhecidos – deixa claro que os efeitos do racismo e da opressão étnica continuam a vitimar duramente. Efeitos diretamente relacionados ao capitalismo-estatismo que, quando não produz, ele mesmo, tensões e dominações étnico-raciais, as instrumentaliza, marginalizando certos povos para produzir mão de obra barata e estimular a concorrência entre trabalhadores. Entretanto, nesses anos, além de muita opressão, também houve avanços, tanto no debate público quanto nas lutas, e mesmo nas conquistas em torno das questões raciais e étnicas. Mesmo que seja importante reconhecer que, com frequência, direitos não venham sendo cumpridos e políticas de Estado não estejam se tornando realidade. Assim como nos casos de gênero e sexualidade, as questões étnico-raciais têm sido muito mais debatidas e vêm impactando crescentemente a realidade social, em particular após a virada do século. Também o mercado capitalista e o Estado, por meio das classes dominantes e de instituições como a ONU, estão buscando se beneficiar desses povos, sobretudo daqueles mais expressivos quantitativamente. Do mesmo modo, a ascensão da extrema-direita está colocando em xeque avanços que tais povos tiveram nos últimos anos. A questão do racismo e as pautas dos povos racializados e originários também são importantíssimas e devem ser enfrentadas com toda a atenção e por meio de estratégias e táticas pertinentes.
1. Em termos mais gerais, entre 1985 e 2024, diversos povos continuaram a ser vítimas da dominação étnico-racial. Essas relações ocorreram em todos os continentes e, em alguns casos, culminaram em genocídios. Quando discutirmos o Brasil, falaremos mais especificamente da condição de negros e povos indígenas, fundamentais em nossa formação social. Por ora, passaremos por alguns outros casos que julgamos significativos nos anos estudados. Na Oceania, os “aborígenes” australianos ainda precisam lidar com a marginalização e a desapropriação de suas terras, enquanto povos da Nova Caledônia seguem reivindicando independência frente ao domínio colonial francês. Na África, os conflitos entre grupos armados em países como o Sudão e o Congo evidenciam a existência de relações de poder estabelecidas durante a colonização europeia e que permanecem servindo de combustível para contínuas guerras. Ao mesmo tempo, a diáspora africana continua a fazer inúmeras vítimas do racismo, em várias partes do mundo. Nos últimos 30 anos houve, na África, pelo menos dois genocídios: o genocídio de Ruanda, em 1994, em que hutus assassinaram 800 mil tútsis, tuás e hutús, durante a guerra civil; e o genocídio do Sudão, ocorrido a partir de 2003, em que governo e agrupamentos militares assassinaram centenas de milhares de furis, massalites e zagauas na região de Darfur. Na Ásia, o governo de Mianmar também protagonizou um genocídio em 2017, assassinando de milhares de Ruainga e forçando a fuga de quase um milhão deles para o exterior. Além disso, diversas minorias étnicas, como os chechenos e uigures, vêm lutando por seus direitos em países como Rússia e China.
1. Na Europa e na América do Norte, o racismo tem atingido fortemente imigrantes africanos, árabes e latinos. Partidos conservadores, reacionários, neofascistas e a extrema-direita em geral estão acusando os imigrantes de serem os responsáveis pela crise econômica e pelos problemas sociais. Os acusam de tomar os empregos da população local, aumentar as taxas de criminalidade, sobrecarregar e precarizar os serviços públicos e, em certos casos, de estar a serviço das oligarquias tradicionais para destruir a identidade nacional e a fé cristã dos países ocidentais. Na Europa, essa xenofobia foi fundamental para a saída do Reino Unido da União Europeia (“Brexit”) e se tornou o mote para organizações e grupos reacionários em países como França, Alemanha, Itália, Hungria e Polônia. Nos EUA, ela tem sido um pilar da extrema-direita trumpista, com as implicações já discutidas anteriormente. Entretanto, essa onda anti-imigração também está ganhando força em países periféricos, como nos casos da Índia – onde o governo Modi endurece os ataques contra os muçulmanos e ameaça a cidadania de quase 2 milhões de pessoas oriundas de países como Bangladesh – e da África do Sul – onde ganha espaço o chauvinismo contra a imigração de outros países da África Subsaariana, como Moçambique.
1. Em termos mais específicos, há três casos que se destacaram ao longo dos anos avaliados, e que evidenciam o racismo contra povos racializados e originários. Tais são os casos do povo palestino e do povo curdo, no Oriente Médio, e dos indígenas latino-americanos, os quais serão discutidos a seguir.
1. O povo palestino possui uma história milenar na região atualmente ocupada por Israel, em particular nos territórios de Cisjordânia e Gaza. Etnicamente, trata-se de um povo árabe com identidade cultural e religiosa majoritariamente ligada ao islã, ainda que conte com cristãos e outras minorias. Desde 1948, a constituição do Estado sionista de Israel, de base colonial e racista, vem assassinando e forçando centenas de milhares de palestinos ao exílio. Os Acordos de Oslo, de 1993, conquistados pela resistência palestina, foram descumpridos por Israel, que manteve os bloqueios em Gaza. Isso favoreceu, em 2006, depois da derrota da Autoridade Palestina, uma divisão de poderes; a Cisjordânia passou a ser governada pelo Fatah, partido de centro esquerda da Autoridade Palestina, sob a tutela de Israel; e Gaza passou a ser governada pelo Hamas, organização de islamitas alinhados à Irmandade Muçulmana, sob cerco constante. Na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, que abrigam mais de 3 milhões de palestinos, há uma violenta ocupação militar acompanhada da construção de assentamentos israelenses ilegais, que avançam na colonização expulsando comunidades inteiras. Nesses territórios, os palestinos enfrentam severas restrições de movimento; são obrigados a passar por checkpoints militares e possuem dificuldades de acessar áreas de trabalho, hospitais e escolas. Em Gaza, que possui mais de 2 milhões de habitantes, Israel segue mantendo um bloqueio total, além de operações militares que cotidianamente bombardeiam a região e assassinam palestinos. Ademais, os quase 2 milhões de palestinos que vivem dentro de Israel são subcidadãos. Apesar de possuírem cidadania israelense, são vítimas da extrema-direita sionista e não acessam igualmente recursos como educação, saúde e habitação. Em 2020, Israel assinou os Acordos de Abraão com os Emirados Árabes e o Bahrein, simbolizando um afastamento dos governos árabes em relação à população palestina. Tentando frear esse processo, em outubro de 2023 uma coalizão de forças palestinas, composta por organizações islamitas e marxistas, realizou um duro ataque contra o Estado de Israel. Ação esta que desencadeou uma ofensiva brutal das forças militares israelenses em Gaza, que depois se estendeu ao Líbano, Síria e Irã. Em pouco mais de um ano, Israel promove um verdadeiro genocídio na região; até o momento, as mortes diretas e indiretas chegam a 200 mil palestinos, dois terços dos quais mulheres, crianças e idosos.
1. O povo curdo é um grupo étnico com uma forte presença na região do Crescente Fértil do Oriente Médio. Ele se concentra em um território conhecido como Curdistão, que inclui áreas do Irã, Iraque, Turquia e Síria, com aproximadamente 40 milhões de pessoas. Em sua maioria, o povo curdo é muçulmano, com uma diversidade religiosa que inclui sunitas (a maior parte), xiitas, alauítas, cristãos e yezidis. Sua maior população está na Turquia, com 20 milhões de pessoas, que formam uma minoria significativa da população local. Em 1984, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), à época sob inspiração marxista-leninista, iniciou uma insurgência contra o governo turco, visando estabelecer um Estado independente. Durante os anos 1980 e 1990, esse governo reprimiu os curdos severamente, colocando seus militares contra os civis curdos e destruindo seus vilarejos; EUA e União Europeia declararam o PKK uma organização terrorista. Outra comunidade curda de aproximadamente 8 milhões de pessoas está localizada no Irã – ali, essa população também forma uma minoria étnica, quando comparada à maior parte dos iranianos, que é persa. Entre 1987 e 1989, no Iraque, a ditadura nacionalista, por meio da Operação Anfal, promoveu um genocídio da população curda, com as mortes chegando a 100 mil. Depois das intervenções dos EUA na região, nos anos 1990 e 2000, os curdos iraquianos adquiriram maior autonomia e estabeleceram o Governo Regional Curdo, alinhado aos interesses estadunidenses e israelenses. Atualmente, esses curdos iraquianos somam entre 5 e 8 milhões de pessoas. Em 2017, eles realizaram um referendo para independência de seu território, resultando em conflitos armados com o governo do Iraque, que foi apoiado por Síria, Irã e Turquia. Na Síria os curdos são por volta de 3 milhões e se concentram em uma região conhecida como Rojava. Durante a Guerra Civil Síria, iniciada em 2012 – quando o PKK já havia passado por mudanças político-ideológicas, consolidadas em meados dos anos 2000, quando assumiu posições “confederalistas democráticas” –, o Partido da União Democrática (PYD), alinhado ao PKK turco, estabeleceu um sistema autônomo de governo, se tornando alvo de investidas militares por parte do governo sírio e de rebeldes vinculados à Irmandade Muçulmana e à Al-Qaeda. Em 2014, parte desses rebeldes cindiu, criando o Daesh ou ISIS (“Estado Islâmico”) e assumiu o controle territorial de metade da Síria e de metade do Iraque, investindo pesadamente contra os territórios curdos. Os Estados Unidos passaram então a colaborar com as forças curdas na Síria e no Iraque, garantindo acesso a recursos bélicos e assistência militar. Há grandes possibilidades dos rumos do conflito curdo se modificarem, tendo em vista que, bem recentemente (2025), Abdullah Öcalan, líder do PKK, convocou seu partido a depor as armas e se dissolver como organização.
1. Os povos indígenas latino-americanos, apesar do genocídio ao qual vêm sendo submetidos desde a chegada dos colonizadores, continuam resistindo. Esses povos originários são etnicamente bastante plurais e, nas últimas décadas, vários deles têm ganhado visibilidade. Para além daqueles que se encontram no território brasileiro, que serão discutidos posteriormente, há outros que se destacam. Nos Andes, os Quechua, Aymara e Mapuche; e, na Mesoamérica, os Maias, Zapotecas e Náhuatl. Os Quechua possuem origem nos Andes centrais, com presença nos atuais territórios de Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Argentina; conformaram a maior parte dos Incas e sua subsistência se baseia em agricultura, criação de lhamas e tecelagem. Os Aymara se concentram principalmente nos atuais territórios de Bolívia e Peru; fizeram parte do Império Tiwanaku e se dedicam historicamente à agricultura, criação de lhamas e pesca. Os Mapuche habitam parte dos atuais territórios de Chile e Argentina; ficaram conhecidos por sua resistência aos colonizadores e sua subsistência se baseia em agricultura, criação de gado e tecelagem. Os Maias se originaram nos atuais territórios de México, Guatemala, Belize e Honduras; se dedicaram tradicionalmente à agricultura e à arquitetura, produzindo cidades, sistemas de escrita, calendário e conhecimentos em astronomia e matemática. Os Zapotecas se estabeleceram no atual território de Oaxaca, no México; se ocuparam de agricultura, arquitetura e comércio, desenvolvendo cidades e conhecimentos em astronomia e engenharia. Os Náhuatl se concentraram em grande parte do atual território do México; conformaram a base dos Astecas e se dedicaram à agricultura e ao comércio, produzindo cidades e articulando um império militar. Sob o neoliberalismo, esses e outros povos originários da América Latina têm sofrido com diferentes formas de dominação, dentre as quais o racismo. Seus territórios e recursos naturais – como madeira, minérios e água – vêm sendo atacados em função da expansão da fronteira agrícola, da mineração ilegal, dos grandes projetos de infraestrutura e da grilagem de terras. Esses povos são vítimas da violência, que inclui assassinatos, agressões e ameaças, especialmente nos casos de resistência – eles ainda sofrem com a discriminação e com a desaculturação. Na prática, tal cenário significa não apenas a enorme precarização das atuais terras indígenas, mas a expulsão de grandes contingentes indígenas de suas terras, os obrigando a serem explorados nos campos ou nas cidades, e a viverem na pobreza. Atualmente, é impressionante a quantidade de povos originários sem acesso a serviços básicos como água, saneamento e educação, e que sofrem com desnutrição infantil, doenças e com a desarticulação de seus modos de vida, costumes e valores. Além disso, nos territórios desses povos também têm importância as disputas com cartéis do narcotráfico, os quais, em alguns casos, possuem alianças com latifundiários. Isso tem gerado enfrentamentos armados por dominação territorial, de um lado, e por resistência e defesa do território, de outro.
** OUTRAS CONTRIBUIÇÕES SOBRE ORIENTE MÉDIO, ÁFRICA E AMÉRICA LATINA
1. Há alguns comentários adicionais sobre a conjuntura de médio prazo no Oriente Médio, na África e na América Latina, que parecem relevantes para o entendimento dessas regiões.
1. No Oriente Médio, os aspectos centrais do período analisado são os efeitos da “guerra ao terror”, o sionismo imperialista e o destino das relações entre as distintas forças políticas árabes. A região foi profundamente afetada pelo mencionado “combate ao terrorismo”, encabeçado pelos EUA e que culminou nas invasões do Afeganistão e do Iraque – e na consequente queda do governo “nacional árabe” de Saddam Hussein –, numa estratégia imperialista justificada pela caça dos antigos aliados da Al-Qaeda. Efeito mais duradouro desse movimento foi a autorização de bombardeios constantes contra aldeias e áreas remotas islamizadas. Em Israel, o sionismo se tornou hegemônico entre os judeus e o integracionismo de esquerda, antes bastante significativo, perdeu muita força social. O sionismo avançou nas tentativas de expansão colonial/imperialista e nas práticas de racismo. Apesar disso, Israel enfrentou derrotas militares marcantes. Seus combatentes foram expulsos do Líbano após 15 anos (1985-2000) de uma guerra de libertação comandada pelo Hezbollah e apoiada pelo Irã. Nas guerras subsequentes – de 2006, 2009, 2011 e 2024 –, as forças militares sionistas venceram na supremacia aérea, na capacidade de espionagem e sabotagem, mas perderam nas lutas no solo. Isso foi similar ao que se viu em Gaza, cuja formação de um enclave autônomo palestino durou de 2005, quando os sionistas desmantelaram sua última colônia, até outubro de 2023, quando invadiram por terra a faixa litorânea. Houve agressões sionistas em 2009, 2012, 2014, guerra em 2021 e, desde outubro 2023, invasão total e genocídio. Os EUA têm mantido apoio irrestrito a Israel e mais de 30 mil efetivos militares na região. Ainda que a defesa da causa palestina seja um consenso nos países árabes, ela quase sempre é traída pelos governos de turno.
1. Nos anos estudados houve um avanço considerável do chamado “Eixo da Resistência” – um guarda-chuva de alianças estratégicas que tem o Irã como base, depois o xiismo central, as forças islâmicas anti-imperialistas e laicas contra o sionismo – e da capacidade de guerra aérea, com o uso de mísseis, drones e satélites. Também houve um conflito intraislâmico, com maior presença no Iraque e na Síria, onde a Al-Qaeda e seu racha Daesh/ISIS enfrentavam forças xiitas ou múltiplas alianças (sunis, inclusive) contra o salafismo. A campanha militar contra o Iêmen foi a expressão máxima dessa luta fratricida e manipulada pelo Ocidente. O pan-arabismo foi politicamente derrotado, embora ainda seja muito popular entre as massas árabes dos grandes centros. Os governos civis mais autocráticos perderam legitimidade com a Primavera Árabe. Ainda se observa um novo alinhamento das petromonarquias, com cada vez maior capacidade de decisão própria, a começar pelo próprio Catar – seu fundo e a rede Al Jazeera são instrumentos de softpower. São notáveis tanto a conversão de excedentes quanto a sofisticação econômica, em especial no Catar, nos Emirados Árabes, no Kuwait e na Arábia Saudita. E, ainda, o fortalecimento da Turquia como potência islâmica, que atravessa este primeiro quarto do século XXI com um partido islamita em posição central – o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), vertente turca da Irmandade Muçulmana.
1. Na África, as políticas neoliberais tiveram como consequência uma onda de desestruturação social e empobrecimento, agravada por epidemias devastadoras. Parte dessa condição deriva dos mencionados conflitos armados e genocídios, que não são “conflitos tribais”, como quer fazer crer o senso comum da grande imprensa ocidental, mas efeitos desse complexo quadro, que se agravou quando, com o fim da Guerra Fria e a desmobilização de exércitos, os armamentos que estavam em território africano foram divididos entre milícias e grupos criminosos, ligados por parentescos étnicos. Libéria, Serra Leoa, Ruanda, Burundi, Costa do Marfim e Somália passaram por intensas guerras civis. Mais recentemente, há um processo de colapso dos protetorados franceses em amplas regiões africanas e o renascimento da atividade econômica, com investimentos de China, Líbia e África do Sul. A formação da União Africana, em 2002, com seus 53 membros, definiu um plano de ação econômico e multissetorial para o continente e lentamente emergiu uma diplomacia pan-africana. A Nigéria vem despontando como maior economia do continente, rivalizando com os investimentos franceses. A presença de China, Brasil, Índia, Rússia, Cuba, Turquia e nações árabes do golfo se intensificou. Em contraposição, os EUA vêm buscando ter maior presença na região; recriaram a IV Frota, que atua no Atlântico Sul militarizando o deserto do Saara, tratado como espaço “terrorista”, e o comando conhecido como Africom. Aquela localidade se tornou mais um polo de disputa, com o que ficou conhecido como “nova corrida à África”.
1. Na América Latina, ao longo das últimas décadas foram sentidos os impactos do imperialismo estadunidense e do neoliberalismo, ainda que tenha havido resistências institucionais e extrainstitucionais. De maneira mais geral, essa região continuou a se caracterizar principalmente como grande plataforma exportadora de commodities, inclusive quando esteve sob governos de esquerda e centro-esquerda. Independente de terem se inclinado mais às alterativas de integração regional ou contra-hegemônicas, ou de terem se mantido fiéis às alternativas de manutenção da tutela dos EUA, os países latino-americanos continuaram a conviver com a reprimarização, a financeirização e os impactos dos oligopólios transnacionais. Durante os últimos governos dos EUA – George Bush Jr., Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden –, as políticas intervencionistas dos EUA na América Latina permaneceram, ainda que de maneiras diferentes; foram ajustadas, reajustadas, mas se mantiveram corroborando a agenda neoliberal para a região.
1. Diferentes resistências se opuseram a esse quadro. Dentre outras, que serão discutidas mais adiante, queremos antecipar duas. Uma primeira, dentro da institucionalidade, com a chamada Onda Rosa. Esse movimento envolveu a eleição de governos de esquerda e centro-esquerda em diferentes países. Além dos governos Lula e Dilma, no Brasil (2003-2016), essa onda abarcou outros governos com esse perfil: Néstor e Cristina Kirchner, na Argentina (2003-2015); Tabaré Vázquez e José Mujica, no Uruguai (2005-2015); Evo Morales, na Bolívia (2006-2019); Rafael Correa, no Equador (2007-2017); Daniel Ortega, na Nicarágua (2007- ). Um projeto mais avançado nesse período foi o governo de Hugo Chávez, na Venezuela (1999-2013), o qual promoveu uma reforma constitucional que implantou mudanças mais profundas na sociedade, com protagonismo das classes populares e nacionalização da economia, além de uma posição anti-imperialista mais explícita. Por outro lado, o modelo era fortemente dependente do petróleo, com centralização do poder em Chávez e burocratização estatal. A morte de Chávez evidenciou as fragilidades desse processo, que se degenerou no período seguinte. Esses países buscaram, ainda, em várias ocasiões, o estreitamento de laços com Fidel Castro, em Cuba. Num certo momento dos anos 2000, quase todos os governos da América do Sul tinham essa perspectiva. Exceto talvez pela experiência da Venezuela, tais governos não foram revolucionários; foram reformistas ou nem isso. Alguns deles mais moderados, outros menos. Convergiram na defesa de maior soberania para os países latino-americanos, buscando certa aproximação regional, e também na defesa de políticas desenvolvimentistas e programas sociais com alguma redistribuição de renda. Usufruíram de um contexto internacional favorável, marcado pela alta do preço das commodities e alguns deles, como Venezuela, Bolívia e Equador, chegaram a nacionalizar setores estratégicos, como petróleo e gás. Mesmo com todos os problemas e limitações – dentre as quais a manutenção do dólar como moeda para transações internacionais, as tentativas de conciliação com políticas neoliberais e a “americanização cultural” dentro dos próprios países –, e após um amplo movimento de resistência internacional, combativo e radicalizado baseado em ação direta nas ruas, esses governos limitaram a influência dos EUA na região, contribuindo com a derrota da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), um projeto de integração subordinada da América Latina à América do Norte. Foram avanços, mas que mostraram também os limites da institucionalidade burguesa e burocrática. Frente a esse cenário, os EUA modificaram suas políticas para a região e contribuíram, a partir do fim daquela década, com movimentos desestabilizadores, práticas de lawfare e mesmo golpes de novo tipo em Honduras (2009), no Paraguai (2012) e no Brasil (2016). A “Onda Rosa” se enfraqueceu a partir da segunda metade dos anos 2010, quando a extrema-direita já crescia e surfava nos efeitos da precarização e da fragmentação social neoliberais que, mesmo que tenham sido mitigados, nunca deixaram de se fazer sentir nesses países; e também quando se manipulava a opinião pública por meio da grande imprensa e das redes sociais. Uma segunda resistência ocorreu fora da institucionalidade, com as chamadas puebladas ou estallidos sociales, rebeliões populares protagonizadas por setores socialmente organizados e radicalizados contra o neoliberalismo, que conseguiram derrubar governos antipopulares. Tais foram os casos de Abdalá Bucaram, no Equador; Fernando de la Rúa, na Argentina, com a rebelião piquetera; Gonzalo Sánchez de Losada, na Bolívia, com a guerra do gás. Esse se tornou um novo padrão de enfrentamento mais radicalizado no continente, substituindo a luta armada como ferramenta de mudança e transformação.
** GUERRAS ENTRE ESTADOS E GUERRAS CIVIS
1. Entre 1985 e 2024, as guerras entre Estados, as guerras civis e os conflitos armados foram intensos no mundo, e vitimaram muitíssimas pessoas. Eles atingiram principalmente a periferia do capitalismo global, sobretudo a África e o Oriente Médio, que contaram com a maior parte das mortes. Muitos tiveram influência dos conflitos da Guerra Fria e do imperialismo estadunidense. Nesses anos, as mortes em tais conflitos chegaram à cifra dos milhões. No ano de 1985, estima-se que morreram 230 mil pessoas somente nas guerras entre Estados, excluindo guerras civis e outros conflitos armados; nos anos 1990 e 2000, essa média anual baixou, mas a partir de 2014 voltou a subir; em 2022, ela atingiu seu maior nível, com 270 mil mortes só naquele ano. De modo que as guerras entre Estados estão matando mais atualmente do que nos anos 1990, 2000 e 2010. Outro dado a ser destacado é aumento do número de conflitos armados no mundo; entre 1989 e 2023, eles foram de 86 para 176 por ano. Ou seja, estamos em um momento de intensificação das guerras e dos conflitos armados.
1. Dentre as guerras entre Estados mais significativas, algumas podem ser mencionadas. Primeiro, a Guerra entre Irã e Iraque (1980-1988), que envolveu disputas políticas, religiosas e territoriais, e mobilizou diversos outros países, terminando com centenas de milhares de mortos. Segundo, três outras guerras diretamente relacionadas à mencionada Doutrina Wolfowitz dos EUA, duas das quais no contexto da “guerra ao terror”. A Guerra do Golfo (1990-1991), em que uma coalizão encabeçada pelos Estados Unidos investiu contra o Iraque, tendo em vista retomar o Kuwait, que havia sido anexado. A Guerra do Afeganistão (2001-2021), em que os EUA, no contexto de uma guerra civil que existia desde 1978, invadiram o Afeganistão logo após o 11 de Setembro de 2001 e, depois de uma ocupação que os desgastou muito, deixaram o país, que terminou imediatamente retomado pelo Talibã. A Guerra do Iraque (2003-2011), em que os EUA invadiram o Iraque alegando a existência de armas de destruição em massa (algo que nunca se confirmou) e ocuparam a região, levando a uma guerra civil que devastou o país. Terceiro, a Guerra entre Rússia e Ucrânia (2022- ), em que a Rússia invadiu a Ucrânia, tanto por ambições territoriais, quanto para responder a um avanço da OTAN na região; o conflito continua neste momento, com os EUA intervindo ativamente. Destacamos que, para entender essa guerra, não se pode esquecer de três acontecimentos de 2014: o massacre em Odessa, o golpe de Estado com instauração de um governo neofascista na Ucrânia e a resistência em Donbass (pró-Rússia). Com a recente (2025) reeleição de Trump nos EUA, os rumos dessa guerra podem se modificar, tendo em vista certa proximidade com Putin e a possibilidade de os EUA não continuarem a financiar a Ucrânia. Essas guerras deixam evidente esforços dos Estados Unidos para expandir seu domínio para a Europa Oriental, a Ásia Ocidental e o Oriente Médio, com destaque para seus interesses no petróleo e em outros recursos dessas regiões.
1. Houve também guerras civis em diferentes regiões do mundo. No Oriente Médio, há três casos que se destacam. Primeiro, a mencionada Guerra Civil do Afeganistão (1978- ), que envolveu o conflito entre os rebeldes mujahidins e o governo comunista afegão, a invasão por parte da URSS e a ascensão do Taliban, responsável por opressões étnicas e religiosas e que, depois da invasão dos EUA em 2001, promoveu uma insurgência armada. Segundo, a Guerra Civil Síria (2011- ), que se iniciou com a repressão do governo aos protestos da Primavera Árabe e polarizou o país entre o governo, que tem apoio da Rússia e do Irã, e os rebeldes, que têm apoio dos EUA e países árabes do Golfo. Entre 2012 e 2018, essa guerra teve quase 400 mil mortos e proporcionou condições para o fortalecimento do Daesh/ISIS. Terceiro, a Guerra do Iêmen (2015- ), que vem opondo apoiadores do antigo governo de Abd Hadi, que incluem a Arábia Saudita (sunita), aos rebeldes houthis (maioria xiita), que tomou o governo em 2014. Na África é possível destacar outros dois casos. O primeiro, a Guerra Civil em Angola (1975-2002), que se iniciou com as disputas posteriores à independência do país e se acentuou com as intervenções internacionais, muitas das quais por interesse no petróleo e nos diamantes, e as divisões étnicas e regionais. O segundo, a Guerra Civil na Somália (1991- ), iniciada com as disputas posteriores à queda do ditador Siad Barre e acentuada com divisões étnicas (clãs), que foram exploradas por interesses e agentes internacionais; até o momento, essa guerra já vitimou centenas de milhares de pessoas. No Leste Europeu, se destacaram as Guerras Iugoslavas (1991-2001), que se deram na esteira da dissolução da antiga Iugoslávia e envolveram não apenas a independência de países (Eslovênia, Croácia, Bósnia etc.), mas também conflitos étnicos e religiosos. No seio desse processo, em que morreram dezenas de milhares de pessoas, houve o genocídio de milhares de bósnios muçulmanos por parte de forças sérvias. Atualmente, essas guerras civis têm efeitos devastadores no Oriente Médio e na África. Nessas regiões, diferentes conflitos, particularmente aqueles de base étnica e nacional, quando não são diretamente produzidos e estimulados pelo imperialismo, pelo capitalismo e pelos Estados, são por eles instrumentalizados para favorecer seus próprios interesses.
** LUTA DE CLASSES, MOVIMENTOS POPULARES E RETOMADA DO ANARQUISMO
1. Durante os anos analisados, o mundo todo presenciou conflitos sociais, movimentos e lutas, que envolveram uma pluralidade de questões. A luta de classes esteve sempre evidente, mas não apenas ela, como veremos a seguir. Os movimentos populares (sindicatos e movimento sociais) tiveram lugar de destaque e o anarquismo, o anarcossindicalismo e sindicalismo revolucionário experimentaram uma retomada.
1. Os movimentos populares organizados por local de trabalho continuaram a contar com relevância do sindicalismo. No entanto, é importante levar em conta que, no mundo, o setor de trabalhadores articulados e representados pelos sindicatos não é muito alto e tem diminuído consideravelmente. Por mais que o quadro global seja bem heterogêneo, há algumas tendências gerais. Com exceção de alguns países que possuem altíssima representação sindical, como no caso dos países nórdicos, a tendência geral é uma taxa de sindicalização relativamente baixa. De 2000 em diante, essa taxa se manteve entre 10% e 30% dos trabalhadores em países como Argentina, México, EUA, Espanha, França, Índia, Austrália, Egito, África do Sul e Japão. Além disso, com exceção de alguns países em que a taxa de sindicalização tem crescido, como China e Índia, a tendência geral é de queda. Por exemplo, nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), essa taxa foi de 32% em 1985 para 16% em 2019. Ou seja, os trabalhadores estão sendo cada vez menos representados pelos sindicatos. Paralelos aos sindicatos, surgiram no período avaliado movimentos sociais urbanos e rurais, envolvendo articulações por local de trabalho e/ou de moradia e/ou de estudo. São movimentos que se organizam e promovem lutas em torno de questões como moradia, direito à terra, saúde, educação, direitos humanos, soberania alimentar, transporte público, gênero, agroecologia, raça-etnia etc. Em certos casos, esses movimentos adquiriram bases massivas muito expressivas – como no caso da Via Campesina, fundada em 1993 por organizações do campo; em outros, permaneceram mais fragmentados, contando com bases menores.
1. Em termos de perspectiva político-ideológica e posicionamento na luta de classes, esses movimentos são variados. Parte dos sindicatos aderiu abertamente as perspectivas patronais e mesmo ao neoliberalismo. Outros sindicatos, possivelmente a maioria, têm se alinhado às posições socialdemocratas e social-liberais, sustentando um sindicalismo frequentemente corporativista, burocratizado, reformista e partidarizado. Essa posição socialdemocrata/social-liberal é, possivelmente, a mais comum nos movimentos sociais ao longo do mundo, também com frequência burocratizados, reformistas e partidarizados. Sindicatos e movimentos sociais mais radicalizados, combativos, que efetivamente defendem trabalhadores e seus interesses no processo da luta de classes, são a minoria. Dentro deles, o marxismo possui ainda uma influência relevante. Contudo, as perspectivas libertárias em geral (no sentido de posições antiautoritárias, sejam elas socialistas, comunistas, autonomistas, indígenas, religiosas etc.), e o anarquismo em particular, têm adquirido crescente relevância.
1. Não há dúvida que, nas últimas décadas, há uma retomada global das ideias e ações libertárias e anarquistas no mundo. Isso permanece visível tanto em movimentos populares mais diretamente vinculados a essa perspectiva, quanto em oposições e agrupamentos minoritários que estão em sindicatos e movimentos sociais mais amplos disputando suas linhas. Em nossa avaliação, o que pareceu mais promissor nessa retomada foi, no nível social, o fortalecimento dos sindicatos e centrais sindicalistas revolucionários e anarcossindicalistas, como no caso da Confederación General del Trabajo (CGT), da Espanha e, no nível político, o crescimento da corrente plataformista e especifista, como nos casos da Federação dos Comunistas Anarquistas (FdCA) / Alternativa Libertária, da Itália, e da Federação Anarquista Uruguaia (FAU), do Uruguai. Essas e outras correntes libertárias e anarquistas tiveram influência não apenas em organizações e movimentos, mas também nas lutas relevantes do período. Ainda assim, é necessário reconhecer que, mesmo tendo crescido muito em termos proporcionais, com sua militância se multiplicando por várias vezes, libertários e anarquistas são ainda uma minoria restrita do ponto de vista absoluto e quando comparados a outras forças políticas. Precisam crescer bastante se quiserem ampliar sua influência de maneira mais determinante.
1. Esse enfraquecimento do sindicalismo não significa que “a classe trabalhadora está acabando” e nem que os sindicatos não sejam, ainda hoje, uma alternativa potente para a organização por local de trabalho. Contudo, as realidades nacionais, tanto pela correlação das forças que disputam os sindicatos quanto pelo impacto da legislação trabalhista, são bem diferentes. Há sindicatos recuados, combativos, mais e menos burocratizados. Elemento destacado para entender essas distintas realidades é a questão da unicidade e da pluralidade sindical. Nos anos estudados, a unicidade vigorou em países como Brasil, Portugal e Colômbia; ela exige que, em uma determinada categoria profissional e base territorial, só haja um sindicato legalmente reconhecido para representar os trabalhadores. A pluralidade vigorou em países como EUA, França e Espanha; ela permite a existência de múltiplos sindicatos para representar a mesma categoria profissional em uma mesma base territorial. Nesses países, anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários avançaram em seus projetos de sindicalismo usufruindo dessa pluralidade, visto que ela permite a criação de sindicatos com essas posições, a filiação progressiva de trabalhadoras e trabalhadores alinhados a elas, a representação e proteção desses sindicalizados. As tentativas de fazer isso em países com unicidade sindical têm sido problemáticas, em especial pela impossibilidade de os sindicatos representarem seus membros nas negociações e os protegerem em casos de ataques do patronato. Nesses países, aparentemente vem sendo mais frutífera a formação de agrupamentos e oposições para disputar os sindicatos oficiais, tanto nas bases quanto nas direções.
1. É verdade que os sindicatos articulam muito mais trabalhadores no mundo do que os movimentos sociais. Mas também é verdade que os primeiros possuem muito mais problemas e limitações que os segundos. Isso porque, dentre outras coisas, há sindicatos que defendem abertamente as classes dominantes, algo que é bem menos comum em movimentos sociais. Os movimentos sociais têm sido agentes fundamentais da luta de classes e de outras lutas nas cidades e nos campos. E isso é favorecido por eles poderem ser criados e articulados de modo bem menos burocrático que os sindicatos, e por eles oferecerem muito mais possibilidades de extrapolar as pautas do trabalho e de penetrar em locais de moradia, estudo e outros. Ainda assim, esses movimentos possuem riscos atrelados à fragmentação e à perda de perspectiva classista. O que a experiência global parece indicar é que, desde nossa perspectiva, há duas possibilidades: participar de movimentos com bases populares mais amplas – e, neste caso, o maior desafio será a disputa de linhas; e/ou criar movimentos mais alinhados às nossas perspectivas – e, neste caso, o maior desafio será o crescimento e enraizamento. Agora, independente de tudo isso, nunca se pode perder de vista que a imensa maioria das classes oprimidas globais não está articulada em sindicatos ou movimentos sociais.
** ENFRENTANDO NEOLIBERALISMO, AUTORITARISMO E OPRESSÕES NACIONAIS
1. Nesse cenário de luta de classes internacional, foram marcantes os movimentos e as lutas que enfrentaram o neoliberalismo, o autoritarismo e as opressões nacionais.
1. Os efeitos destrutivos do neoliberalismo sobre as condições sociais e ambientais foram combatidos ao longo de todo o período estudado, por meio de diferentes tipos de mobilizações. Para além das já mencionadas puebladas latino-americanas, algumas outras se destacaram. Possivelmente, a experiência mais avançada e influente foi o Levante Zapatista, no México, iniciado em 1994 e protagonizado por indígenas do estado de Chiapas vinculados ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Esse levante conciliou a força das armas com uma poderosa democracia de base, gerindo autonomamente 55 municipalidades onde vivem centenas de milhares de pessoas. Mesmo em meio às enormes dificuldades, com destaque para a repressão de Estado e o enfrentamento ao narcotráfico, o movimento se manteve firme e se tornou uma referência para grande parte da esquerda global. Os zapatistas estiveram dentre aqueles que, em 1998, fundaram a Ação Global dos Povos (AGP), uma coordenação de movimentos populares que encabeçou o Movimento de Resistência Global ou “antiglobalização” e os dias de ação global contra a globalização neoliberal, que ocorreram com maior intensidade entre 1999 e 2002. Tal movimento teve como foco a realização de protestos de rua transnacionais e massivos, concomitante a eventos das grandes instituições neoliberais. Entre 2006 e 2007, se destacou no México a chamada Comuna de Oaxaca, quando a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) encabeçou conflitos e ocupações contra o governo. Depois disso, a Crise de 2008 e seus desdobramentos motivaram um novo ciclo de mobilizações e lutas contra os efeitos dessa crise neoliberal. Tal ciclo se iniciou com os Protestos e Revoltas na Grécia, que ocorreram entre 2008 e 2012 e denunciaram os efeitos da crise da dívida pública e das políticas de austeridade por meio de radicalizadas e combativas manifestações de rua, ocupações de escolas e universidades, destruição e ataques a propriedades. Ainda nesse contexto, houve três outras experiências marcantes. Entre 2010 e 2012, a Primavera Árabe, que será discutida um pouco mais adiante. E, em 2011, o movimento Indignados, na Espanha, e o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos. Os Indignados ou “15M” envolveram manifestações, acampamentos e assembleias populares em diferentes cidades espanholas para discutir os impactos da crise, as insatisfações com a desigualdade social e a política institucional partidária, e para enfrentar temas como moradia, saúde, educação, aposentadoria e corrupção. O Occupy se concentrou em Nova York e teve orientação semelhante. Baseou-se em manifestações, acampamentos e assembleias populares contra a financeirização e a desigualdade social; criticou duramente o 1% mais rico do mundo e forjou a consigna “Nós somos os 99%”.
1. Essas experiências tiveram grandes virtudes. Dentro do já tratado contexto de “consenso liberal-democrático”, de liberalização da esquerda partidária e burocratização sindical, esses movimentos trouxeram à tona posições diferentes. Não só criticaram duramente o neoliberalismo em suas dimensões sociais e ambientais, mas propuseram formas radicalizadas de anticapitalismo; não apenas criticaram a democracia representativa, mas propuseram formas radicalizadas de democracia de base. Uniram sindicatos, movimentos sociais, grupos e indivíduos que fizeram a defesa da ecologia social, da soberania alimentar, da igualdade econômica e política, das alternativas econômicas e populares locais e da diversidade cultural. Ou seja, essas experiências, mesmo em um cenário complicado – e sob constante ameaça da esquerda reformista e liberal, que atuou permanentemente para conter as mobilizações, quando não para criminalizá-las –, conseguiram promover posições de esquerda mais radicalizadas, baseadas no anticapitalismo, na ação direta, na autonomia e na democracia direta. Os zapatistas, que se iniciaram reivindicando o marxismo, foram assumindo posições cada vez mais libertárias (antiautoritárias) ao longo do processo, tendo grande influência na retomada do anarquismo que ocorreu a partir de meados dos anos 1990. Anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionários tiveram presença e influência – em alguns casos, protagonismo – no movimento “antiglobalização” e nessas lutas que se deram na Grécia, na Espanha e nos EUA. Entretanto, essas experiências também evidenciaram limites, que têm se evidenciado nesse campo libertário, dentre os quais estão: a falta de clareza estratégica e de um projeto anticapitalista duradouro de longo prazo; a dificuldade de conectar as grandes pautas com as reivindicações imediatas, e os atos e protestos com o trabalho de base cotidiano; a incapacidade de estruturar organizações que não se fechassem em si mesmas, que fossem capazes de exercitar a democracia de base, a autogestão e o federalismo, e de mobilizar e incorporar trabalhadores e trabalhadoras. Também foram problemáticas as saídas que tentaram canalizar esses esforços para partidos políticos convencionais. Tais foram os casos do Syriza e do Podemos, partidos fundados respectivamente na Grécia, em 2013, e na Espanha, em 2014. Reivindicando levar as demandas das ruas para o parlamento e as políticas de Estado, esses partidos rapidamente se ajustaram ao status quo e se tornaram organizações recuadas, mesmo na perspectiva de um reformismo estrutural.
1. Lutas com perspectivas mais especificamente políticas também ocorreram nesses anos. Muitas delas reivindicaram e conquistaram redemocratização, mesmo que nos marcos da democracia liberal. Lutas dos anos 1980 e 1990 contribuíram para o fim das ditaduras militares no Equador (1980), Bolívia (1982), Honduras (1982), Argentina (1983), Brasil (1985), Uruguai (1985), Filipinas (1986), Coréia do Sul (1987), Taiwan (1987) e Chile (1988). Movimentos por redemocratização ainda ocorreram na Ásia e na Europa Oriental, no contexto de crise do bloco socialista. Tais foram os casos dos protestos da Praça Tiananmmen (Praça da Paz Celestial), em 1989, na China, e dos protestos na Sérvia, entre 1996 e 1997, contra a ditadura de Slobodan Milošević. Em termos transnacionais, se destacou a Primavera Árabe (2010-2012), um grande movimento de insatisfação popular contra governos autoritários e repressivos, corrupção sistêmica, falta de liberdades e desigualdade social. Em cada país, ela adquiriu contornos políticos e resultados distintos e, em alguns casos, foi usada pelo imperialismo e pelas potências ocidentais para canalizar, com milhões de dólares de fundações dos EUA e da Europa, as manifestações em seu proveito – conformando aquilo que se chamou de “revoluções coloridas”. Houve mudanças de governo (Tunísia, Egito), guerras civis (Iêmen, Síria e Líbia), manutenção de regime (Barein) e reversão das mudanças (Egito). Apesar do impacto nos jogos de força regionais – aumentando a influência de potências como a Arábia Saudita, Irã, Turquia e Rússia –, a Primavera Árabe não avançou para experiências de poder popular mais significativas, nem em projetos socializantes.
1. Lutas de libertação nacional, anti-imperialistas e anticoloniais também foram levadas a cabo nos anos analisados, dando continuidade às iniciativas das décadas anteriores. Movimentos de descolonização e independência continuaram a ocorrer na África, na Oceania, na Ásia e na Europa. No continente africano houve lutas que culminaram na independência da Eritreia em relação à Etiópia, entre 1991 e 1993; movimento que, em certa medida, continuou as lutas de libertação nacional anteriores, ocorridas em Uganda, Zimbábue e Sudão. No continente oceânico ocorreu a luta pela independência da Nova Caledônia em relação à França, entre 1984 e 1988, e a Revolução de Bougainville contra Papua Nova-Guiné e a Austrália, entre 1988 e 1997, tornando autônoma a região de Bougainville. No continente asiático houve, em 1999, a independência do Timor-Leste em relação à ocupação da Indonésia. No continente europeu, os movimentos independentistas também estiveram presentes. Tanto com ações violentas de grupos já existentes, como nos casos do IRA (Exército Republicano Irlandês), que buscou independência do Reino Unido e concordou com um acordo de paz em 1998; e do ETA (Euskadi Ta Askatasuna) basco, que buscou a independência da Espanha e da França, e anunciou em 2011 o fim de suas atividades armadas. Quanto com os enfrentamentos do povo catalão – que atualmente conta com aproximadamente 7 milhões de pessoas – à opressão estatal da Espanha, que aconteceram nos anos em questão e culminaram em 2017. Naquele ano, houve uma declaração de independência da Catalunha seguida de um combativo e massivo ciclo de lutas, as quais foram duramente reprimidas pelo Estado, não receberam apoio de socialdemocratas, sociais-liberais, e foram alvo de duros ataques por parte da extrema-direita. Dando sequência a uma série de guerras e revoluções contra o imperialismo estadunidense – levadas adiante na Coreia (1955), em Cuba (1959), no Vietnã (1959-1975) e na Nicarágua (1979) –, ocorreram na América Latina outras ações que conciliaram a luta de classes com o anti-imperialismo: as mobilizações que levaram à derrubada de Jean-Claude Duvalier, no Haiti, em 1986; o conflito interno peruano e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru, e a luta da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em El Salvador – os quais aconteceram entre os anos 1980 e início dos 1990.
1. Tais casos mostram que, por um lado, esse enfrentamento às ditaduras militares, aos governos autoritários, ao imperialismo e ao neocolonialismo teve continuidade e presença significativa nos anos em questão. E que há importância contemporânea das pautas da democracia e da autodeterminação dos povos, ambas as quais podem ser promovidas em sentidos menos e mais radicais, assim como da solidariedade internacional. Palestinos, zapatistas e curdos, cujos casos já foram discutidos, têm levantado essas bandeiras – os dois últimos, por meio de perspectivas que contam com traços antiautoritários. Por outro lado, esses casos também evidenciam os limites tanto das defesas liberais da democracia, que apostam na mera substituição de regimes ou governos, quanto das posições nacionalistas, que abrem mão da luta de classes e do internacionalismo. Além disso, aparentemente o fim da Guerra Fria e a expansão do “consenso liberal-democrático” minimizaram, ao menos do ponto de vista quantitativo, as mobilizações que optaram pela via armada. Desde o início dos anos 2000, tem havido um grande esforço para institucionalizar os conflitos nacionais.
** ENFRENTANDO RACISMO, PATRIARCADO E DESTRUIÇÃO AMBIENTAL
1. Também foram marcantes os movimentos e as lutas que enfrentaram o racismo, o patriarcado e a destruição ambiental.
1. As lutas antirracistas que se destacaram nas últimas décadas incluem aquelas que foram protagonizadas no seio de casos anteriormente discutidos, como o da resistência dos imigrantes africanos, árabes e latinos contra governos e a extrema-direita na Europa e na América do Norte. A questão negra esteve presente tanto nas lutas dos imigrantes, quanto em outros episódios do período, dos quais destacamos dois. O primeiro foi a Luta pelo fim do Apartheid na África do Sul, que chegou à vitória em 1994. Ela envolveu uma resistência incansável, principalmente da população negra, que incluiu desobediência civil, protestos de rua e ações mais radicalizadas, como a luta armada. É verdade que essa luta, mesmo tendo acabado com o apartheid, não terminou com o racismo, de modo que outras lutas antirracistas continuam naquele país. O segundo foi o Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], que aconteceu em 2013 nos EUA. O movimento se consolidou como uma plataforma de lutas contra o racismo em geral, e contra o racismo policial em particular, tendo em vista que seu próprio estopim, o assassinato de Trayvon Martin, se relacionava diretamente a isso. Destacaram-se nesse movimento o caráter de massas que ele adquiriu, e também seu impacto em outras partes do mundo; foi marcante, ainda, a cultura de ação direta e democracia direta que ele incorporou e promoveu. Seus limites foram similares aos do Movimento de Resistência Global e do Occupy Wall Street. Além disso, também houve conflitos entre posições reformistas e revolucionárias, os quais se acentuaram com as posições nacionalistas e pós-modernas. Nesse contexto, mesmo que com baixa relevância, vale destacar o ressurgimento de agrupações armadas que, tomando como referência o antigo Partido dos Panteras Negras, se propuseram a reorganizar a resistência e o enfrentamento contra supremacistas brancos e, ao mesmo tempo, pautar a necessidade de autodefesa da população negra e outras minorias.
1. As lutas contrárias às dominações étnicas desse período envolvem aquelas que já foram mencionadas, e outras mais. Dentre as mencionadas, chamamos a atenção para as heroicas mobilizações do povo palestino contra o colonialismo e o racismo sionista do Estado de Israel, e dos povos indígenas latino-americanos contra latifundiários, lideranças e jagunços do agronegócio e da mineração. Os indígenas da América Latina vêm construindo organizações populares para catalisar os trabalhos e as mobilizações de base. Destacamos, na Colômbia, a Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC) e sua luta contra o narcotráfico e a violência paramilitar; na Bolívia, o movimento indígena que encampou a bandeira de um Estado plurinacional; no Equador, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), cujas ações incluem a oposição ao uso de suas terras para extração de petróleo e minerais; no Chile, a Coordenação Mapuche Arauco Malleco (CAM), que articula o povo Mapuche daquela região para as lutas numa perspectiva anticapitalista. Ressaltamos ainda o mencionado combate do povo curdo contra governos, Estados (Síria, Turquia, Iraque e Irã) e forças fundamentalistas, como o Daesh/ISIS. Para além daquilo que já foi mencionado, cumpre apontar a importância da chamada Revolução de Rojava, que vem sendo encampada pelos curdos, desde 2012, no norte da Síria. Com todos os seus limites e contradições (que incluem o recebimento de dinheiro de EUA e a falta de posicionamento contra o genocídio dos palestinos em Gaza), essa luta tem procurado construir uma sociedade ecológica e multiétnica, com economia autogestionária, democracia de base (sem Estado, fundamentada em comunas e conselhos), e libertação das mulheres. Há nela alguma proximidade com o projeto socialista libertário, o que se explica, em certa medida, pela influência que o confederalismo democrático defendido pelo PKK e por Öcalan teve de Murray Bookchin.
1. As lutas feministas partiram de acúmulos anteriores importantes, como a fundação do Coletivo Combahee River, em 1974, nos EUA, e a greve das mulheres de 1975, na Islândia. Entre 1985 e 2024, elas endossaram pautas mais amplas, incluindo reivindicações por direitos reprodutivos, por igualdade no trabalho fora e dentro de casa, e também pelo combate à objetificação, ao assédio, à violência e ao assassinato das mulheres (feminicídio). Durante esses anos, houve no mundo presença de distintas correntes do feminismo: liberal, radical, pós-moderno, socialista, interseccional etc. Algumas delas, como as duas últimas, insistiram na necessidade de relacionar a questão de gênero com outras, tais como classe, raça e etnia. Além disso, houve movimentos e protestos massivos, que, principalmente da virada do século em diante, tiveram visibilidade e impacto internacional, dentre os quais alguns se destacaram. A Marcha Mundial de Mulheres, criada em 2000, uniu naquele ano mulheres de mais de 150 países numa campanha contra a pobreza e a violência de gênero. A Marcha realizou grandes manifestações de rua e outros atos, entregando à ONU, nos EUA, um documento assinado por mais de 5 milhões de pessoas, que apoiavam suas reivindicações; ela continuou nos anos seguintes e se mantém até o presente, em países como o Brasil. A Marcha das Vadias, que se iniciou em 2011, no Canadá, e se difundiu ao longo dos anos para todos os continentes. Ela ficou conhecida pelas manifestações de rua que denunciaram a cultura do estupro e a violência contra as mulheres. O movimento Ni Uma a Menos [Nem uma a menos] se articulou na Argentina, em 2015, e também se expandiu para vários outros países do mundo, mobilizando mulheres durante os anos subsequentes contra a violência de gênero e o feminicídio. A Greve Feminista de 2018, na Espanha, uniu movimentos e sindicatos numa paralisação de milhões de pessoas para denunciar, dentre outros temas, as desigualdades entre homens e mulheres relativas ao trabalho doméstico e aos salários. O feminismo desses anos também foi reforçado por iniciativas em redes sociais, como o movimento #MeToo, de 2017, que denunciou na internet casos de abuso de poder e assédio sexual; por manifestações de rua que enfrentaram o crescimento das expressões mais radicalizadas da direita, como ocorreu nos EUA, em 2017, e na Coreia do Sul, em 2024; e por ações institucionais, como aquelas promovidas pela ONU durante todo o período analisado – exemplos nessa direção vão desde a Conferência Mundial sobre as Mulheres (Nairobi, Quênia, 1985) até a campanha “16 Dias de Ativismo Contra a Violência de Gênero”, que envolveu 180 países em 2023. E também por manifestações que atingiram a Índia, em 2012, e o Irã, em 2022. Dentre as muitas conquistas do movimento, impressiona aquela sobre o direito de aborto, que ocorreu em países como Canadá (1988), África do Sul (1994), Suíça (1999), Nepal (2002), Portugal (2007), Espanha (2010), Uruguai (2012), Moçambique (2014), Polônia (2016), Irlanda (2018), Argentina (2020), México (2021), Coreia do Sul (2021) e Colômbia (2022).
1. As lutas LGBT+ também foram realizadas levando em conta experiências precedentes de relevância, como a Revolta de Stonewall, nos EUA, em 1969, e as primeiras Paradas do Orgulho LGBT+ no mundo. É possível notar que, entre 1985 e 2024, o movimento LGBT+ ganhou muita visibilidade e força social. Antes, com as reivindicações relativas aos gays e às lésbicas e, depois, da população trans. Dentre as pautas mais significativas promovidas nesse período e que avançaram para conquistas em muitos países, estão: a descriminalização da homossexualidade e da transsexualidade, e a supressão de ambas dos códigos de doenças mentais; o reconhecimento jurídico e social do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da identidade de gênero da população trans; o fim da discriminação e da violência contra os LGBT+s. Assim como nos movimentos antirracistas e feministas, houve diferentes perspectivas e correntes do ativismo LGBT+, muitas vezes contraditórias entre si. Dentre as manifestações públicas dessas lutas, as que ganharam maior visibilidade e influência internacional foram, sem dúvida, as Paradas do Orgulho LGBT+ que, por meio de atos e manifestações de rua, promoveram a diversidade, a igualdade e o respeito às diferenças sexuais. As paradas surgiram ainda em 1970, nos EUA, e nas décadas seguintes chegaram a todos os continentes. Em certas localidades, como em São Paulo, reúne na atualidade milhões de pessoas. Se notabilizaram nos anos avaliados, também: o movimento ACT UP, nos EUA e na Inglaterra que, durante os anos 1980 e 1990, encampou reivindicações de direitos para a população LGBT+ no contexto da epidemia de AIDS; e os inúmeros protestos contra a violência que atinge essa população, muitos deles depois de agressões ou assassinatos, como no caso de 1991 e 1998 nos EUA, e de 2021 no México. E, já no contexto do fortalecimento da extrema-direita e de políticas LGBT+fóbicas de seus governos, aquelas manifestações as enfrentaram na Rússia (2013), nos EUA (2017), na Polônia (2020), na Hungria (2022) e na Coreia do Sul (2024). Merecem menção, enfim, as pressões que, desde os anos 1990, foram feitas sobre a ONU e as medidas que foram sendo adotadas desde então, as quais incluem desde a Resolução de 1991 sobre a Descriminalização da Homossexualidade, até a renovação da Campanha Free & Equal nos anos 2020.
1. As lutas ecológicas desse período, assim como as outras, se estabeleceram na esteira de destacadas experiências anteriores. Entre os anos 1950 e 1970, o movimento ambiental se articulou para denunciar e combater testes e usinas nucleares, utilização de pesticidas, poluição e contaminação do solo e da água, derramamentos de petróleo nos mares, caças de baleias e desmatamentos de florestas. A partir de então, a discussão sobre sustentabilidade ganhou força e, nos anos 1980, o movimento ecológico adquiriu grande força social no mundo. No período entre 1985 e 2024, diversas mobilizações aconteceram. Dentre movimentos, ações e protestos que tiveram mais visibilidade, estão: as mobilizações contra a poluição e a chuva ácida, que foram levadas a cabo nos anos 1980 nos EUA, no Canadá e na Alemanha; as lutas do movimento Chipko, na Índia, ao longo dos anos 1990, para enfrentar o desmatamento promovido pelas madeireiras em florestas do Himalaia; os protestos que, na Nigéria e em outros países, se seguiram ao assassinato de Ken Saro-Wiwa, que denunciara em 1995 crimes ambientais da Shell; as lutas que foram empreendidas no Chile, a partir de 2015, contra a exploração de lítio por empresas que estavam acabando com reservas de água em áreas indígenas; as mobilizações em países do Sudeste Asiático, como Indonésia, Filipinas e Malásia, desde 2022, para se contrapor à importação de resíduos plásticos dos países ricos. Nesses anos, houve também iniciativas com amplo impacto transnacional: a participação de movimentos ecológicos nas lutas internacionais contra o neoliberalismo, em especial no Movimento de Resistência Global, entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000; as atividades do movimento Extinction Rebellion [Rebelião ou Extinção], a partir de 2018, que atingiram dezenas de países; a Greve Global pelo Clima, de 2019, que mobilizou milhões de pessoas pelo mundo para exigir medidas de enfrentamento às mudanças climáticas, e na qual a participação da Juventude pelo Clima foi determinante. Contudo, as iniciativas em favor do meio ambiente estiveram, em grande parte das ocasiões, concentradas em ONGs como o Greenpeace e World Wildlife Fund (WWF), e na ONU. Promovendo a necessidade de se construir um “capitalismo verde”, a ONU, com apoio de Estados e empresas, promoveu uma série de encontros e acordos, que incluem o Protocolo de Montreal (1987), a Agenda 21 (1992), o Protocolo de Quioto (2002), o Acordo de Paris (2015) e as várias Conferências das Partes (COPs).
1. Ao estudar essas lutas que envolveram gênero, sexualidade, raça, etnia e meio ambiente nas últimas quatro décadas, alguns comentários mais analíticos podem ser feitos. Antes de tudo, é evidente que, mesmo tendo presença anterior considerável, foi nesses anos que as lutas contra o racismo, o patriarcado e a destruição ambiental assumiram uma posição destacadíssima no mundo. Por um lado, isso foi muito positivo, pois, de certo modo, impulsionou um movimento de certa “renovação” da esquerda global, que passou a ter que lidar com essas questões e incorporar em seus movimentos, organizações e grupos as pautas feministas, antirracistas e ecológicas. Tais questões e pautas são fundamentais e qualquer projeto socialista digno deste nome não pode mais ignorá-las. Por outro lado, os resultados desse crescimento foram ambíguos. Se é verdade que eles subsidiaram lutas muito relevantes no cenário internacional e chegaram a conquistas marcantes em muitos países, também é verdade que, frente a este cenário, um setor das classes dominantes e de suas instituições abraçou a questão das mulheres, da população LGBT+, de negros, indígenas e da preservação ambiental, passando a ter protagonismo. Resultado disso foi que setores crescentes das lutas em questão passaram a ser pautados por visões liberais ou liberalizantes, que as desvinculavam das perspectivas classistas, anticapitalistas e antiestatistas. Talvez esse protagonismo da ONU seja a maior evidência disso, com sua busca por um capitalismo ou mesmo um neoliberalismo progressista, que concilie a exploração e a dominação de classe com melhores condições para mulheres, LGBT+s, povos oprimidos e alguma proteção ambiental. Outro problema sério dessas lutas foi a considerável reprodução, ainda que muitas vezes inconsciente, da lógica neoliberal e capitalista-estatista. Isso ficou evidente no fortalecimento de particularismos (“identitarismos” ou “micronacionalismos”), que subsidiaram lutas fratricidas e fragmentações que terminaram favorecendo as classes dominantes, e também posições conservadoras e mesmo reacionárias. Por exemplo, quando setores do feminismo se opuseram à população trans, ou quando reivindicaram o determinismo biológico, o essencialismo de gênero ou posições misândricas; quando setores do movimento negro privilegiaram seus membros mais retintos em detrimento dos menos retintos, ou quando defenderam o essencialismo de raça ou posições nacionalistas separatistas; quando setores de movimentos de mulheres, LGBT+s, negros ou de etnias oprimidas enfrentaram trabalhadores vinculados ao movimento sindical; quando setores do movimento ecologista abraçaram posições elitistas, eugenistas e misantrópicas. Mesmo reconhecendo o patriarcado e o racismo são reproduzidos dentro de movimentos e lutas, essas posições não contribuem com nosso projeto de poder popular autogestionário. Enfim, a ascensão da extrema-direita tem colocado outros desafios a essa conjuntura. Não apenas pelos ataques às pautas antipatriarcais e antirracistas, e pelo negacionismo climático e a repressão às lutas, mas também porque desloca, também nessas questões, a esquerda ao centro e favorece as posições “frenteamplistas”, que não possuem condições de enfrentar esses ataques.
* ASPECTOS DA CONJUNTURA BRASILEIRA
** EFEITOS DO IMPERIALISMO ESTADUNIDENSE NO BRASIL
1. O imperialismo dos Estados Unidos teve um papel destacado no Brasil. O apoio direto ao golpe de 1964 é um caso exemplar, ainda que, depois desse período de estímulo aos golpes e ditaduras militares latino-americanas, outras estratégias tenham sido desenvolvidas e priorizadas. Nos anos estudados (1985-2024), esse imperialismo se manifestou de diferentes maneiras, em termos econômicos, políticos e culturais.
IMPERIALISMO ECONÔMICO: O PAPEL DO FMI E DAS CORPORAÇÕES INTERNACIONAIS
1. Economicamente, houve duas manifestações mais evidentes do imperialismo estadunidense no Brasil nesses anos. A primeira envolveu diretamente o FMI, do qual os EUA são os maiores acionistas. Desde os anos 1980, foi por meio dessa instituição que as políticas neoliberais foram impostas ao Brasil, por meio de um mecanismo relativamente simples. O país recorria a empréstimos do FMI, que colocava condições para que os recursos fossem emprestados. Naquele momento, tais condições não apenas favoreciam os interesses dos EUA, mas fomentavam ativamente as políticas neoliberais, por meio da adoção de programas de ajuste estrutural que obrigavam os países a cortar gastos públicos, privatizar estatais, promover políticas de abertura comercial e de flexibilização das relações de trabalho.
1. Mais precisamente, esse estímulo neoliberal do FMI foi sentido no Brasil a partir de 1983, quando os militares lidavam com a crise que se seguia aos choques do petróleo dos anos 1970. Já naquele momento, o FMI tinha mais influência na política macroeconômica do país do que os próprios militares. Essa condição persistiu nos anos de reabertura, sob José Sarney (1985-1990), quando as políticas do FMI contribuíram para o gigantesco crescimento da inflação, e durante a Assembleia Constituinte (1987-1988). Com a formulação do Consenso de Washington, em 1989, essa direção neoliberal do FMI se intensificou. Ela se fez sentir durante o governo Fernando Collor (1990-1992), quando a reprimarização foi instituída como política de Estado, mas, principalmente, ao longo dos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-2002). Sob influência direta dos EUA e da administração Clinton, o governo FHC aprofundou a submissão brasileira às políticas liberais do FMI e ao imperialismo estadunidense. Entre 1995 e 1998, era comum a presença de agentes do fundo dentro das instâncias governamentais, inclusive redigindo projetos de lei e de emendas constitucionais para fomentar o neoliberalismo no país. Durante o segundo mandato de FHC (1998-2002), essa ingerência do FMI e dos próprios EUA no Brasil ficou escancarada. Contribuíram para tanto os dois maiores empréstimos da história brasileira: um negociado com o fundo depois da reeleição, nos fins de 1998, e outro em 2001. No período posterior, o imperialismo dos EUA encontrou outros canais para se manifestar, na medida em que o Brasil quitou suas dívidas com o FMI e se tornou um de seus credores. Ainda assim, o Banco Mundial (BM) e um de seus braços,o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), vêm contribuindo, até o presente, através de financiamentos e outros meios, com a promoção de políticas neoliberais e favoráveis aos EUA em solo brasileiro.
1. A segunda manifestação econômica mais evidente do imperialismo estadunidense nos anos analisados se deu com a presença das corporações internacionais dos EUA no Brasil. São empresas multinacionais e transnacionais que operam em setores estratégicos da economia brasileira, incluindo o setor financeiro, e remetem grandes remessas de lucros e dividendos ao seu próprio país. Entre 1985 e 2024, as corporações internacionais estadunidenses tiveram forte atuação em diferentes setores da economia: automóveis (Ford e GM), máquinas agrícolas (Caterpillar e John Deere), exportação de grãos (Cargill, Bunge e ADM), energia e petróleo (ExxonMobil e Chevron), sementes e pesticidas (Monsanto/Bayer), infraestrutura digital e mercado de tecnologia (Google, Microsoft, IBM e Amazon), alimentação (McDonald’s e Coca-Cola), bancos e investimentos (Citibank e JP Morgan) e agências de risco (Moody’s, Standard and Poor’s e Fitch). Além disso, as privatizações de empresas como Vale, Embraer e outras do setor elétrico contaram com participação do capital econômico dos EUA, que mantem parte do controle dessas e de outras empresas privatizadas ou de capital aberto. Dentre as remessas de lucros e dividendos que são realizadas a partir do Brasil, aquelas destinadas aos EUA sempre estiveram no topo da lista. Entre 2006 e 2013, por exemplo, os EUA estiveram quase sempre na primeira ou na segunda posição dentre os países que mais receberam essas remessas do Brasil. Apenas nesses sete anos, tais remessas cresceram de mais de 150%, atingindo quase US$ 5 bilhões em 2013. Para o Brasil, tanto essa grande presença de empresas estadunidenses, quanto essas vultuosas remessas de lucros e dividendos aos EUA significam o reforço da dependência e da subordinação. Além dos Estados Unidos controlarem setores estratégicos da economia brasileira e, com isso, impedirem o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional, a burguesia estadunidense termina sendo a grande beneficiária dessa riqueza produzida pelos trabalhadores brasileiros que sai do país com destino aos EUA.
1. Nessa presença, são fundamentais as instituições financeiras que podem negociar os papéis da dívida pública brasileira e as reservas monetárias do Banco Central – atualmente, 70% delas, os chamados “dealers”, são empresas dos Estados Unidos. O processo de neoliberalização do Brasil nos anos 1990 modificou bastante o mercado financeiro, que até então estava submetido a regulamentações e controles governamentais mais rígidos. Desse modo, se permitiu uma participação muito maior de instituições financeiras internacionais no mercado de títulos públicos (captação de recursos pelo governo através de emissão e negociação de títulos de dívida), no mercado de câmbio (compra e venda de moedas estrangeiras), e se criou essa figura dos “dealers” – instituições intermediárias, em geral bancos e corretoras, autorizadas pelo Banco Central a operar nesses mercados. O fato de a maioria desses “dealers” serem corporações dos EUA garante a este país e suas classes dominantes uma influência imensa nas políticas econômicas e fiscais, assim como nas taxas de juros e de inflação do Brasil; sua força social é tão grande que eles têm capacidade, inclusive, de desestabilizar o país.
** IMPERIALISMO POLÍTICO E CULTURAL: A INFLUÊNCIA SOBRE A BUROCRACIA E A SUBMISSÃO IDEOLÓGICA
1. Politicamente, o aspecto mais relevante do imperialismo estadunidense nos anos em questão foi a influência sobre a burocracia de Estado brasileira, incluindo membros das Forças Armadas. Sabemos da histórica submissão das Forças Armadas brasileiras aos EUA. Não apenas porque essas forças dependem dos EUA, visto que utilizam sua tecnologia militar, compram armas de suas empresas e recebem doações de seus equipamentos obsoletos. Mas também porque, ideologicamente, a formação delas continua a se pautar pelos marcos da Guerra Fria e da “luta contra o comunismo”. Mas, para além disso, desde o segundo mandato de FHC tem havido um fascínio institucional dessa burocracia pelas viagens de “aprendizado” junto às agências de regulação dos EUA que, a bem da verdade, também são instrumentos para reforçar o imperialismo e o enriquecimento de sua própria burguesia. Naquela época, ocorreram “treinamentos” nos EUA que contaram com interrogatórios “simulados” de agentes brasileiros, utilizando inclusive detector de mentiras. Ocorreram, ainda, distintas formas de ingerência, tanto por parte do Centro de Dados Operacionais (CDO), quase uma PF (Polícia Federal) dentro da PF, que realizava intercâmbios frequentes com o FBI, quanto com as viagens da primeira geração da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) para a sede da CIA. Esse tipo de relação, que possibilitou espionagens por parte dos EUA, continuou nos anos posteriores. Permaneceu durante os governos petistas e, pelo que se tem notícia, se mantém até o presente. Na atualidade, isso persiste principalmente com o envio ao Brasil de funcionários e agentes especiais estadunidenses – adidos jurídicos, policiais, assessores de inteligência, espiões etc. –, usufruindo para isso de laços interpessoais entre essas autoridades e membros da burocracia nacional. Tais visitas ocorrem quase sempre sem controle e registro de entrada, acompanhamento e agenda.
1. Durante os anos analisados, o ponto culminante desse processo foi o Projeto Pontes que, a partir de 2009, “treinou” burocratas brasileiros vinculados ao Ministério Público, à Justiça, à Polícia Federal e à Receita Federal, para o “combate à corrupção”. Obviamente, não era disso que se tratava, mas de gabaritar esses burocratas para a prática de lawfare – a utilização do sistema jurídico para fins políticos e ideológicos. Maior resultado concreto do Projeto Pontes, a Operação Lava Jato, destruiu setores da indústria brasileira que vinham tendo algum protagonismo no exterior – petróleo e gás, construção civil, carne entre outros –, e criou as condições para a derrubada de Dilma Roussef (2016). Com isso, pavimentou o caminho para governos mais submissos; primeiro, o de Michel Temer (2016-2018), durante o qual foi instalado, em São Paulo, um novo escritório do Comando Sul, instituição militar dos EUA que coordena operações na América Latina e no Caribe, e depois o de Jair Bolsonaro (2019-2022), que trabalhou para um alinhamento abertamente submisso aos EUA. Adiante faremos uma caracterização mais precisa dos governos Lula e Dilma (2003-2016), mas, por ora, cumpre apenas destacar que esses governos, apesar de menos subservientes, nem de longe podem ser considerados anti-imperialistas. Na esteira desse processo aberto pela Lava Jato, outras iniciativas estadunidenses tiveram contribuições significativas para o fortalecimento da extrema-direita brasileira. Dentre elas, está a influência adquirida por fundações como Atlas Network, Irmãos Koch, Heritage e, posteriormente, eventos como a CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora).
1. Entretanto, essa submissão ideológica não se restringe às Forças Armadas. Ela se estende a diferentes setores da sociedade brasileira que idolatram os EUA, sua autoproclamada função de dono do mundo e seu “estilo de vida americano”, pautado em valores como consumismo e individualismo. Isso responde a uma influência crescente da cultura estadunidense no mundo, que se iniciou no século XX e se mantém até hoje. Essa cultura tem pautado o ideário de muitos brasileiros, seja por meio de filmes, programas de televisão e músicas, seja por meio de relatos colonizados e posições subservientes de figuras culturalmente influentes, como empresários, políticos, líderes religiosos, intelectuais, educadores, jornalistas, artistas etc. Tal submissão vem tendo impacto no senso comum “douto” (intelectualizado, acadêmico), por meio de argumentos supostamente técnicos, e no senso comum em geral.
** BLOCO CHINA-RUSSIA E BRICS COMO ALTERNATIVA ANTI-IMPERIALISTA PARA O BRASIL?
1. As relações entre Brasil, por um lado, e China, Rússia e BRICS, por outro, poderiam aparentemente indicar uma alternativa anti-imperialista ao Brasil. Mas, em nossa avaliação, não é disso que se trata. A partir da virada do século, essas relações têm sido marcadas pela conformação de um bloco China-Rússia, sustentado não apenas por uma crescente aliança estratégica, mas também por sólidas parcerias econômicas e militares. Importante notar que, dentro desse bloco e dos próprios BRICS, o protagonismo tem sido da China. As relações do Brasil com ambos os países se consolidaram a partir dos anos 2000, na esteira da articulação dos BRICS, e se tornaram estratégicas em termos de geopolítica e comércio internacional. A partir de 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil. As relações desde então se estabeleceram com o Brasil se dedicando à exportação de commodities (soja, minério de ferro e petróleo) para a China, e com a China expandindo investimentos em áreas como infraestrutura, energia e tecnologia, estimulando presença de suas empresas no Brasil, como nos casos de State Grid, Huawei e BYD, e realizando parcerias tecnológicas na área de satélites (CBERS) e 5G. Com a Rússia, as relações se iniciaram nas áreas de defesa e tecnologia militar, quando o Brasil passou a comprar helicópteros e sistemas de defesa e, depois dos BRICS, avançaram para as áreas de ciência, tecnologia e energia. Depois de 2010, a Rússia vem aumentando sua presença no Brasil, seja por meio de estatais como a Rosatom (energia nuclear) e a Gazprom (gás), seja com a exportação de fertilizantes para o agronegócio.
1. Por mais que o bloco China-Rússia e os BRICS contribuam para a multipolaridade mundial, colocando em xeque a hegemonia absoluta dos EUA, não caracterizamos essas alternativas como possíveis ou adequadas para uma luta anti-imperialista. Principalmente porque nossas concepções classistas, revolucionárias e internacionalistas de imperialismo e anti-imperialismo não consideram “o Brasil” indistinta e homogeneamente, e nem os conflitos e alianças entre Estados uma prioridade na luta. Mas também porque, neste momento, conforme colocado anteriormente, não se sabe sequer o nível de conflito que China, Rússia e BRICS estão dispostos a empreender contra o imperialismo estadunidense, a OTAN etc.
** CINCO PERÍODOS DA HISTÓRIA ECONÔMICA E POLÍTICA RECENTE
1. Grosso modo, consideramos que, levando em conta aspectos econômicos e políticos, a história recente do Brasil pode ser dividida em cinco períodos: 1.) Transição tutelada, crise e inflação (1985-1990/4); 2.) Implantação e consolidação do neoliberalismo (1990-2002); 3.) Tentativa de conciliação do neoliberalismo com políticas sociais ou social-liberalismo (2003-2015); 4.) Nova crise, golpismo e neoliberalismo em disparada (2016-2022); 5.) Frente Ampla entre o social-liberalismo e o neoliberalismo (2023- ). A seguir, retomaremos alguns elementos relevantes da história econômica brasileira nos anos estudados (1985-2024), explicitando fatos em cada um desses períodos e realizando caracterizações analíticas. Os elementos de história política serão analisados mais adiante.
** TRANSIÇÃO TUTELADA, CRISE E INFLAÇÃO (1985-1990/4)
1. Em 1985, a ditadura militar se encerrava e o Brasil passava por uma transição tutelada para democracia, algo que se realizava num contexto de crise herdado da ditadura. Por uma parte, o período entre 1968 e 1973 havia contado com grande crescimento econômico, com média de 11% ao ano. Contudo, se tratava de um crescimento conseguido às custas de um enorme endividamento externo e sem distribuição para as classes oprimidas. Ou seja, quem realmente usufruiu do chamado “milagre econômico” foram as classes dominantes brasileiras, que viram suas taxas de lucro e sua acumulação de capital econômico aumentarem consideravelmente. O “bolo cresceu”, mas nunca foi “distribuído”, como haviam prometido os economistas da ditadura. Proletários e camponeses foram negativamente impactados por redução do salário mínimo, perda de poder de compra, flexibilizações trabalhistas e ataque aos sindicatos. Por outra parte, um contexto internacional de crise se abateu fortemente sobre o Brasil, ainda nos anos 1970. O choque do petróleo de 1973 e outras mudanças internacionais – mesmo que tenham motivado o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (desenvolvimento de infraestrutura, bens de capital e apoio às exportações), com resultados em termos de desenvolvimento industrial –, abriram as portas para a grande crise dos anos 1980. Num contexto agravado pelo segundo choque do petróleo em 1979 e por uma nova política de aumento de juros nos Estados Unidos (1979-1982), os capitais fugiram do Brasil – porque buscavam as altas taxas de juros estadunidenses, que chegavam a 14% em 1979, e passavam de 20% no fim de 1980 – e a dívida brasileira (em dólar) explodiu; não havia mais condições de rolar a dívida e pagar seus juros. Para enfrentar esse cenário, o governo apostou em empréstimos com o FMI e em um ajuste recessivo. Visando pagar a dívida, sacrificou a vida das classes oprimidas, que enfrentaram tempos de austeridade e arroxo salarial, agravados pela alta da inflação.
1. A economia dos anos 1985-1993 foi profundamente marcada pelo problema da inflação e pelos diferentes planos do governo que tentaram solucioná-lo. Em resumo, os Planos Cruzado I e II (1986) e o Plano Bresser (1987) promoveram congelamentos (de preços, salários, alugueis, hipotecas) e outras medidas para tentar combater a inflação. Conseguiram algum resultado no início, mas depois a inflação retornou. Fundamental para esse retorno foi a burguesia brasileira, que burlava o congelamento e o tabelamento de preços – os produtos sumiam das prateleiras e se formavam mercados paralelos de produtos como leite, carne e remédios. Entre 1985 e 1989, a média anual da inflação foi de 471,7%. Os Planos Collor I e II (1990 e 1991), além do bloqueio dos ativos financeiros (confisco de poupança etc.), tentaram puxar o freio de mão da economia, visto que, conforme pensavam, sem gente para comprar, os preços não subiriam. O plano fracassou completamente: o PIB do país caiu quase 10%, o desemprego aumentou e os salários diminuíram; em 1989, a inflação passou de 1700% ao ano. Essa inflação significava gigantesco e constante aumento de preço das mercadorias e isso, obviamente, prejudicava bastante os trabalhadores, sobretudo aqueles mais pobres e sem conta no banco. O salário que recebiam no início do mês era completamente corroído com o passar dos dias. Quem ganhava com essa alta inflação eram as distintas frações da burguesia, pois conseguiam transferir os custos da inflação para os preços de seus produtos e serviços. Essas frações incluíam investidores (de imóveis, terras, ouro), operadores do mercado financeiro e bancos, que realizavam operações especulativas e lucravam com elas. O controle da inflação, a qual culminou em quase 2500% no ano de 1993, veio apenas a partir do ano seguinte, com o Plano Real, estabelecido no governo Itamar Franco. Foi um plano que, ainda que tenha colocado limites à alta inflação, pavimentou o caminho para a consolidação do neoliberalismo no Brasil, cujos impactos foram muito negativos, como se verá mais à frente.
** IMPLANTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO NEOLIBERALISMO (1990-2002)
1. O Consenso de Washington e as políticas do FMI condicionadas aos empréstimos tiveram significativo impacto sobre o Brasil durante os anos 1990. Foi nesse contexto que foram impostas ao Brasil a implantação e a consolidação do neoliberalismo, sob direção do capital internacional e estímulo dos governos Fernando Collor de Mello (1990-1992), Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Nos anos de Collor, houve uma abertura comercial e financeira, assim como reformas liberais. A economia brasileira foi aberta aos fluxos de capitais e às mercadorias dos países centrais, o papel do Estado na economia foi reformulado, a política econômica passou a ser condicionada pelo discurso da estabilidade fiscal e monetária. Esse quadro contribuiu para reposicionar o Brasil na divisão internacional do trabalho e, assim, aumentar sua dependência e sua subordinação frente ao capital internacional. Esse processo foi acelerado nos anos FHC, que, além da implantação do “tripé macroeconômico” neoliberal, em 1999 – câmbio flutuante (sem controle governamental), controle da inflação (por meio de metas) e superávit primário (“ajuste” de contas públicas e, mais tarde, teto de gastos) –, caminhou no avanço das chamadas reformas estruturais recomendadas pelo receituário neoliberal internacional.
1. Dois aspectos dessas reformas merecem destaque. Primeiro, a abertura econômica (de mercado e financeira). Aquilo que prometia modernizar o mercado brasileiro por meio de um “choque competitivo”, na realidade estimulou não apenas a reprimarização do país, mas o desemprego e a precarização do trabalho (terceirizações etc.). A liberalização financeira, que já havia “internacionalizado” parte considerável da dívida pública brasileira, desregulamentou o setor bancário, incentivando a entrada de bancos estrangeiros no país, como Santander e HSBC. Segundo, as privatizações que aconteceram entre 1990 e 2000. Elas transferiram mais de 100 empresas estatais – de setores como siderurgia, energia, transportes, telecomunicações, portos, fertilizantes, petroquímica, mineração e bancário – a grandes corporações estrangeiras, por meio de processos que não apenas envolveram muita corrupção, mas que demonstraram a submissão da burocracia e da burguesia brasileiras ao grande capital internacional.
1. Em resumo, esse período de implantação e consolidação do neoliberalismo foi muito prejudicial às classes oprimidas brasileiras. Além de ter dado continuidade à concentração de riqueza e renda – e, portanto, à desigualdade social –, ele contribuiu com a precarização do trabalho e aumentou muito o desemprego. Os ataques aos direitos trabalhistas se intensificaram e promoveram informalização, flexibilização e piora das condições de trabalho (banco de horas, contrato de prazo determinado, trabalho em tempo parcial etc.). Isso teve consequência negativa no consumo das famílias, em especial no segundo mandato de FHC. Levando em conta os dois mandatos de FHC, o desemprego cresceu em torno de 50%. Os movimentos sociais sofreram duras repressões, e o sindicalismo, quando não aderiu abertamente ao neoliberalismo (Força Sindical etc.), caminhou progressivamente para as posições conciliadoras (CUT etc., com o “sindicalismo propositivo”). No entanto, mesmo quando confrontado com suas próprias promessas, o neoliberalismo desse período fracassou. Entre 1990 e 2002, o PIB brasileiro cresceu apenas um pouco mais que a metade da média global. A dívida pública, que prometia ser reduzida com as privatizações, só cresceu, e passou de 50% a 75% do PIB; a balança comercial teve déficit durante grande parte do tempo; somente entre 1995 e 2000, as despesas financeiras com amortização e refinanciamento da dívida mais que triplicaram, passando de R$ 100 bilhões para R$ 350 bilhões.
** TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO DO NEOLIBERALISMO COM POLÍTICAS SOCIAIS OU SOCIAL-LIBERALISMO (2003-2015)
1. O Brasil contou com certas mudanças no período que vai de 2003 a 2016, no qual esteve sob os governos petistas de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). A economia brasileira desse período pode ser dividida em duas partes: uma, anterior aos efeitos da Crise de 2008, em que o Brasil usufruiu do chamado “boom” das commodities no mundo, e outra, posterior.
1. O projeto petista, que caracterizamos como social-liberal, buscou conciliar o neoliberalismo do período anterior com políticas “desenvolvimentistas” e sociais. O social-liberalismo possui como aspecto central essa tentativa de conciliação entre o liberalismo econômico e a justiça social, de modo ainda mais moderado que a socialdemocracia histórica; ele se situa entre a socialdemocracia e o neoliberalismo. Por um lado, o projeto petista manteve na maioria do tempo o tripé macroeconômico e deu continuidade ao processo de reprimarização e financeirização da economia brasileira. Como um bom aluno das instituições neoliberais, o petismo garantiu vultuosos superávits, que somaram US$ 232 bilhões entre 2003 e 2010; estimulou as exportações das commodities do setor agrícola-extrativista, usufruindo da alta de preços internacional; promoveu o aumento da participação dos bancos na economia, que, já a partir de 2003, era maior que nos anos FHC. Por outro lado, esse projeto pretendeu se combinar com medidas mais “desenvolvimentistas” e sociais. Tais medidas envolveram: o ganho real do salário mínimo que, entre 2003 e 2008, subiu 37% acima da inflação; a expansão do crédito, que permitiu e estimulou maior endividamento de pessoas e empresas; a geração de empregos, com a criação de mais de 8 milhões de novos postos (na maioria dos casos, precários) entre 2003 e 2009; a ampliação dos programas de assistência social e distribuição de renda, como no caso das famílias atendidas pelo Bolsa Família que, de 2003 a 2009, passaram de 3,6 para 12,4 milhões. Ao longo dessa primeira parte do período social-liberal (2003-2010), as exportações – soja, carnes, açúcar, petróleo bruto (não refinado), minérios de ferro, café etc. –, se somaram a essa intervenção estatal na economia e tiveram impactos econômicos positivos: um aumento no consumo das famílias, de 3,3% entre 2003 e 2006, e de 5,9% entre 2007 e 2010, e também no crescimento do PIB, que teve média de 3,5% ao ano entre 2003 e 2010. Isso possibilitou, ao longo desses anos, os recursos para uma gestão conciliadora da economia, a qual garantiu os lucros das classes dominantes, sem tocar em seus privilégios, e melhorias conjunturais nas condições de vida dos trabalhadores, principalmente por meio de uma inserção via consumo; não houve reformas estruturais de efeito duradouro.
1. Os efeitos da Crise de 2008 chegaram ao Brasil alguns anos mais tarde. A partir de 2011, o ciclo das commodities começou a se encerrar – o que ocorreria, efetivamente, três anos depois (2014) – e a dinâmica do comércio internacional se modificou. Progressivamente, as exportações se enfraqueceram e as importações se fortaleceram, em especial com a vinda de produtos chineses, e isso produziu problemas na balança comercial. Ademais, o consumo potencializado do período anterior foi encontrando limites. Não apenas produtivos, que implicavam ameaça de inflação, mas sobretudo nas brutais taxas de juros, incluindo aquelas de crediários, cheque especial, rotativos de cartão, empréstimos a pessoas e empresas.
1. Para tentar dar uma resposta a esse quadro, o governo Dilma promoveu, entre 2011 e 2014, aquilo que caracterizamos como um ensaio desenvolvimentista. Ele pretendia incentivar a produção, a reindustrialização e as exportações, e ampliar o consumo dos brasileiros. Para isso, o governo flexibilizou o tripé macroeconômico: assumiu maior tolerância frente à inflação, adotou políticas de redução das taxas de juros (via BC, bancos públicos e crédito subsidiado), flexibilizou a âncora fiscal (com queda no superávit primário), administrou mais enfaticamente o câmbio (reduzindo a “livre flutuação” e evitando a valorização excessiva). O governo também apostou nos estímulos à burguesia industrial, com vistas ao fortalecimento da industrialização. Promoveu desonerações (cortes de impostos) e controle de capitais, forneceu subsídios (principalmente de crédito via BNDES) e adotou controles de preço (combustíveis e energia elétrica). Enfim, houve investimentos em infraestrutura, com o Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC2), o Programa de Investimentos em Logística (PIL) e as obras de mobilidade urbana. Esse ensaio desenvolvimentista foi precocemente desmontado, pelo alinhamento estrutural de grande parte da burguesia industrial ao rentismo. Apesar dessas medidas, não houve aumento de investimentos por parte da burguesia, que preferiu ampliar seus lucros com os incentivos do governo. Os resultados econômicos não vieram e as ameaças ao tripé e aos bancos, com a redução dos juros, provocaram ataques do grande capital econômico e de seus braços políticos e midiáticos. Nos fins de 2014, sinalizando imenso recuo e traição às promessas de campanha, o governo entregou a gestão econômica do país a um banqueiro, Joaquim Levy, que adotou uma linha mais ortodoxamente neoliberal, promovendo a austeridade e acelerando o choque recessivo. Mesmo que as taxas de juros tenham aumentado brutalmente, com a Selic chegando a 14,25% ao ano em 2015, isso não foi suficiente para a burguesia. Os resultados do período – queda do PIB, aumento da inflação, queda no consumo das famílias, aumento do desemprego – foram usados para justificar a mudança de projeto. Economicamente, contudo, já num cenário de marcada financeirização, bancos e intermediários financeiros se apropriavam da maior parte do excedente econômico, travando a economia e aumentando exponencialmente o endividamento.
1. Ao longo dessa segunda parte do período social-liberal (2011-2015), a conjuntura anterior, que permitiu certa conciliação, se encerrou com os efeitos da crise. As escolhas políticas do PT nesse período deixam duas coisas evidentes. Primeiro, sua ilusão, a mesma de setores desenvolvimentistas, de que há no Brasil uma burguesia nacional “produtiva”, disposta a defender interesses nacionais. A adoção de uma suposta “agenda da FIESP” (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) pelo governo não apenas não garantiu investimentos por parte dessa burguesia, como não impediu que ela se colocasse como parte do bloco pelo impeachment. Segundo, a opção petista de, com a crise se aprofundando, jogar seus custos para os de baixo e não para os de cima. Entre 2011 e 2015, com os trabalhadores vivendo os efeitos da crise, o lucro líquido dos cinco maiores bancos do país subiu 38%; foram de R$ 50,7 para R$ 69,9 bilhões. De modo geral, o tipo de conciliação proposto pelo PT fica evidente quando se constata que, durante seus 13 anos de governo houve, por uma parte, gastos de R$ 207 bilhões com o Bolsa Família, para atender 13 milhões de famílias. Mas que, por outra parte, houve gastos de R$ 3,4 trilhões – ou seja, 16 vezes mais! – apenas com pagamento de juros e amortização da dívida. Além disso, os lucros das corporações presentes no Brasil saltaram para patamares até então inéditos. Apenas nesses anos, essas empresas remeteram às suas matrizes US$ 293 bilhões. Além disso, a partir de 2012, os gastos tributários do governo cresceram, em função de isenções fiscais que visavam ampliar o apoio no Congresso. Esses gastos subiram de um patamar de 3,5%-3,8% do PIB, entre 2008 e 2011, para um patamar de 4,4%-4,5% em 2014 e 2015, e se mantiveram acima dos 4% depois disso. Mesmo assim, não foram mobilizaram o apoio político pretendido.
** NOVA CRISE, GOLPISMO E NEOLIBERALISMO EM DISPARADA (2016-2022)
1. Somado a elementos de ordem política e ideológica, esse foi o contexto de crise no qual se construiu o golpe/ impeachment de 2016 que, do ponto de vista econômico, não significou mais que uma ruptura com a tentativa de conciliação petista e a adoção de uma linha neoliberal e entreguista mais ortodoxa e acelerada, crescentemente autoritária. Tal período atravessou os governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022), e teve quatro eixos centrais, especificados em seguida. Primeiro, o estímulo a uma submissão absoluta aos EUA e a uma reprimarização da economia, intensificando o reposicionamento do Brasil na divisão internacional do trabalho em condição de simples fornecedor de matérias primas para o mundo. Segundo, o desmonte do marco regulatório e da fiscalização ambiental, reduzindo as exigências para os licenciamentos e facilitando a exploração de recursos naturais pelas empresas, particularmente o pré-sal. Terceiro, o ataque às classes oprimidas no campo do trabalho e da previdência, precarizando empregos, reduzindo salários e aumentando os anos de trabalho por pessoa necessários para a aposentadoria. Quarto, a diminuição das chances de intervenção do Estado na economia, a garantia dos recursos do Estado para as classes dominantes e a aceleração das privatizações. E, com isso, a minimização da possibilidade de governos eleitos intervirem, mesmo que minimamente, em favor dos trabalhadores; a limitação dos gastos públicos para assegurar o pagamento dos juros da dívida e outras benesses aos de cima; e a aceleração do desmonte de estatais, bancos e serviços públicos, com vistas à expansão do capital privado.
1. Os resultados econômicos desse período de crise, golpismo e neoliberalismo em disparada (2016-2022) mostram um intenso avanço do grande capital econômico – e, portanto, da burguesia – sobre o proletariado e o campesinato. Não foi apenas um “avanço do mercado sobre o Estado” ou um “desmonte do Estado”, mas um forte direcionamento dos recursos do Estado, com participação do próprio Estado (Congresso, Judiciário etc.), para o atendimento mais direto dos interesses das classes dominantes, sem as tímidas medidas de mediação anteriores. Mesmo reconhecendo que as diretrizes econômicas são produto de conflitos e lutas, é possível dizer que que, pelo menos em parte, as forças econômicas associadas aos governos Temer e Bolsonaro avançaram nos mencionados eixos. Por exemplo, quando atacaram a Petrobrás – rompendo com o modelo de partilha do pré-sal e, com isso, abrindo espaço para as multinacionais; privatizando refinarias, terminais, dutos e distribuidoras, e entregando o refino aos EUA e outros países que, depois, passaram a revender o petróleo refinado ao Brasil. E quando aprovaram medidas legais para fortalecer seu projeto, dentre as quais: o “Teto de Gastos” de 2016, que limitou constitucionalmente os investimentos públicos; a “Reforma Trabalhista” e a Lei da Terceirização de 2017, que consolidaram duros ataques à CLT (Consolidação das Leis do Trabalho); a “Reforma” da Previdência de 2019, que aumentou o tempo para a aposentadoria e colocou muitos para trabalhar até morrer; a “autonomia” do Banco Central de 2021, que reforçou o papel do mercado privado nas políticas monetárias. Em linhas mais gerais, se aprofundou nesse período uma tendência econômica e social de piora crescente do país, que se acentuou com a pandemia, e que foi seguida por uma breve recuperação. Isso pode ser notado em diferentes indicadores. Entre 2016 e 2020, por exemplo, o PIB per capita (real) caiu quase 5% e o desemprego cresceu 25%; entre 2016 e 2021, a extrema pobreza aumentou 34% e as pessoas com fome no país passaram dos 30 milhões. Entre 2021 e 2022, houve um início de recuperação pós-pandemia motivada, dentre outras coisas, pelas medidas assistenciais aprovadas pelo Congresso. O PIB per capita (real) retomou níveis de 2017, e o desemprego e a extrema pobreza chegaram aos índices de 2015.
** FRENTE AMPLA ENTRE O SOCIAL-LIBERALISMO E O NEOLIBERALISMO (2023- )
1. Desde o início de 2023, com a vitória da Frente Ampla nas eleições presidenciais, o PT e seus aliados, que vão da centro-esquerda à direita, têm levado adiante um projeto ainda mais recuado que aquele do início dos anos 2000. A conjuntura internacional é outra, assim como a correlação de forças sociais dentro do Brasil. Apesar dos discursos, as políticas econômicas vêm assumindo uma linha neoliberal e há tentativas ainda mais recuadas que aquelas do período petista anterior para conciliar essas políticas com medidas desenvolvimentistas e mesmo sociais ou assistenciais. É por isso que o governo Lula-Alckmin está abrindo mão até da antiga perspectiva social-liberal. Na resultante da relação de forças, o único contraponto proposto por esse governo para as classes oprimidas é a manutenção mínima do “Estado de direito” capitalista e da democracia liberal burguesa.
** ECONOMIA, SOCIEDADE E DESIGUALDADE SOCIAL
1. A análise desses cinco períodos econômicos permite fazer alguns comentários mais gerais. O caráter dependente e subordinado do capitalismo-estatismo brasileiro fez com que o país sofresse enormes impactos da conjuntura internacional. Não apenas positivos, como na alta das commodities, mas principalmente negativos, como nas grandes crises dos anos 1980 e 2010 (desdobramento da Crise de 2008). O Brasil também sofreu impactos pela dependência da dívida pública formada por empréstimos internacionais, sejam aqueles do FMI ou os de outros investidores, muitos dos quais estrangeiros. Entre 1985 e 2024, contrariando as interpretações liberais, sempre houve intervenção do Estado na economia brasileira. Buscamos mostrar ao longo deste texto que a questão foi sempre como essa intervenção se deu e em benefício de quais setores da sociedade. Nos anos estudados, não houve no Brasil desenvolvimentismo econômico de fato (ou “neodesenvolvimentismo”), nem sequer um reformismo digno deste nome. Ainda assim, reconhecemos ter havido no governo Dilma o já mencionado ensaio de desenvolvimentismo que, junto com outros fatores, contribuiu para o impeachment/golpe de 2016.
1. Como mostramos, a linha condutora de toda a economia brasileira foi, a partir de 1990, o neoliberalismo, que sob FHC se consolidou, sob Lula e Dilma tentou ser mitigado, e sob Temer e Bolsonaro se acelerou. O neoliberalismo se conservou no Brasil ao longo desses anos, em meio a uma crescente financeirização; muitos de seus princípios foram transformados em dogmas, e seguidos inclusive pelo petismo. A dominação econômica burguesa e os interesses neoliberais e financeiros vinculados ao capital privado têm usufruído de diferentes ferramentas. Dentre elas, estão: a dívida pública, que converte o Estado em financiador de rentistas; o Banco Central, que vem se pautando em interesses privados de mercado – e, depois da “autonomização”, se distanciando ainda mais dos interesses públicos; o Boletim Focus, que tem promovido esses interesses privados de mercado como se fossem orientações técnicas; o Comitê de Política Monetária (COPOM), que vem priorizando a estabilidade monetária para o capital em detrimento do emprego e do desenvolvimento social.
1. Nos anos analisados, a economia brasileira cresceu significativamente. Em termos de crescimento real (volume), ao longo desses 40 anos, o PIB cresceu 525% (em reais), ou seja, se multiplicou por mais de seis vezes! Mesmo levando em conta o aumento da população – em torno de 60% –, esse crescimento foi muito expressivo. Entre 1985 e 2024, o PIB per capita aumentou 328% (em reais), ou seja, se multiplicou por mais de quatro vezes! Em 2024, o PIB brasileiro foi de R$ 11,7 trilhões (ou US$ 2,1 trilhões) e o PIB per capita foi de R$ 55,2 mil ao ano (ou R$ 4,6 mil ao mês). Foi essa conquista dos trabalhadores brasileiros que, ao longo de quase todos esses anos, colocou o Brasil entre a 9ª e a 10ª posição dentre as maiores economias do mundo, e permitiu que ele chegasse, em alguns momentos, à 6ª posição. Entretanto, constatar esse crescimento não é suficiente. É imprescindível verificar também como essa riqueza foi distribuída entre a população. Chegamos, assim, à questão da desigualdade social, que no Brasil é uma das maiores do mundo, seja quando comparada à média mundial, a países centrais (como França ou Japão) ou mesmo a países periféricos (como África do Sul e Argentina). Um fato que se destaca muito nos estudos e indicadores sobre a desigualdade brasileira é a renda e a riqueza apropriadas pela burguesia – ou, mais especificamente, pelo 1% mais rico da população do Brasil. Ao se analisar o período 1985-2024, a conclusão mais importante sobre essa concentração de renda e riqueza no 1% mais rico, é que a imensa desigualdade social brasileira permaneceu, em linhas gerais, altíssima durante todos esses anos.
1. A desigualdade de renda (salários, benefícios, dividendos etc.) nesse período pode ser entendida pela trajetória desse 1% mais rico e pelo índice de Gini (de renda). Entre 1985 e 2024, o 1% teve a seguinte trajetória: aumentou sua renda nos anos 1980; diminuiu um pouco até o fim dos 1990; manteve-se estável até 2013 e depois entrou numa tendência lenta de queda. O 0,1% e o 0,01% mais ricos do Brasil tiveram trajetória semelhante. Independente dessas oscilações, a desigualdade de renda permaneceu altíssima, com o 1% tendo se apropriado, em média, de aproximadamente 23% da renda nacional. Em 2017, os 5% mais ricos do país tinham a mesma renda que os 95% mais pobres. Observando o índice de Gini, se nota que a desigualdade de renda diminuiu em torno de 15% entre 1985 e 2023. Houve uma tendência geral de redução dessa desigualdade, com exceção dos anos 2016 a 2021, que contaram com um aumento, ao qual se seguiu uma nova redução em 2022 e 2023. A desigualdade de riqueza (propriedades, bens, aplicações etc.) nesse período esteve ainda pior. Entre 1995 e 2023, a riqueza do 1% mais rico do Brasil cresceu constantemente, totalizando um aumento de 17% durante esses anos. Por um lado, esse 1% concentrou entre 40% e 50% da riqueza brasileira – é chocante que, em 2017, os seis brasileiros mais ricos tinham a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres. Por outro lado, a riqueza dos 50% mais pobres permaneceu quase a mesma, em baixíssimos 1% ou menos.
1. Alguns outros indicadores econômicos e sociais permitem aprofundar essa análise. A renda dos 50% mais pobres do país veio em uma tendência de aumento entre 1985 e 2001. Entre 2002 e 2013, essa renda teve um crescimento mais acentuado, totalizando 18% durante esses anos. Contudo, entre 2014 e 2023 houve uma queda, chegando finalmente aos mesmos níveis de 2002. Ao longo dos governos Lula e Dilma I, a diferença entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres diminuiu cerca de 35%. A taxa de pobreza cresceu entre 1985 e 1993, e de 1994 em diante veio numa tendência de queda permanente até 2023; não houve grandes variações entre 2012 e 2023 – apenas pequenos crescimentos durante a Crise e a pandemia. Entre 2002 e 2014 houve uma redução do contingente de miseráveis e pobres, de 53% para 30%, mas, nesse período, o contingente de pobres no Brasil seguiu relativamente estável, atingindo no final do governo Dilma 33% da população. Ou seja, nos governos do PT houve uma redução dos índices de miséria, mas de maneira geral, a pobreza se manteve estável. Nesses anos, houve um considerável aumento do poder de compra e da viabilidade para aquisição de bens de consumo (duráveis ou não), algo que contribuiu diretamente para aumentar o endividamento dos trabalhadores e favorecer a burguesia nacional e internacional. Desde os anos 1990, a mortalidade infantil e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) vêm melhorando progressivamente; assim como a expectativa de vida, que subiu 10 anos desde então.
1. Entre 1985 e 2024, a economia brasileira cresceu, mas a riqueza produzida pelos trabalhadores continuou muitíssimo mal distribuída. Em termos estruturais, praticamente não houve mudanças nas desigualdades de renda e riqueza. Lembremos que essas desigualdades são ainda piores porque, no Brasil, elas se somam a um alto nível de pobreza e a uma baixíssima mobilidade social. Por exemplo, em 2022, 60% da população brasileira vivia com menos de um salário mínimo (R$ 1212,00 à época) por mês. Em 2018, um estudo mostrou que, no Brasil, a persistência intergeracional de renda é quase o dobro da média dos países da OCDE; ou seja, a reprodução da desigualdade é muito mais forte por aqui do que nos países centrais. No Brasil, não só a distância entre ricos e pobres é gigantesca, mas os pobres são muito pobres e têm pouca chance de ascender na vida.
1. Em síntese, ao analisar os anos 1985 a 2024, é possível fazer comentários mais conclusivos. Por uma década (2003-2013) houve uma conjuntura internacional favorável que, somada a certas políticas sociais-liberais, melhoraram um pouco a renda dos de baixo, ganho este que se perdeu completamente já a partir de 2014 e assim se manteve depois. A própria “redução de desigualdade” ocorrida nessa década de melhorias se deu na relação entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres. Tendo em vista que o 1% mais rico não foi afetado, o que se conclui é que essa redução ocorreu internamente aos 99%, sem atingir as classes dominantes brasileiras. Houve redução da miséria, mas não da pobreza. Isto é, o bom mocismo conciliador do petismo – que seguiu a cartilha neoliberal, garantiu imensos lucros à burguesia e tentou “incluir os pobres no orçamento”, segundo seus próprios termos – não foi capaz de produzir ganhos duradouros aos proletários e camponeses brasileiros. Não houve sequer uma socialdemocracia comprometida com uma redução menos efêmera das desigualdades e as políticas públicas não se transformaram em reformas estruturais. Essa análise das desigualdades sociais brasileiras, que extrapola a conjuntura de curto prazo e toca em elementos estruturais, mostra que, para além dos discursos e apesar de certas diferenças (que podem mesmo ser relevantes), não houve grandes rupturas entre os governos FHC, Lula, Dilma, Temer e mesmo Bolsonaro, todos os quais contribuíram para manter a riqueza dos de cima às custas da pobreza dos de baixo. Mostra, enfim, que houve apenas pequenas alterações conjunturais, marcadas por fatores externos, sobretudo a Crise (“de 2008”), e por fatores internos. Dentre estes, a breve melhoria para as classes oprimidas, ocorrida entre 2003 e 2013, em razão de um ganho modesto de renda que, ainda que tenha feito diferença significativa para muitos trabalhadores, preservou completamente a riqueza da burguesia.
1. Como se viu, desde meados dos anos 1990, a conjuntura apresentou melhorias para a população em geral e para as classes oprimidas em particular. Isso é evidente nos casos da redução da mortalidade infantil, do aumento da expectativa de vida e do IDH (saúde, educação, renda) – mesmo que esses números variem muitíssimo entre ricos e pobres – e na tendência geral de redução da pobreza. Entretanto, um olhar crítico para esse quadro não pode se deixar confundir com esse “melhorismo” econômico-social. Ele existe, mas quando realmente se entende a situação material dos trabalhadores brasileiros, não há outra conclusão possível senão a de que ela é absolutamente inaceitável. Basta recordar, por exemplo, que mais da metade da população brasileira vive com menos de um salário mínimo ao mês (por pessoa), quando a necessidade básica é em torno de cinco salários mínimos (por família de quatro pessoas, com uma ou duas delas assalariadas). Enfim, as alternativas mais ou menos neoliberais, que priorizam mais ou menos o mercado privado – no limite, as alternativas mais ortodoxamente liberais ou até heterodoxamente desenvolvimentistas – são incapazes de solucionar os grandes problemas econômicos e sociais do Brasil.
** CIDADES, SERVIÇOS PÚBLICOS, CRIME ORGANIZADO E INDÚSTRIA DE TRANSFORMAÇÃO
1. Nas últimas quatro décadas, o Brasil tem continuado seu intenso processo de urbanização e, por meio dele, alterado a própria condição de suas cidades. Entre 1985 e 2020, as áreas urbanizadas do país praticamente dobraram, indo de 2,1 para 4,1 milhões de hectares – taxa de crescimento maior que aquela da população do país. A população vivendo em áreas urbanas passou de 66% para 87% – e aquela vivendo em áreas rurais passou de 34% para 13%. Ou seja, atualmente no Brasil, de cada 10 brasileiros, quase 9 vivem nas cidades. Junto a isso, houve uma expansão das regiões metropolitanas, das cidades médias e, de maneira bem mais impressionante, das periferias e favelas. Se as aglomerações populacionais se concentram mais no sudeste, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, os aumentos de áreas favelizadas – as quais, entre 1985 e 2020, cresceram em área o equivalente a três vezes o tamanho da cidade de Salvador – se concentram mais no norte e no nordeste, em cidades como Manaus, Belém e Salvador. Esse crescimento das cidades em geral, e das metrópoles em particular, deixa evidente, assim como no campo, as grandes questões sociais brasileiras.
1. As cidades brasileiras continuam a ser marcadas por concentração fundiária, privatização dos espaços públicos, especulação imobiliária, gentrificação e segregação espacial, separando centros de periferias e marcando geograficamente as desigualdades, não apenas de renda e riqueza, mas de gênero-sexualidade e raça-etnia. As regiões e os bairros periféricos continuam a concentrar trabalhadores que recebem os menores salários, com os maiores índices de precarização e desemprego, assim como as populações que possuem maiores dificuldades para o acesso aos serviços públicos.
1. Em função da urbanização, os problemas relacionados aos serviços públicos são mais visíveis nas cidades, ainda que também estejam presentes no campo, onde são agravados pelas grandes distâncias e pela falta de infraestrutura e recursos. Apesar de melhorias que ocorreram nos anos analisados, há problemas gigantescos em muitos desses serviços, cuja precarização tem sido estimulada com vistas às privatizações. Na saúde, os ataques permanentes ao Sistema Único de Saúde (SUS) estão resultando em falta de médicos, medicamentos e leitos, assim como em superlotações, demoras em atendimentos emergenciais e imensas esperas para consultas e exames. Na maioria das periferias urbanas e grandes centros há grandes demoras para conseguir consultas e/ou exames nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Os ataques à educação pública estão resultando em baixos salários para professores e funcionários, inúmeros problemas de infraestrutura, altos índices de evasão escolar, violência e discriminação, além de problemas curriculares. Em 2018, 30% da população brasileira era de analfabetos funcionais, situação que se mantinha ainda no primeiro semestre de 2025. O saneamento básico está longe de atender toda a população; em 2024, havia 90 milhões de brasileiros sem coleta e tratamento de esgoto, 32 milhões sem acesso à água potável e 20 milhões sem coleta de lixo. O transporte nas grandes cidades é muito desgastante. Atualmente, as pessoas gastam em média 2h por dia – ou seja, 21 dias por ano – em deslocamentos, com uma lógica privatizante do automóvel que se impõe. O transporte público é caro, insuficiente (veículos e linhas), lotado e demorado; em torno de 60% da população o avalia como ruim ou péssimo. Além disso, em regiões e cidades menores, assim como no campo, faltam linhas e veículos de qualidade. A circulação pela cidade, assim como o acesso à cultura e ao lazer, é inviável para setores cada vez mais amplos da população. A moradia é comumente precária e sem acesso à infraestrutura adequada. 16 milhões de pessoas vivem hoje em favelas, 4,5 milhões sequer possuem banheiro em suas casas e mais de 300 mil estão vivendo nas ruas. Essa realidade se complica ainda mais com o aumento dos problemas de saúde mental e da violência. Os índices de depressão e ansiedade têm subido perigosamente e chegaram, respectivamente, a 13% e 27% da população brasileira; de 1985 a 2022, a taxa de suicídio subiu 138%. A violência segue com uma tendência de aumento; entre 1985 e 2022, a taxa de homicídio em geral aumentou 45%, e a taxa de homicídio de jovens por armas de fogo mais do que dobrou.
1. Questão fundamental nas cidades que também passa pelo tema da violência é aquela do crime organizado e das facções criminosas. O aumento do encarceramento na ditadura militar a as deficiências do sistema penitenciário brasileiro foram os fatores que permitiram o surgimento das primeiras facções criminosas que ganharam dimensão nacional. Destaca-se o Comando Vermelho (CV), nascido em 1979 em um presídio de Angra dos Reis (RJ), que buscou acabar com as práticas violentas na penitenciária e organizar os detentos para a defesa e a fuga. Nos anos 1980, a facção se espalhou para favelas do Rio de Janeiro e depois se disseminou para outras regiões, se tornando a maior facção criminosa brasileira. A partir dos anos 2000, o CV passou a dividir o protagonismo com o Primeiro Comando da Capital (PCC), surgido em 1993 em uma penitenciária em Taubaté (SP), meses depois do Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram assassinados pela PM. Em poucos anos, o PCC se expandiu por todo o estado e, com uma estrutura mais organizada, passou a controlar rotas do tráfico, estabelecer alianças com facções em outros estados e ampliar esse domínio para o tráfico internacional de drogas e armas. Distintamente de outras facções, o PCC ampliou seu domínio com o controle da violência – nos anos 2020, o estado de São Paulo vem tendo o menor índice de homicídios do país, em parte devido à violência controlada pela facção nos bairros. Com forte hierarquia, disciplina interna e códigos de conduta, facções como o PCC, CV e outras estabeleceram amplo controle sobre presídios e periferias de grandes e médias cidades nos anos 2000 e 2010, incluindo atividades como roubo de cargas, pirataria, extorsão e lavagem de dinheiro. Nos anos 2010, o crime organizado também se expandiu para regiões como a Amazônia, unindo a exploração das rotas fluviais do tráfico de drogas à exploração do garimpo ilegal e o contrabando de ouro e madeira, além do tráfico de animais. Em 2022, a taxa de homicídios na região da Amazônia Legal era 50% maior do que a média do país. Quadro que avançou sobre povos indígenas e ribeirinhos amazônicos, e também sobre as capitais da região da Amazônia Legal. Nos anos 2020, praticamente todos os estados brasileiros têm presença de facções do narcotráfico, com forte crescimento também no nordeste.
1. O PCC se tornou a maior facção criminosa da América do Sul, estabelecendo amplo domínio territorial e controle sobre rotas do tráfico para Europa, África e Ásia, com alianças estabelecidas com cartéis latino-americanos e máfias europeias e asiáticas. Possui atividades criminosas que movimentam atualmente cerca de US$ 1 bilhão por ano e conta com cerca de 40 mil integrantes no território nacional e em mais de 20 países. A essas facções como o PCC e o CV se somaram nos anos em questão as milícias, que ficaram conhecidas principalmente no Rio de Janeiro. Esses grupos são formados por policiais e ex-policiais, com domínio de territórios, cobrança de taxas de segurança e outros serviços – como gás, TV e internet, transporte clandestino, etc. – avançando sobre áreas de facções tradicionais. O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 2018, é um dos episódios relacionados à atuação das milícias cariocas, que evidencia a relação delas com políticos eleitos e as próprias forças de segurança do Estado.
1. Observando as macrotendências da composição produtiva do PIB nos anos em questão, há dois aspectos que se destacam. Primeiro, um crescimento dos setores de serviços e comércio, cuja representação na economia brasileira é cada vez mais significativa. Segundo, uma diminuição da indústria de transformação frente ao conjunto da economia brasileira, o que se evidencia desde os anos 1980. A indústria de transformação é o setor da indústria que transforma matérias-primas em produtos manufaturados ou semiacabados (alimentos e bebidas, têxtil e vestuário, metalúrgica, automobilística, farmacêutica, eletroeletrônica, mecânica etc.), e que se diferencia da “indústria” extrativa (mineração, petróleo e extração vegetal) e da “indústria” da construção. Com presença concentrada em cidades e centros urbanos, a indústria de transformação brasileira teve uma queda muito significativa, quando se leva em conta sua representação no PIB. Entre 1987, quando esse processo de reprimarização começou a se acentuar, e 2023, essa representação (em preços correntes) caiu 60%. A indústria de transformação deixou de representar 27% do PIB para chegar a pouco mais de 10%. Quando se observa a participação dessa indústria brasileira no mundo, a queda é ainda maior, e chega, ao longo desse período, próxima dos 80%. As consequências desse processo são muito problemáticas. Com ele, se perdem não apenas a produção de maior valor agregado, que é aquela que mais produz riqueza em função da tecnologia e do conhecimento, mas também os empregos que, de maneira geral, possuem bom nível de formalidade, remuneração e condições de trabalho.
** CAMPO, REPRIMARIZAÇÃO E AGRONEGÓCIO
1. Ainda de acordo com as macrotendências da composição produtiva do PIB nas últimas quatro décadas, constatamos, como contraponto à mencionada perda de espaço da indústria de transformação, a reprimarização da economia do Brasil, caracterizada pelo ganho de espaço de setores como agricultura, pecuária e mineração. Além disso, tem havido um fortalecimento do agronegócio, com impactos expressivos na recente condição do campo brasileiro. A agropecuária e a “indústria” extrativa (que inclui a mineração) tiveram um aumento significativo em termos de participação no PIB. Somente entre 1995 e 2020, a representação de ambas (somadas) cresceu 50%; elas representavam 6,5% e passaram a 9,7% do PIB. Muito estimulada pelo neoliberalismo, essa ênfase nos produtos primários, quando combinada à retração da indústria de transformação, resulta na reprimarização da economia brasileira, a qual se acelerou a partir de 2015, com as crescentes renúncias fiscais ao agronegócio. Não é coincidência que, entre as 10 empresas com maior faturamento no Brasil em 2024, excluindo os bancos, estejam empresas vinculadas a esse setor primário da economia: Petrobrás (petróleo), JBS (carne), Raízen (açúcar/combustível) e Vale (mineração).
1. Entre 1985 e 2024, o campo brasileiro passou por mudanças significativas. Os antigos latifúndios improdutivos, de propriedade de latifundiários e coronéis, têm se tornado – desde a ditadura militar, mas, especialmente, a partir dos anos 1990, com o avanço do agronegócio sob incentivo de todos os governos que se seguiram –, cada vez mais, latifúndios produtivos, controlados pelo capital internacional, com os antigos proprietários se tornando sócios minoritários ou mesmo gestores desse capital. Hoje, o campo no Brasil mescla esses dois modelos em transição. Por um lado, persistem ainda muitos latifúndios improdutivos – atualmente, mais de 120 milhões de hectares (recordemos que cada hectare equivale a um campo de futebol) nessa condição – o que significa um terço de todas as áreas agricultáveis do país –, ou seja, sem qualquer produção. Por outro lado, estão os latifúndios do agronegócio, que são controlados por três dezenas de corporações internacionais, muitas das quais vinculadas a bancos estrangeiros, que possuem papel determinante na produção, na tecnologia e nos insumos agrícolas. O que se mantém em ambos os casos é a altíssima concentração de terras, que continuou avançando: entre 1985 e 2017, ela cresceu 8%. Hoje, basicamente 1% dos proprietários controlam quase metade das terras do país. Em contraponto, metade dos proprietários rurais, que possuem áreas menores que 10 hectares, controlam apenas 2% das terras brasileiras.
1. O agronegócio está adquirindo cada vez mais relevância no Brasil, com sua produção e sua produtividade aumentando constantemente. Entre 2000 e 2023, suas exportações se multiplicaram por mais de 8 vezes, passando de US$ 20 bilhões para US$ 167 bilhões. Nesse mesmo período, somente com a produção de grãos, o aumento de produtividade chegou a 70%; ao passo que a área ocupada com os grãos cresceu de 38 para 80 milhões de hectares, a produção cresceu de 83 para 299 milhões de toneladas. No entanto, esses resultados não devem nos iludir. Esse modelo de agronegócio, baseado no latifúndio e na monocultura para exportação, é péssimo para os trabalhadores, para o meio ambiente e para a própria situação do Brasil no mundo. Antes de tudo, é bom lembrar que a produção do agronegócio brasileiro é quase toda voltada às exportações. Em muitos casos, ela se destina apenas à alimentação de animais de outros países. Ademais, grande parte da comida que chega aos nossos pratos é produzida pela agricultura familiar e pela agricultura camponesa do Brasil. De modo que não “é o agro que alimenta o Brasil”. Na verdade, ele afasta o país da soberania alimentar e não atende as necessidades do povo brasileiro, mas do capital internacional. Inclusive, essas exportações, ainda que contribuam com a balança comercial, não são muito expressivas. Em sua totalidade, incluindo os produtos do “agro” e todos os outros, elas representam apenas em torno de 10% do PIB brasileiro.
1. Além disso, no Brasil, o agronegócio vive às custas do Estado. Ele usufrui amplamente da pesquisa e do desenvolvimento estatal e não seria “tech” sem a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), cujas pesquisas agropecuárias estatais, imprescindíveis para o desenvolvimento tecnológico desse setor, custaram ao Estado brasileiro R$ 3,5 bilhões, apenas em 2023. O agro também não sobreviveria sem outras iniciativas estatais como o Plano Safra – que fornece crescentes recursos para o financiamento da produção agrícola, de infraestrutura e comercialização, com foco principalmente nos grandes produtores e empresas – e as isenções fiscais, subsídios de juros e seguros. Alguns anos atrás, quando a agropecuária representava 8% do PIB, ela era responsável por menos de 2% da arrecadação total de tributos, devido a essas isenções, e por 3% dos empregos formais, devido à precarização de grande parte do setor. A título de comparação, naquela ocasião, a indústria, que representava 13% do PIB e era responsável por mais de 30% dos tributos e 15% dos empregos formais. Na realidade, é por meio desse mecanismo de “incentivos” que o Estado brasileiro “compra” seus superávits fiscais e, assim, garante o dinheiro para o pagamento dos juros da dívida pública. De maneira que também fica evidente que não “é agro que leva o Brasil nas costas”. Enfim, essa produção de baixo valor agregado torna o Brasil refém dos preços das commodities, definidos por corporações internacionais, e, assim, reforça a dependência e a subordinação do país ao imperialismo e às grandes empresas estrangeiras.
1. Esse modelo de agronegócio possui ainda outros problemas. Ele emprega pouco, conta com empregos de baixa qualidade, prejudica os camponeses, destrói o meio ambiente, compromete a saúde humana e produz desequilíbrio ecológico. Vejamos. Em 2016, somente 9% da população brasileira apta para o trabalho estava ocupada nesse setor. Trata-se de um índice baixo, que vem em tendência de queda porque parte do ganho de produtividade do agronegócio tem sido conseguida com a mecanização e, por consequência, com as demissões massivas. Entre 2006 e 2017, enquanto as exportações do agronegócio dobraram, os empregos nesse setor diminuíram quase 10%. Em 2015, 60% de sua força de trabalho estava precarizada, terceirizada e superexplorada; 79% de seus trabalhadores recebiam até 1,5 salário mínimo e quase 3 milhões de famílias camponesas viviam na pobreza absoluta, com renda familiar de meio salário mínimo, cumprindo papel de exército de reserva. Outra parte desse ganho de produtividade vem sendo conquistada com a utilização massiva de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes transgênicas, profundamente prejudiciais para as pessoas e o meio ambiente. Apenas em 2022, o Brasil utilizou um bilhão de litros desses venenos e as sementes transgênicas dominaram a produção de soja, milho e algodão. Aliás, o agronegócio tem sido responsável por mais de 70% de todo o consumo de água no país e pela expansão da fronteira agrícola, se apropriando privadamente de bens da natureza e de terras de comunidades, por meio dos crimes contra o meio ambiente (avanço para os biomas, grilagem, queimadas), as populações tradicionais (expulsão violenta de indígenas e quilombolas, invasão de reservas) e os camponeses (inviabilizando a vida no campo e os expulsando para as cidades).
** CONFORMAÇÃO DO CAMPO POLÍTICO CONTEMPORÂNEO
1. Ao discutir de maneira mais específica o campo político brasileiro, consideramos necessário retornar brevemente ao período que antecedeu aquele que é o foco primordial das análises deste documento. Isso porque, durante aquele período, se estabeleceram marcos fundamentais desse campo, além de uma lógica político-partidária que, juntamente com outros acontecimentos, são relevantes para a compreensão das últimas quatro décadas da política institucional brasileira.
1. Elemento decisivo na conformação contemporânea desse campo foi a ampliação da parte da população que teve direito ao voto, e que efetivamente passou a votar nas eleições. Os marcos institucionais mais destacados nesse sentido foram: direito de voto das mulheres (1932), direito de voto dos analfabetos (1985) e direito de voto das pessoas com 16 e 17 anos (1988). Em relação ao percentual da população que efetivamente votou nas eleições – e levando em conta que menores de 16 anos e pessoas em alguns outros casos não têm permissão para votar no Brasil –, houve, ao longo do século XX, um aumento expressivo de participação: ela saiu de 4% em 1933 para 16% em 1945; depois para 30% em 1982, 58% em 1989 e 70% em 2002. Contudo, apesar das inovações institucionais e desse aumento de participação, característicos das democracias de massa do pós-guerra, o sistema político brasileiro conservou elementos mais antigos, como o clientelismo e o coronelismo, principalmente nas regiões rurais e no interior do país.
1. De 1945 em diante, com exceção dos anos de ditadura militar, o campo político-partidário no Brasil se caracterizou pela formação de três centros políticos, que deram forma às relações políticas de dominação em contextos concretos. A competição eleitoral normalmente confluiu para esses três centros, compostos por três partidos políticos relacionados à estrutura de classes brasileira. Uma primeira agremiação, mais à direita, vinculada aos setores intermediários ou médios e às oligarquias rurais; uma segunda agremiação, mais à esquerda, vinculada ao proletariado urbano; e uma terceira agremiação, também mais à direita ou à centro-direita, vinculada às zonas agrárias e ao interior do país. Esta última cumprindo papel de pivô móvel, com volatilidade de alianças, se deslocando desde a centro-esquerda até extrema-direita conforme a necessidade, e ora apoiando a primeira, ora a segunda agremiação. Entre 1945 e 1964, esse papel foi cumprido, respectivamente, pela União Democrática Nacional (UDN), pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e pelo Partido Social Democrático (PSD). De 1994 a 2014, respectivamente, pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Essa disputa entre forças políticas se expressou no imaginário eleitoral (mas não na realidade social) como uma oposição entre um “partido dos pobres” e um “partido dos ricos”, cuja alternância no governo foi apoiada pela terceira agremiação de perfil conservador.
1. Em alguns momentos, essa dinâmica das três forças em jogo sofreu realinhamentos. Um deles ocorreu no início dos anos 1960, quando o PTB, sob a liderança de João Goulart (Jango) e sua proposta das Reformas de Base, conquistou apoio não apenas de trabalhadores urbanos, mas também de trabalhadores rurais e do interior. Entretanto, o golpe militar de 1964 impediu a consolidação desse realinhamento, que aumentava consideravelmente a força social de um partido mais vinculado aos interesses populares. Com a dissolução de partidos promovida pela ditadura militar, a qual atingiu diretamente o PTB, foi o MDB/PMDB que passou a assumir o papel de “partido dos pobres”, mais vinculado aos setores populares; e foi a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) que passou a cumprir o papel de “partido dos ricos”, com apoio nas zonas rurais e no interior do país. Tendo em vista o desgaste interno do próprio regime militar e certa oposição popular, ocorreu a reabertura democrática. Tal reabertura ocorreu baseada na conciliação de classes e numa pactuação com os militares, que não apenas tutelaram o processo, mas garantiram que não houvesse punição a seus inúmeros e bárbaros crimes. Isso incluía até o setor mais delinquente dos militares, encabeçado por Sylvio Frota; mesmo depois da derrota para Ernesto Geisel, esse setor continuou contando com certo respaldo e cumplicidade entre os militares.
1. Politicamente, foram as reformas de 1979 que começaram a distensionar o regime. Elas não resultaram diretamente de mobilizações sociais, mas desse processo de conciliação e pactuação. Tiveram como resultado a liberalização do Estado militar, promovida de cima para baixo, e estabeleceram, dentre outras medidas, o pluripartidarismo, as eleições diretas para governos estaduais e municipais, além da ampliação da liberdade de expressão. A Lei Orgânica de dezembro de 1979 permitiu a criação de novas agremiações partidárias. As primeiras eleições, realizadas em 1982, definiram as forças político-partidárias daquele momento. O partido com maior representação foi o Partido Democrático Social (PDS), herdeiro direto do ARENA da ditadura, que conquistou por volta de 50% dos cargos de governador, senador e deputado. Ele foi seguido pelo PMDB, que elegeu cerca de 40% desses cargos. Os 10% restantes ficaram, em ordem decrescente, com Partido Democrático Trabalhista (PDT), PTB e PT. Essa força do PDS teve continuidade em 1985, quando o partido garantiu mais da metade dos representantes no colégio eleitoral que elegeu, indiretamente, Tancredo Neves. A escolha desse nome se explica por uma aposta das classes dominantes em uma alternativa conciliadora e moderada, que não promovesse “revanchismos” contra os militares. Além disso, esses últimos anos da ditadura foram marcados pela retomada de força social de diversos setores populares, que passaram a se reorganizar e se expressar, tanto em mobilizações e lutas, quanto em espaços institucionais, particularmente nos municípios.
** MARCOS GOVERNAMENTAIS NOS CINCO PERÍODOS DA HISTÓRIA RECENTE
1. Recordemos que, anteriormente, dividimos a história do Brasil recente em cinco períodos. Em cada um deles, há marcos relacionados aos governos de turno que contribuem com a análise em questão. O primeiro período, “Transição tutelada, crise e inflação (1985-1990/4)”, possui como marcos os governos Sarney e Collor (1985-1992); o segundo período, “Implantação e consolidação do neoliberalismo (1990-2002)”, possui como marcos os governos Itamar e FHC (1992-2002). Como o estabelecimento desses períodos não é exclusivamente político, há certas sobreposições. Porque, de um lado, a crise e a inflação do primeiro período se estendem até o governo Itamar e, de outro, o neoliberalismo do segundo período já havia se iniciado com as aberturas do governo Collor. O terceiro período, “Tentativa de conciliação do neoliberalismo com políticas sociais ou social-liberalismo (2003-2015)”, possui como marcos os governos de Lula e Dilma (2003-2016), sem perder de vista que o período que antecedeu o impeachment/golpe praticamente não contou com a gestão federal do PT. O quarto período, “Nova crise, golpismo e neoliberalismo em disparada (2016-2022)”, possui como marcos os governos Temer e Bolsonaro (2016-2022). O quinto período que se inicia, “Frente Ampla entre o social-liberalismo e o neoliberalismo (2023- )”, possui como marco o governo Lula-Alckmin (2023-). A seguir, retomaremos alguns elementos relevantes da história política brasileira relacionados a esses marcos governamentais e aos setores e classes sociais a eles relacionadas.
** GOVERNOS SARNEY E COLLOR (1985-1992)
1. O governo Sarney (1985-1990), que assumiu em função da morte de Tancredo, representou, conforme já apontado, a escolha das classes dominantes e dos militares pela abertura democrática e por uma transição conciliada e segura, que não escapasse à sua própria tutela. A eleição indireta que elegeu Tancredo e Sarney separou os militares que queriam a continuidade do regime militar, os quais apoiaram majoritariamente a candidatura derrotada de Paulo Maluf, dos militares que defendiam uma abertura “lenta, gradual e segura”. Dentre os setores e classes sociais que apoiaram esse governo, estão: grupos vinculados aos militares – principalmente aqueles que defendiam a abertura –, que queriam fugir das punições e assegurar espaço na nova institucionalidade; grandes latifundiários vinculados ao agronegócio, que também faziam parte de oligarquias políticas regionais; burguesia industrial, que tinha interesses na manutenção da ordem e em políticas que favorecessem o setor produtivo; intelectuais e jornalistas liberais, que apoiavam uma transição democrática pacífica. Esse governo operou em uma conjuntura de crise, inflação e ajuste recessivo, sob influência do FMI e com fortes agitações sociais. As eleições de 1986 marcaram o crescimento expressivo do PMDB de Sarney, que suplantou a força do PDS e se estabeleceu hegemonicamente no país. Naquela ocasião, o PMDB conquistou nada menos que quase todos os cargos de governador de estado, mais de dois terços do Senado e mais da metade do Congresso. Esse crescimento consolidou o partido como “pivô móvel” das disputas eleitorais nacionais, usufruindo tanto da ampliação de capilaridade – com maior presença e influência do partido em interiores, zonas rurais e menos desenvolvidas do Brasil –, quanto de práticas anteriores que marcavam essas regiões, tais como o clientelismo e o coronelismo. Foi durante o governo Sarney que a Constituinte se estabeleceu e que a Constituição de 1988 foi promulgada.
1. O governo Collor (1990-1992) marcou o início da implantação do neoliberalismo no Brasil, num momento em que esse projeto estabelecia sua hegemonia entre as classes dominantes do país. Para isso, foi fundamental o apoio de setores expressivos do grande e do médio capital industrial, de partidos políticos conservadores e até de frações do sindicalismo, como no caso da recém fundada Força Sindical. O apoio eleitoral a Collor se explica por um duplo movimento: ao passo que havia uma queda na renda de parte significativa da população brasileira, ocorria também uma dispersão dos partidos populares. Por um lado, setores menos precarizados do proletariado, em geral composto por trabalhadores assalariados de grandes empresas, apoiavam uma esquerda mais combativa, expressada pelas candidaturas de Lula e Leonel Brizola. Por outro, setores mais precarizados do proletariado – composto por trabalhadores autônomos, com maior instabilidade, insegurança, com menores salários e menos direitos – defendiam mudanças graduais, sem desestabilização da ordem, e demonstravam mais hostilidade às greves; muitos desse setor preferiam Collor. Em termos políticos, as classes dominantes ainda não tinham conseguido forjar o consenso político necessário para sua dominação, o que resultou no processo de impeachment de Collor, que foi afastado do governo porque perdeu apoio, tanto dessas próprias classes dominantes quanto de amplos setores da população. A postura e a conduta do presidente implicaram conflitos irreconciliáveis com o Congresso, visto que Collor dedicava cargos e recursos apenas a seu próprio grupo, e se recusava a adotar aquilo que seria chamado de “presidencialismo de coalizão”, tema que discutiremos adiante. Tais comportamentos também comprometeram a relação com as empresas apoiadoras e financiadoras, que não conseguiam mais controlar o governo e ainda eram constrangidas a pagar “pedágios” a ele. Enfim, o governo perdeu apoio de parte considerável dos brasileiros com o confisco da poupança, que foi visto como abuso de poder econômico e terminou legitimando o processo de impeachment.
** GOVERNOS ITAMAR E FHC (1992-2002)
1. O governo Itamar Franco (1992-1994) se caracterizou como um governo de coalizão, que tentou forjar um consenso político em torno do enfrentamento da inflação e de um projeto econômico que agradasse heterodoxos e ortodoxos. Sua realização mais expressiva foi a implantação do Plano Real. Por uma parte, esse governo defendeu empresas estatais estratégicas, como a Petrobrás, e promoveu medidas desenvolvimentistas, principalmente relacionadas ao setor industrial. Além disso, adotou uma postura pragmática nas relações internacionais, fortalecendo o Mercosul. Por outra parte, esse governo não apenas estabeleceu, por meio do Plano Real, as condições para que o neoliberalismo se consolidasse no país, mas também avançou em medidas que favoreceram o capital internacional e as privatizações. Ele aumentou de 40% para 100% a possibilidade de participação do capital estrangeiro em privatizações, e apostou nas privatizações de siderúrgicas, como a CSN e a Açominas, de petroquímicas, como a Copesul e a PQU, e da Embraer, vinculada ao setor aeroespacial e de defesa.
1. Os governos FHC (1995-2002) representaram um projeto político de instituições, setores e classes dominantes do Brasil e do exterior que, alinhado aos interesses do imperialismo estadunidense, consolidaram o neoliberalismo no país e romperam com as tentativas anteriores de mediação entre iniciativas mais e menos liberalizantes. Expressando um novo arranjo no jogo de forças institucional, assim como uma mudança de perspectiva das classes dominantes brasileiras, esses governos trabalharam para promover uma integração dependente e subordinada do Brasil aos EUA e ao sistema corporativo e financeiro global, e também para viabilizar um conjunto de políticas neoliberais, que incluíram: maior abertura de mercado, financeirização, privatizações, flexibilização das relações de trabalho, ataques a direitos e conquistas sociais e medidas de austeridade. Isso foi feito por meio de “reformas” do Estado, levadas adiante de cima para baixo, que incluíam reformas econômicas e legislativas, com destaque para as emendas constitucionais, e que foram legitimadas por discursos tecnicistas. FHC, seu partido e seus aliados trabalharam para eliminar aquilo que, para eles, eram entraves desenvolvimentistas ou resquícios institucionais de um desejado Estado de bem-estar social que, apesar de nunca ter existido no país, se expressava como intenção futura em partes da Constituição de 1988. A eleição de FHC em 1995 evidenciava mudanças relevantes no seio de seu partido, o PSDB, que havia sido criado em 1988 como uma dissidência socialdemocrata do PMDB, mas que rapidamente passara a adotar posições econômica e socialmente neoliberais. Entre os anos 1990 e 2014, o PSDB fez o mencionado papel de um dos três centros da política partidária nacional, representando a agremiação entre a centro-direita e a direita, que se enfrentava com um PT de centro-esquerda, e que encontrava no PMDB um pivô, também de direita, porém mais fisiológico.
1. Dentre os setores e as classes que subsidiaram os governos FHC, estão banqueiros, latifundiários do nordeste, burguesia industrial do sudeste, parte significativa dos setores médios urbanos e quase a totalidade da grande imprensa; dentre as instituições mais importantes está o FMI. O arco de alianças do PSDB no governo federal incluía, principalmente, o Partido da Frente Liberal (PFL) – dissidência do PDS fundada em 1985, representando parte da direita conservadora e liberal brasileira; e, de maneira menos relevante, o PTB, o PMDB e o Partido Progressista Brasileiro (PPB). Essas alianças, operadas por meio do chamado presidencialismo de coalizão, possibilitaram um apoio muito expressivo no Congresso, com condições de aprovar não somente leis ordinárias, complementares etc. e medidas provisórias, mas também emendas constitucionais. Essa força no Congresso persistiu até depois da saída de FHC do governo. O PSDB e seus aliados continuaram a atacar a Constituição para fortalecer o neoliberalismo, como no exemplo da Emenda Constitucional 40, proposta por José Serra e aprovada em 2003, a qual liquidou o artigo 192 que regulamentava o sistema financeiro e controlava as taxas de juros do país.
1. Levando em conta os dois mandatos do governo FHC, alguns destaques podem ser feitos. No primeiro mandato (1995-1998), se destacaram: a consolidação do Plano Real, com controle da inflação e estabilização econômica; o avanço nas privatizações, com a venda de estatais como Telebrás, Vale do Rio Doce e bancos estaduais; o reforço das medidas que forneceram condições para um fortalecimento do capital estrangeiro e do mercado privado brasileiro; a aprovação da reeleição presidencial, num processo recheado de corrupção. Dentre os ataques aos trabalhadores, dois se sobressaíram. O primeiro foi a repressão da greve dos petroleiros em 1995, greve esta que, vale lembrar, contou com participação anarquista. Realizada pelo exército à serviço de FHC, essa repressão teve como objetivo quebrar a espinha dorsal do setor do sindicalismo que resistia ao avanço neoliberal. O segundo foi a Reforma da Previdência de 1997/1998, que acabou com a aposentadoria por tempo de serviço, introduziu idade mínima para aposentadoria no setor público, reduziu a integralidade para novos servidores e possibilitou a participação das entidades sindicais nos conselhos dos fundos de pensão. No segundo mandato (1999-2002), se destacaram: a adoção do regime de câmbio flutuante, graças a uma desvalorização do real em relação ao dólar operada de modo calculado depois da reeleição em 1998; a continuidade das privatizações, sobretudo no setor de energia e em bancos estaduais que restavam; a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, para controlar os gastos do Estado e garantir pagamentos da dívida; a crise energética que culminou no Apagão de 2001. Durante o segundo mandato, Lula ganhou força na oposição. Contudo, era já um contexto em que o PT e a maioria da esquerda brasileira se deslocavam ao centro, substituíam perspectivas classistas por vagos conceitos de cidadania, se aburguesavam e se integravam cada vez mais à ordem dominante.
** GOVERNOS LULA E DILMA (2003-2016)
1. Os governos Lula (2003-2010) consolidaram a força do projeto social-liberal petista para o governo federal, se baseando, como já discutimos, numa tentativa de conciliar o neoliberalismo com políticas desenvolvimentistas e sociais. Em termos políticos, esse projeto não apenas potencializou nacionalmente o petismo, mas produziu no seio dele um outro fenômeno, o “lulismo”, que se transformou em algo maior que o próprio PT. A candidatura de Lula em 2002 e a “Carta ao Povo Brasileiro” simbolizaram bem esse conciliacionismo, que se expressou na própria chapa, contando com Lula e com o vice José Alencar, um empresário vinculado ao Partido Liberal (PL), agremiação abertamente de direita. Era uma coalizão pautada na conciliação de classes que, além de apoio empresarial, mantinha o compromisso de não interferir no processo de acumulação de capital econômico, incluindo o rentismo, e tampouco promover reformas que desestabilizassem a ordem política e social. As metas para acabar com a fome e diminuir a pobreza não significavam enfrentar, de fato, a desigualdade social brasileira. As iniciativas para colocar esse projeto conciliador em prática envolveram, além das já apontadas continuidades do neoliberalismo que havia sido consolidado sob FHC, um conjunto de políticas mediadoras: tanto aquelas desenvolvimentistas na economia, quanto aquelas relacionadas à assistência social. Tal foi o intuito de várias políticas implementadas nos dois mandatos de Lula, tais como Bolsa Família, aumento de salário mínimo, expansão do crédito, Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Minha Casa Minha Vida etc. Como mostramos, tais políticas, promovidas num contexto internacional favorável devido ao preço das commodities, permitiram que setores mais pobres e precarizados da população efetivamente melhorassem de vida, ainda que por um período breve, já que, sem reformas mais estruturais e duradouras, em meados dos anos 2010 tais ganhos já haviam sido completamente perdidos.
1. Outro elemento fundamental desses dois mandatos foi a mudança da base de apoio do PT e de Lula, assim como o surgimento daquilo que alguns analistas chamaram de lulismo. Historicamente, o eleitorado do PT tinha um perfil tipicamente urbano e mais escolarizado, composto por setores médios e trabalhadores vinculados a sindicatos e movimentos sociais, apesar da destacada participação dos setores vinculados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Antes de ascender ao governo federal, o projeto social-liberal petista havia conquistado apoio de setores da burguesia industrial, agrária, financeira e comercial. Mas, ao longo dos primeiros anos de governo, Lula conquistou outros setores da população, que haviam sido beneficiados pelas mencionadas políticas mediadoras. Essa mudança ou realinhamento da base de apoio do PT ocorreu entre 2003 e 2006, quando setores mais precarizados e menos organizados do proletariado e do campesinato, localizados em regiões mais distantes dos centros do país, passaram a apoiar o governo petista. Em 1997, o PT tinha 3,3 milhões de simpatizantes de baixíssima renda e, em 2006, esses simpatizantes saltaram para 17,6 milhões – o PT assumiu mais explicitamente a feição do mencionado “partido dos pobres”. Esse processo foi reforçado pela precarização do trabalho e pela redução nas taxas de sindicalização que aconteciam nacionalmente. Tal foi a criação do “lulismo”, que alçou Lula a uma posição de maior envergadura e força social que o próprio PT, atraindo para si eleitores de centro e mesmo de direita. Grosso modo, é a conciliação entre esse apoio popular e os imensos lucros da burguesia que explica as seguidas reeleições do PT para a presidência da república. Em direção contrária, de oposição ao petismo e ao lulismo, houve uma aproximação entre os setores das classes dominantes que se mantinham distantes do PT e parte dos setores médios brasileiros, particularmente aqueles interessados no rentismo (aplicação em títulos), na valorização da moeda (compras e viagens ao exterior) e na precarização da mão de obra (contratação de funcionários sem direitos e com baixos salários). Há uma tendência geral entre o primeiro e o segundo mandato de Lula, ao longo dos quais houve considerável impacto das denúncias de corrupção em torno do chamado Mensalão, em 2005. Por uma parte, o PT perdeu apoio de setores médios mais escolarizados, em especial do sudeste e do sul; por outra, o partido ganhou apoio de trabalhadores mais pobres, menos escolarizados, em particular do nordeste e do norte do país.
1. Os governos Dilma (2011-2016) se caracterizaram pela tentativa de manutenção do projeto social-liberal petista, mas num contexto de agravamento dos efeitos da Crise de 2008. Políticas neoliberais continuaram a ser implementadas, como as parcerias público-privadas para a concessão de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, e toda a gestão de Levy ao longo de 2015. Mas o governo também promoveu um ensaio desenvolvimentista – que não teve maiores consequências, conforme argumentaremos – e políticas sociais/assistenciais. Tais foram os casos dos incentivos à indústria, com as desonerações da folha e as reduções nas tarifas de energia; dos grandes investimentos em infraestrutura, com o PAC 2, ao longo de todo o primeiro mandato; do Programa Brasil Sem Miséria, que ampliou o Bolsa Família a partir de 2011; do programa Mais Médicos, que ampliou o acesso à saúde em interiores e periferias de 2013 em diante. Dilma também promoveu em seus mandatos um “ensaio republicano”, visando combater determinados círculos de corrupção no interior do Estado, algo que gerou uma oposição em bloco no Congresso. Mas ambos os mandatos de Dilma tiveram que enfrentar crises. Não apenas aqueles efeitos econômicos da Crise de 2008, que atingiram esses governos desde o começo, mas também outras. Foram os casos do julgamento do “Mensalão” que, em 2013, condenou figuras do primeiro escalão do PT, como José Dirceu e José Genoíno, assim como dos efeitos das manifestações de 2013 que, como detalharemos mais à frente, ainda que não tenham atacado diretamente o governo, acabaram atingindo a aprovação de Dilma – a qual, naquele ano, caiu de 57% para 30% –, evidenciando muitas insatisfações e reconfigurando profundamente o cenário político brasileiro. Também foi o caso das repercussões da Operação Lava Jato que, criada em 2014, sob o pretexto de combater a corrupção, terminou instrumentalizada por uma política neoliberal, de apoio implícito ao PSDB e subordinada ao imperialismo estadunidense, que se converteu no lavajatismo. Esse “tenentismo togado” contribuiu ativamente para fortalecer o antipetismo e enfraquecer o PT, tendo protagonismo na derrubada de Dilma e na prisão de Lula. Ele também mobilizou e radicalizou a direita brasileira, que logo abandonaria o PSDB e conformaria a base do bolsonarismo.
1. Em meio a esse cenário de crises, a reeleição de Dilma em 2014 deixou claro, novamente, a dificuldade de os opositores vencerem o lulismo nas disputas eleitorais presidenciais. Afinal, o PT ainda usufruía ainda daquele grande apoio de setores mais pobres e periféricos da população. Frente a esse cenário, tanto o lavajatismo quanto o PSDB e o PMDB (que em 2017 trocará de nome para Movimento Democrático Brasileiro, MDB) passaram a adotar crescentes expedientes golpistas. Aécio Neves não reconheceu os resultados eleitorais de 2014 e Michel Temer vazou uma carta anunciando a ruptura com o governo nos fins de 2015. Sinalizamos antes que a derrubada de Dilma, em 2016, em termos econômicos, significou a ruptura com a conciliação petista em prol de uma aceleração neoliberal. Mas houve outros elementos, de natureza política e social, que contribuíram com esse fato, dentre os quais uma oposição interna e externa aos mencionados “ensaio desenvolvimentista” e “ensaio republicano”. O PMDB encabeçou interna e institucionalmente os esforços para retirar Dilma da presidência, e utilizou para isso o projeto “Ponte para o futuro”, de 2015, em que formalizava a intenção dessa retomada radicalizada do neoliberalismo. Conseguiu atrair setores da burguesia brasileira, que viram nesse projeto e no próprio rentismo que prometia potencializar a possibilidade de retomar ou aumentar seus lucros sem grandes riscos. Não havia, para esses setores, maiores interesses em políticas industrializantes. e o PSDB aderiu a esse movimento contra Dilma por ver nele uma chance de ganhar força e retornar ao governo federal. A direita fisiológica (“centrão”) se somou para minar esforços republicanos do governo que tentavam desmantelar esquemas de clientelismo e corrupção. Esses expedientes golpistas foram reforçados por agentes nacionais e internacionais vinculados ao imperialismo dos EUA e aos interesses das grandes corporações internacionais. Caso exemplar nesse sentido foi o do pré-sal, que havia sido descoberto no governo Lula e cujo marco regulatório de 2010 continuava a ser defendido por Dilma. A proposta era de um modelo de partilha, e não de concessão, em que a Petrobras seria a única operadora e o petróleo extraído seria majoritariamente da União, subsidiando a destinação de amplos recursos para a saúde e a educação. Isso reforçou a oposição ao governo por parte de forças e agentes entreguistas (Lava-Jato, Temer, empresas, lobbies, partidos, imprensa etc.), que defendiam os interesses de empresas e países estrangeiros. Não à toa, com a queda de Dilma, esse marco regulatório foi imediatamente modificado, ainda em 2016, permitindo a exploração do petróleo por parte das multinacionais estrangeiras. Nessa oposição a Dilma também se engajaram setores médios e mesmo das classes oprimidas, por influência de dois fatores. Primeiro, o lavajatismo, cujas denúncias de corrupção do PT eram diariamente reproduzidas na grande imprensa e pautavam crescentes manifestações de rua. Segundo, pelo sentimento de traição de parte da base petista, em função de Dilma ter descartado o programa reeleito em 2014 e ter adotado o programa do PSDB, algo que se consolidou sob Levy no ano seguinte.
1. Caracterizamos a derrubada de Dilma nos fins de agosto de 2016 como parte dos golpes de novo tipo que ocorrem na América Latina, sob influência dos EUA, a partir de 2009. Foi um golpe jurídico, parlamentar e midiático porque, no presidencialismo, não se derruba um presidente eleito por perda de apoio político ou popular, e porque o crime que se alega ter sido cometido (“pedaladas fiscais”) era praxe nos governos anteriores e assim continuou depois, ainda que “legalizado”. Enfim, é importante destacar que não houve possibilidade e nem intenção, por parte do governo e do PT, de enfrentar mais diretamente o golpe/impeachment. Mais uma evidência da incapacidade de mobilização das bases e da opção por vias que evitam conflitos mais duros.
** GOVERNOS TEMER E BOLSONARO (2016-2022)
1. O governo Temer (2016-2018) representou uma convergência de interesses para a retirada do PT e de seu projeto conciliador do governo federal. Ele foi produto de rupturas com a institucionalidade burguesa e de uma aposta na intensificação mais dura e acelerada do neoliberalismo. Foi um governo de choque e austeridade, que teve como fiadores as classes dominantes e setores médios brasileiros, e que buscou retomar um realinhamento subserviente aos EUA. Usufruindo de sua alta rejeição e do fato de não ter planos de reeleição, Temer caminhou no sentido de destruir conquistas sociais da Constituição de 1988 e instituir um semipresidencialismo no país.
1. Esse governo atacou direitos previdenciários, propondo (mas não conseguindo aprovar) uma Reforma da Previdência que prejudicava os trabalhadores. Ele atentou contra direitos trabalhistas e sindicatos, aprovando uma Reforma Trabalhista, em 2017, que desmontou a CLT, flexibilizando contratos, permitindo a terceirização irrestrita e a “negociação direta” entre patrões e empregados – a criação do contrato de trabalho intermitente foi um de seus aspectos mais problemáticos. Importante lembrar que, conforme o discurso neoliberal, reproduzido intensamente pela grande imprensa, essa “reforma” prometia criar 2 milhões de empregos até o fim de 2019. A realidade, contudo, foi bem diferente. Nos fins de 2021 (dois anos mais tarde do que o prometido), pouco mais de 10% dessas vagas haviam sido criadas. Obviamente, não se tratava de uma busca pela ampliação do emprego, mas apenas de um ataque das classes dominantes, que avançaram ainda mais sobre os trabalhadores. O governo Temer ainda atacou os serviços públicos, com a Reforma do Ensino Médio de 2017, que instituiu uma educação secundária tecnicista e acrítica, restringindo disciplinas como filosofia, sociologia e artes, e sobretudo com a Emenda do Teto de Gastos, que limitou por 20 anos os gastos públicos voltados à população (educação, saúde, assistência social etc.), obviamente sem tocar na elite do funcionalismo público (juízes, altos militares, burocracia política etc.) e nas despesas da dívida pública (juros e rolagem). O teto de gastos, somado ao aumento recorde das emendas parlamentares e à manutenção das altas isenções fiscais, marcou um movimento de fortalecimento do Legislativo em detrimento do Executivo. Enfim, esse governo aprofundou as privatizações – vendendo ativos da Petrobrás e concedendo à iniciativa privada portos, aeroportos e rodovias – e promoveu uma intervenção militar federal no Rio de Janeiro em 2018. Tais medidas, que pretendiam ampliar os lucros dos de cima em detrimento dos direitos dos de baixo, inseridas nesse cenário de rupturas institucionais e piora das condições de vida dos trabalhadores, contribuíram diretamente para a ascensão da extrema-direita no país.
1. O governo Bolsonaro (2019-2022) representou uma radicalização neoliberal e reacionária, resultante de um contexto de crise econômica e política, e da expansão da extrema-direita que ocorreu a partir de 2014 e 2015. Foi marcado pelo autoritarismo, pelos conflitos institucionais e pelo projeto de destruição de direitos sociais e ambientais. Discursando contra a “velha política”, da qual fazia parte há décadas, Bolsonaro aprofundou o fisiologismo se aliando ao “centrão” e sendo impulsionado pela coalizão orgânica do “partido militar”, que ocupou postos-chave em seu governo com quadros das Forças Armadas. Foi um governo golpista ao longo de todo o período, tendo se encerrado justamente com uma tentativa de golpe de Estado após a perda das eleições em 2022. Dentre os setores e as classes que subsidiaram o governo Bolsonaro, estão a burguesia, sob liderança de sua fração financeira e com grande força daquela vinculada ao agronegócio, altos gestores, setores médios antipetistas, militares, policiais, imprensa e religiosos conservadores. Entre esses agentes se encontram aqueles que conceberam, financiaram e apoiaram a mencionada tentativa de golpe. No entanto, o projeto de extrema-direita de Bolsonaro também conquistou parcelas significativas das classes oprimidas brasileiras; sua base mais fiel mobilizou entre 20% e 30% dos trabalhadores, que há tempos tinham perspectiva conservadora e receberam bem a figura de Bolsonaro.
1. Esse governo seguiu a cartilha ultraliberal de Paulo Guedes, que dava continuidade à “Ponte para o futuro” de Temer. Privatizou a Eletrobrás, aeroportos, portos e rodovias; deu continuidade ao desmonte na Petrobrás, vendendo a BR Distribuidora, refinarias na Bahia e no Amazonas, além de gasodutos; vendeu a CEITEC, do ramo de semicondutores. Continuou os ataques aos trabalhadores, os quais haviam se intensificado em 2016 com a proposta da Carteira Verde Amarela, que reduzia direitos e formalizava a precarização; através da aprovação da Reforma da Previdência, em 2019, que dificultou o acesso à aposentadoria e reduziu o valor dos benefícios; e por meio da falta de aumento real do salário mínimo, que só acompanhou a inflação. O governo Bolsonaro atacou a ciência, a cultura e o meio ambiente. Fez cortes e bloqueios massivos nas verbas destinadas às universidades e institutos federais, atacou professores e intelectuais e buscou implementar uma política educacional voltada para o militarismo e o ensino religioso. Incentivou censura a produções culturais, desmantelou órgãos de fomento e perseguiu artistas e jornalistas. Promoveu uma ofensiva ao meio ambiente, desmontando órgãos de fiscalização ambiental, reduzindo multas por crimes ambientais, incentivando o desmatamento, a grilagem e contribuindo para recordes de queimadas na Amazônia e no Pantanal.
1. A pandemia de Covid-19 expôs a completa irresponsabilidade da gestão Bolsonaro, que minimizou a gravidade do vírus, sabotou medidas sanitárias e atrasou a compra de vacinas, agravando a crise de saúde e contribuindo ativamente com parte considerável das 700 mil mortes da pandemia. O contexto da pandemia fortaleceu dois aspectos desse governo. O primeiro foi um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), que havia começado antes, mas que se acirrou muito a partir de 2020 quando, contrariando Bolsonaro, o STF decidiu pela autonomia de governos e municípios para lidar com a pandemia, incluindo as decisões sobre lockdown e vacinas. Entre 2021 e 2022, esse conflito se aprofundou devido ao Inquérito das Fake News, os ataques públicos de Bolsonaro e seus aliados ao Supremo e, depois, ao sistema eleitoral e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Tudo isso alçou o ministro Alexandre de Moraes à condição de grande inimigo do governo e, depois, do próprio bolsonarismo. O segundo foi a aproximação com o Congresso, em especial para evitar o andamento dos pedidos de impeachment que se acumulavam, sobretudo desde a pandemia. A solução encontrada pelo governo foi aprofundar as medidas de Temer de favorecimento e fortalecimento do Legislativo; a ferramenta encontrada para tanto foi o “orçamento secreto”, que explicaremos um pouco à frente. Somado a outros fatores – dentre os quais o controle dos problemas de popularidade por meio do Auxílio Emergencial e, em 2022, atendendo às demandas eleitorais, por meio do Auxílio Brasil e outras verbas direcionadas a setores específicos da população –, esse apoio do Congresso foi fundamental para Bolsonaro conseguir encerrar seu mandato.
** GOVERNO LULA-ALCKMIN (2023- )
1. O governo Lula-Alckmin (2023- ) vem se caracterizando por um deslocamento das posições sociais-liberais anteriores para posições mais neoliberais. Protagonista de uma Frente Ampla, esse governo tem promovido ativamente políticas econômicas neoliberais, com destaque para as medidas de ajuste fiscal e as políticas de austeridade diretamente relacionadas ao Arcabouço Fiscal. No discurso, esse governo continua a sustentar bandeiras socialdemocratas mais à esquerda; mas, na prática, ele caminha cada vez mais à direita, na direção de um neoliberalismo progressista. Obviamente, essa prática não apenas reforça a desigualdade e a precarização, mas fortalece a extrema-direita. As medidas conciliatórias e assistenciais que vêm tentando minimizar o desemprego, a pobreza e a fome são moderadíssimas e têm sido pouco ou quase nada sentidas pelos trabalhadores. Resta apenas a defesa, também muito limitada, de certos pressupostos democráticos (burgueses e liberais). Fator complicador nesse cenário é a fanatização de parte dos petistas, que estão enxergando nas críticas de esquerda – incluindo aquela que afirma que as políticas neoliberais fortalecem a extrema-direita –, obra de inimigos que jogam o jogo do bolsonarismo e, por isso, devem ser igualmente combatidos.
** CONSTITUIÇÃO DE 1988 E RELAÇÕES EXECUTIVO-LEGISLATIVO
1. Destacados marcos na política brasileira do período 1985 a 2024 foram a Constituinte (1987-1988) e a Constituição de 1988 que, mesmo com todas as alterações, norteou o aparato legislativo burguês e burocrático do Brasil nas últimas décadas. A Constituição brasileira, cujas elaboração e aprovação se deram durante o governo Sarney, foi promulgada num contexto de intensas disputas, o que explica seu caráter e suas contradições. Apesar de progressista do ponto de vista social, ela manteve elementos contraditórios que evidenciam a tentativa de conciliação que marcou a saída da ditadura. Afinal, a Constituição de 1988 expressa as forças socias em jogo e as relações de poder que se estabeleceram naquele momento. Houve, na ocasião, duas forças sociais principais e duas secundárias que tiveram incidência nesse processo, em meio a vitórias e derrotas.
1. Uma dessas forças principais, progressista, foi composta pelos setores de esquerda e centro-esquerda, incluindo sindicatos e movimentos sociais. Ela conseguiu se impor em um conjunto de medidas que deram à Constituição esse caráter mais social e incluíram: direitos trabalhistas, como aqueles relacionados à jornada de trabalho e à greve, assim como direitos ambientais e indígenas; seguridade social e criação do SUS, assegurando acesso universal e gratuito à saúde e à educação pública em todos os níveis; eleições diretas e mecanismos de participação social, como plebiscitos e referendos. Outra das forças principais, conservadora, foi composta pelos setores de direita e centro-direita, incluindo latifundiários e empresários. Ela conseguiu se impor com outras medidas: manutenção do modelo econômico vigente e da centralidade da propriedade privada; não estatização de setores estratégicos da economia; medidas e regras que facilitariam (e que, de fato, facilitaram) privatizações e políticas liberalizantes; manutenção da estrutura fundiária do país e, mesmo cedendo a uma possível reforma agrária, conseguiu que, se ela ocorresse, os proprietários seriam indenizados. Uma das forças secundárias, os militares e setores ligados à ditadura militar, vários dos quais reacionários de extrema-direita, atuou como força auxiliar desse bloco conservador, mas também visando seus próprios interesses. Conseguiram manter a anistia ampla e irrestrita e, com isso, fugir da punição pelos crimes cometidos durante a ditadura; asseguraram privilégios a si mesmos, como um sistema previdenciário especial e a manutenção das pensões para filhas “solteiras”; garantiram a aprovação do artigo 142, que manteve uma ambiguidade quanto às Forças Armadas serem garantidoras da ordem, deixando com isso a porta aberta para interpretações golpistas. Outra das forças secundárias, a Igreja Católica e setores religiosos, se dividiu no apoio a conservadores e progressistas. Conquistou o ensino religioso facultativo nas escolas públicas e um modelo de assistência social com forte presença das entidades religiosas. Importante destacar que, no fim das contas, a Constituição de 1988, como resultado da correlação entre essas forças, terminou se estabelecendo mais como uma aspiração para o futuro do que como conjunto de regramentos jurídicos efetivos para o país. Ela nunca foi colocada completamente em prática e teve vários de seus artigos liquidados já a partir dos anos 1990.
1. Em termos de desenho político-institucional, a Constituição estabeleceu o pluripartidarismo, flexibilizando as regras para a formação de novas legendas partidárias. Desde o fim da ditadura, algumas dezenas de partidos políticos foram criados e registrados no TSE. A Constituição também estabeleceu um presidencialismo com grande peso do Executivo, mas que, devido às destacadas funções atribuídas ao Congresso, fez também do Legislativo elemento fundamental para a governabilidade. Dentre essas importantes funções que a Constituição assegurou ao Legislativo, estão: controle de verbas provindas de emendas individuais e de bancada; possibilidade de intervir na formulação de políticas públicas, de definir o orçamento público e de realizar processos de impeachment; aprovação das medidas provisórias provenientes do Executivo. Esse desenho institucional acabou tendo implicações na relação entre Executivo e Legislativo no país de 1988 em diante. Ele ajuda a entender as estratégias adotadas pelos governos federais de turno (Executivo) para se relacionar com o Congresso (Legislativo).
1. O governo Sarney – inicialmente apoiado pelo próprio PMDB, que possuía maioria na Câmara e no Senado – teve dificuldades em manter o apoio em seu próprio partido; no Congresso, buscou apoio do PFL, do PDS e de outras legendas. O governo Collor não estabeleceu grandes coalizões e alianças no Congresso e, como mencionado, isso contribuiu para seu impeachment. O governo Itamar tentou reconstruir as pontes com o Congresso e formou uma base de apoio a partir da distribuição de cargos e recursos para outros partidos, que incluíam PSDB, PMDB, PFL, Partido Progressista (PP) entre outros. Essa distribuição de cargos e recursos por parte do Executivo como forma de obter apoio no Legislativo foi mantida nos governos FHC e Lula. No primeiro caso, o PSDB encabeçou a coalizão, e o PFL e o PMDB funcionaram como grandes aliados estratégicos. No segundo, o PT encabeçou a coalizão, e se aliou a diversos outros partidos, incluindo PMDB, PP, PL, Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Socialista Brasileiro (PSB). Essa coalizão dos governos Lula foi herdada pelos governos Dilma, mas se rompeu ao longo dos mandatos; ruptura que teve participação determinante do PMDB e contribuiu com o impeachment.
1. Já com Itamar, mas principalmente com FHC, esse mecanismo de governo – troca de cargos e recursos por apoio político –, chamado por alguns analistas de presidencialismo de coalizão, se consolidou e foi mantido nos governos Lula e em parte dos governos Dilma. Trata-se de um mecanismo para governar definido em função do pluripartidarismo – e, portanto, pelo fato de o presidente raramente ter maioria no Congresso – e da importância do Legislativo para a governabilidade. Por esses motivos, o presidente e seus ministros (Executivo) precisam negociar permanentemente com o Congresso (Legislativo), formando coalizões e alianças que lhes permitam governar e fazer avançar sua agenda. Nos governos mencionados, esse mecanismo permitiu acordos entre Executivo e Legislativo com duração de médio prazo.
1. Marco nesse processo foi a Emenda Constitucional 95, de 2015, que, além de alterar a relação entre Executivo e Legislativo frente ao orçamento público, obrigou o Executivo a liberar um percentual da receita para emendas parlamentares. Com isso, perdeu a moeda de troca com o Legislativo, tendo em vista que essas emendas cumpriam antes tal função. O governo Temer assumiu com a coalizão que havia encabeçado o golpe em Dilma, a qual incluía o PMDB e aliados estratégicos, como PSDB, DEM (Democratas, antigo PFL) e PP. Em seu curto mandato, Temer fortaleceu o Legislativo com dois propósitos: evitar seu próprio impeachment e fazer aprovar suas “reformas” antipovo. Para tanto, sua principal medida foi avançar na liberação de emendas parlamentares, chegando a valores recordes que extrapolavam bastante a legislação e burlavam o “teto de gastos”. O governo Bolsonaro intensificou esse mecanismo para níveis nunca anteriormente vistos. Sob ameaça de impeachment, Bolsonaro, apesar de certa proximidade com partidos como PP, PL e Republicanos, “alugou” esses e outros partidos do chamado centrão no Congresso, estabelecendo junto com Arthur Lira, em 2020, o “orçamento secreto”: um esquema bilionário de distribuição de emendas parlamentares sem transparência, que permitia que aliados do governo destinassem recursos públicos sem identificar os beneficiários e nem justificar os critérios de alocação da verba.
1. Esse movimento iniciado por Temer e consolidado por Bolsonaro fortaleceu muito o Legislativo frente ao Executivo, e também o “centrão”, que naquele momento estava sob o comando de Lira no Congresso. Ele colocou fim ao presidencialismo de coalizão estabelecendo aquilo que outros analistas vêm chamando de “presidencialismo parlamentarizado” ou “semiparlamentarismo”. Ou seja, um sistema em que o presidente mantém formalmente o poder em regime presidencialista, mas que, na prática, está cada vez mais subordinado ao Congresso. Apesar de o STF ter julgado o “orçamento secreto” inconstitucional, ele continua a vigorar, sob Lula, apenas com um pouco mais de transparência, tendo em vista que as emendas do relator (RP9) foram substituídas pelas emendas de comissão (RP2). O governo Lula-Alckmin parece que vem tentando retomar o presidencialismo de coalizão, mas num contexto de empoderamento do Congresso em que isso é concretamente impossível. As alianças não abarcam todos os membros dos partidos e os acordos são apenas de curto prazo. Senadores e deputados não vendem apoio, mas alugam, por um prazo que é cada vez menor e por valores cada vez mais altos.
** BUROCRATIZAÇÃO DA ESQUERDA E EXPANSÃO DA EXTREMA-DIREITA
1. Desde a reabertura, as relações entre esquerda e direita no Brasil se modificaram bastante. Essa mudança envolveu dois processos fundamentais para o entendimento das últimas décadas: a burocratização da esquerda e a expansão da extrema-direita.
1. Entre 1985 e 2024, a esquerda brasileira foi representada, principalmente, pelo petismo, um campo que inclui, além do PT, outros setores e forças auxiliares. Desde o fim da ditadura, o PT teve crescente influência no país, tanto no campo partidário, quanto no campo popular. Essa influência aumentou conforme o trabalhismo perdeu força, sobretudo devido ao enfraquecimento da liderança de Brizola e aos redirecionamentos ideológicos e estratégicos do PDT e do PSB. Nos anos 1980, além de proximidades com o campo trabalhista (PDT e PSB) e comunista (PCB e PCdoB), o PT tinha vínculos orgânicos com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), no campo sindical, além de alianças e proximidades com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais da Igreja Católica. Essa composição de forças se evidenciou no segundo turno da eleição de 1989, quando Lula derrotou Brizola e disputou a presidência com Collor.
1. Durante os anos 1990, a crise do bloco socialista no mundo, assim como o fortalecimento do neoliberalismo e o descenso das mobilizações no Brasil formavam um contexto que favorecia um deslocamento da política partidária brasileira como um todo à direita. Como colocado, o PSDB já fazia esse movimento e, com isso, se abriam oportunidades para o PT mais ao centro do espectro político. Além disso, a perda da eleição presidencial em 1989 desencadeou debates internos e mudanças estratégicas no PT. A posição que venceu os debates nos anos 1990 entendia que, para o PT se tornar um ator de primeira ordem na política brasileira, ampliar sua inserção institucional e eleger um presidente da república, certos redirecionamentos estratégicos seriam necessários. Dentre eles: priorizar as disputas eleitorais em relação a outras formas de fazer política, particularmente aquelas por meio de organizações e lutas populares; moderar o discurso e as políticas do partido, visando aproximar setores mais significativos do eleitorado, incluindo aquele que estava mais ao centro; adotar posições mais pragmáticas, flexibilizando certos critérios éticos, e empregar práticas que eram comuns em outros grandes partidos.
1. Tais redirecionamentos fortaleceram um processo crescente de burocratização do PT, que passou a se afastar de suas bases (núcleos de base do próprio partido e movimentos populares aliados e próximos), a adotar posições progressivamente mais conciliadoras e recuadas e a hipotecar princípios que diferenciavam o partido de outros, sobretudo aqueles relacionados à independência, à democracia de base e ao engajamento da militância do partido. Esse processo, que se consolidou nos anos 1990, se aprofundou muito nos anos 2000, antes e sobretudo depois da eleição de 2002. Foram redirecionamentos que se expressaram de muitas maneiras, dentre as quais as fontes de financiamento do partido. A contribuição dos filiados do PT, que em 1989 representava 30% do total da verba do partido, caiu para 1% em 2004. Não só porque os valores do fundo partidário aumentaram muito de 1996 em diante devido a uma mudança legislativa, mas porque o PT diminuiu as exigências para aceitar doações de empresas, as quais aumentaram muito de 2000 para a frente. Quando conquistou as eleições presidenciais de 2002, o PT, que caracterizamos anteriormente como social-liberal, já era um partido de centro-esquerda que avançava progressivamente ao centro, e que fazia parte de uma ampla aliança que incluía desde aliados anteriores, como PCdoB e PSB, até partidos de direita como PMDB, PP e DEM.
1. Essa burocratização do PT teve impactos nos setores que estavam mais à esquerda do partido, e também em movimentos populares aliados e próximos do partido. Alguns setores romperam com o partido pela esquerda, dentre os quais aqueles que formaram o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em 1994, e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em 2004. Ela também teve impactos na CUT, que passou a priorizar as eleições, a conciliação de classes, e a se deslocar de um sindicalismo combativo, de resistência, característico dos anos 1980, para um sindicalismo conciliador, “de resultados”, que marcou as práticas cutistas nos anos 1990 e 2000. Essa burocratização ainda teve impactos em outros movimentos, como as CEBs, a UNE e mesmo o MST.
1. As Jornadas de 2013 provocaram mudanças relevantes no cenário político e social brasileiro e abriram as portas para uma nova conjuntura no país. À esquerda, esse novo cenário se evidenciou como uma disputa, num primeiro momento, entre o petismo e uma esquerda mais à esquerda que o PT. Esta última, em muitos casos radicalizada, esteve presente, entre 2014 e 2016, nas manifestações contra a Copa do Mundo (2014), nas ocupações de escolas secundaristas e universidades (2015-2016), e nas inúmeras greves (cujo ápice ocorreu entre 2013 e 2016) e mobilizações do período. Em termos institucionais e partidários, foi o PSOL, um partido de esquerda, que mais usufruiu dos frutos desse processo, tendo quase dobrado seu número de filiados entre 2012 e 2016. Mas esse ascenso de esquerda não durou muito tempo. O PT ainda era governo e estava sob ataque intenso da Lava Jato e do movimento pró-impeachment. Em função disso, considerou toda essa onda à sua esquerda como algo que enfraquecia o partido e mesmo o petismo de maneira mais ampla, assumindo uma postura conservadora frente a ela. Suas dificuldades para lidar com esse contexto, em certa medida, decorreram da própria estratégia que o partido foi adotando. Diferentemente dos anos FHC, quando o PT contribuiu com a articulação de greves contra reformas neoliberais, os anos de governo foram em outra direção. Naqueles anos, o PT fez tudo que foi possível para retirar a política das ruas, dos movimentos populares, e levá-la para as instituições de Estado. E isso aprofundou o quadro de burocratização antes descrito. O partido fez o que pôde para evitar a radicalização de movimentos sociais e sindicatos. Esse foi o caso, por exemplo, quando o PT criticou e criminalizou as lutas contra a Copa do Mundo, que implicou despejos e envolveu reformulações na chamada “Lei Antiterror”, as quais ampliaram a judicialização e a criminalização das lutas populares. E quando atacou os meios de comunicação popular, em especial as rádios comunitárias. O PT fez de tudo para impedir que os movimentos populares saíssem de sua órbita de controle e, particularmente depois de 2013, passou a trabalhar efetivamente contra tudo aquilo que não fosse exclusivamente disputa eleitoral. As posições do partido frente ao processo de derrubada de Dilma deixam isso evidente. Dentro das instituições, talvez por acreditar na fragilidade da acusação das “pedaladas fiscais”, o que se viu no governo e em sua base de apoio foi um conformismo republicano e ingênuo, aparentemente marcado pela crença na “justeza das instituições”. Mas o partido também foi incapaz resistir por meio de manifestações e lutas extrainstitucionais. Enfim, seu trabalho de décadas investindo na desmobilização e na despolitização das massas mostrou seu resultado.
1. À direita, os anos 2014-2018 foram de intensa radicalização. Foi nesse período que a extrema-direita se consolidou em sua forma pública e organizada. Ela se conformou na esteira do antipetismo produzido pela Lava Jato e gestado nas manifestações anti-Dilma. Os membros do PSDB, elemento fundamental para o início desse processo, imaginavam que, enfraquecendo o PT, o pêndulo político-partidário voltaria a lhes favorecer. Não foi o que ocorreu. Essa radicalização da direita à extrema-direita levou consigo a maioria da base tucana e enfraqueceu profundamente o PSDB. Somado à influência de João Dória e a um deslocamento ainda mais intenso do petismo para o centro, esse fato praticamente condenou o PSDB à morte. O amplo movimento que criou a nova extrema-direita brasileira envolveu antigas e recentes forças sociais. Dentre as mais antigas, estão o reacionarismo militar, preservado desde a ditadura em instituições como o exército e a polícia, e o reacionarismo difuso presente em diferentes classes sociais e setores da sociedade brasileira, que não se manifestava publicamente e nem se organizava, senão em pequenos grupos abertamente fascistas, nazistas etc. Bolsonaro é uma expressão desses reacionarismos; individualmente, é herdeiro direto do dito setor mais delinquente da ditadura, liderado por Sylvio Frota – do qual Augusto Heleno, atual general, foi ajudante de ordens nos anos 1970 – e que contou com a presença de outras figuras nojentas como o torturador Brilhante Ustra. Contudo o bolsonarismo, essa expressão histórica da extrema-direita no Brasil, é mais amplo que isso. Ele foi complementado por outros agentes e forças que, desde os anos 1990, tiveram incidência na sociedade brasileira. Agente fundamental para a construção do bolsonarismo foi Olavo de Carvalho, que estava há praticamente duas décadas ampliando sua influência cultural por meio de artigos, livros e, depois, da internet. Vários de seus seguidores se tornaram figuras de destaque no bolsonarismo. Forças e agentes mais recentes, que remetem ao período 2014-2018, incluem: movimentos de rua, como Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua, que contribuíram no início para que a extrema-direita adquirisse uma base de massas; páginas e influenciadores nas redes sociais, como o Revoltados Online, que nesses anos estabeleceram sua hegemonia nesse ambiente virtual; partidos políticos e setores partidários, que viram no bolsonarismo possibilidades de votos e recursos; grande parte das classes dominantes brasileiras e da grande imprensa, que se engajaram, mesmo que “criticamente”, quando Bolsonaro aderiu ao neoliberalismo de Paulo Guedes.
1. Assim como em outras regiões do mundo, no Brasil, ao passo que a direita caminhou à extrema-direita, a esquerda caminhou ao centro. Esse movimento da esquerda ocorreu primeiro com o PT e outros de seus aliados históricos. Depois de algum tempo, aconteceu também com parte do PSOL, no qual as posições alinhadas ao petismo se tornaram majoritárias no fim dos anos 2010. Foi um movimento que, obviamente, teve influência nas bases e eleitores desses partidos. Atualmente, o conflito que existe entre petismo e bolsonarismo se dá nesses termos: o primeiro, como alternativa de centro-esquerda/centro por meio de uma frente amplíssima com partidos inclusive da direita; o segundo como alternativa de extrema-direita. Trata-se de um conflito que tem levado o debate público cada vez mais para a direita do espectro político. Pelo menos desde 2016, essas duas forças sociais, petismo e bolsonarismo, protagonizam o conflito político e ideológico no Brasil, funcionando como forças centrípetas que dificultam muito o surgimento de outras alternativas à esquerda e à direita. É essa dificuldade que, desde então, vem complicando a formação de uma esquerda à esquerda do petismo e uma direita mais moderada que o bolsonarismo. Contudo, é muito importante entender que o conflito entre petismo e bolsonarismo não é contraditório. Ele não coloca em questão os grandes problemas do Brasil e nem aponta para soluções transformadoras, sobretudo em termos das relações de classe.
** POLÍTICA PARTIDÁRIA E FORÇAS ELEITORAIS
1. A partir da análise da política partidária e das forças eleitorais brasileiras entre 1985 e 2024, podemos fazer alguns comentários. Em 2023, havia por volta de 10% da população de 16 anos ou mais filiada a partidos políticos. Os partidos com maior número de filiados naquele ano eram, em ordem decrescente: o MDB, com 2 milhões de filiados; o PT, com 1,7 milhão; o PSDB e o PL, ambos com 1,3 milhão cada. Entre 1985 e 2000, as filiações partidárias cresceram no Brasil; entre 2000 e 2014 permaneceram estáveis; e, depois disso, decaíram, como fruto do novo contexto pós-2013, até 2024. Ainda assim, é importante notar que, com poucas exceções, a vida partidária e a relação entre filiados e partidos possui pequeno impacto político e social no país. Não apenas pelo número proporcionalmente baixo em comparação com a população, mas principalmente porque a grande maioria dos filiados quase não tem relação com o partido. Entre 1985 e 2024, o campo político-partidário brasileiro contou com quatro grandes campos ou forças eleitorais: a.) Direita tradicional, “centrão” e centro-direita; b.) Esquerda, centro-esquerda e social-liberalismo; c.) Extrema-direita; d.) Extrema-esquerda ou esquerda radical. Elas serão caracterizadas e discutidas a seguir.
1. A primeira força (a) foi dominante ao longo de todo o período (1985-2024), ainda que outras forças relevantes tenham passado a disputar o jogo; a partir dos anos 2000, a segunda (b), e a partir de 2014/2015, a terceira força (c). Ou seja, nas últimas décadas, foi a direita tradicional, o chamado centrão e a centro-direita que conformaram a maior força no campo político-partidário brasileiro. Partidos como PDS/PFL/DEM, PSL (Partido Social Liberal)/União Brasil, PL, PP, Republicanos, PMDB/MDB, PPS (Partido Popular Socialista)/Cidadania e PSD foram aqueles que preponderaram nas Câmaras federais, estaduais e municipais, e também no Senado. Seu apoio foi fundamental para os presidentes que governaram o país. Trata-se de um campo com gigantesca capilaridade no Brasil e que possui como principais características a defesa das classes dominantes, de certos interesses setoriais e particulares, e de acesso individual e grupal à riqueza e às posições de poder. O PSDB foi um agente importante desse campo, mas com certas peculiaridades. Tendo surgido mais ao centro, com posições até de centro-esquerda, e não possuindo o fisiologismo como característica central, o PSDB, como já discutimos, caminhou à direita ao longo dos anos, abraçando o neoliberalismo e sendo seu grande defensor e promotor entre 1994 e 2014. Nesses anos, o partido encabeçou as disputas presidenciais com o PT. No entanto, com o crescimento da extrema-direita e o deslocamento do PT para o centro, passando a atrair inclusive eleitores de centro-direita, o PSDB perdeu sua relevância.
1. A segunda força (b) passou a ter crescente importância no período analisado (1985-2024). Seu principal agente é, sem dúvida, o PT, cuja força institucional e eleitoral cresceu muito ao longo dos anos 1990, paralelamente à sua perda de relevância nos movimentos e lutas populares. Desde sua fundação, o PT se propôs a representar os trabalhadores e a defender seus interesses. Isso foi feito entre os anos 1980 e 1990, mas dentro de certos marcos. Foi uma representação mais concentrada nos trabalhadores urbanos, formais e sindicalizados. Uma representação que, apesar das correntes minoritárias mais à esquerda do partido, desde o início se caracterizou pela moderação, pela defesa do “diálogo” e da conciliação de classes. Como partido, o PT nunca foi socialista e nem uma alternativa de caminho para o socialismo. Como colocamos anteriormente, a partir dos anos 1990, mas principalmente 2000, a trajetória do partido se modificou de maneira significativa. Tal mudança envolveu, como aspectos fundamentais, o deslocamento do partido ao centro, sua burocratização progressiva e a conquista lulista dos setores mais precários, informais e marginalizados dos trabalhadores brasileiros. Ainda que o PT tenha encabeçado a conformação desse campo ampliado do “petismo”, que caracterizamos como social-liberal, ele tem contado com alianças mais duradouras que incluem PCdoB, setores do PDT, do PSB, do Partido Verde (PV) e do PSOL. As alternativas partidárias à esquerda do PT vêm enfrentando dificuldades devido à força social e ao caráter centrípeto desse campo. Tal é o caso do PSOL, que – mesmo tendo abarcado, desde sua fundação, setores que vão desde a centro-esquerda moderada até a esquerda mais radicalizada –, na última década, tem se aproximado cada vez mais do petismo. Três fatos parecem explicar essa aproximação: o crescimento da extrema-direita e a estratégia de frente ampla adotada pela maioria do PSOL; o ingresso de Guilherme Boulos e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) no partido, em 2018, e as posições e o protagonismo que ambos assumiram desde então; a reeleição de Lula em 2022 e o papel de apoio muitas vezes acrítico adotado pela maioria dos políticos do PSOL. Pelo menos desde a virada do século, esse campo petista vem defendendo uma conciliação de classes que, na prática, se expressa na manutenção dos lucros e do poder das classes dominantes, e em algumas melhorias, quando possível, às classes oprimidas. Quanto mais passa o tempo, mais essa força se distancia dos de baixo e se aproxima dos de cima. Ela trai os trabalhadores em cada eleição – como nos casos das promessas sem qualquer esforço para concretização, dos programas vencedores nas urnas que são trocados pelos programas adversários etc. – e, com isso, abre espaço em suas bases para a extrema-direita.
1. A terceira força (c) se conformou entre 2014 e 2015. Ela constituiu um dos desdobramentos das crises econômica e política, e do processo político e social brasileiro iniciado em 2013. A extrema-direita não tem um partido próprio e ocupa espaço em partidos normalmente ligados ao centrão e/ou à direita tradicional. O primeiro desses partidos, que abarcou Bolsonaro e parte considerável desse campo, foi o PSL. Depois de um rompimento, houve uma tentativa de fundar um partido próprio do bolsonarismo, o Aliança pelo Brasil, que não teve sucesso porque os bolsonaristas não conseguiram as assinaturas necessárias. Depois disso, a extrema-direita se concentrou no PL, ainda venha contando com representantes em outros partidos, como Republicanos, PP e Novo. Na luta de classes brasileira, a extrema-direita, apesar de seu discurso antissistêmico e de sua penetração em setores consideráveis das classes oprimidas, defende os interesses das classes dominantes. No caso do governo Bolsonaro, principalmente da burguesia financeira e da burguesia agrária, incluindo seus setores mais criminosos, que promovem ataques ilegais contra o meio ambiente, os trabalhadores e os povos tradicionais, como garimpeiros, madeireiros, grileiros etc. E também da burguesia estadunidense, tendo em vista seu completo entreguismo.
1. A quarta força (d), apesar de ter existido durante quase todo o período estudado (1985-2024), foi sempre muitíssimo marginal e minoritária, sobretudo no campo eleitoral. Três siglas desse campo – PSTU, Partido da Causa Operária (PCO) e PSOL – se constituíram a partir de setores dissidentes do PT, que haviam sido expulsos ou saído voluntariamente do partido. O PSTU e o PCO, ambos trotskistas, foram criados em meados dos anos 1990. Mas, distintamente do PSTU, que durante sua trajetória se manteve neste campo da extrema-esquerda (d), o PCO, em vários momentos de sua história, operou como auxiliar da segunda força (b), sobretudo por sua proximidade com o petismo e com Lula. Fundado quase uma década depois desses partidos, o PSOL sempre contou com setores que fizeram parte desta quarta força (d), de esquerda radical, com uma diversidade de perspectivas socialistas. Mas, conforme apontado, tais setores têm perdido força no partido e, atualmente, constituem uma minoria. Duas outras siglas desse campo se relacionam diretamente à trajetória do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A primeira, o próprio PCB, que foi reorganizado entre 1992 e 1993, depois que sua direção encampou a criação do PPS; desde então, o partido assumiu uma posição marxista-leninista crítica do stalinismo. A segunda, a Unidade Popular pelo Socialismo (UP), legalizada em 2019 e impulsionada pelo Partido Comunista Revolucionário (PCR), uma dissidência do PCB dos anos 1960, e que segue atualmente uma linha stalinista. Em termos eleitorais, o PSTU, o PCO, o PCB e a UP são praticamente inexistentes, tendo elegido pouquíssimos candidatos. Antes da aprovação da Cláusula de Barreira, em 2017, tanto o PSTU quanto o PCO usufruíram das verbas do fundo partidário, distintamente do PCB, que costumou recusá-las por razões políticas. Numa situação diferente, o PSOL vem tendo maior impacto eleitoral e acesso integral às verbas do fundo partidário. O partido tem elegido vereadores, deputados estaduais, deputados federais e alguns prefeitos – ainda que seja importante observar que esses políticos pertencem, na maioria dos casos, à segunda (b) e não a esta quarta (d) força eleitoral. Mesmo assim, nacionalmente, a influência política do PSOL é ainda bastante restrita, quando comparada aos grandes agentes da política eleitoral brasileira.
** PAPEL POLÍTICO DAS FORÇAS ARMADAS E DO JUDICIÁRIO
1. Entre 1985 e 2024, o campo político brasileiro também teve marcos relevantes relacionados às forças militares e judiciárias, que nesse período adquiriram influência crescente.
1. A tutela das Forças Armadas sobre o processo de abertura se evidenciou mesmo depois do fim da ditadura. Em 1985, já sob o governo Sarney, o Exército reprimiu violentamente a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta Redonda, matando três operários. Em 1988, uma manifestação de trabalhadores em Brasília, que protestava no contexto da Constituinte, também foi duramente reprimida pelo Exército, quando tentava passar em frente à estátua de Duque de Caxias. De maneira geral, no período posterior à Constituição de 1988, as Forças Armadas se mantiveram formalmente subordinadas às forças civis e adotaram uma postura politicamente discreta. Mas isso não significa dizer que elas cederam aos pressupostos da democracia liberal e às diretrizes constitucionais. Porque conservaram uma cultura bastante reacionária, baseada tanto numa formação intelectual “anticomunista” do período da Guerra Fria, quanto no entendimento de que as Forças Armadas constituem uma espécie de elite da sociedade brasileira, um “poder moderador” responsável pela tutela do poder civil. E também porque jamais deixaram de fazer política, promovendo suas posições, principalmente nos bastidores.
1. Entretanto, ao longo dos anos 1990 e nas décadas posteriores, as Forças Armadas brasileiras modificaram essa posição – foram retomando espaço e voltaram a se fortalecer como instituição. Para tanto, foram fundamentais ao menos três episódios, que se desenrolaram sob influência dos governos de turno. Eles ajudam a explicar o protagonismo político adquirido por essas forças de 2018 em diante. O primeiro episódio ocorreu durante o governo Collor, por meio de um redirecionamento estratégico que concedeu às Forças Armadas um papel mais importante na segurança da Amazônia e no combate ao narcotráfico e aos crimes internacionais, ampliando sua presença no centro-oeste e na Amazônia legal. O segundo se desenrolou ao longo dos governos Lula e Dilma, com a liderança brasileira da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), que durou dez anos (2004-2017). Naquela ocasião, tropas do Brasil foram enviadas ao Haiti para, supostamente, restaurar a segurança, estabilizar o governo e contribuir com sua reconstrução. Não surpreende que a missão – comandada por generais que, mais tarde, apoiariam a ascensão de Bolsonaro – não só não tenha cumprido seus objetivos, mas tenha recebido inúmeras denúncias de crimes contra civis, abusos sexuais e exploração de menores. O terceiro ocorreu durante o governo Temer, quando muitos oficiais militares que haviam estado no Haiti, como os generais Heleno e Carlos A. dos Santos Cruz, participaram da intervenção militar no Rio de Janeiro, por meio de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), marcadamente em 2018. Usufruindo de uma suposta experiência em pacificação e em controle de áreas conflituosas, com base na vergonhosa operação do Haiti, os militares foram incumbidos de combater o tráfico, controlar as facções criminosas e pacificar áreas periféricas. Assim como no Haiti, as operações no Rio de Janeiro, além não chegarem nem perto de atingir esses objetivos, implicaram em violações graves de direitos humanos. Promoveram execuções extrajudiciais e assassinatos, como no caso do fuzilamento do músico Evaldo Rosa; realizaram assassinatos em operações nas favelas, como nos casos de ataques com helicópteros na Vila Kenedy e no Complexo do Alemão; levaram a cabo torturas, espancamentos e ataques à imprensa que tentava cobrir ou denunciar esses absurdos.
1. Esses três episódios contribuíram não apenas para oferecer aos militares um papel na segurança pública brasileira, deixando evidente a eles que poderiam ser utilizados na manutenção da ordem social do país, mas para lhes mostrar que era possível retomar aspirações em torno um projeto de poder mais robusto. A bem da verdade, desde o governo Dilma havia um esboço desse projeto, que começou a ser retomado como reação aos avanços da Comissão da Verdade. Tais episódios ampliaram a força institucional e extrainstitucional das Forças Armadas e as colocaram como agentes destacados da candidatura de Bolsonaro e da política nacional. As ameaças abertas do general Eduardo Villas Bôas ao STF no julgamento de Lula refletem essa conjuntura, que levou à vitória de Bolsonaro em 2018. O “partido militar” foi parte fundamental desse governo. Participou ativamente da trágica “gestão” da pandemia, dos casos de corrupção e, principalmente, das políticas golpistas e da própria tentativa de golpe de Estado na passagem de 2022 para 2023, quando Bolsonaro perdeu a reeleição.
1. O Judiciário, que começara a se descolar do Executivo no governo militar de João Figueiredo, passou por transformações marcantes no período em questão, e se consolidou como um poder influente na política brasileira. A Constituição de 1988 fortaleceu a autonomia do Judiciário e ampliou suas prerrogativas, permitindo que ele se estabelecesse como protagonista da democracia liberal. O aumento de sua força ocorreu em diferentes ocasiões, mas particularmente quando suas prerrogativas foram ampliadas na esteira de um Executivo que se eximia de tomar decisões sobre temas controversos, como aqueles relacionados à propriedade privada. A partir dos anos 1990, com o avanço do neoliberalismo e a ampliação do concurso público como principal forma de ingresso na magistratura, o Judiciário se consolidou como uma casta privilegiada da burocracia de Estado, com altos salários, diversos auxílios e benefícios. O corporativismo e os interesses próprios se intensificaram e juízes, que já reproduziam as dominações estruturais da sociedade, sobretudo as de classe e raça, passaram a atuar para benefício próprio, de pessoas e instituições política ou pessoalmente próximas. Assim, o Judiciário se constituiu como um poder com autonomia relativa; um poder de classe, é verdade, mas que passou a disputar espaço com outras forças sociais no Estado e na sociedade brasileira. Nesse processo houve inúmeras denúncias de corrupção, como os casos do juiz Nicolau dos Santos Neto (Lalau) e das vendas de sentenças em regiões de expansão da fronteira agrícola e do narcotráfico no centro-oeste.
1. O Ministério Público (MP) também foi bastante modificado com a Constituição de 1988. Com ela, o MP se tornou uma instituição “independente” e passou a ter destacado papel para a democracia burguesa no país. Atuou nos chamados direitos de quarta geração (que englobam temas como Estado de direito, transparência, meio ambiente etc.), mas, sobretudo, como órgão fiscalizador. Nos anos 1990 e 2000, ganhou muita força ao investigar e atuar em casos de corrupção política, como nos casos dos “Anões do Orçamento”, em 1993, e do “Mensalão”, em 2005. A força do MP chegou em seu ápice nos anos 2010, quando a delação premiada foi sancionada (2013) e a Operação Lava Jato avançou e conquistou enorme espaço na grande imprensa e na sociedade. Também uma casta privilegiada da burocracia de Estado, o MP, a partir daquela década, se tornou praticamente um quarto poder no país.
1. No contexto da Operação Lava Jato, setores do Judiciário e do MP, representados nas figuras do juiz Sérgio Moro e do procurador Deltan Dallagnol, sob tutela direta do imperialismo estadunidense, estabeleceram um projeto de poder para o Brasil. Formado na esteira do antipetismo, esse projeto era inicialmente tucano e, depois, acompanhando a radicalização da direita brasileira, se tornou bolsonarista. Investiu nas práticas de lawfare, usando a justiça para fins políticos, ou seja, utilizando o poder judiciário, que sempre esteve a serviço da burguesia e da burocracia, para desequilibrar os outros poderes da democracia burguesa. Naquilo que se propunha, o lavajatismo logrou certos objetivos: retirou Lula das disputas presidenciais de 2018, enfraqueceu o petismo e setores da economia brasileira com alguma expressão internacional, como petróleo e construção civil. Irônico que essa aliança lavajatista envolvendo Judiciário e MP não contava que havia, por parte de Bolsonaro e dos militares, um outro projeto concorrente de poder, que se alçou ao governo em 2018, usufruindo para isso da Lava Jato e depois a descartando. Em 2019, a Operação Vaza Jato e a Operação Spoofing mostraram a corrupção e a farsa da Lava Jato, que viu seu fim por um esforço conjunto de forças políticas, judiciárias, não raro adversárias.
** MONOPÓLIOS NA IMPRENSA E NAS REDES SOCIAIS
1. A grande mídia teve destacado papel entre 1985 e 2024, e exerceu sobre o Brasil uma influência significativa. Durante esses anos, a imprensa hegemônica esteve monopolizada por um número restrito de proprietários, o grande empresariado cultural, composto por algumas famílias controladoras dessas poderosas instituições. São conhecidas as famílias do eixo RJ-SP que se beneficiaram da ditadura militar e expandiram seus negócios a partir de concessões públicas e financiamentos facilitados: os Marinho, proprietários da Globo; os Mesquita, do Estadão; os Frias, da Folha; os Civita, da Abril; os Abravanel, do SBT; os Saad, da Bandeirantes. A elas se somou o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que adquiriu a Rede Record no fim dos anos 1980 como parte da construção de seu império. Entre 1985 e 1989, o então ministro Antônio Carlos Magalhães, também empresário cultural e proprietário de veículos de comunicação, distribuiu 1028 licenças para emissoras de rádio e televisão. Parte delas foi usada para ganhar apoio à extensão do mandato do então presidente Sarney (ele também dono de meios de comunicação), de quatro para cinco anos. Em 1998, o Ministério das Comunicações distribuiu 1848 retransmissoras de TV às vésperas da votação da emenda que permitiu a reeleição de FHC. Somada à privatização do setor de telecomunicações, essa ação contribuiu para garantir o apoio da grande mídia a Fernando Henrique. Apesar da Constituição proibir que parlamentares sejam proprietários de concessões de rádio e TV, e de considerar ilegal a concentração de mídia por meio de monopólios e propriedades cruzadas, na prática tudo isso tem ocorrido. Nos anos analisados, foi o jogo de interesses entre a burocracia, a burguesia e os donos do conhecimento e da informação que permitiu essas ilegalidades e, com isso, reforçou os mencionados monopólios. Em 2017, os 50 veículos de maior audiência do país – incluindo mídia impressa, online, TV e rádio – pertenciam a 26 grupos de comunicação, e metade deles estava sob controle de apenas cinco grupos: Globo, Bandeirantes, Record, Folha e RBS. Em 2024, o governo Lula sancionou a lei que aumentava o limite de concessões para um mesmo grupo, as quais passaram de 6 para 20 nas rádios, e de 10 para 20 nas televisões.
1. Ideologicamente, todos os grandes grupos de mídia defendem, em maior ou menor grau, as políticas neoliberais, e pregam em favor de medidas como privatizações, austeridade fiscal, redução das despesas públicas e livre comércio. Associados a outras classes e frações dominantes, como a burguesia financeira e agrária (agronegócio), os conglomerados de mídia brasileiros apoiaram as políticas dos governos Sarney, Collor, FHC, Temer e Bolsonaro, e exerceram forte influência sobre os governos Lula e Dilma. Frente a estes dois últimos, fizeram oposição às políticas conciliadoras sociais-liberais, pressionando por um alinhamento maior ao neoliberalismo. Historicamente, a imprensa tradicional esteve sempre profundamente envolvida com as disputas de poder da sociedade brasileira. Nos anos em questão, alguns momentos foram marcantes nesse sentido: a campanha das Diretas Já, entre 1983 e 1984, que a princípio foi ignorada pela mídia hegemônica, mas que depois foi apoiada por ela de maneira oportunista; o segundo turno da eleição entre Collor e Lula, em 1989, com o debate sendo editado pela TV Globo para favorecer Collor; os espetáculos midiáticos do Mensalão e da Lava Jato, que culminaram na derrubada de Dilma e na prisão de Lula. Essa imprensa também foi protagonista na defesa de reformas neoliberais e impopulares, como a Reforma Trabalhista (2017) e a Reforma da Previdência (2019). Contudo, junto a esse discurso, um setor considerável dessa imprensa passou a defender bandeiras progressistas contrárias às opressões, tais como o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Em parte porque cedia às reivindicações dos movimentos populares, mas também porque tentava capturar essa insatisfação para favorecer seus próprios interesses e exaltar sua moralidade, e porque pretendia anunciar produtos e vender conteúdos mais segmentados para esses grupos específicos. Esse setor, muito significativo e possivelmente majoritário na grande mídia brasileira, adotou assim um neoliberalismo progressista, alinhado ao Partido Democrata dos EUA – outra evidência da subserviência cultural aos Estados Unidos, a qual foi uma constante na grande imprensa do Brasil durante todos esses anos. O maior representante desse neoliberalismo progressista na imprensa brasileira é a Rede Globo. Mas há também outro setor, minoritário, que mais recentemente vem tentando surfar a onda da extrema-direita, mantendo uma perspectiva ao mesmo tempo neoliberal e conservadora ou reacionária; seu maior representante é a Jovem Pan.
1. Entre os anos 1980 e 2000, a grande imprensa foi o principal meio para a produção e a reprodução de informação no Brasil. Isso permitiu a ela disputar poder com uma força social descomunal, conquistada graças às posições econômicas, políticas e culturais que foram traduzidas em distintos programas de enorme audiência: telejornais como o Jornal Nacional; revistas como Veja e Isto É; jornais impressos como Folha de São Paulo e O Globo; portais de internet como G1 e Universo Online; novelas da Rede Globo; talkshows como Programa do Jô e The Noite; reality shows como Big Brother Brasil e A Fazenda; programas de auditório como Programa Silvio Santos, Domingão do Faustão e Programa do Ratinho; programas de humor como A Praça é Nossa, Casseta & Planeta e Pânico na TV; além de programas de rádio, entretenimento musical, podcasts etc. Contudo, a partir da passagem para os anos 2010, essa força social da grande imprensa diminuiu em função do crescimento da internet e, sobretudo, das redes sociais. Diminuiu, mas não terminou e nem se reduziu à insignificância, pois, mesmo depois da internet e das redes sociais, a grande imprensa continuou a ter muita força e a contribuir determinantemente na definição da agenda do país em todos os campos. Por exemplo, já no ano de 2023, em 93% dos lares se assistia TV aberta e em 56,5% deles se escutava rádio. Ainda assim, não é possível negar que, nesse novo contexto, a utilização massiva da internet e das redes sociais modificou bastante a disputa no campo cultural. Destacam-se aqui as recentes técnicas que vêm sendo desenvolvidas, como a mineração de dados de usuários e a comercialização desses dados, realizadas por empresas como Google e Facebook. Dentre outras coisas, foi isso que tornou possível a disseminação em larga escala de conteúdos mentirosos e fundamentalistas, que tiveram profundo impacto nos últimos anos.
1. É bastante impressionante o apelo popular adquirido no Brasil por redes sociais como WhatsApp, Facebook, Instagram e outras. Depois que o WhatsApp foi adquirido pela Meta, em 2014, sua utilização cresceu de maneira exponencial no país. Atualmente, o Brasil é o segundo maior país do mundo em número absoluto usuários dessa rede, acumulando entre 100 e 150 milhões deles. Ademais, o país conta com a com maior penetração do mundo desse aplicativo entre o público conectado; hoje, 99% dele utiliza o WhatsApp. Ao analisar a participação (share) de cada rede social entre os brasileiros, alguns comentários parecem importantes. Desde 2011, a maior rede social no país é o Facebook, ainda que sua participação venha caindo desde 2018 e que tenha chegado, em 2023 e 2024, a 36% – menos da metade do share atingido nos anos 2012 a 2017. O Instagram só passou a ter uma relevância mais significativa em 2023 e 2024. Neste último ano, alcançou 26% de participação de mercado. De 2018 em diante, o Pinterest conseguiu se tornar uma rede social mais significativa; depois de um pico de participação em 2021, chegou a 2024 com 18% de share. Desde 2009, outra rede social com relevância no Brasil tem sido o YouTube. Apesar de uma queda considerável entre 2013 e 2017, esta rede atingiu seu auge em 2018 e, no ano de 2024, chegou a 11,5% de participação no mercado. Depois de maior importância entre 2009 e 2010, o Twitter/X diminuiu bastante sua participação e chegou a 2024 com 7% de share.
1. Esses números ajudam a explicar tanto os imensos impactos políticos e ideológicos que as redes sociais adquiriram nos últimos anos no Brasil, quanto sua contribuição para um crescimento também muito significativo da extrema-direita. Em ambos os casos, as redes sociais têm servido para modificar a percepção das pessoas sobre a realidade social, ainda que tal percepção não tenha qualquer relação com essa realidade. Instrumento comum para isso é a publicação e a difusão massiva de conteúdos mentirosos (notícias falsas, fake news). Esses conteúdos foram fundamentais para a eleição de Bolsonaro em 2018, como no caso do inexistente “kit gay”, uma mentira que deturpava o conteúdo de uma política do governo federal contrária à homofobia e a colocava como uma medida de estímulo à homossexualidade nas escolas. Desde o início hegemonizado pela extrema-direita – tendo em vista que foi ela que mais se aprimorou com a massificação das redes sociais e suas atualizações tecnológicas –, o ambiente virtual, particularmente as redes sociais, também vem sendo mobilizado para a difusão de conteúdos fundamentalistas, envolvendo discursos preconceituosos, discriminatórios e que promovem ódio e violência contra oprimidos. Exemplo da eficácia dessa propaganda fundamentalista é o fato de as células neonazistas terem crescido mais de 270% no Brasil entre janeiro de 2019 e maio de 2021, se espalhando por todas as regiões do país e propagando o ódio contra feministas, judeus, negros e população LGBT+. Essa difusão massiva é reforçada por empresas de comunicação como a Jovem Pan e o Brasil Paralelo.
1. Vale ainda destacar que a internet e as redes sociais, esses novos ambientes capitalistas supostamente mais “livres” e “democráticos” que outros, já se tornaram, em poucos anos, grandes monopólios, verdadeiros feudos. As Big Techs – como Google (Alphabet), Meta, Apple, Amazon, Microsoft e, mais recentemente, o X (antigo Twitter), de Elon Musk – dominam esse mercado de tecnologia e operam pesadamente no Brasil. Geram lucros astronômicos com os brasileiros, processam, utilizam e vendem seus dados; possuem grande influência no país e fazem com que empresas, políticos, mídia e outras instituições dependam cada vez mais delas. As propostas de regulação das redes sociais têm esbarrado no pesado lobby das Big Techs, que entendem que redes nas quais se pode publicar de tudo e para todos – incluindo conteúdo mentiroso, fundamentalista, sensacionalista, fraudulento, intolerante etc. – proporcionam melhores condições para anúncios e aumento da permanência online, e, portanto, para os lucros e para o aumento da influência social. No Brasil, um país profundamente desigual e violento, a manutenção de um ambiente virtual sem qualquer regulação contribui diretamente com o fortalecimento da extrema-direita.
** EVANGÉLICOS, TEOLOGIA DA PROSPERIDADE E TEOLOGIA DO DOMÍNIO
1. As grandes igrejas católicas e protestantes (evangélicas) também foram agentes destacados no Brasil de 1985 a 2024; seus proprietários, o clero, constituem outra influente fração das classes dominantes. A religiosidade da população brasileira continua predominantemente católica, mas as denominações protestantes ou evangélicas tiveram grande crescimento nas últimas décadas. Entre os motivos para esse crescimento, estão: o menor número de barreiras burocráticas para a criação e a expansão de novas igrejas evangélicas; o trabalho religioso e ideológico – nos templos e, principalmente a partir dos anos 1980, em rádios e TVs com grande alcance –, e também político e econômico das denominações protestantes; a urbanização, especialmente a partir dos anos 1960, que levou massas de migrantes às cidades que, sobretudo nas periferias, foram acolhidas pelas igrejas evangélicas; o abandono da construção das CEBs no projeto social-liberal do PT, abrindo um “vácuo” aproveitado pelo neopentecostalismo; o fato de as abordagens pentecostais e neopentecostais não só serem mais adaptadas à cultura brasileira, mas também aos fundamentos capitalistas e mesmo neoliberais, como no caso da Teologia da Prosperidade; e o fato dessa religiosidade ser mais acessível, mais próxima da população, e possuir respostas mais concretas a seus problemas cotidianos.
1. Esse crescimento do protestantismo fica evidente nos números. A representação evangélica da população brasileira passou de 15,1% em 2000 para 21,6% em 2010, e chegou a 26,9% em 2020. Ou seja, as igrejas evangélicas quase dobraram em número (relativo) de fiéis num intervalo de 20 anos. Os autodenominados católicos ainda correspondem a cerca de 50% da população do país, mas apenas metade se diz praticante – sua força social está em franca decadência. Em 2021, os estabelecimentos evangélicos pentecostais ou neopentecostais eram 52% do total, tendo quadruplicado em número de igrejas desde 1998; vinham em seguida as igrejas evangélicas tradicionais (19%) e as igrejas católicas (11%). Destaca-se aqui a Assembleia de Deus (pentecostal), com mais de 17 mil unidades, ou 14% dos estabelecimentos religiosos do país. Os dados também indicam a interiorização das igrejas em território nacional ao longo das últimas décadas, penetrando em muitas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos. Em 2022, havia no Brasil mais templos religiosos do que espaços de educação e saúde somados. Cumpre ainda notar que essa influência evangélica em geral, e (neo)pentecostal em particular, foi diretamente estimulada no Brasil pelos Estados Unidos, como uma forma de enfraquecer a Teologia da Libertação (e as CEBs), movimento este que foi reforçado por ataques da própria Igreja Católica.
1. Desde os anos 1980, há entre os evangélicos brasileiros um aumento tanto da Teologia da Prosperidade quanto da Teologia do Domínio. Algumas denominações, inclusive, passaram de uma teologia à outra, e outras denominações têm buscado sincretismos, como no caso mais recente da Igreja Universal (IURD). Criada no Brasil em 1977, a IURD se expandiu muitíssimo nas últimas décadas para várias regiões do mundo. No Brasil, onde possui presença massiva e em franco crescimento, inclusive na internet, ela possui um projeto de poder próprio, que vem sendo promovido por meio da forte disputa dos sentidos e subjetividades de estratos mais precarizados das classes oprimidas. Entre 2011 e 2015, a IURD recebeu, apenas de doações bancárias, uma média de R$ 9,3 bilhões por ano.
1. A Teologia da Prosperidade é uma doutrina difundida principalmente entre as igrejas neopentecostais, que prega que a fé em Deus aliada às contribuições financeiras para a igreja traz bênçãos materiais e sucesso pessoal. Ela enfatiza que riqueza e saúde são sinais do favor divino, ao passo que as dificuldades podem resultar da falta de fé ou de doações. Em geral, essa teologia possui pressupostos que dialogam diretamente com aqueles do capitalismo e do neoliberalismo, em particular a busca por um sucesso individual, concebido majoritariamente como acesso à renda e à riqueza, e o empreendedorismo como forma de atingir esse sucesso. Com esse discurso, a Teologia da Prosperidade vem encontrando eco entre a população periférica com laços familiares e de solidariedade rompidos, sem apoio do Estado, e dependente das ações de apoio religiosas. A isso tem se somado um discurso conservador e mesmo reacionário, sobretudo entre as lideranças evangélicas, que colocam como valores do cristianismo: a defesa da família “tradicional”, em contraposição às políticas de gênero e aos avanços dos direitos LGBT+; a defesa da vida “desde a concepção”, como oposição aberta ao direito de aborto; a adesão às políticas neoliberais, que pregam o Estado mínimo e criticam as políticas assistenciais e afirmativas em favor da “meritocracia”; as propostas mais punitivistas como forma de combater o crime.
1. O envolvimento das igrejas cristãs com as disputas políticas e sociais não é fenômeno recente. No Brasil, em distintos momentos, as instituições religiosas tiveram protagonismo, tanto com posições à esquerda quanto à direita. Por exemplo, nos anos 1960, a Igreja Católica brasileira possuía tendências socialistas e conservadoras/reacionárias. A Teologia da Libertação, que defendia a luta por justiça social, foi uma das vertentes que se destacou na resistência à ditadura militar, mas que foi perdendo influência ao longo dos anos 1980 para a Renovação Carismática Católica, surgida nos EUA e que se aproximou de algumas práticas do pentecostalismo. O fortalecimento das igrejas evangélicas se tornou evidente nesse mesmo período. Na Assembleia Constituinte de 1987, os protestantes se organizaram para eleger representantes e barrar o avanço de uma agenda mais progressista. Em 2010, as lideranças evangélicas tiveram grande importância nas eleições presidenciais, marcadamente com a candidatura de Marina Silva, pelo Partido Verde (PV), cujo eleitorado foi disputado pelo PT e pelo PSDB no segundo turno. Os casos são abundantes.
1. Mas o que importa mais, neste momento, é destacar que, ao longo desse processo de incidência política e social, se consolidou, principalmente entre evangélicos neopentecostais, a Teologia do Domínio, uma doutrina que prega que os fiéis devem assumir posições de poder e influência na sociedade para implementar princípios bíblicos no governo, na economia e na cultura. Defende que cristãos têm um mandato divino para dominar as instituições e moldar leis e políticas conforme valores religiosos, muitas vezes desafiando a separação entre Igreja e Estado. A progressiva participação política e social evangélica no país pode ser entendida nesse sentido. Tal participação se evidencia nas articulações que existem no Congresso, as quais, apesar de existirem desde os anos 1980, apenas em 2003 foram formalizadas, com a criação da Frente Parlamentar Evangélica. Essa “bancada evangélica” tem incidido fortemente nas pautas do Congresso e mesmo nas eleições presidenciais; o apoio dado a Bolsonaro em 2018 foi determinante para sua vitória.
** IDEOLOGIA NEOLIBERAL, THINK TANKS E EMPREENDEDORISMO
1. A ideologia do neoliberalismo – o qual, conforme discutido, ganhou força no mundo a partir dos anos 1980, e que marcou o Brasil dos anos 1990 em diante – foi promovida no país por setores das classes dominantes e suas instituições culturais, dentre as quais think tanks internacionais. Think tanks são instituições fundadas sobretudo por empresários, com o objetivo de produzir e disseminar conhecimento e, assim, influenciar políticas públicas, economia e debates sociais. No Brasil, alguns deles foram importantes nos anos estudados, como o Instituto Liberal, o Instituto de Estudos Empresariais e o Instituto Atlântico que, desde a transição democrática, contribuíram para institucionalizar um movimento cultural neoliberal no país. Seu trabalho teve como foco a tradução de livros das escolas econômicas Austríaca e de Chicago, a promoção de debates, a produção de artigos e outras atividades voltadas a empresários, jornalistas, professores universitários e políticos. O Instituto Atlântico buscou uma atuação mais diversificada, mirando também nos trabalhadores e promovendo o discurso de que pessoas comuns poderiam se beneficiar das privatizações. Fato é que as posições dos think tanks ganharam espaço na sociedade brasileira a partir dos anos 1990, e contribuíram diretamente para produzir uma opinião pública favorável ao neoliberalismo.
1. No fim dos anos 2000, parte desses think tanks se reestruturou e outros deles surgiram, como o Instituto Ludwig Von Mises Brasil e o Estudantes pela Liberdade, ambos os quais defensores de políticas neoliberais e ultraliberais, e o Instituto Millenium, organização mais “refinada”, cujo foco foi formar jornalistas, palestrantes, comunicadores em geral, contando com participação ativa de nomes como Ali Kamel, chefe de jornalismo da Globo por 11 anos. Parte deles passou a se articular internacionalmente com a Atlas Network, rede global de institutos com tais perspectivas políticas e econômicas. Em termos gerais, essa direita dos think tanks defende princípios como o direito à propriedade privada, a livre-iniciativa e a meritocracia, e se contrapõe às políticas de intervenção na economia, aos programas sociais e à ampliação de direitos de minorias. Não raro, seu discurso termina promovendo o ódio aos oprimidos e se aproximando das ideias da extrema-direita. Os ultraliberais vão além dos neoliberais, ao defenderem medidas como o fim do Banco Central e do monopólio da moeda, a abolição de agências reguladoras, o fim de políticas de renda mínima e de investimentos básicos em infraestrutura, saúde e educação. Filosoficamente, defendem liberdades individuais, como o porte de armas, a legalização das drogas, do aborto e da união homoafetiva. Porém, no Brasil, exceto pelo porte de armas, essas liberdades se chocam com valores conservadores e reacionários que parte desses ultraliberais decidiu não enfrentar, por estarem relacionadas às bandeiras da esquerda. Alguns, inclusive, chegam ao absurdo de se reivindicar “libertários”, tentando se apropriar de um termo historicamente vinculado à tradição socialista. Diferentes experiências resultaram dessa atuação dos think tanks no Brasil, como nos casos do Movimento Livres e do Partido Novo. Duas outras experiências se destacaram. A primeira, o Movimento Brasil Livre (MBL), que tem entre seus membros ex-integrantes de think tanks ultraliberais. Esse movimento se destacou nos protestos contra Dilma, entre 2015 e 2016, dentre outras coisas, por usufruir de uma linguagem jovem e do intensivo uso das redes sociais. A segunda, o portal Brasil Paralelo, criado em 2016 para promover a doutrinação ideológica (ou “guerra cultural”) em larga escala. Ele tem servido para informar a extrema-direita e vem buscando presença nas escolas por meio de audiovisuais. Esse portal, cuja versão paga atingiu 500 mil assinantes em 2023, é inspirado nas ideias de Olavo de Carvalho e faz uso de revisionismo histórico para defender pautas reacionárias e antiesquerda. Em certa medida, o bolsonarismo também é fruto desse caldo cultural, que fortaleceu a bandeira “liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes”.
1. Uma das formas da ideologia neoliberal que vem se difundindo massivamente no Brasil há algumas décadas é o discurso do empreendedorismo. Esse discurso tem ganhado espaço não apenas em meios mais tradicionais (TVs, jornais, livros etc.), mas especialmente nas redes sociais com a presença de coaches e influenciadores, e por meio da venda de cursos. Segundo esse discurso, que surgiu no Brasil nos anos 1990, o “sucesso” – que é sempre concebido em termos de acúmulo individual de renda e riqueza – é resultado de uma meritocracia vigente em toda a sociedade. Ele é possível a qualquer pessoa, desde que ela “trabalhe enquanto os outros dormem”, “inove para superar os concorrentes”, “pense fora da caixa” etc. Um grande mercado foi criado para promover esse “empreendedorismo”, que tem se espalhado para áreas tão diferentes como economia e negócios (cultura empresarial, discurso dos “faria limers” etc.), governos e ONGs (políticas públicas para “empreendedores”, “economia criativa”, “empreendedorismo periférico” etc.), partidos políticos de direita e esquerda (incluindo o petismo), religião (“teologia da prosperidade”), educação (cursos secundários e superiores de administração, técnicos etc.), bem-estar (influenciadores fitness, universo “maromba” etc.), movimentos masculinistas (redpill etc.) e música (artistas do funk, do trap etc.).
1. Essa forma de ideologia neoliberal está se espalhando com a crescente incorporação de seus conceitos e de seu modo de pensar, e vem tendo impacto direto nas classes oprimidas, incluindo os trabalhadores precarizados e desempregados. O discurso ideológico do empreendedorismo e a identidade empreendedora atingem diretamente a subjetividade de trabalhadores em busca de sobrevivência material e desenraizados de sua própria identidade de trabalhadores. Em 2002, estima-se que cerca de 14 milhões de brasileiros entre 18 e 64 anos estavam envolvidos em algum negócio como “empreendedores”; em 2018, esse número passou a cerca de 52 milhões. Ou seja, em apenas 16 anos esses “empreendedores” brasileiros se multiplicaram por quase quatro vezes – situação que, em 2018, abarcava dois em cada cinco adultos do país. Utilizamos as aspas para falar desses “empreendedores” porque esse termo esconde a precariedade da condição de trabalho de muitos deles, já que metade dos negócios em questão têm faturamento de até um salário mínimo por mês. A maioria dessas pessoas não “empreende” por opção, mas simplesmente porque não há outra alternativa.
1. O discurso do empreendedorismo e, de algum modo, todas as formas de ideologia neoliberal, nada mais são do que uma maneira eficaz de lidar com a crise do trabalho e do desemprego gerada pelo próprio neoliberalismo. Suas consequências para os trabalhadores são terríveis. Antes de tudo, porque os trabalhadores têm dedicado parte considerável de seus parcos rendimentos ao consumo desses produtos que ensinam a atingir o “sucesso” e que, na maioria dos casos, se baseiam em mentiras e relatos pessoais sem possibilidade de concretização para outras pessoas e de maneira mais generalizada. Inclusive, mais recentemente, até as apostas e os cassinos online vêm sendo vendidos como possibilidade para se atingir esse “sucesso”; as empresas desse ramo estão lucrando enormemente às custas dos de baixo. No entanto, a consequência mais problemática para as classes oprimidas é que, com a adoção dessa ideologia neoliberal, fatos sociais como a precarização do trabalho e o desemprego passam a ser compreendidos não como problemas da sociedade capitalista-estatista, mas como falhas de indivíduos que não se esforçam o suficiente e nem conseguem se adaptar ao mercado concorrencial. Ou seja, esse discurso passa a ser funcional ao capitalismo, pois domestica trabalhadores que, frente ao próprio “insucesso”, responsabilizam a si mesmos e não a estrutura da sociedade e as classes que dela se beneficiam. Isso não apenas faz com que os trabalhadores não se organizem para buscar soluções coletivas, mas que comprometam sua saúde mental, ao terminarem se culpando pelo próprio “fracasso”. Enfim, a difusão generalizada das distintas formas de ideologia neoliberal é a universalização da cultura do “cada um por si”, do “todos contra todos”, do “cada um tem a liberdade de se foder do jeito que quiser”, para utilizar os termos de Paulo Guedes.
** EDUCAÇÃO E PESQUISA SOB O NEOLIBERALISMO
1. No Brasil, as áreas da educação e da pesquisa tiveram marcos relevantes nos anos estudados e passaram por uma reestruturação. Na educação básica, o cenário de abertura “lenta, gradual e segura” permitiu a articulação de fóruns de debate ao longo dos anos 1980, representados principalmente pelas Conferências Brasileiras de Educação, que reuniram professores e pesquisadores de todo o país. Essa iniciativa chegou a propor um projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1988, mas que foi derrotado no Congresso. Apesar disso, naquele mesmo ano, a Constituição conseguiu iniciar essa reestruturação, especialmente ao reconhecer a educação como um direito de todos e um dever do Estado. Tal reestruturação teve continuidade com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), finalmente aprovada em 1996. Essa lei aumentou o número de dias letivos de 180 para 200 e previu que os professores tivessem diploma universitário; pretendia-se, com isso, manter os alunos por mais tempo na escola e melhorar a qualidade do ensino. Essa lei também estabeleceu os conselhos de escola e as associações de pais e mestres. Nessa mesma época, o Estado brasileiro universalizou as vagas no ensino fundamental, ainda que sem assegurar a qualidade do ensino. Muitos alunos passaram a ser reprovados e poucos a chegar ao ensino médio. Para resolver esse problema, foram criados fundos federais que garantiam recursos para a educação básica, como, em 1996, o FUNDEF (Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), que foi substituído em 2007 pelo FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), e os auxílios às famílias para evitar a evasão escolar, como o Bolsa Escola.
1. A LDB de 1996 definiu o ensino médio como a última etapa da educação básica e estabeleceu a educação profissional técnica de nível médio. Essas medidas atenderam recomendações de órgãos internacionais, a exemplo da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e do Banco Mundial, como prioridades para inserir o país no mundo competitivo, globalizado e neoliberal. Mesmo com muitos problemas, os mencionados esforços institucionais trouxeram resultados, inclusive para o ensino médio. Em 1990, a proporção de pessoas com ensino médio no país era de 13%; em 2022, esse índice saltou para 53%. Atualmente, 92% dos jovens entre 15 e 17 anos frequentam a escola, sendo quase 90% na educação pública. Ainda assim, tanto a qualidade do ensino quanto a evasão e a repetência são fatores problemáticos que continuam a marcar o ensino médio no país.
1. Desde o início dos anos 2000, as políticas educacionais brasileiras vêm buscando atender parâmetros internacionais e nacionais de avaliação sobre a qualidade do ensino. Dentre os principais instrumentos avaliativos estão o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), da OCDE, introduzido no Brasil em 2000, e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), desenvolvido pelo próprio governo brasileiro e implantado em 2007. Porém, sob o domínio ideológico do neoliberalismo, tanto as concepções de educação quanto os instrumentos avaliativos vigentes no país acabam reforçando um modelo neoliberal de educação. Segundo esse modelo, a educação é apenas uma forma de transmissão acrítica de conhecimento, que valoriza o capital cultural dos estudantes para uma futura concorrência no mercado de trabalho. Em vez de uma instrução integral, de uma educação voltada à reflexão crítica, à consciência política e à transformação social, o que se promove com esse modelo são outros critérios, tais como competitividade, eficiência, produtividade, desempenho mensurável, ranqueamento e controle.
1. Os anos 2000 também foram marcados pela influência do empresariado nos rumos da educação brasileira. Destacou-se, nesse sentido, o movimento Todos pela Educação, fundado em 2006 como uma “organização da sociedade civil”, e formado por empresários de grandes corporações brasileiras, como bancos, indústrias e estabelecimentos de comunicação. Movimentos desse tipo têm sido cada vez mais influentes na definição de políticas públicas sobre a educação, em especial no ensino médio. Suas atenções vêm se concentrando mais em mudanças curriculares, e menos na qualificação e na valorização dos professores e trabalhadores da educação, e na infraestrutura das escolas. O crescimento dessa participação empresarial na educação culminou na aprovação, em 2017, do chamado Novo Ensino Médio e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Evidenciando a força social do empresariado desse setor, essas duas mudanças constituíram mais uma reforma neoliberal na educação, garantindo a implantação de uma organização curricular mais flexível, reduzindo as disciplinas vinculadas às ciências humanas, abrindo espaço para o discurso empreendedor e aumentando ainda mais as desigualdades entre escolas públicas e particulares. Em 2024, essas propostas foram novamente alteradas, com a retomada de horas de formação geral básica, mas sem a perda do caráter neoliberal que marcou essa reforma de 2017.
1. Cabe lembrar também que, desde os anos 2010, movimentos de direita e extrema-direita têm exercido influência sobre a educação, por meio das chamadas “guerras culturais”. O destaque, aqui, foi a onda de movimentos reacionários e fundamentalistas religiosos, tais como o Escola sem Partido. Por meio da atuação de políticos e jovens influenciadores, principalmente nas redes sociais, esses movimentos denunciaram uma suposta “agenda comunista” nas escolas brasileiras. Eles colocaram em xeque a liberdade de cátedra, sobretudo dos professores do ensino médio, ainda que suas ações também tenham impactado o ensino fundamental e superior. Municípios e até estados aprovaram projetos de lei de censura no ensino, inspirados nas pautas do projeto Escola sem Partido e outros movimentos análogos, atacando espantalhos como “ideologia de gênero”, “propaganda de orientação sexual” e “doutrinação marxista” nas escolas. Mesmo afirmando um vago discurso de “liberdade de expressão”, a extrema-direita vem defendendo e, onde pode, praticando abertamente a censura na área da educação e em outras áreas.
1. O ensino superior também se modificou bastante nas últimas décadas. Anteriormente um espaço mais elitizado, ele passou a contar com a crescente presença de setores mais amplos das classes oprimidas e de raças e etnias historicamente oprimidas. Em 1990, 8% da população tinha ensino superior; em 2022, esse índice subiu para 19%. No entanto, é importante notar que, apesar dessa democratização no acesso ao ensino superior, ela se deu, em muitos casos, por meio do fortalecimento do mercado privado de educação e do endividamento. Por exemplo, em 2021, 25% dos estudantes de graduação estavam em instituições públicas e 75% em instituições privadas. Se é verdade que políticas públicas como o Programa Universidade para Todos (PróUni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) contribuíram para esse aumento de estudantes e a ampliação da diversidade nas universidades brasileiras, também é verdade que eles favoreceram o mercado privado de educação e, no caso do FIES, endividaram significativamente os alunos e suas famílias. Além disso, parte relevante das universidades e faculdades privadas, em especial aquelas voltadas aos trabalhadores de menor renda, não tem conseguido inserir os alunos em suas áreas depois da conclusão da graduação. Ou seja, elas ficam com o dinheiro dos estudantes – ou mesmo com os recursos e/ou benefícios do governo, nos casos dos estudantes do Pró-Uni –, sem proporcionar a eles as condições para melhorar sua inserção no mercado de trabalho ou mesmo para avançar em sua mobilidade social. Tal condição se complica na medida em que o Brasil não possui uma estrutura econômica e social capaz de incorporar no mercado de trabalho muito mais do que os 10% ou 15% da população que, no último período, cursaram o ensino superior.
1. As universidades públicas do Brasil são as maiores responsáveis pelo desenvolvimento de pesquisas no país. E mesmo com o baixo investimento em pesquisa, há uma produção razoavelmente importante em diversas áreas, apesar de elas se concentrarem geograficamente em São Paulo e outros poucos estados. No entanto, em termos quantitativos e qualitativos, essas pesquisas são ainda muito limitadas, sobretudo por causa dos baixos investimentos que o Brasil realiza nessa área. Analisando as últimas décadas, é possível estabelecer uma correlação entre a proximidade com o neoliberalismo e o investimento em pesquisa: de modo geral, quanto mais neoliberais, menos os governos investiram em pesquisa. Os governos FHC investiram menos que os governos de Lula e Dilma, e os piores investimentos ficaram com Temer e Bolsonaro, que também contribuíram com ataques ideológicos à autonomia universitária, à ciência e reforçaram o negacionismo, como se viu durante a pandemia. Além disso, permaneceu ao longo de todo o período avaliado uma lógica mercantil nas pesquisas e uma crescente influência do mercado privado nos financiamentos. Os recursos foram mais destinados às áreas das ciências biológicas, exatas e tecnológicas – particularmente quando vinculadas a setores de maior interesse econômico, como agronegócio, energia (petróleo, gás, mineração), tecnologia da informação, defesa e indústria farmacêutica – e menos às ciências humanas, à filosofia e às artes, setores mais precarizados e muitas vezes acusados de serem “doutrinadores” e/ou “inúteis”. Os recursos para pesquisa nesses anos vieram em sua ampla maioria de órgãos públicos, como o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). O financiamento privado é bem minoritário e, em geral, não ultrapassa 10% das verbas destinadas à pesquisa em universidades no país.
** CLASSES SOCIAIS E LUTA DE CLASSES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
1. Partindo de nossa concepção de classe social e a luta de classes[4], é possível analisar a estrutura de classes, os conflitos e contradições de classe que tiveram presença na sociedade brasileira entre 1985 e 2024. Concebemos a estrutura de classes no Brasil contemporâneo, em suas manifestações gerais, como sendo composta de algumas classes dominantes, algumas classes oprimidas (ou “classe trabalhadora”, de maneira mais genérica) e certos setores intermediários. Atualmente, de maneira aproximada, as classes dominantes correspondem a 1% da população brasileira, as classes oprimidas a 88% e os setores intermediários a 11%. Em suas manifestações mais particulares, as classes dominantes se desdobram em quatro classes sociais concretas: burguesia, burocracia, donos do conhecimento e da informação, altos gestores; as classes oprimidas se desdobram em três classes sociais concretas: proletariado, campesinato e povos tradicionais, marginalizados; os setores intermediários se desdobram em duas classes concretas: pequena burguesia e médios gestores.[5] Em 2020, quando realizamos um estudo mais aprofundado a esse respeito, essas classes sociais concretas correspondiam ao seguinte percentual da população brasileira:
1. Essas classes sociais concretas (burguesia, proletariado etc.) possuem frações e expressam a luta de classes de maneira particular. Como colocado, elas se agrupam em classes dominantes e classes oprimidas, e expressam a luta de classes de maneira geral. A seguir, serão discutidas essas classes e suas frações; a maioria dos dados se refere ao mencionado estudo de 2020.
1. Analisar a luta de classes no Brasil entre 1985 e 2024 implica entender elementos estruturais e conjunturais, muitos dos quais foram pontuados ao longo desse texto. Recordemos que o conflito entre classes dominantes e classes oprimidas é o aspecto mais importante da sociedade capitalista-estatista, e no Brasil contemporâneo, isso não é diferente. Isso é assim não por um determinismo de classe e nem por ignorarmos outras formas de dominação, mas porque a luta de classes é o principal conflito contraditório de nossa sociedade. As classes dominantes brasileiras – uma minoria restritíssima que, como vimos, não representa mais que 1% da população brasileira atual – protagonizam quatro formas de dominação, que submetem as classes oprimidas – a grande maioria que, também como vimos, representa no Brasil atual por volta de 88% da população. Por meio da exploração do trabalho, sobretudo a burguesia e os altos gestores encabeçam a apropriação dos excedentes do trabalho dos proletários e camponeses, por meio da qual conseguem lucros e bem-estar. Através da coerção física e da dominação político-burocrática, a burocracia protagoniza o governo das classes oprimidas, e a violência e a repressão contra elas. Desse modo, tomam as decisões políticas, intimidam, prendem e matam os oprimidos. Por meio da dominação intelectual-moral, os donos do conhecimento e da informação monopolizam a produção e a difusão de ideias, de informações, de concepções de mundo que contribuem diretamente para legitimar as relações de dominação.
1. Em resumo, no Brasil contemporâneo, as classes dominantes exploram, governam, reprimem e enganam as classes oprimidas que, por sua vez, são exploradas, governadas, reprimidas e enganadas. Essa é a expressão geral da luta de classes no país. Contudo, nos anos analisados, houve também as expressões particulares dessa luta de classes. Dentre elas, por exemplo, aquela que colocou a burguesia industrial e os altos gestores, de um lado, e o proletariado assalariado, de outro; aquela que colocou a burguesia agrária e extrativista, de um lado, e o campesinato e os povos tradicionais, de outro; aquela que colocou a burguesia financeira ou a burocracia ou os donos do conhecimento e da informação, de um lado, e todas as classes oprimidas de outro. Conflitos que, a depender do caso, envolveram aspectos internacionais e/ou se processaram em nível nacional, regional, local ou mesmo em apenas um estabelecimento de trabalho.
** CLASSES DOMINANTES, CAPITAIS E PROPRIEDADES
1. A burguesia brasileira possui o monopólio do capital econômico e da propriedade dos meios econômicos (de produção e distribuição); ela se divide nas frações agrária, industrial, financeira e comercial/serviços. Conta com latifundiários, grandes empresários, grandes acionistas e investidores e banqueiros. No Brasil contemporâneo, a alta burguesia brasileira é um segmento restritíssimo, que inclui os bilionários, os grandes milionários (com riquezas acima de US$ 50 milhões) e suas respectivas famílias. Não totalizam mais que poucos milhares de pessoas ou um segmento ínfimo da população (em torno de 0,001%). Ainda há alguns poucos brasileiros que, dentro desse pequeno grupo, vêm aumentando ainda mais sua riqueza. Por exemplo, quando a lista dos bilionários globais (em dólares) da revista Forbes começou a ser publicada regularmente, em 1987, havia apenas três brasileiros nela. Em 2024, esse número havia subido para 69. Ou seja, nesses anos, marcados por um cenário de extrema desigualdade, o número de bilionários brasileiros se multiplicou por mais de 20 vezes! A média burguesia reúne os proprietários de grandes e médias empresas (mais de 500 e mais de 100 funcionários, respectivamente) e suas famílias. Somam algumas dezenas de milhares de pessoas e representam por volta de 0,03% da população do país. Na grande maioria dos casos, burgueses brasileiros são homens e brancos; em 2024, por exemplo, não havia entre os bilionários brasileiros negros ou indígenas, e as mulheres representavam pouco mais de 20% deles. Obviamente, quando falamos desses dados, agora e mais adiante, não estamos trabalhando com a perspectiva liberal de representatividade, entendendo que seria melhor sermos dominados e explorados por pessoas com maior diversidade.
1. Essa burguesia está cada vez mais vinculada ao capital internacional, vínculo este que se expressa em termos de associação mas, principalmente, de subordinação à burguesia internacional e às suas corporações transnacionais. Durante os anos estudados (1985-2024), não houve no Brasil uma burguesia nacional desenvolvimentista, e nem com interesses de desenvolver o país, fato que se acentuou com a consolidação do neoliberalismo. Em termos socioeconômicos, essa burguesia esteve, na imensa maioria dos casos, voltada ao extrativismo e aos ganhos de curto prazo – quando foi possível, inclusive, ela se mudou para viver no exterior. Sua fração agrária se fortaleceu muito com a reprimarização e o desenvolvimento do agronegócio. Ela foi beneficiada com gigantescos investimentos do Estado, principalmente em função de seu já discutido papel na balança comercial do país. Sua fração industrial tem perdido muita força com o mencionado processo de retração da indústria de transformação. Ela vem transferindo seu capital para outros setores da economia, inclusive o financeiro. Sua fração comercial/serviços se desenvolveu consideravelmente com a urbanização e tal retração. Sua fração financeira foi muitíssimo beneficiada pelo neoliberalismo e pela financeirização econômica. Ela tem atraído outras frações das classes dominantes e estabelecido sua hegemonia no seio dessas classes. Contudo, apontar essa dominação da burguesia financeira não significa interpretar essas quatro frações da burguesia brasileira (agrária, industrial, comercial/serviços, financeira) separadamente. Isso porque, de algum modo, todas essas frações estão se beneficiando da financeirização neoliberal. Por exemplo, nos casos em que as burguesias agrária e industrial colocam seu capital em títulos do governo, ou quando a burguesia comercial/serviços realiza vendas a prazo e se beneficia amplamente dos juros.
1. De maneira geral, nos anos analisados, a riqueza da burguesia brasileira cresceu permanentemente e sua renda teve certas variações. Como apontamos, essa renda aumentou nos anos 1980, diminuiu um pouco até o fim dos 1990, manteve-se estável até 2013 e depois entrou numa tendência lenta de queda. Independente disso, a burguesia manteve em todos esses anos (1985-2024) uma distância enorme, tanto em termos de riqueza quanto de renda, em relação às outras classes sociais brasileiras. Vale mencionar que a maior parte dessa riqueza é constituída por imóveis e títulos (financeiros e de dívida), que normalmente são transmitidos por herança – algo que explica, em grande medida, a reprodução social dessa burguesia, que ocorre sem nenhuma “meritocracia”. Essa riqueza e essa renda são construídas por meio da exploração do trabalho dos brasileiros e a partir dos lucros produzidos por essa exploração. Daí seu interesse na manutenção da dominação de classe e no aumento de seus lucros. Entre 2012 e 2018, os extratos da burguesia nacional e internacional com presença no Brasil que tiveram as maiores taxas de lucro foram aqueles vinculados aos seguintes setores: papel e celulose, mineração, petróleo e gás, farmacêutico, têxtil, agropecuário, telecomunicações, transporte, infraestrutura, saúde, bancário e construção civil (até a Lava Jato). Em 2020, as empresas que mais pagaram dividendos no Brasil foram: Vale, Ambev, Petrobrás, Bradesco, Itaú, Banco do Brasil, Bovespa, Santander, Telefônica, Caixa Econômica Federal. Para se ter uma ideia, somente naquele ano, a Vale pagou a seus acionistas R$ 18,6 bilhões. Entre 2012 e 2020, a taxa de lucro das empresas (nacionais e internacionais) que operam no Brasil cresceu 19%. Mas, quando se observam os valores desses lucros (lucro nominal) os números são muito mais impressionantes. Somente os lucros apropriados pela burguesia brasileira – lucros remetidos ao Brasil, excluindo aqueles remetidos ao exterior – chegaram, em 2010, a R$ 13,2 bilhões, e, em 2018, a R$ 68,7 bilhões. Atualizando esses valores, podemos dizer que, entre 2010 e 2018, os lucros da burguesia brasileira cresceram 224%, ou seja, mais do que triplicaram! A série de dados mostra que os maiores saltos nesses lucros ocorreram em 2015 e sobretudo em 2018. É possível entender a substituição do governo Dilma pelo governo Temer e depois Bolsonaro nesse contexto.
1. No Brasil contemporâneo, essa burguesia é a grande responsável pela destruição ambiental. Ela possui enorme influência sobre os políticos, o judiciário, a grande imprensa, e comanda diretamente os altos gestores. Como deixou evidente a fraude multibilionária das Americanas em 2023, a burguesia brasileira pode cometer quaisquer crimes, que, na grande maioria dos casos, não será punida ou sequer constrangida publicamente. Ela usufrui amplamente das políticas e dos recursos do Estado, apesar de adotar na maioria dos casos discursos neoliberais. Em termos políticos e ideológicos, os anos analisados mostram uma burguesia alinhada na maioria dos casos à direita e à extrema-direita; uma burguesia defensora do neoliberalismo, mas com tendências que podem ser mais reacionárias, conservadoras ou mesmo progressistas. A burguesia brasileira optou por uma abertura controlada com Tancredo/Sarney, se posicionou com o PSDB e a direita tradicional contra o PT até os anos 2000, quando parte dela passou a endossar o projeto social-liberal petista. Essa burguesia apoiou em sua imensa maioria a derrubada de Dilma e o governo Temer; parte importante dela, em especial sua fração agrária, embarcou no governo Bolsonaro. O projeto econômico do bolsonarismo seduz todas as frações burguesas, mas suas posições políticas e sociais muitas vezes produzem discordâncias e deslocam o apoio de certos setores da burguesia para outras forças políticas.
1. A burocracia brasileira possui o monopólio do capital político e da propriedade dos meios políticos (de administração, controle e coerção); ela se divide nas frações política/partidária, militar, técnica/jurídica, empresarial/estatal. Conta com políticos eleitos (Executivo e Legislativo), alto escalão dos governos (secretários e ministros), juízes, promotores, delegados, militares, policiais (militares, civis, federais) e dirigentes de estatais. No Brasil contemporâneo, essa burocracia e suas famílias representam 0,75% da população. Em termos quantitativos, a fração militar é a maior, ainda que as frações com maior força social sejam a política/partidária e a técnica/jurídica. Nessas quatro frações, é muito comum que as influências familiares contribuam com o capital político dos burocratas e, assim, com a própria reprodução social da burocracia. Por exemplo, 2/3 dos senadores que ocuparam cadeiras no Congresso entre 1985 e 2022 faziam parte de famílias tradicionais da política. Ainda assim, algumas carreiras da burocracia são mais duradouras, e outras mais vinculadas às eleições e aos grupos no poder. Há, ademais, aquelas que funcionam como “porta giratória” para o setor privado. Entre 1985 e 2024, a burocracia brasileira foi majoritariamente branca e masculina, mas há outros dados sobre esse perfil que valem ser comentados. A representação feminina foi maior no judiciário do que em outras áreas, e a representação de negros foi maior nos municípios (vereadores) do que nos estados e na União. Excluindo essas situações, foi comum mulheres e negros terem ocupado entre 20% e 25% dos cargos, ainda que sua representação na burocracia brasileira esteja aumentando. Sobre isso, é importante atentar para as candidaturas “laranjas” de mulheres e negros, que se filiam, se candidatam, mas não disputam efetivamente as eleições, e também para a mudança na autoidentificação de raça/etnia por parte de políticos brancos. Em ambos os casos, cada vez mais frequentes, os partidos adotam essas condutas apenas para cumprir regras eleitorais e ter acesso a mais recursos financeiros e de campanha.
1. Essa burocracia possui interesses na manutenção da estrutura burocrática do país e na manutenção ou progressão de seus privilégios e de sua posição nessa estrutura. Buscando garantir a soberania do país e manter a “ordem”, as ações da burocracia possuem impacto direto no genocídio e no encarceramento em massa de negros e pobres, na repressão de protestos etc. Por exemplo, essa “manutenção da ordem” contribui diretamente para explicar o fato de que, entre 2023 e 2024, o Brasil contava com uma gigantesca população carcerária, que ultrapassava 650 mil pessoas, e era composta na grande maioria por homens (94%), negros (69%), e muitos jovens (43% de 18 a 29 anos). Mesmo sendo uma classe com imensa heterogeneidade de renda – com rendimentos que podem ir de um ou dois salários mínimos até mais de 20 ou 30 por mês –, essa burocracia consome parte relevante do orçamento público. Isso porque todas as suas frações contam com membros na elite do funcionalismo público brasileiro, os quais não apenas recebem altos salários, mas usufruem de estruturas caríssimas para a população. Por exemplo, em 2018, cada deputado federal custou em média R$ 5,5 milhões (ao ano) aos cofres públicos, e cada senador, R$ 20 milhões (ao ano). Além disso, a burocracia é uma classe bastante corporativista.
1. As frações política/partidária e empresarial/estatal enfrentam maiores disputas internas, características do meio político, mas possuem meios para defesa de seus próprios interesses particulares, tais como foros privilegiados, imunidades parlamentares e benefícios e privilégios autoestabelecidos. Do ponto de vista político e ideológico, essas frações são mais variadas do que as outras. Entre as frações técnica/jurídica e militar, o corporativismo é altíssimo e ainda mais evidente. Seus interesses setoriais são representados por associações de juízes, promotores, militares, policiais etc., tais como a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), o Clube Militar, a Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros Militares (ANERMB). Do ponto de vista político e ideológico, essas frações são majoritariamente de direita; a cúpula militar é mais alinhada à extrema-direita, e os juízes e procuradores mais alinhados à direita tradicional ou progressista.
1. Os donos do conhecimento e da informação possuem o monopólio do capital intelectual-moral e a propriedade dos meios culturais (de produção e difusão do conhecimento e das crenças); eles se dividem nas frações clero e empresariado cultural. Contam com altas lideranças religiosas protestantes e católicas, proprietários da grande imprensa, grandes empresários do mundo editorial e da educação. No Brasil contemporâneo, esses donos e suas famílias representam 0,05% da população e possuem o controle das grandes igrejas e dos grandes grupos de comunicação e educação no país. Muitos deles são, ao mesmo tempo, burgueses, e alguns também fazem parte da burocracia. Contudo, o fato de não ser este sempre o caso torna necessário entendê-los como uma classe social distinta. No Brasil atual, se destaca o clero vinculado às seguintes igrejas: Católica Apostólica Romana, Batista, Adventista, Luterana, Presbiteriana, Assembleia de Deus, Congregação Cristã, Igreja Universal, Evangelho Quadrangular e Testemunha de Jeová. Se destaca também o empresariado da comunicação vinculado aos seguintes grupos: Globo, SBT, Record, Band, Folha, RBS, Sada, Brasil Telecom. Se destaca, enfim, o empresariado da educação, vinculado aos seguintes grupos: Cogna/Kroton, Yduqs/Estácio, Universidade Paulista (UNIP), Laureate, Ser e Ânima. Entre 1985 e 2024, esses donos do conhecimento e da informação produziram e reproduziram posições e valores das classes dominantes, garantindo a legitimação do capitalismo-estatismo brasileiro. Seu interesse, normalmente compreendido por seus membros, esteve na manutenção da dominação e da estrutura de classe do país, na manutenção e no aumento de seus lucros, e na manutenção e na progressão de seus privilégios e posições. Também são, em sua maioria, homens, ricos e brancos.
1. Nos últimos anos, o clero evangélico, em particular pentecostal e neopentecostal, vem ganhando muita força social em todos os campos. Pastores como Edir Macedo, Silas Malafaia, RR Soares, além de serem donos de fortunas multimilionárias ou bilionárias, possuem canais diretos com os políticos e forte presença na imprensa. Esse clero pentecostal e neopentecostal, apesar de no passado ter apoiado governos petistas, desde meados dos anos 2010 vem se alinhando à extrema-direita. O clero católico, historicamente influente, continua com muita força política e ideológica, mas vem perdendo espaço para o clero evangélico. Apesar de muito menos numerosos que o clero, os empresários da comunicação são bem mais influentes que ele. Por meio de jornais informativos, entretenimento e publicidade, os Marinho, os Mesquita, os Frias, os Civita, os Abravanel, os Saad, os Macedo e outros produziram e difundiram uma quantidade imensa de informações, valores e ideais que foram determinantes para estabelecer a agenda (temas abordados) e o enfoque (maneira como eles são abordados) do debate público brasileiro. Subordinados à burguesia em geral e à burguesia financeira em particular – a qual vem, inclusive, adquirindo diversos veículos de imprensa nos últimos anos –, os proprietários da grande imprensa foram grandes promotores do neoliberalismo e do lavajatismo. Majoritariamente alinhados a uma direita neoliberal – com frequência progressista –, eles contribuíram diretamente para construir o antipetismo, que logo se converteu em extrema-direita. Nas últimas décadas, os empresários da educação também têm ganhado força social. Figuras como Chaim Zaher, José Janguiê Diniz, Carlos Wizard, Oto De Sá Cavalcante, Elizabeth Guedes (irmã do ex-ministro Paulo Guedes), Neca Setubal (que participou da transição para o atual governo Lula-Alckmin) e a família Senna (que tem grande interlocução com o governo de São Paulo), além de acumularem capital econômico e político, vêm intervindo diretamente na concepção de educação nas escolas e nas universidades privadas, promovendo, conforme discutido, modelos e valores associados ao neoliberalismo e ao mercado capitalista. Esse empresariado cultural vinculado à imprensa e à educação tem buscado encontrar uma alternativa a Bolsonaro que mantenha seu projeto econômico, mas que seja menos reacionário e tosco culturalmente.
1. Os altos gestores possuem o controle ou grande influência no controle dos meios econômicos e/ou culturais; eles se dividem nas frações empresariais e culturais. Contam com altos gestores das diferentes formas de propriedade (excluindo a burocracia), CEOs, presidentes e diretores de grandes empresas, diretores de jornalismo e editores-chefes de grandes redes de comunicação, diretores e gestores de grandes fundações e ONGs, altos administradores das universidades (burocracia acadêmica). No Brasil contemporâneo, esses altos gestores e suas famílias representam 0,05% da população. Trata-se de uma classe composta por assalariados ou PJs (pessoas jurídicas) muito privilegiados e com altíssimos salários, que vão de 20 a 80 salários mínimos por mês – e que, em alguns poucos casos, particularmente nos bancos, chegam a mais de mil salários mínimos por mês. Por exemplo, no ano de 2017 o presidente da Vale, Fabio Schvartsman, recebeu mais de R$ 58 milhões, ou seja, quase R$ 5 milhões por mês – valor que representou um aumento de 445% em relação ao valor recebido por ele ano anterior. Esses altos gestores são representantes diretos da burguesia; normalmente foram convencidos por ela e fazem o papel dela no dia a dia, com destaque para as multinacionais, empresas de capital aberto etc. Entre 1985 e 2024, no caso empresarial, eles se dedicaram a operar a exploração dos trabalhadores e garantir o acúmulo de lucros da burguesia; no caso cultural, se dedicaram a contribuir com a produção e a reprodução dos valores e ideais das classes dominantes, legitimando o capitalismo brasileiro. Também atuaram para manter a dominação e a estrutura de classe, para manter e aumentar os lucros das empresas em que trabalham, e, ao mesmo tempo, para manter e ampliar seus privilégios e posições. Fizeram esse papel de “cães de guarda” da burguesia e dos donos do conhecimento e da informação, mesmo que, quando comparados a seus patrões, tenham um acesso muito menor à renda e à riqueza. Em geral são de direita, com tendências que podem ser mais reacionárias, conservadoras ou mesmo progressistas; há uma minoria deles que é social-liberal.
** CLASSES OPRIMIDAS: PROLETARIADO, CAMPESINATO E OUTRAS
1. O proletariado é composto por trabalhadores assalariados formais, autônomos e precarizados, que não possuem capital e nem propriedade dos meios, que estão nas cidades e nos campos, e vinculados ao setor privado, público e outros. Ele se divide nas frações assalariados formais, autônomos e precarizados. Conta com assalariados mais estáveis – como funcionários públicos concursados e assalariados empresas e “CLTs” em geral – e menos estáveis – como trabalhadores de telemarketing, pequenos comércios, construção, supermercados, terceirizados do serviço público; conta também com trabalhadores autônomos – como feirantes, caminhoneiros, taxistas, professores particulares – e precarizados com patrão (empresa) – como trabalhadores de aplicativos, temporários e informais do setor privado e público – e sem patrão (empresa) – como domésticas, donas de casa, trabalhadores que vivem de pequenos serviços e bicos, e vendedores ambulantes.
1. No Brasil contemporâneo, o proletariado corresponde a 75% da população e das famílias do país. O proletariado urbano (das cidades) corresponde a 90% do proletariado e o proletariado rural (dos campos) – assalariados e temporários vinculados principalmente ao agronegócio – corresponde a 10% de todo o proletariado brasileiro. Também é possível estratificar esse proletariado brasileiro de outras maneiras: 47% dele trabalha para o setor privado, 12% para o setor público e 41% possui outras relações (autônomos, domésticos etc.); em torno de 50% dele é composto por assalariados formais e informais e 50% por trabalhadores autônomos, precários, domésticos e desempregados. Atualmente, os proletários brasileiros que mais produzem riqueza estão nos seguintes setores: serviços, público, comércio e indústria de transformação. Entre 1985 e 2020, ao analisar os setores com presença desse proletariado, podemos fazer alguns comentários. Primeiro, o crescimento da presença de trabalhadores nos setores dos serviços – que passou de 20,5% em 1985 para 29,4% em 2020 – e do comércio – que foi de 13,2% em 1985 para 19,8% em 2020. Segundo, a diminuição da presença de trabalhadores no setor público (administração pública)– que passou de 22% em 1985 para 18,6% em 2020 – e na indústria de transformação – que foi de 26,2% em 1985 para 15,3% em 2020. Ainda que a retração dessa indústria seja um processo fundamental da conjuntura de médio prazo brasileira, há ainda um contingente relevante, em termos quantitativos e percentuais, de proletários na indústria de transformação e mesmo de operários em sentido mais restrito. Os subsetores dessa indústria com maior presença proletária são: alimentos e bebidas, indústria química e indústria têxtil. Desde 1985, os subsetores em que essa presença tem diminuído são: metalúrgico, elétrico e comunicação; borracha, fumo e couros.
1. Na atualidade, os aspectos mais relevantes que envolvem esse proletariado brasileiro são a crescente precarização do trabalho e a imensa força de trabalho excedente (“exército industrial de reserva”). Desde a consolidação do neoliberalismo, o trabalho no Brasil vem passando por uma onda de precarização, que se acentuou sob FHC, diminuiu de ritmo nos governos petistas e, de 2015/2016 em diante, só tem se aprofundado. São cada vez mais comuns trabalhos temporários, jornadas flexíveis e terceirizações, inclusive no setor público, com as Organizações Sociais (OSs); e também ataques aos direitos dos trabalhadores, além de enfraquecimento e burocratização dos sindicatos. Entre 1995 e 2014, houve uma tendência de aumento dos trabalhadores com carteira assinada no setor privado brasileiro, mas tanto nos anos FHC quanto nos anos petistas, esse aumento se fez, na grande maioria dos casos, com a criação de empregos precários que, apesar da formalidade, contavam com baixa remuneração. Por exemplo, do total de 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década do século XXI, 95% eram empregos que pagavam aos trabalhadores até 1,5 salário mínimo ao mês. Mas, a partir de 2015, já num contexto de crise, mesmo esses empregos privados formais e de baixa remuneração foram desaparecendo e entraram em tendência de queda. Entre 2016 e 2017, com o impulso da Reforma Trabalhista, os trabalhadores sem carteira ou por conta própria se tornaram mais numerosos que os trabalhadores com carteira assinada no país, situação que se aprofundou nos anos seguintes até 2022. Mesmo levando em conta que, com essa Reforma, houve um salto brutal de celetistas contratados por tempo determinado – que, de 2018 para 2019, se multiplicaram por mais de 15 vezes. Essa precarização foi reforçada a partir de meados dos anos 2010, com o aumento dos trabalhadores por aplicativo vinculados a empresas como Uber, 99, iFood, Rappi, Loggi, Lalamove etc. De 2012 a 2022, os condutores de motocicletas, automóveis, taxis e caminhonetes cresceram 40% no país. No fim de 2022, o Brasil tinha em torno de 1,5 milhão de trabalhadores de aplicativo – a maioria deles, motoristas de transporte particular, seguidos de entregadores de comida, outros entregadores, taxis e serviços gerais. Naquele ano, a maioria dos motoboys tinha entre 20 e 39 anos e recebia, em média, pouco mais de um salário mínimo; a maior parte dos motoristas tinha entre 30 e 39 anos e recebia, em média, pouco menos de dois salários mínimos ao mês. Essa precarização atingiu também o proletariado que atua no serviço público. As vagas e os salários diminuíram ano a ano para esses trabalhadores. Isso fica evidente quando se observa que os gastos da União com pessoas vêm caindo permanentemente. Para se ter uma ideia, entre 1995 e 2019, esse gasto (em relação à receita total) caiu de 15,5% para 7,7% – ou seja, foi reduzido pela metade. Mesmo os trabalhadores altamente qualificados (mestres e doutores) têm convivido com um crescimento da informalidade. Inclusive, a informalidade do trabalho em geral é um fato a ser destacado, visto que, na atualidade, ela atinge quase 40% dos trabalhadores brasileiros, sendo mascarada com o discurso do empreendedorismo.
1. Entender a força de trabalho excedente no Brasil implica ir além das estatísticas formais de desemprego. Não se trata, como em certas ocasiões recentes, de um problema da metodologia do IBGE, mas de como ler os dados. Essa força de trabalho excedente certamente envolve aqueles que essa instituição classifica como “desocupados” (e que a imprensa noticia como “desempregados”): pessoas sem trabalho remunerado, disponíveis para trabalhar e que estão ativamente procurando emprego. Mas tal força vai muito além disso. Iniciemos pelas tendências gerais da taxa de desemprego no Brasil ao longo das últimas décadas. Entre 1985 e 1990, essa taxa ficou em torno de 5%; dos anos 1990 (em especial a partir do Plano Real) até 2010, ela subiu e permaneceu em torno de 9%; entre 2015 e 2017, no contexto da crise e do impeachment, ela subiu bastante e permaneceu entre 12% e 13,5%; em 2021, durante a pandemia e o governo Bolsonaro, ela atingiu o pico de 14,8%; e, depois disso, veio caindo e chegou, em 2024, sob Lula, a 6,8%. Recentemente, esse desemprego vem atingindo muito os jovens entre 18 e 24 anos, particularmente aqueles com ensino médio completo. Contudo, como dissemos, para entender a força de trabalho excedente é necessário ir além desses “desocupados”/“desempregados”, e abarcar também as pessoas que não estão trabalhando e que estão subempregadas. No ano de 2020, por exemplo, quando a média anual da taxa de desemprego foi de 13,8%, a força de trabalho excedente chegou a 43,7% da população ou 68% da força de trabalho. Vejamos. Esses 43,7% abarcam todos os brasileiros sem emprego (em idade apta para o trabalho, mas que não realizam atividade remunerada) e subempregados (trabalhadores privados e domésticos sem carteira assinada, empregadores sem CNPJ e trabalhadores familiares auxiliares). Ou seja, são os sem emprego e subempregados divididos pelo total da população brasileira. Esses 68% levam em conta apenas a força de trabalho disponível, ou seja, o total de trabalhadores que poderiam estar trabalhando – de modo que não incluem pessoas fora da força de trabalho, aposentados que não trabalham, autônomos com CNPJ e grandes/pequenos empresários. Desse total, 32% estão mais devidamente empregados (trabalho formal) e esses 68% são pessoas sem emprego e subempregadas. Ou seja, são os sem emprego e subempregados divididos pelo total de pessoas disponíveis para o trabalho. Tudo isso significa que, na atualidade, a maioria dos trabalhadores brasileiros faz parte dessa força de trabalho excedente. Algo que não apenas evidencia um gigantesco subaproveitamento do trabalho, privando a sociedade da produção de riqueza, mas que constitui um mecanismo perverso para piorar salários e condições de trabalho, e também para minar as organizações sindicais.
1. Entre 1985 e 2024, houve entre as frações do proletariado brasileiro, e mesmo dentro dessas próprias frações, uma grande heterogeneidade de salários, estabilidade e tipo de trabalho etc. Houve, do mesmo modo, grande heterogeneidade de gênero e raça. Como temos diferenças conceituais e metodológicas em relação às instituições que produzem tais dados, não há informações muito precisas a esse respeito. Mas podemos dizer que, na atualidade, a maior parte do proletariado brasileiro possui renda de menos de um salário mínimo por pessoa; a segunda parcela mais significativa desse proletariado tem renda entre um e três salários mínimos; e uma parcela pequena recebe mais do que isso. De maneira geral, homens recebem mais que mulheres e brancos mais do que negros. Esse proletariado possui interesses materiais na minimização da dominação de classe (com mobilidade na estrutura, melhorando de condição) e, no limite, no fim da dominação de classe (transformação da estrutura). Em termos de consciência, ele é bastante heterogêneo, particularmente pela influência direta das ideias das classes dominantes. Politicamente, ele é plural: em termos econômicos, tende a ser mais “progressista” (defesa de serviços públicos, redução da pobreza etc.); nos costumes, tende a ser mais conservador, em especial nas localidades distantes dos grandes centros.
1. O campesinato e os povos tradicionais constituem uma classe que, antes de tudo, faz parte das classes oprimidas; ou seja, ambos são trabalhadores em sentido amplo, parte da classe trabalhadora. Isto é, os camponeses não são pequenos burgueses e nem proletários rurais, e os povos tradicionais não são remanescentes de um comunismo primitivo ou sujeitos irrelevantes e destinados a desaparecer. De maneira geral, campesinato e povos tradicionais não possuem capital e seu acesso à propriedade e aos meios é limitadíssimo, se restringindo às pequenas propriedades agrícolas. Estão localizados no campo e se dedicam à agricultura de pequena escala, baseada no trabalho familiar e cooperativo, e voltada ao consumo próprio ou ao abastecimento dos mercados locais. Essa classe se divide nas frações: pequenos proprietários de terras; rendeiros e posseiros; indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Contam com pequenos proprietários que possuem controle sobre a terra, rendeiros que “alugam” terras de um proprietário para a produção, posseiros que não têm propriedade da terra mas a ocupam, agricultores e pecuaristas familiares e povos tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc.) vivendo formas de vida tradicionais.
1. No Brasil contemporâneo, o campesinato e os povos tradicionais correspondem a pouco mais de 10% da população e das famílias do país. Em linhas gerais o campesinato representa em torno de 70% dessa classe e os povos tradicionais cerca de 30% – isso porque há sobreposições, que serão explicadas em seguida. Metade dessa classe produz apenas para o próprio consumo e a outra metade produz, por meio do trabalho familiar, para o próprio consumo e para os mercados locais. Entre 1985 e 2024, os camponeses vieram diminuindo sua presença na sociedade brasileira, principalmente devido ao êxodo rural, à concentração fundiária, ao desenvolvimento do agronegócio e as dificuldades para demarcação de suas terras. Por exemplo, somente entre 2006 e 2017, o número de estabelecimentos de agricultura familiar diminuiu 10% (ainda que, no que se considera agricultura familiar haja camponeses e membros de outras classes). Distintamente, os povos tradicionais apresentaram um crescimento significativo nesse período, algo que se explica pela melhoria nos serviços de saúde e pelo aumento no reconhecimento étnico. Ainda assim, trata-se de uma população que é constantemente vítima de ameaças e de mortes por parte de latifundiários e jagunços vinculados à expansão do agronegócio e da mineração.
1. Na atualidade, os aspectos mais relevantes que envolvem o campesinato e os povos tradicionais são as implicações do avanço do agronegócio e da mineração, e o papel assumido por essa classe na produção de alimentos no país. Esse avanço do agronegócio e da mineração tem modificado a dinâmica da propriedade e da utilização das terras no Brasil. Conforme discutido, ambos vêm ocupando progressivamente as áreas dos históricos latifúndios improdutivos. Isso não só tem aumentado a concentração da propriedade de terras, mas feito com que camponeses e povos tradicionais percam suas terras, seja pela compra por parte dos grandes proprietários, seja pela violência pura e simples. Ademais, desde 1985, os conflitos e a violência no campo têm se intensificado. Por exemplo, os conflitos por terra no Brasil passaram de 564 em 2000 para 1724 em 2023; ou seja, mais do que triplicaram. São conflitos protagonizados na imensa maioria dos casos por empresários, fazendeiros, mineradores e garimpeiros, e que atingem principalmente as regiões norte, nordeste e centro-oeste do Brasil. Eles penalizam os oprimidos com pistolagem, invasão e expulsão de suas terras, destruição de suas casas, roçados e pertences. Dezenas desses oprimidos são assassinadas todos os anos em função de tais conflitos, com destaque para o período entre 2019 e 2022 (governo Bolsonaro), cuja média de assassinatos por ano triplicou em relação à média entre 1985 e 2018. Esses acontecimentos têm contribuído para que muitos membros do campesinato e dos povos tradicionais, destacadamente os mais jovens, sejam obrigados a trabalhar para o agronegócio, para a mineração, ou migrar para as cidades. Sobre o papel assumido por essa classe na produção de alimentos no país, cumpre destacar que, atualmente, é ela que produz grande parte de todo alimento consumido no Brasil. Ou seja, essa classe é diretamente responsável pela soberania alimentar brasileira. Sua produção é diversificada e abastece o mercado interno brasileiro com feijão, arroz, mandioca, leite, suínos, aves, bovinos, hortaliças, frutas e outros itens fundamentais. Além de ser a base econômica de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes, a agricultura familiar (que, como já dissemos, conta com camponeses e membros de outras classes) é responsável por uma produção de alimentos que, em comparação com o agronegócio, é muito mais saudável e contribui com a preservação do meio ambiente. Muitas das famílias camponesas e tradicionais utilizam a agroecologia, a policultura e técnicas normalmente mais sustentáveis e orgânicas que as técnicas do agronegócio.
1. Entre 1985 e 2024, houve, de acordo com o que mencionamos, sobreposições consideráveis entre camponeses e povos tradicionais, visto que, dentre os pequenos proprietários de terras, os rendeiros e os posseiros, há muitos indígenas e membros de outras populações originárias. Comparativamente, essa classe permaneceu mais pobre que o proletariado, com seus membros apresentando menores disparidades de riqueza, renda e condição entre si. Na atualidade, os camponeses recebem na média um salário mínimo por mês, e os membros dos povos tradicionais menos de um. Na maioria dos casos, suas terras possuem até cinco hectares, mas, em alguns casos, chegam a 50 hectares. Possuem dificuldade de acesso ao crédito rural, como no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), e aos programas de comercialização, como no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). E, mesmo quando acessam esse crédito, os valores não se comparam com as cifras bilionárias disponibilizadas pelo Plano Safra aos latifundiários. Os camponeses estão distribuídos no território nacional de modo bastante desigual, sendo que hoje estão mais concentrados no nordeste (47%), no norte (15%) e no centro-oeste (5,5%). Além disso, as desigualdades regionais que os atingem são gigantescas, sendo as regiões norte e nordeste aquelas com piores condições de vida. Os povos tradicionais, particularmente os indígenas, são culturalmente muito diversos. No período analisado é possível reconhecer suas etnias e línguas às centenas e sua presença em mais de mil terras pelo país. Os indígenas estão concentrados sobretudo no norte e no nordeste (60% deles estão na Amazônia legal), ainda que também tenham presença em áreas urbanas e litorais. Os quilombolas predominam no nordeste, no sudeste e no norte, ao passo que os ribeirinhos prevalecem mais no norte, na região da Amazônia. Os camponeses e povos tradicionais possuem interesses materiais na minimização da dominação de classe (com manutenção/devolução de suas terras, preservação do seu modo de vida e melhoria de condição) e, no limite, no fim da dominação de classe (transformação da estrutura). Em termos de consciência e perspectiva política, os camponeses tendem a ser mais heterogêneos, tendo em vista o impacto das ideias das classes dominantes, especialmente entre os jovens; os povos tradicionais são mais homogêneos, com maior entendimento de seus interesses e ações em favor desses interesses.
1. Os marginalizados são pessoas quase completamente excluídas da sociedade, sem qualquer capital, propriedade e mesmo influência significativa. Elas vivem sem a mínima dignidade e são tratadas pela maioria da sociedade como não pessoas ou como coisas descartáveis. Contam com a população carcerária, as pessoas que vivem de pequenos crimes, a população em situação de rua, as prostitutas precarizadas e os trabalhadores em condição análoga à escravidão. No Brasil contemporâneo, os marginalizados correspondem a pouco mais de 2% da população e das famílias do país.
1. No Brasil, a população carcerária cresceu exponencialmente nos anos estudados. Entre 1990 e 2024, ela se multiplicou por quase 10 vezes, afastando um número crescente de pessoas da vida em sociedade e levando o país à terceira maior população carcerária do mundo. As condições das prisões brasileiras são absolutamente indignas e degradantes. Nelas estão, na atualidade, mais de 650 mil pessoas; 96% dessas pessoas são homens, 64% são negras e grande parte é jovem. Quase um terço delas estão presas sem julgamento, e a acusação de tráfico de drogas é a mais comum. Trata-se de uma porta giratória, que conduz às prisões constantemente jovens negros periféricos e pessoas que vivem do crime. Obviamente, os grandes “criminosos” – em especial aqueles com muitos recursos ou mesmo membros das classes dominantes – dificilmente são punidos. Outro setor dos marginalizados que vem crescendo é a população em situação de rua. Ainda que os dados sobre ela não sejam muito consistentes, foi possível estimar um aumento de 48% dessa população somente de 2020 a 2024, e que essa população contaria hoje com cerca de 328 mil pessoas no Brasil. A prostituição em geral, e a precarizada em particular, não possuem estatísticas precisas, em especial pelo caráter dessa atividade. No caso dos trabalhadores em condição análoga à escravidão, utilizados para reduzir os custos do trabalho ao mínimo, entre 1995 e 2023, mais de 60 mil deles foram resgatados, uma média de quase 2200 por ano. Na grande maioria dos casos, seus interesses estão na minimização da dominação de classe (com a possibilidade de integração no proletariado, melhorando sua condição) e, no limite, no fim da dominação de classe (transformação da estrutura). As dificuldades extremas às quais são submetidos dificultam sua consciência de classe e ação política; como nas outras classes oprimidas, muitos se culpam por sua própria situação.
** SINDICALISMO E ORGANIZAÇÕES SINDICAIS
1. Desde a ditadura militar, o sindicalismo brasileiro se rearticulou e, com a redemocratização, conformou as organizações sindicais que existem atualmente no Brasil. Marco destacado nesse sentido foi a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo que, formada em 1967, representava uma coalizão de diversas forças políticas (Ala Vermelha, Ação Popular, POLOP, PCdoB etc.) e tinha como bandeiras a organização no local de trabalho e a criação de comissões de fábrica. A partir de 1974, ela expandiu suas ações com comissões clandestinas e interfábricas, disputando a direção do Sindicato dos Metalúrgicos. Outro marco fundamental foi a realização 1º Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), em agosto de 1983, em São Bernardo do Campo. Esse evento reuniu mais de 5 mil delegados de diversas regiões do país, representando centenas de entidades sindicais. Durante o congresso, foram discutidas as principais bandeiras de luta dos trabalhadores, como a redução da jornada de trabalho, melhores condições salariais e a defesa das liberdades democráticas.
1. Durante o CONCLAT, em 1983, foi fundada a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que se estabeleceria como maior central sindical brasileira. Naquela ocasião, a CUT se posicionava contra o “velho sindicalismo” da Era Vargas, que estava atrelado ao Estado, e, alternativamente, reivindicava um sindicalismo de base, organizado nos locais de trabalho. A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo e depois o Movimento de Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo disputaram a direção da CUT em São Paulo, e colaboraram com a proposta da CUT Pela Base. No entanto, após derrotas eleitorais e dificuldades para se consolidar no PT, a Oposição Metalúrgica começou a se dissolver em 1987, derrotada pelo modelo sindical moderado dos Autênticos, que conquistaram hegemonia na CUT e no movimento sindical. Após a eleição de Lula, em 2002, a CUT passou a integrar o governo federal, o que implicou transformações ainda mais significativas em sua estrutura e atuação. A central, inicialmente classista e autônoma, passou a adotar uma postura conciliadora, alinhando-se ao projeto político socialdemocrata e depois social-liberal do PT.
1. A Força Sindical (FS) foi criada em março de 1991, em São Paulo, por Luiz Antônio de Medeiros, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. A central surgiu como uma alternativa ao sindicalismo classista da CUT, defendendo um “sindicalismo de resultados” que priorizava negociações diretas com os patrões, sem enfrentamentos. Medeiros, que havia se afastado do PCB e se aproximado de posições mais alinhadas à direita, liderou a FS até 1999, quando se elegeu deputado federal pelo PFL. Nesse período, a FS apoiou políticas neoliberais, como privatizações e flexibilização da CLT, alinhando-se ao governo Collor e posteriormente ao de FHC. Após a saída de Medeiros, quem assumiu a presidência da FS foi Paulinho da Força, também oriundo do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Filiado ao PTB e, posteriormente, ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), Paulinho foi eleito deputado federal por três mandatos consecutivos entre 2006 e 2014. Em 2013, fundou o partido Solidariedade e, em 2016, aderiu ao impeachment contra Dilma; em 2022, ingressou na coligação eleitoral que apoiou a eleição de Lula contra Bolsonaro.
1. A adesão acrítica da CUT ao governo Lula (“governismo”) e a própria burocratização cutista levaram a uma cisão, em 2004, que levou à formação da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas). Em 2010, durante o Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), em Santos – que reuniu cerca de 4 mil participantes, dos quais mais de 3 mil delegados de diversas regiões do país –, foi fundada a Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas). Criou-se, então, uma central sindical com a presença de movimentos sociais como MTST, Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), Assembleia Nacional de Estudantes Livre (ANEL), Movimento Mulheres em Luta (MML) e Movimento Quilombo Raça e Classe. Embora venha contando desde 2004 com diferentes forças políticas, inclusive anarquistas, foi o PSTU que teve o maior protagonismo nessa organização, pelo menos até sua cisão em 2016. A CSP-Conlutas tem sustentando a necessidade de um sindicalismo de base, combativo e independente, crítico dos diferentes governos. Atualmente, num cenário de fragilização da “Intersindical Amarela” e da “Intersindical Vermelha” (as quais discutiremos em seguida), a CSP-Conlutas é a organização sindical com maior força social no enfrentamento pela esquerda ao petismo no campo sindical e popular, o qual inclui organizações como CUT e UNE, mas também movimentos sociais que se aproximam cada vez mais do petismo.
1. Também em 2004 se conformou a União Geral dos Trabalhadores (UGT), a partir da fusão de três organizações sindicais: a Confederação Geral do Trabalho (CGT), presidida por Antonio Carlos Reis (Salim), líder do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo e vice-presidente da UGT; a Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT), criada em 1995 e presidida por Laerte Teixeira da Costa, que reunia setores do sindicalismo cristão; e a Social Democracia Sindical (SDS), originada de uma divisão da FS em 1997, sendo liderada por Enilson Simões de Moura (Alemão). Esta última ala estava mais ligada ao PSDB. A UGT se destacou com a proposta de “modernização” das práticas sindicais, defendendo um “sindicalismo cidadão, ético e inovador”. Essa concepção já havia sido anteriormente adotada pela Força Sindical, e a UGT logo passou a disputar ativamente espaços no “mercado sindical”. O discurso da UGT, mais centrado e voltado à “administração eficiente” e ao diálogo com os setores patronais, fez com que fosse considerada uma central mais alinhada com o setor conservador do movimento sindical. A Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB), que havia se formado em 2008 e fazia parte da UGT, cindiu e constituiu, entre 2012 e 2013, uma central sindical com perspectiva corporativista e nacionalista, marcada por alguma proximidade com setores do MDB e do PDT.
1. A Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST) foi fundada em junho de 2005, com uma base de sindicatos e confederações voltada para a capital federal e algumas outras regiões do país. Ela chegou a representar sete confederações, 136 federações, cerca de 3 mil sindicatos e aproximadamente 10 milhões de trabalhadores em todo o Brasil. Apesar de se definir como uma central independente e classista, a NCST mantém uma postura conservadora em relação ao sistema sindical, defendendo práticas da velha estrutura sindical varguista, como a contribuição sindical obrigatória e a unicidade sindical.
1. Em 2006, foi criada a Intersindical, um movimento sindical de oposição composto por sindicatos vinculados à Frente de Esquerda Sindical e Socialista (FES). Esse movimento reuniu diversas correntes, como a Alternativa Sindical Socialista (ASS), a Unidade Classista (ligada ao PCB) e várias correntes do PSOL, como o Enlace, a Ação Popular Socialista (APS) e o Coletivo Socialismo e Liberdade (CSOL). A fundação da Intersindical teve como principal objetivo retomar os princípios fundadores da CUT, central sindical que, segundo alguns de seus fundadores, havia se afastado da proposta inicial de um sindicalismo classista e independente. O movimento visava reorganizar os sindicatos a partir das bases, com a ideia de que a criação ou não de uma nova central sindical deveria ser uma decisão tomada pelas próprias bases de trabalhadores em um momento futuro. Contudo, em 2008, a Intersindical se fragmentou, resultando na criação de duas vertentes: a “Intersindical Amarela”, também chamada de “Central Sindical”, e a “Intersindical Vermelha”, conhecida como “Instrumento de Luta”, que também teve alguma participação anarquista. A Intersindical Amarela, vinculada à ala mais moderada do PSOL, buscava uma aproximação com a Conlutas e a construção de uma frente de esquerda para disputar a hegemonia no movimento sindical. Já a Intersindical Vermelha sustentava que a construção de uma central sindical só deveria ocorrer quando houvesse uma base sólida de trabalhadores articulados. Atualmente, ambas as Intersindical estão bastante enfraquecidas, em função de uma série de fatores, que vão desde conflitos internos e perda de sindicatos importantes, até ataques do governo Temer e ascensão da extrema-direita.
1. Em 2007, foi fundada a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), também como uma cisão da CUT. Suas origens remontam à Corrente Sindical Classista (CSC) que, no período pós-1985, integrou a Central Geral dos Trabalhadores (CGT) até 1988, quando rompeu e, dois anos depois, se somou à CUT. Durante o 9º Congresso Nacional da CUT, a CSC rompeu definitivamente com a central, marcando o início do processo de criação da CTB em 2007. Atualmente, a CTB é dirigida pelo PCdoB e, portanto, está conjunturalmente próxima da CUT e das posições por ela sustentadas.
1. De acordo com dados de 2024, a representação de trabalhadores sindicalizados por centrais sindicais, em ordem decrescente, é a seguinte. A CUT é amplamente majoritária, representando 30,2% desses sindicalizados. Ela é seguida por outras centrais expressivas: a CTB representa 8,7% desses trabalhadores; a UGT, 8%; a Força Sindical, 6,8%; a CSB, 6%; a NCST, 4,8%; as demais centrais somadas, 9,3%; os trabalhadores em sindicatos sem filiação a centrais totalizam 26,2%. Tais dados permitem entender a representação sindical no Brasil contemporâneo do ponto de vista das perspectivas sindicais. Ponderando e arredondando esses dados de 2024, e levando em conta apenas os trabalhadores que estão em sindicatos vinculados a centrais, é possível dizer que há hoje dois grandes campos sindicais no país: um campo de esquerda, que reúne por volta de 40% dos trabalhadores sindicalizados, e um campo de direita, que abarca em torno de 60% desses trabalhadores. Mas é possível fazer certos aprofundamentos sobre isso. Esse primeiro campo, do sindicalismo de esquerda ou das centrais que são dirigidas pela esquerda, o qual abarca concepções políticas e sindicais que vão desde o socialismo até o social-liberalismo, passando pela socialdemocracia e outras intermediárias. Esse campo possui duas subdivisões: a.) O subcampo que se pauta na conciliação de classes, amplamente majoritário no sindicalismo de esquerda, composto por CUT (dirigida pelo PT), CTB (dirigida pelo PCdoB) e Intersindical Amarela (dirigida pela corrente majoritária do PSOL), e que abarca mais de 38% dos trabalhadores sindicalizados brasileiros; b.) O subcampo que se pauta na independência de classes, muitíssimo minoritário no sindicalismo de esquerda, composto por CSP Conlutas e Intersindical Vermelha (na atualidade, uma quase corrente sindical dirigida pela ASS), e que abarca menos de 2% desses trabalhadores. Ainda assim, a representação da CSP Conlutas (89 sindicatos em 2024) é bem mais expressiva que a segunda (12 sindicatos em 2024). O segundo campo sindical do Brasil é o do sindicalismo de direita ou das centrais dirigidas pela direita, o qual abarca concepções que vão do liberalismo ao desenvolvimentismo, que podem ser mais progressistas ou mesmo conservadoras, e que chegam em alguns casos à defesa aberta dos patrões.
1. O sindicalismo contemporâneo no Brasil teve grande impacto de duas leis, promulgadas respectivamente em 2008 e 2017. A primeira, Lei 11.648/2008, reconheceu as centrais sindicais como entidades legítimas de representação geral dos trabalhadores em âmbito nacional e também garantiu às centrais 10% do valor arrecadado com a contribuição sindical obrigatória. Até então, embora já desempenhassem papel relevante na articulação política e na mobilização social, as centrais não dispunham de respaldo legal que lhes conferisse prerrogativas institucionais claras. Com a nova legislação, passaram a ter o direito de coordenar a representação sindical por meio dos sindicatos a elas filiados, além de participar oficialmente de negociações em fóruns tripartites, colegiados de órgãos públicos e outros espaços institucionais onde se discutem políticas e temas de interesse da classe trabalhadora. Para obter o certificado de reconhecimento legal junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, as centrais precisam atender a três critérios fundamentais: a filiação mínima de 100 sindicatos distribuídos pelas cinco regiões do país, sendo que em pelo menos três delas deve ter, no mínimo, 20 sindicatos cada; a representação de sindicatos pertencentes a pelo menos cinco setores distintos da atividade econômica; e a comprovação de que representam pelo menos 7% do total de empregados sindicalizados no país. Além disso, com as novas regras referentes à contribuição sindical, essa lei elevou significativamente o financiamento dos sindicatos e garantiu o financiamento de suas atividades de representação, articulação e intervenção política. Naquele mesmo ano de 2008, as centrais receberam altos valores em função dessa mudança legislativa. A CUT, historicamente contrária à contribuição sindical obrigatória, recebeu em 2008 R$ 19,8 milhões; a Força Sindical, R$ 15,1 milhões; a UGT, R$ 8,8 milhões; a NCST, R$ 6,6 milhões; a CTB, R$ 2,9 milhões.
1. A segunda, Lei 13.467/2017 ou Reforma Trabalhista, como discutido, modificou bastante as relações de trabalho no Brasil e foi na direção oposta daquela de 2008, especialmente no que tange ao financiamento dos sindicatos. Dentre tais mudanças está o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical, que anteriormente era descontada automaticamente dos salários dos trabalhadores. Com essa nova lei, a contribuição se tornou facultativa, resultando em uma queda drástica na arrecadação das organizações sindicais, com perdas que chegaram a 90%. Além disso, as novas formas de contratação e possibilidades de terceirização enfraqueceram a capacidade de negociação coletiva dos sindicatos. Obviamente, isso reduziu de modo significativo a capacidade de mobilização das organizações sindicais, assim como a taxa de sindicalização.
1. Quando analisamos a taxa de sindicalização no Brasil, os efeitos dessas leis e também das transformações do mercado de trabalho se fazem sentir. Essa taxa pode ser obtida em diferentes fontes e levar em conta distintas metodologias. Mas, mesmo considerando tudo isso, a tendência é similar. A partir do IBGE, considerando o percentual de trabalhadores sindicalizados em relação ao total de trabalhadores ocupados, entre 1992 e 2012, mesmo que entre crescimentos e diminuições, essa taxa se manteve em torno de 16%-18%. A partir de então, e sobretudo depois da “Reforma” mudanças mais significativas aconteceram. Entre 2012 e 2023, número de trabalhadores sindicalizados no país caiu de 14,4 milhões em 2012 para 8,4 milhões em 2023; a taxa de sindicalização caiu nesses anos de 16,1% para 8,4%. Ou seja, em 11 anos (2012-2023) houve uma redução de quase 50% da taxa de sindicalização (percentual de trabalhadores sindicalizados em relação à população ocupada). Em 2023, o Brasil registrou o maior número de pessoas ocupadas desde o início da série histórica, mas também atingiu o menor patamar de sindicalização já registrado. A partir dos dados da RAIS, e levando em conta o percentual de trabalhadores sindicalizados em relação ao total de trabalhadores formais com CLT do setor privado, a taxa de sindicalização no Brasil foi de 20,2% em 2012 para 10,1% em 2023. Também uma queda próxima dos 50% nos mesmos 11 anos acima mencionados.
1. Essa queda na sindicalização foi observada em diversos setores e categorias. Com base nos dados do IBGE, no setor público, a taxa de sindicalização caiu de 28,1% em 2012 para 18,3% em 2023. Na indústria geral, a redução foi de 21,3% para 10,3%, nesse mesmo período. O setor de transporte, armazenagem e correio registrou a maior queda, passando de 20,7% para 7,8%. Esses dados indicam uma tendência de declínio na filiação sindical, mesmo em setores tradicionalmente mais organizados. De acordo com dados de 2023, os servidores públicos apresentaram as maiores taxas de sindicalização, com destaque para setores como saúde, educação, segurança pública e administrativos. No setor privado, categorias com maior estabilidade – como metalúrgicos, químicos, bancários e profissionais de telecomunicações – também contaram com taxas de sindicalização relativamente altas. Mas, mesmo nesses setores, se nota uma tendência de queda na sindicalização ao longo dos anos. Os trabalhadores rurais, sobretudo aqueles envolvidos na agricultura familiar e em cooperativas, mantiveram uma presença sindical significativa, embora enfrentando desafios relacionados à informalidade e à dispersão geográfica. Por fim, setores mais informais ou precarizados, como o comércio e os serviços, apresentam índices de sindicalização baixos, pois a alta rotatividade, a informalidade e a fragmentação das categorias dificultam a organização sindical efetiva.
** QUESTÃO AMBIENTAL E DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
1. Entre 1985 e 2024, a questão ambiental brasileira foi objeto de intensos conflitos. Por um lado, houve um considerável avanço das preocupações e lutas ambientais e ecológicas. Durante esses anos, o Brasil foi diretamente impactado pelas diretrizes adotadas internacionalmente, tanto pelos organismos internacionais como a ONU, quanto pelas democracias burguesas e liberais de outros países. Por outro lado, houve a manutenção não apenas da posição do Brasil na divisão internacional do trabalho, com a reprimarização sendo reforçada pela ascensão do neoliberalismo e do agronegócio, mas também da lógica do lucro das classes dominantes, destacadamente aquelas com presença no campo. A necessidade de recursos naturais por parte dessas classes implicou diretamente a destruição da natureza não humana no país. Ainda que, na curva de médio prazo, a degradação ambiental brasileira tenha se agravado consideravelmente, e que as forças responsáveis por essa degradação tenham se imposto na maioria do tempo, em certos momentos desses conflitos, as forças sociais voltadas à preservação ambiental e à defesa da ecologia conseguiram avançar e, em alguns casos, atingir conquistas significativas, ainda que na maioria dos casos com protagonismo de iniciativas ideologicamente liberais.
1. Durante o período da redemocratização, o Brasil – sob estímulo internacional e em função das próprias mobilizações no país – reconheceu direitos ambientais e sociais importantes, que culminaram em leis nos âmbitos federal, estadual e municipal. Destacaram-se, naquela ocasião: o reconhecimento do direito à demarcação de terras indígenas, a proteção de biomas e ecossistemas e a implementação de políticas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. O sindicalismo agrário e as lutas indígenas, quilombolas e camponesas que haviam desempenhado um papel de destaque na resistência à ditadura militar, contribuíram para que as pautas ambientais ganhassem espaço nas discussões que foram encampadas pelo campo progressista durante a Constituinte. Em seu artigo 225, a Constituição de 1988 garantiu o direito ao meio ambiente equilibrado e estabeleceu a responsabilidade do poder público e da coletividade na preservação ambiental. Outros episódios marcaram o fortalecimento desse crescente movimento ambiental: a criação do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em 1989, que centralizou a gestão ambiental brasileira e substituiu antigos órgãos dispersos; a instalação no país de diversas ONGs, como a SOS Mata Atlântica e o Greenpeace Brasil, que promoveram o ambientalismo por meio da pressão por políticas públicas e da conscientização da população; a maior inserção do Brasil nos debates internacionais, que se consolidou quando o país sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), em 1992, a qual tornou mais robusta a pauta ambiental e difundiu a noção de desenvolvimento sustentável. Além disso, o colapso da União Soviética e as críticas ao modelo de exploração da natureza praticado pelo bloco socialista fomentaram debates interessantes sobre ecologias sociais, socialistas e libertárias, ampliando as perspectivas de visões críticas e transformadoras. No período posterior, foram criados o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000, e o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), em 2004. Ambos contribuíram para avanços pontuais na preservação ambiental, na gestão de áreas protegidas e na demarcação de terras indígenas.
1. Contudo, todo esse processo precisa ser avaliado criticamente. Sem dúvida, houve nesses anos a conformação de um movimento ambiental ou de um ambientalismo brasileiro, que teve impactos concretos na realidade e promoveu alguns avanços.No entanto, também é verdade que esse movimento foi profundamente marcado por perspectivas liberais, que apontavam para a necessidade de um capitalismo ambientalmente responsável, de uma “exploração sustentável” dos recursos naturais, e que, justamente por isso, não avançaram para vitórias mais significativas e duradouras. Também é verdade que, mesmo tendo conquistado certas leis ambientais, esse ambientalismo não conseguiu garantir o seu cumprimento, que em geral esteve subordinado às relações de classe e de poder da sociedade brasileira. O movimento deliberadamente não enfrentou tais relações. O capitalismo-estatismo dependente e subordinado do Brasil, que historicamente conferiu centralidade ao latifúndio e à demanda por commodities, contribuiu determinantemente para a destruição ambiental, em seus diferentes ecossistemas e biomas, e para os conflitos com povos indígenas, quilombolas, camponeses e outros ligados ao campo e às florestas. O gigantesco poder econômico, político e ideológico de latifundiários e do agronegócio permite entender os limites do ambientalismo e mesmo dos governos nesse contexto.
1. Tais limites se tornam bem evidentes quando se avaliam os principais indicadores relativos a esse tema no país, numa curva de médio prazo. Entre 1985 e 2024, todos eles pioraram: desmatamento, emissões de gases de efeito estufa, qualidade da água, queimadas e incêndios florestais, perda de biodiversidade, erosão e desertificação, contaminação do solo e dos aquíferos, expansão da fronteira agrícola. Conforme veremos agora, não há dúvida que essa piora se acentuou consideravelmente no governo Bolsonaro, mas também é bastante claro que elas foram apenas amenizadas em parte dos governos petistas. Nos anos avaliados, a Amazônia, o Cerrado, Mata Atlântica e o Pantanal foram muito afetados pela destruição ambiental. Entre 1985 e 2023, a Amazônia perdeu 15% de sua vegetação nativa – ou seja, teve 50 milhões de hectares (recordemos que cada hectare equivale a um campo de futebol) de sua cobertura florestal original desmatada, a qual passou 336 para 286 milhões de hectares nesse período. Entre 2004 e 2012, devido a esforços do governo Lula, particularmente por meio do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), esse desmatamento teve certo freio. Mesmo que a partir de 2013 tenha voltado a crescer, ele se manteve abaixo de 8 mil km² até 2018. Com a revogação do PPCDAm em 2019 e o desmonte dos órgãos ambientais no governo Bolsonaro, o desmatamento atingiu a marca de 13 mil km² em 2021, retornando a índices de 2006. Entre 1985 e 2023, o Cerrado teve 88,5 milhões de hectares de vegetação nativa destruídos; entre 1985 e 2022, a Mata Atlântica e o Pantanal perderam cerca de 96 milhões de hectares. As políticas do governo Bolsonaro intensificaram essa destruição de 2019 em diante.
1. Os gases de efeito estufa aumentaram com o desmatamento e as mudanças no uso do solo, particularmente entre 2019 e 2022; os poucos avanços em setores como energia e indústria foram anulados pelo desmatamento. Diversos rios e reservatórios estão contaminados por metais pesados, esgoto e agrotóxicos, como nos casos do Rio Tietê e do Rio São Francisco. A crise hídrica e o aumento do desmatamento de áreas de nascentes vêm agravando essa situação. As queimadas cresceram na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, agravadas pelas secas e pelo desmonte da fiscalização ambiental. O período entre 2019 e 2021, durante o governo Bolsonaro, foi recordista em incêndios. Atualmente, há no Brasil muitas espécies ameaçadas, sendo relevantes para isso os desmatamentos e as queimadas. Nesses anos, a extinção de espécies se intensificou, em particular para anfíbios, aves e mamíferos. Têm sido crescentes, também, a desertificação no semiárido nordestino e a degradação do solo no Cerrado e na Amazônia. Esses problemas vêm sendo agravados pelo desmatamento e pelo uso intensivo do solo sem recuperação. A utilização intensiva de agrotóxicos, que é no Brasil uma das maiores do mundo, tem aumentado a contaminação de aquíferos, como na região do Aquífero Guarani e em áreas agrícolas. A fronteira agrícola vem se expandindo, principalmente nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e substituindo a vegetação nativa por monoculturas e pastagens, contribuindo assim com a perda da biodiversidade e com os gases de efeito estufa. Grandes obras também têm tido impacto direto e negativo sobre o meio ambiente. Elas incluem: expansões urbanas, como no caso da cidade de Brasília, desde os anos 1980; construção de ferrovias e rodovias, como a Ferrovia Norte-Sul, a partir de 1987, e a Rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), entre 2000 e 2020; a Ferrogrão, um projeto que pretende ligar Sinop, no Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará; projetos hídricos, como a Transposição do São Francisco, entre 2007 e 2022; portos, como o Porto do Açu no Rio de Janeiro, em 2007; hidrelétricas, como Santo Antônio, em Rondônia (2008), Jirau, em Rondônia (2008) e Belo Monte, no Pará (2011).
1. Os impactos desse “desenvolvimento” capitalista-estatista sobre o meio ambiente são gigantescos. Antes de tudo, com os “acidentes” e desastres que ele tem produzido. Tais foram os casos, por exemplo, no Campo de Frade, em 2011, quando durante uma perfuração realizada pela Chevron houve um vazamento de 3,7 mil barris de óleo na Bacia de Campos; e também com os rompimentos de barragens de rejeitos da mineração que aconteceram em Mariana, em 2015, por irresponsabilidade da Samarco, e que derramaram 62 milhões de m³ de rejeitos de mineração no Rio Doce, afetando 39 municípios e provocando danos ambientais irreversíveis, e em Brumadinho, em 2019, por irresponsabilidade da Vale S. A., quando mais de 12 milhões de m³ de rejeitos atingiram o Rio Paraopeba, matando 270 pessoas e destruindo grandes áreas de vegetação. Mas essa destruição ambiental também vem sendo sentida com eventos climáticos extremos, em particular a partir da virada do século. Destacam-se nesse sentido: as ondas de calor de 2014-2016 e de 2023, com temperaturas passando dos 40 graus em várias regiões do país; as ondas de frio de 2000, 2013, 2021-2023, com temperaturas abaixo de zero em diferentes áreas; as tempestades intensas, como no caso da “Potira”, de 2021, que produziu no sudeste do país ventos de 70 km/h e ondas marítimas de 3 metros; as secas que ocorreram em diferentes regiões e afetaram todo o país, como aquelas da Amazônia (em 2005, 2010, 2023-2024), do norte de Minas Gerais (em 2007), do nordeste (entre 2012 e 2017) e do sudeste (entre 2014 e 2017); as enchentes que castigaram diferentes estados: Santa Catarina (1988 e 2008), estados do nordeste (2010), Rio de Janeiro (2011), Rondônia (2014), Bahia e Minas Gerais (2022), Rio Grande do Sul (2023); os colapsos em sistemas de abastecimento de água, como no caso do sistema Cantareira, que abastece São Paulo, em 2014 e 2021. Observando os últimos 40 anos, é possível afirmar que tanto os “acidentes” e desastres quanto os eventos climáticos extremos estão se tornando cada vez mais comuns.
1. Enfim, vale notar que o mecanismo do crédito de carbono, desenvolvido a partir do Protocolo de Kyoto e que atualmente possui relevância no Brasil, vem incentivando a entrada de fundos internacionais no país, vindos sobretudo da Europa e dos Estados Unidos e dedicados ao financiamento de projetos na região amazônica. A proliferação desses projetos financiados com capital estrangeiro, mesmo que dê visibilidade à causa ambiental, acaba trazendo riscos à soberania nacional e desobrigando o Estado em relação à fiscalização e à proteção do meio ambiente e dos povos da floresta.
** GÊNERO E SEXUALIDADE, MULHERES E LGBT+S
1. Quando analisamos a condição material das mulheres e da população LGBT+ no Brasil entre 1985 e 2024, identificamos similaridades relevantes com o cenário internacional. Por um lado, são inequívocas as severas opressões que resultam do patriarcado, e que atingem estruturalmente todas essas pessoas. Por outro lado, não há dúvida que as questões relativas às mulheres e à comunidade LGBT+, assim como as lutas de gênero e sexualidade, avançaram muito e tiveram conquistas significativas. Também por aqui o feminismo se fortaleceu antes do ativismo LGBT+ e as classes dominantes, por meio do mercado e do Estado, vêm buscando se beneficiar desses avanços que, com a ascensão da extrema-direita, estão atualmente em xeque.
1. Fato fundamental é que, ao longo desses anos, as mulheres brasileiras passaram a trabalhar cada vez mais fora de casa. Entre 1991 e 2023, a participação das mulheres na força de trabalho cresceu 40% e, entre 1985 e 2023, o percentual da população feminina empregada aumentou 14%. Segundo dados de 2015, pouco mais da metade das mulheres brasileiras em idade apta para o trabalho estava “econômica ativa” no mercado. Em seus empregos fora de casa, elas trabalham em média 35 horas por semana – ainda que, como mostraremos a seguir, isso se some a um intenso trabalho doméstico. De acordo com os números das últimas três décadas, essas mulheres estão majoritariamente no setor de serviços e cada vez menos na indústria e na agricultura. Entre 1991 e 2022, o setor de serviços foi aquele que empregou a ampla maioria (entre 75% e 85%) das mulheres. Nesse período, há uma tendência de crescimento desse setor no trabalho feminino. Bem abaixo, está o setor da indústria, que empregou entre 11% e 15% das mulheres, e o setor da agricultura, que empregou entre 4% e 11% delas. Ambos os setores estão em tendência de queda.
1. A divisão sexual do trabalho no Brasil dos anos 1985 a 2024 continuou a reproduzir as desigualdades entre homens e mulheres, especialmente no que se refere ao trabalho doméstico não remunerado, que permaneceu majoritariamente sob responsabilidade feminina. Em 2019, as mulheres brasileiras dedicaram em média 21,3 horas semanais a afazeres do lar e cuidados com a família, ao passo que os homens dedicaram 10,3. Mesmo depois de avanços consideráveis nesse debate, as mulheres continuam a realizar mais que o dobro do trabalho doméstico em relação os homens. Essa disparidade revela que continuamos a naturalizar esse trabalho como responsabilidade feminina, reforçando estereótipos de gênero que sobrecarregam as mulheres e limitam suas oportunidades no mercado formal de trabalho. Por isso, a jornada semanal média de uma trabalhadora brasileira é 35 horas de trabalho fora de casa mais 21 horas de trabalho doméstico, totalizando 56 horas, ou seja, uma jornada imensa.
1. Além disso, a informalidade no mercado de trabalho atinge as mulheres de forma desproporcional. Elas predominam em ocupações com menor remuneração, prestígio social e estabilidade, como serviços de limpeza, cuidado de crianças e idosos, e atendimento informal. Enquanto isso, os homens continuam ocupando a maior parte dos cargos formais e melhor remunerados, perpetuando uma estrutura de desigualdade. Essa realidade é agravada pela falta de creches públicas, pela ausência de licença paternidade mais extensa e pela precarização das políticas de assistência social, que acabam reforçando o papel da mulher como cuidadora principal, em detrimento de sua autonomia financeira e profissional. Tal desigualdade é ainda mais acentuada quando consideramos questões raciais e de classe. Mulheres negras, em particular, enfrentam uma sobrecarga ainda maior, pois muitas acumulam o trabalho doméstico em seus próprios lares com o emprego em casas de famílias de setores médios e classes dominantes, frequentemente em condições precárias e sem direitos trabalhistas.
1. O feminicídio continua a atravessar a realidade social brasileira, refletindo uma persistente violência estrutural de gênero, que atinge mulheres em diversas esferas da sociedade. Em 2024, o país registrou quase 1500 casos de feminicídio, representando um aumento em relação ao ano anterior. Esse tipo de crime é caracterizado pelo assassinato de mulheres em razão do gênero, frequentemente relacionado a contextos de violência doméstica, familiar ou motivados por misoginia. No Brasil, uma mulher é assassinada, por ser mulher, em média, a cada 17 horas, algo que evidencia a necessidade urgente de mobilização contínua para enfrentar esse problema. No que diz respeito à violência doméstica em geral, não necessariamente seguida de morte, a situação também é gravíssima. O Disque 180, serviço nacional de atendimento à mulher em situação de violência, recebeu mais de 1 milhão de ligações em 2022; em 2023, houve um aumento de 23% nos atendimentos e, em 2024, mais 22%. Uma parcela significativa dessas chamadas estava relacionada aos casos de violência doméstica e familiar.
1. O debate sobre o aborto vem sendo um dos mais complexos no país, encontrando resistência em grande parte da sociedade, especialmente por influência de igrejas e posições religiosas. No Brasil, atualmente, o aborto é permitido apenas em três casos específicos: risco à vida da mulher, anencefalia do feto e em casos de estupro. Para outras situações, a prática é considerada crime, com penas que podem variar de 1 a 3 anos de prisão para a mulher e até 4 anos para quem realiza o procedimento. Estima-se que cerca de 500 mil abortos sejam realizados por ano no país, sendo que a maioria ocorre de forma clandestina e insegura. Numa pesquisa realizada em 2024, 42% dos brasileiros entrevistados defenderam a manutenção da legislação atual e outros 35% sustentaram que o aborto fosse proibido em qualquer situação. Esse é um dos temas que, junto com a legalização das drogas e a redução da maioridade penal, o conservadorismo prepondera amplamente na opinião pública.
1. Outro fator de destaque relacionado à questão de gênero é o recente fortalecimento, particularmente entre jovens adultos, de movimentos masculinistas, tais como os “incel” (homens que se consideram incapazes de estabelecer relacionamentos românticos ou sexuais), os “redpill” (homens que sustentam ser necessário enxergar uma suposta opressão exercita pelas mulheres), e a machosfera (blogs, fóruns e canais online que discutem masculinidade e promovem o masculinismo). Embora haja diferentes posições nesses movimentos, não há dúvida que, no seio deles, vêm sendo produzidas e reproduzidas posições misóginas, antifeministas e, em alguns casos, violentas.
1. A análise da comunidade LGBT+ brasileira também permite certos apontamentos. Antes de tudo, é importante considerar que essa comunidade, no país, representa algo em torno de 15% da população – um número maior que a média mundial, que gira por volta de 10%. Trata-se de uma população que, levando em conta sua trajetória nos últimos 40 anos, também vive um cenário paradoxal. Pois, se de um lado continua a enfrentar opressões muito duras no campo do trabalho, da educação, da saúde e da segurança, por outro, vem presenciando avanços em termos de direitos e visibilidade. Lésbicas e gays têm sofrido preconceito e discriminação nos locais de trabalho e estudo. A população trans e travesti enfrenta limitações enormes no trabalho formal. Devido à exclusão social, apenas 4% dessa população está empregada formalmente e cerca de 90% dela recorre à prostituição como principal fonte de renda. Apenas 0,02% da comunidade trans acessa o ensino superior, 72% dela não possui o ensino médio e 56% não concluiu o ensino fundamental. Um elemento que, nas últimas décadas, tem contribuído com a opressão LGBT+ em geral é o discurso da “ideologia de gênero”, que foi importado para o Brasil no início dos anos 2000 por reacionários, conservadores e religiosos que viam nas discussões sobre identidade de gênero e direitos LGBT+ uma ameaça aos valores tradicionais. Desde meados dos anos 2010, com o fortalecimento da extrema-direita, esse discurso tem se amplificado nas redes sociais e em campanhas midiáticas, com a população LGBT+ sendo colocada como uma ameaça à família e à moralidade. Ele vem sendo intensamente utilizado em campanhas eleitorais e se tornou um dos fundamentos ideológicos do bolsonarismo.
1. A violência contra a população LGBT+ continua alarmante. O Brasil é frequentemente apontado como o país que mais registra homicídios de pessoas pertencentes a essa comunidade no mundo. Em 2023, foram registradas 257 mortes violentas de LGBT+s; 127 delas eram travestis e transexuais. Essas mortes, dentre as quais estão homicídios e suicídios, ocorreram principalmente nas regiões sudeste e nordeste do país. No Brasil, a expectativa média de vida das pessoas trans é de 35 anos e a chance de elas serem assinadas é 19 vezes maior do que a de gays ou lésbicas. Ou seja, mesmo quando comparada a outros membros da população LGBT+, a comunidade trans tem a suas vidas ainda menos valorizadas. No entanto, a violência contra LGBT+s não se encerra nos assassinatos. Ela se dá cotidianamente de inúmeras outras formas, que envolvem aspectos físicos (agressões, espancamentos), psicológicos (insultos, discriminações, rejeições), sexuais (abusos, estupros) entre outras. Em grande medida, essa violência ocorre no ambiente doméstico e é perpetrada por familiares, ainda que outros ambientes também se destaquem: escola, trabalho, ruas, internet etc. Desde a virada do século, tem havido mais divulgação da violência LGBT+fóbica protagonizada por grupos de extrema-direita. Dentre eles, estão três que ocorreram em São Paulo: em 2000, o assassinato de Edson Néris da Silva por Carecas do ABC; em 2009, a bomba lançada na Parada do Orgulho LGBT por nazistas do Impacto Hooligan; em 2010, os ataques na Avenida Paulista contra três homossexuais com lâmpadas fluorescentes. Tais crimes usufruem da impunidade; a maioria deles não é investigada adequadamente e seus responsáveis raramente são levados à justiça e punidos. Vale ressaltar, ainda, que a falta de dados oficiais consolidados dificulta a compreensão real da magnitude dessa questão.
1. No Brasil, o feminismo e o ativismo LGBT+ receberam crescente apoio ao longo dos anos analisados. Foi um apoio plural que mobilizou diferentes perspectivas políticas e setores da sociedade. As correntes hegemônicas em ambos os casos foram as liberais – próximas do discutido neoliberalismo progressista de ONU, Partido Democrata (EUA), Rede Globo etc. –, que mobilizaram diferentes setores da sociedade. Para além do caso de empresários e burocratas, cujo apoio visava somente conquistar nichos de mercado ou votos, houve um apoio massivo e menos utilitário em outros os setores da sociedade. Burgueses, burocratas, gestores, pequeno-burgueses e trabalhadores endossaram essas causas em distintos momentos buscando promover a igualdade jurídica e de oportunidades, o empreendedorismo identitário, o empoderamento individual e a representatividade, sem colocar em questão ou minimizando a luta de classes e o papel do paradigma econômico-político capitalista e estatista. Contudo, outras perspectivas tiveram relevância no feminismo e no ativismo LGBT+ dos anos estudados, incluindo as correntes socialistas, que procuraram unir as bandeiras de gênero e sexualidade em abordagens classistas e revolucionárias. Mas, independente dessa pluralidade, o fato é que a grande força social acumulada por feministas e LGBT+s explica as muitas conquistas das últimas décadas, que incluem redução de desigualdades, aumento de representações, leis mais favoráveis e expansão do debate público.
1. Entre 1990 e 2022, o Índice de Desigualdade de Gênero – que leva em conta saúde reprodutiva, empoderamento e status econômico das mulheres – melhorou significativamente. Foi de 0,58 para 0,39, sendo que quanto mais perto de 1, maior a desigualdade, e quanto mais perto de 0, menor. Ou seja, segundo esse índice, a desigualdade de gênero caiu mais de 30% nos últimos 30 anos. Ainda que seja importante repetir que não achamos melhor sermos explorados ou oprimidos com mais diversidade, o grande aumento do percentual de mulheres no parlamento – que, entre 1997 e 2023, quase triplicou – mostra como as mulheres vêm conquistando espaço na sociedade. Entretanto, foi no campo das leis e do debate público que essas conquistas ficaram mais evidentes. Em relação às mulheres, duas leis se destacaram muito: a Lei Maria da Penha, de 2006, e a PEC das Domésticas, de 2013. A primeira tem como objetivo coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A segunda é uma das maiores conquistas trabalhistas no Brasil do último período, pois garante direitos fundamentais aos empregados domésticos, uma categoria historicamente marginalizada e majoritariamente feminina. Além disso, nos anos 2010, outras leis foram aprovadas visando enfrentar a violência de gênero. Em 2015, o feminicídio – assassinato de uma mulher por razões ligadas à sua condição de mulher – foi tipificado como homicídio qualificado e crime hediondo. Em 2018, a importunação sexual foi criminalizada, buscando encarar o problema do assédio sexual em espaços públicos e privados.
1. Em relação à população LGBT+, na virada do século houve avanços legislativos e institucionais, que contaram com a proibição de alterar a orientação sexual de indivíduos (a chamada “cura gay”) e com a autorização de cirurgias de resignação sexual e de casamento / união estável entre pessoas do mesmo sexo. Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reconheceu que a homossexualidade não é uma doença e que deve ela ser respeitada como parte da diversidade humana. Proibiu os psicólogos de realizar terapias que visem alterar a orientação sexual, reforçando o compromisso da profissão com os direitos humanos e a saúde mental da população LGBT+. Em 2002, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a realização de cirurgias de redesignação sexual no Brasil, permitindo que pessoas trans fizessem procedimentos médicos para adequação de seu corpo à identidade de gênero. Essa decisão representou um avanço significativo nos direitos das pessoas trans. Em 2011, o STF reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, dando uma saída constitucional para a questão do casamento homoafetivo. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que cartórios não poderiam se recusar a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Naquele mesmo ano, o SUS passou a oferecer cirurgias de redesignação sexual e tratamentos hormonais, reconhecendo a identidade de gênero como direito de saúde. Em 2018, o STF autorizou a mudança de nome e sexo de pessoas trans em cartório. Apesar dessas importantes conquistas, a luta por igualdade de direitos e pela visibilidade da população LGBT+ em geral, e da população trans em particular, continua sendo relevante nas agendas de direitos humanos no país.
** RAÇA E ETNIA, NEGROS E POVOS ORIGINÁRIOS
1. A discussão sobre negros e povos originários no Brasil dos anos 1985-2024 encontra paralelos tanto no cenário internacional quanto no debate de gênero e sexualidade. Isso porque há um contexto que, de um lado, vem preservando opressões raciais e étnicas brutais, que resultam do racismo e atingem duramente negros e indígenas. Mas que, de outro, tem evidenciado avanços em lutas raciais e étnicas, assim como conquistas marcantes. Também os movimentos negros e indígenas ganharam espaço no debate público e na sociedade brasileira, estão sendo amplamente disputados pelo liberalismo, e consideravelmente ameaçados pela ascensão da extrema-direita.
1. Durante esse período, o racismo continuou se manifestando no Brasil, visto que é um problema estrutural e persistente. Essa dominação dos negros foi traço fundamental nos anos analisados e se manifestou de diferentes maneiras. Tomando como base as posições de amplos setores do movimento negro e de parte relevante dos analistas brasileiros, é possível dizer que, no Brasil, o número de negros resulta da soma daqueles que se declaram pretos e pardos para o IBGE. Podemos adotar esse critério, mas não sem ter em mente os problemas que ele envolve.[6] De acordo com ele, os negros constituem a maioria da população. Em 2024, eles representavam 56,7% de todos os brasileiros. Contudo, ao comparar indicadores de trabalho, renda, violência e educação relacionados à população negra e não negra, encontramos uma grande disparidade, confirmando a existência estrutural do racismo. De acordo com dados de 2023 e 2024, a renda média dos negros é 40% menor que a dos não negros, ao passo que a taxa de desocupação dos negros é em torno de 50% maior que a dos não negros. Além disso, a população negra é mais atingida pela informalidade, com quase metade dela trabalhando sem direitos, proteção ou carteira assinada. São desigualdades que persistem mesmo quando se comparam profissionais com o mesmo nível de escolaridade. Isso mostra que o racismo continua a limitar, inclusive, a mobilidade social ascendente de negros. Outro fato a ser destacado é que a violência vem atingindo de forma desproporcional essa população. Entre 2003 e 2022, ao passo que a taxa de assassinatos de pessoas não negras caiu em mais da metade, o índice de mortes de pessoas negras registrou uma escalada, e só foi cair depois da pandemia. Dados de 2022 e 2023 mostram que quase 80% das vítimas de homicídio no Brasil são negras, e a taxa de homicídios de jovens negros é quase três vezes maior que a de jovens brancos. Eles mostram também que 84% das pessoas mortas em intervenções policiais e praticamente 70% das pessoas encarceradas no Brasil são negras. O encarceramento em massa brasileiro afeta sobretudo a população negra; entre 2005 e 2022, as prisões dessa população cresceram 381%, ao passo que as prisões da população branca cresceram 215%. No acesso à educação, a desigualdade racial também é marcante. Embora o número de pessoas negras no ensino superior tenha crescido nos últimos anos devido às políticas como cotas raciais, elas ainda são minoria nas universidades de elite e em cursos mais valorizados, como medicina e engenharia. Em 2022, quando 38% das pessoas brancas com mais de 25 anos tinham ensino superior completo, apenas 18% das pessoas negras alcançavam esse mesmo nível de formação.
1. As políticas de cotas raciais, associadas a outras medidas para ascensão social de pessoas racializadas e periféricas, conformaram parte da estratégia dos governos sociais-liberais para aquilo que se referiam como “expansão da classe média brasileira”. Mas, mesmo com todas as suas limitações, as cotas raciais – que depois foram sendo aprimoradas, e passaram a levar em conta outros critérios, como ter estudado em escola pública e renda familiar – tiveram resultados bastante positivos e conseguiram minimizar as desigualdades, sobretudo nas universidades públicas. Ainda que restritas, essas mudanças ampliaram consideravelmente o número de negros competindo por trabalho e educação de qualidade, e também frequentando espaços que antes eram quase exclusivamente brancos. Esses acontecimentos, num contexto de radicalização da direita, foram suficientes para escancarar o racismo disfarçado de parte considerável dos brasileiros. Tal movimento foi reforçado por negros que se aliaram à extrema-direita – como o ex-presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, e o deputado federal Hélio Lopes –, os quais procuraram deslegitimar não somente as políticas de cotas, mas a própria luta negra e antirracista, servindo como verdadeiros capitães-do-mato e promovendo uma falsa narrativa de unidade cultural do povo brasileiro.
1. Outro aspecto preocupante do racismo brasileiro contemporâneo é a intolerância religiosa que vem atingindo principalmente as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Segundo o Disque 100, em 2021 foram registradas 1090 denúncias de intolerância religiosa, sendo que 80% delas envolviam religiões afro-brasileiras. Ademais, a Fundação Palmares registrou em 2020 um aumento de 30% nos casos de ataques a terreiros em comparação ao ano anterior. Esses ataques incluem depredações, incêndios criminosos e agressões físicas a praticantes dessas religiões, revelando a violência direcionada a espaços sagrados e àqueles que os frequentam. A presença de traficantes evangélicos em comunidades periféricas tem contribuído para acentuar essa intolerância, como no caso dos faccionados do Complexo de Israel, no Rio de Janeiro.
1. A opressão dos povos originários foi outra expressão cruel do racismo brasileiro desse período, que se manifestou de múltiplas formas, indo desde a violência física até a exclusão social e cultural. Episódios brutais de violência nesses anos, incluem: a invasão garimpeira ao território Yanomami, em Roraima, entre 1987 e 1993, que resultou na morte de mais de 1500 indígenas, incluindo o massacre da Maloca Haximu, em julho de 1993, quando 12 indígenas foram assassinados; o massacre do Capacete, no Alto Solimões, Amazonas, em 1988, onde 14 Tikuna perderam a vida. Além disso, diversas lideranças indígenas e aliadas foram assassinadas em todo o país, entre elas Ângelo Kretã Kaingang, Marçal Guarani, Xicão Xucuru, Galdino Pataxó, Aldo Macuxi, Paulo Guajajara, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, evidenciando a contínua violência contra os povos indígenas e seus aliados no Brasil. Dados revelam que, entre 2003 e 2015, ocorreram 891 assassinatos de indígenas, com um pico de 138 mortes apenas em 2014. Esses números, geralmente associados a conflitos por terra, são responsabilidade de fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, não raro com a conivência do Estado. Trata-se de uma situação que se agravou nos últimos anos, com o crescimento do desmatamento e o enfraquecimento das políticas de proteção territorial, deixando comunidades inteiras vulneráveis a ataques e invasões. O racismo anti-indígena também vem se manifestando cotidianamente nas cidades, onde atualmente vivem centenas de milhares de indígenas, em condições bastante precárias. Crianças têm sofrido bullying em escolas urbanas por manterem suas tradições e adultos têm enfrentado dificuldades para conseguir empregos formais, sendo empurrados para a venda de artesanato. Enquanto isso, discursos de direita e até de uma certa esquerda pregam a “integração forçada” ou mesmo o extermínio cultural dos povos originários, mostrando como o projeto colonial de apagamento das identidades originárias ainda encontra ressonância em muitos setores da sociedade brasileira.
1. A bancada ruralista no Congresso reativou em 2013 a proposta de Emenda Constitucional 215, que visava transferir ao Legislativo a autoridade para a demarcação das terras indígenas. Essa proposta incorporava a tese do “marco temporal”, que limita o reconhecimento de terras indígenas àquelas que estivessem sob posse contínua desde a promulgação da Constituição de 1988, desconsiderando a histórica ocupação e a destacada resistência desses povos. Entre 2019 e 2023, num contexto marcado por mobilizações e lutas contra o “Marco Temporal”, os debates se intensificaram entre o Congresso, sob influência dos ruralistas, e o STF, que terminou considerando essa proposta inconstitucional. Grande parte desse debate aconteceu ao longo do governo Bolsonaro, que promoveu duros ataques aos povos originários. Um deles foi o desmonte das estruturas responsáveis pela proteção dos direitos indígenas, com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) sendo transferida do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e, posteriormente, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), sob comando de representantes do agronegócio. Outro ataque foi a conivência com o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas, que resultou em um cenário de devastação ambiental e de verdadeiro extermínio dessa população. Por exemplo, entre 2019 e 2021, a área afetada pelo garimpo no território Yanomami aumentou quase 2000%, com impactos devastadores ao meio ambiente e à saúde das populações locais. A presença de garimpeiros nessas regiões tem gerado conflitos violentos, com ameaças e assassinatos de lideranças indígenas, além da associação entre garimpeiros e narcotraficantes, utilizando a extração de ouro para lavagem de dinheiro. Investigações também revelaram que empresas multinacionais – como Apple, Google, Microsoft e Amazon – adquiriram ouro de refinadoras envolvidas na compra de minério extraído ilegalmente de terras indígenas.
1. Neste governo Lula-Alckmin, há promessas para uma retomada da política indigenista no país. Isso explica, em alguma medida, a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a nomeação de Sônia Guajajara, liderança histórica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), para a pasta. E mesmo a reunião de 20 anos do Acampamento Terra Livre (ATL), em 2024, que contou com a presença de 9 mil pessoas de mais de 200 povos sob o lema “Nosso marco é ancestral – sempre estivemos aqui”, em oposição ao Marco Temporal. Entretanto, apesar dos discursos, da criação do MPI e da realização do ATL, os avanços concretos nas políticas públicas para os povos indígenas ainda têm sido bastante limitados. O número de terras indígenas demarcadas foi abaixo do esperado, e a implementação de políticas efetivas têm enfrentado diversos entraves.
1. Tanto o movimento negro quanto o movimento indígena avançaram consideravelmente nos anos analisados, manifestando diferentes perspectivas políticas e ideológicas. Principalmente por influência das instituições e abordagens internacionais, muitas vinculadas ao neoliberalismo progressista do norte global, vêm se difundindo amplamente em ambos os movimentos as perspectivas liberais e/ou reformistas. Isso tem sido feito através de financiamentos de projeto, formações políticas, articulações internacionais e outros meios. No caso do movimento negro, a Fundação Ford desempenhou papel relevante desde os anos 1980, com dinheiro e apoios estratégicos que direcionaram as agendas políticas e terminaram priorizando um antirracismo desassociado da crítica classista e anticapitalista. Outras instituições foram influentes nesse sentido, tais como ONU, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e agências de cooperação internacional. Essa proximidade teve como resultado no movimento negro o fortalecimento de posições mais moderadas – como aquelas de Abdias do Nascimento e do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) – e o enfraquecimento de outras mais radicalizadas, como as de Clovis Moura. No caso do movimento indígena, também houve um papel destacado dessas instituições, sobretudo a partir dos anos 1990. A influência das classes dominantes brasileiras em busca de mercado e eleitores reforçou as posições mais moderadas e liberais nas lutas raciais e étnicas. Algo que se agravou ainda mais com a difusão no Brasil não apenas dos enfoques teóricos neoliberais progressistas, mas também daqueles pós-modernos, particularistas ou nacionalistas, que vêm contribuindo para minar a discussão sobre o papel que a luta antirracista possui na construção do socialismo. Ao priorizar ou mesmo se restringir aos debates sobre identidade, reconhecimento, representação, discurso, empreendedorismo etc., esses enfoques não só se mostraram incapazes de enfrentar o racismo estrutural, mas de subsidiar movimentos para uma transformação social de maior envergadura. Entretanto, não devemos fazer generalizações sobre isso. Pois, apesar dessa hegemonia moderada, liberal e reformista, houve durante todos os anos estudados outras posições, tanto no movimento negro quanto no movimento indígena, mais radicalizadas, revolucionárias e inclusive socialistas. Desde os anos 1980, elas disputaram os rumos desses movimentos e também contribuíram com suas conquistas.
1. Algumas grandes conquistas para negros e povos originários entre 1985 e 2024 já foram mencionadas, como a lei de cotas no ensino superior, de 2012, que fez com que, em 2019, pela primeira vez, negros se tornassem a maioria nas universidades públicas brasileiras; e também a vitória indígena contra o Marco Temporal, em 2023. Mas, durante esses anos, houve ainda outras conquistas marcantes: os direitos para negros e indígenas assegurados na Constituição de 1988; a criminalização do preconceito e da discriminação racial, por meio de lei, em 1989; as demarcações de terras quilombolas e indígenas que decorreram das aplicações constitucionais; a criação de instâncias e estruturas políticas para defender as bandeiras de negros e indígenas, como secretarias e ministérios; o reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói nacional (1995), a criação do Dia Nacional da Consciência Negra (2003) e, desde então, com grandes dificuldades, uma valorização maior da história e da cultura negra, e também da educação escolar indígena.
** LUTAS, ARTICULAÇÕES E MOVIMENTOS POPULARES NA CIDADE E NO CAMPO
1. Entre 1985 e 2024, a luta de classes no Brasil se manifestou em múltiplas formas e intensidades, variando entre momentos de grande efervescência e períodos de refluxo, entre ações espontâneas e iniciativas organizadas, entre conflitos localizados e mobilizações de escala nacional. Apesar da força das contradições sociais existentes, uma parte significativa das lutas e articulações se deu de maneira desorganizada, difusa e desvinculada de um projeto político das classes oprimidas. Mas também emergiram formas de organização e movimentos mais estruturados e duradouros – sindicatos, movimentos sociais, partidos – que, em diferentes níveis, buscaram canalizar essa força para fins institucionais, reformistas ou mesmo revolucionários. Essa tensão entre espontaneidade e organização, entre luta imediata e estratégia de poder, constitui o eixo fundamental para se compreender os limites e as possibilidades das lutas, das articulações e dos movimentos dos trabalhadores da cidade e do campo ao longo das últimas quatro décadas.
1. Nesse período, a imensa maioria das classes oprimidas não esteve organizada em sindicatos, movimentos, associações, partidos etc. De modo que as lutas e articulações – que se conformaram como parte de uma luta de classes mais ampla – foram realizadas, em grande parte dos casos, de maneira direta, em locais de trabalho, de moradia, de estudo. Mobilizações que ocorreram em diferentes setores da sociedade e que não tiveram um caráter organizativo mais significativo, estruturado e duradouro. Em certos casos, tais lutas e articulações se apresentaram como resistências passivas e não públicas; em outros, como resistências ativas e públicas. Nos anos analisados, as mobilizações espontâneas foram muito comuns, e incluíram, dentre outras: saques e revoltas populares contra a fome e a precarização; greves selvagens (greves organizadas diretamente pelos trabalhadores, sem autorização ou participação oficial dos sindicatos) e bloqueios de ruas e estradas contra más condições de trabalho e baixos salários; ocupações urbanas e rurais contra a falta de moradia e trabalho nas cidades e nos campos; protestos contra violência policial, aumentos de tarifas de serviços públicos, cortes no orçamento público, em áreas como educação, saúde etc. Em termos mais específicos, podemos mencionar: os protestos contra aumentos da tarifa de transporte, de 1987 e 1989, em Porto Alegre; a revolta dos cortadores de cana, de 1998, em Alagoas; as revoltas de trabalhadores da construção civil, durante os anos 2000, em diferentes regiões; as Jornadas de 2013, em várias cidades Brasil; a Greve dos Garis, em 2014, no Rio de Janeiro; as greves de entregadores de aplicativos (“Breques dos Apps”), em 2020 e 2021, em distintas capitais. A lista completa seria gigantesca...
1. É necessário reconhecer a importância dessas expressões da luta de classes; mas também é fundamental assumir seus limites. Elas possuem potencial para mudanças, mas não para transformações sociais de maior envergadura. Podem eventualmente resultar em conquistas, políticas públicas ou até reformas, mas são insuficientes para um projeto revolucionário como aquele que almejamos, o qual exige organização de trabalhadores, lutas e articulações com base em um projeto de poder popular autogestionário.
1. Contudo, entre 1985 e 2024 também houve iniciativas organizadas que buscaram dar forma e direção à luta de classes. Foram, principalmente, movimentos populares que tentaram mobilizar massivamente e investir em reivindicações concretas. Na cidade e no campo, eles incluíram: movimentos sindicais de trabalhadores urbanos e rurais; movimentos de luta por moradia e terra; movimentos estudantis e de juventude; movimentos religiosos populares, movimentos por direitos humanos e justiça social; movimentos feministas, LGBT+s, negros, indígenas, ambientais etc.
1. Na cidade, um marco fundamental desses movimentos foi o sindicalismo, particularmente em algumas de suas expressões. Na passagem dos anos 1970 para os 1980, a principal expressão foi o “novo sindicalismo”,que forjou as bases para diversas lutas sindicais nos anos seguintes. Esse movimento de renovação do sindicalismo brasileiro surgiu no ABC paulista e, ainda que contasse com tendências radicalizadas e moderadas, se caracterizou pela rejeição ao peleguismo e à tutela do Estado, e também pela defesa da combatividade, da independência e da democracia de base dos trabalhadores. Marcos nas lutas desse movimento foram as greves ocorridas entre 1978 e 1980 na região do ABC: a de 1978 enfrentou o arrocho salarial e a falta de liberdade sindical; a de 1979 foi uma greve geral e mobilizou 170 mil trabalhadores por aumento salarial, estabilidade no emprego e redução da jornada de trabalho; a de 1980 contou com a adesão de 300 mil metalúrgicos. Esse processo de luta e articulação recebeu diferentes apoios, dentre os quais o da Pastoral Operária. Mas esse novo sindicalismo também se destacou em outras regiões e categorias, como no caso dos petroleiros, que protagonizaram uma grande greve em 1983. Naquela ocasião, esses trabalhadores paralisaram a produção da Refinaria Landulfo Alves (BA) e da Refinaria Planalto (SP), mobilizando 35 entidades sindicais e associações de funcionários públicos, e estimulando greves em RS, PA, MG, SP e RJ. O movimento foi apoiado por estudantes, partidos de esquerda, Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira de Imprensa. Toda essa ascensão de massas ocorrida na passagem dos anos 1970 para os 1980 forjou as bases para a fundação do PT, ainda em 1980, e da CUT, em 1983.
1. Depois disso, o movimento sindical protagonizou lutas marcantes nas cidades e nos campos brasileiros (sindicalismo urbano e sindicalismo rural), dentre as quais se destacaram: as greves contra as privatizações de FHC entre 1995 e 1998, com protagonismo de petroleiros, eletricitários, bancários e metalúrgicos; as Marchas dos 100 mil contra a Reforma da Previdência, em 1995 e 1997, em Brasília; as greves por valorização do salário mínimo entre 2000 e 2005; as greves dos servidores públicos federais, entre 2003 e 2006, que enfrentaram as reformas previdenciárias de Lula; as campanhas salariais unificadas de diferentes categorias (bancários, petroleiros, metroviários etc.) de 2007, que incluíram greve e ocupações estudantis nas universidades, e contaram com grandes marchas “Contra as Reformas” em Brasília; o Dia Nacional de Lutas, em julho de 2013, apoiando a pauta do transporte público e reivindicando reforma agrária e fim do fator previdenciário; a greve geral de abril de 2017, contra a Reforma Trabalhista e a Emenda do Teto de Gastos de Temer, a maior desde 1989; greves e protestos contra a Reforma da Previdência, em 2019, em Brasília e outras capitais; mobilizações em defesa da vida e por vacina na pandemia, durante 2020 e 2021; campanhas salariais massivas do funcionalismo federal entre 2022 e 2023.
1. Grande parte da radicalidade de massas que estava presente no novo sindicalismo foi se perdendo com o passar dos anos. Isso tem a ver com o processo já discutido de atrelamento da CUT ao PT e dos rumos tomados pelo partido, principalmente a partir dos anos 1990, mas não apenas isso. Se é verdade que a burocratização e a partidarização atingiram a CUT e o PT, com iniciativas como a Oposição Sindical e a CUT pela Base se tornando cada vez mais raras, também é verdade que outros setores sindicais e partidos políticos tiveram impactos semelhantes ou assumiram direções até mais complicadas. Os seguidos ataques das classes dominantes e as mudanças do mercado de trabalho também contribuíram com essa perda de radicalidade e força do movimento sindical. Mais recentemente, organizações sindicais mais combativas e independentes, como a CSP-Conlutas e a Intersindical Vermelha, vêm tentando retomar um sindicalismo independente e combativo, mas enfrentam limites consideráveis em termos do tamanho da base de trabalhadores que conseguem organizar e mobilizar.
1. Nos anos analisados, também foram muito expressivos os movimentos sociais urbanos, dentre os quais o movimento comunitário de base popular das CEBs, assim como os diferentes movimentos de moradia e estudantis. Durante os anos 1980 continuaram a ter protagonismo as CEBs, que haviam sido fundadas no Brasil nos anos 1960 por setores de esquerda da Igreja Católica relacionados à Teologia da Libertação. As CEBs se converteram em potentes movimentos comunitários, que conciliavam religião (fé) com organização popular para fins políticos (ação transformadora), lidando com questões concretas como saúde, terra, água, luz, transporte, trabalho e moradia. Estiveram presentes sobretudo em áreas rurais do nordeste, norte e centro-oeste e nas periferias urbanas do sudeste e do sul do país. Foram importantes no combate à ditadura e na articulação com movimentos como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Pastoral da Juventude e o MST. Os movimentos de moradia se fortaleceram bastante nos anos 1990, por meio de organizações como o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) e, um pouco depois, o MTST, braço urbano do MST que posteriormente se tornou autônomo. Esses e outros muitos movimentos, vários de expressão local, passaram a organizar a população dos “sem-teto” – moradores de favelas, ocupações e periferias – para as lutas por moradia digna, direito à cidade e políticas habitacionais. As ocupações urbanas de imóveis ociosos foi ferramenta fundamental dessa luta, como nos casos da Ocupação Pinheirinho (São José dos Campos) e da Ocupação Povo Sem Medo (São Bernardo do Campo). A partir dos anos 2000, alguns movimentos de moradia passaram a se articular em cooperativas habitacionais e a participar mais frequentemente de conselhos e fóruns urbanos. Os movimentos estudantis se rearticularam durante a reabertura democrática, sendo a reconstrução da UNE, em 1979, seu marco mais significativo. Os estudantes tiveram participação ativa: na campanha das Diretas Já, entre 1983 e 1984, exigindo eleições diretas para a presidência; no movimento Fora Collor, protagonizado pelos “caras-pintadas” em 1992, que saiu massivamente às ruas exigindo o impeachment de Collor; nas diferentes lutas contra as privatizações de FHC, que marcaram os anos 1990, e em favor da educação pública e de qualidade.
1. No campo, as lutas pela terra encontraram expressões organizadas com a criação da CPT, em 1975, e do MST, em 1984, que em seguida se espalhou para outros estados do país. Entre os anos 1980 e 1990, o MST se projetou nacionalmente com as ocupações de grandes latifúndios improdutivos, marchas nacionais e estaduais, pressões por reforma agrária e organizações de assentamentos rurais com base na produção coletiva e na educação popular. Marcos nesse sentido foram a ocupação da fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, em 1985, e a Marcha Nacional por Emprego, Justiça e Reforma Agrária, em 1997. O movimento foi vítima de duras repressões, como os massacres de Corumbiara, em 1995, e de Eldorado dos Carajás, em 1996, a partir do qual o movimento passou a fazer jornadas anuais de luta para rememorar o ocorrido. A partir dos anos 2010, o MST atualizou o seu programa, incluindo junto à pauta histórica da reforma agrária a produção de alimentos saudáveis, por meio da agroecologia, e a defesa do meio ambiente. Durante o governo Bolsonaro, o MST enfrentou uma das maiores ondas de criminalização e ataques diretos. Outros marcos destacados dos anos 1990 foram o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). O primeiro se conformou em 1991, articulando reivindicações das populações atingidas por barragens, promovendo críticas sociais e ambientais ao modelo energético brasileiro e exigindo indenizações e reassentamentos adequados a essas populações. O segundo foi fundado em 1996, por setores próximos da base que conformou o PT, como reação à crise neoliberal na agricultura. Criticando o modelo agroexportador vigente no Brasil, o movimento passou a defender o fortalecimento da agricultura familiar, camponesa, e a soberania alimentar.
1. Sobre a trajetória dos movimentos populares urbanos e rurais dos anos 1980 e 1990, podemos fazer alguns comentários. Em suma, esses movimentos promoveram ao longo desses anos muitas lutas e articulações, que em alguns momentos se radicalizaram mais e em outros se caracterizaram pela moderação. Fato fundamental é que essa trajetória teve muita relação com os rumos do próprio PT e do Projeto Democrático Popular a ele associado, tendo em vista um contexto marcado pela hegemonia que o partido foi adquirindo na esquerda brasileira e, portanto, pela influência que o petismo estabeleceu nos movimentos populares. A burocratização do PT, em meio a uma reação conservadora na Igreja Católica, contribuiu para enfraquecer as CEBs e, com isso, a própria Teologia da Libertação. Com a eleição de Lula, em 2002, essa burocratização se acentuou ainda mais, e organizações como CUT, UNE e MNLM (e a própria Central de Movimentos Populares, CMP) passaram praticamente a compor o governo petista. Processo semelhante ocorreu com o MST, que levou alguns anos até entender que as promessas do PT para a reforma agrária não se consolidariam. Depois disso, o MST e outros movimentos como MAB e MPA (e a Via Campesina em geral) mantiveram proximidade com o petismo, ainda que manifestando reservas e críticas pontuais. Esse processo de burocratização e, depois, de adesão aberta ao governismo, motivou conflitos e cisões nos próprios movimentos. Em 1999, alguns setores inspirados pelo maoísmo romperam com o MST e fundaram a Liga dos Camponeses Pobres (LCP), um dos braços da Liga Comunista Internacionalista (LCI); em 2004 e 2006, setores sindicais romperam com a CUT e formaram a Conlutas e a Intersindical; em 2009, foi fundada a Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL), como alternativa à burocratização da UNE. O MTST manteve um pouco mais de distância do PT, mas teve aproximações ao integrar o programa Minha Casa Minha Vida “Entidades”, em 2009, passando a organizar e a executar projetos habitacionais com verba governamental. Ainda que tenha aderido à CSP-Conlutas, o MTST se afastou dela em 2012 e, nos últimos anos, vem se aproximando crescentemente do PSOL; na atualidade, o movimento se destaca na ala mais moderada do partido, bastante próxima do petismo.
1. Outro marco desses anos estudados foi a articulação no Brasil do Movimento de Resistência Global ou “Antiglobalização”, por meio da Ação Global dos Povos (AGP) – rede internacional para articulação das lutas contra o neoliberalismo e suas consequências sociais e ambientais. Dois aspectos desse movimento merecem destaque. Primeiro, as próprias lutas que o movimento protagonizou, com destaque para os protestos massivos de rua, que contribuíram para derrotar o projeto imperialista estadunidense da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). São exemplos desses protestos os “dias de ação global” “S26”, realizado em setembro de 2000, e “A20”, de abril de 2001, que mobilizaram pessoas em diferentes partes do país contra instituições e acordos neoliberais internacionais. Segundo, a cultura política que foi estimulada que, por um lado, fortaleceu posições de uma esquerda mais independente e antiburocrática, crítica do petismo e com presença de marxistas heterodoxos, autonomistas e anarquistas. E que, por outro, motivou coletivos, grupos e outras redes com essa orientação política, como o Centro de Mídia Independente (Indymedia) – iniciativa de imprensa que, de maneira precursora, deu voz aos movimentos populares na internet. Esse movimento envolveu muitos jovens e contribuiu com a politização de setores da contracultura, como o punk, o hip-hop e outras expressões de culturas periféricas, num contexto de descrença com partidos e sindicatos. Enfim, ele terminou sendo fundamental para formar uma geração de militantes. Os maiores limites do movimento no Brasil são similares àqueles de seus correlatos internacionais: falta de estratégia e projeto político, dificuldade de conectar a luta contra o neoliberalismo com questões concretas locais, falta de trabalho de base cotidiano, dificuldade de massificação sobretudo entre trabalhadores adultos. Esse início dos anos 2000 também foi muito importante para o anarquismo brasileiro, que vinha se rearticulando desde o fim dos anos 1970 e início dos 1980. Na virada do século, diferentes iniciativas surgiram e se fortaleceram pelo país. Destacam-se aquelas que derivaram da primeira Organização Socialista Libertária (1997-2000) e que assumiram expressão nacional: o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO), fundado em 2002 – que se converteu, depois de dez anos, na Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), e a Federação Anarquista Insurreição / União Popular Anarquista (UNIPA), criada em 2003.
1. Outro marco incontornável do período foi aquele das Jornadas de Junho de 2013. Essas jornadas se constituíram com manifestações massivas, que se iniciaram em cidades como Porto Alegre, Goiânia, Natal e Rio de Janeiro, em geral com forças à esquerda do petismo, e influência considerável de libertários e anarquistas. Elas se nacionalizaram depois da mobilização em São Paulo articulada pelo Movimento Passe Livre (MPL), exigindo a redução das tarifas nos transportes públicos. O MPL é o principal herdeiro da AGP brasileira, tendo sido criado em 2005, inspirado por experiências prévias de lutas radicalizadas pelo transporte, como a Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e a Revolta da Catraca (Florianópolis, 2004-2005). As Jornadas de 2013 tomaram todo o país e modificaram significativamente seus rumos. Foi um momento de ruptura conjuntural, em que partidos políticos e organizações mais tradicionais foram surpreendidos, em certos casos hostilizados, e tiveram dificuldades de lidar com distintos fatores: pluralidade de demandas e de público; novas dinâmicas de manifestação e movimentação; crescentes posições contraditórias; disputa ativa das ruas pela imprensa e por setores da direita. Naquele momento, surgia, de fato, um contexto novo e diferente no país.
1. Discordamos radicalmente que as Jornadas de 2013 tenham sido o “ovo da serpente” ou “início do fascismo no Brasil”. Elas marcaram a chegada da crise econômica, o esgotamento do projeto conciliador petista e um momento relevante de insatisfação popular, tendo terminado vitoriosas em suas pautas fundamentais. Inclusive, essa insatisfação se manifestou de outras maneiras naquele momento, por meio de ocupações, protestos de rua e greves – as quais, naquele ano, somaram 2050, maior número desde o fim da ditadura, e muito acima das 445 de 2010 ou das 877 de 2012. As Jornadas de Junho foram disputadas por distintas forças políticas, não raro opostas ou até contraditórias. É verdade que delas derivaram movimentos e articulações de direita, ainda que só seja possível identificar uma extrema-direita pública e organizada a partir de 2014 e 2015, a qual se radicalizava nas manifestações pró-impeachment de Dilma. Mas também é verdade que derivaram dessas jornadas movimentos e articulações de esquerda – alguns, inclusive, bem à esquerda do petismo. Dentre os frutos de esquerda das Jornadas de 2013 estão não apenas o grande crescimento nas filiações do PSOL, mas, sobretudo, as lutas contra a Copa do Mundo, em 2014; a maior onda de greves já ocorrida no país, entre 2013 e 2016; e as ocupações de escolas e universidades, em 2015 e 2016. Inicialmente, essas ocupações protestavam contra o fechamento de escolas e a transferência forçada de alunos, e em favor de melhores condições para a educação pública no país. Em seguida, incorporaram a recusa ao Teto de Gastos e à Reforma do Ensino Médio. Participaram desse amplo movimento de caráter libertário milhares de estudantes em todo o Brasil. No total, foram ocupadas mais de mil escolas e quase duas centenas de instituições de ensino superior.
1. Na última década, houve lutas e articulações relevantes, num cenário social de ascensão da extrema-direita. Dentre elas, se destacaram as greves do setor público entre 2015 e 2017 e a mencionada Greve Geral de Abril de 2017, convocada por centrais sindicais contra a Reforma Trabalhista. Ela foi marcada por manifestações em mais de 150 cidades, paralizações em grandes fábricas e portos, e mobilizou milhares (talvez milhões) de trabalhadores do transporte público (metrô, ônibus e trens pararam em várias capitais), bancários, professores, metalúrgicos, trabalhadores da saúde e do funcionalismo público, entre outros. Houve ainda mobilizações contra a Reforma da Previdência e os cortes na educação, em 2019. E, no contexto da pandemia, a luta dos entregadores de aplicativos por melhores condições de trabalho, em 2020 (“Breque dos Apps”), e as manifestações da Frente Povo Sem Medo, em 2020 e 2021, exigindo vacinação, medidas contra a fome e denunciando o governo Bolsonaro.
1. Com o crescimento da extrema-direita, tem havido divergências marcantes no seio da esquerda. Por um lado, setores majoritários compreendem que é necessário apostar na política de frente ampla e, portanto, dar apoio (mesmo que crítico) ao governo Lula-Alckmin e a esse petismo ampliado que cobre até a centro-direita. Por outro lado, setores minoritários entendem que é fundamental enfrentar a extrema-direita construindo uma nova força social à esquerda do petismo, com perspectiva classista, independente e mesmo revolucionária. A maioria do PSOL, da UP, do MTST e do MST tem se aproximado crescentemente do petismo, mesmo que criticamente. O MST, inclusive, passa há alguns anos por uma reformulação estratégica, priorizando a produção agroecológica e a disputa da opinião pública frente às ocupações de terra e lutas de massas. Essa e outras divergências, que envolvem leitura da realidade e caminhos a seguir, tem produzido conflitos inconciliáveis e cisões na esquerda brasileira. Foi o que se viu no marxismo, com as cisões de tendências do PSOL e de um setor do PCB (que criou o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, PCBR), e também no anarquismo, com cisões que incluem aquela da CAB, à qual se seguiu a fundação da Organização Socialista Libertária (OSL), e aquela da União Popular Anarquista (UNIPA). Nesse complexo cenário, as dificuldades de mobilização classista e de base se multiplicam. Problema central é, sem dúvida, a difusão de perspectivas neoliberais e conservadoras/reacionárias, via direita, e de abordagens (neo)liberais e progressistas, via esquerda (pós-modernos, particularistas etc.). Ainda que também mereça atenção a retomada do stalinismo, que tem estimulado concepções organizativas e de luta profundamente autoritárias na esquerda.
** MOBILIZAÇÕES FEMINISTAS, LGBT+S, NEGRAS, INDÍGENAS E AMBIENTAIS
1. As mobilizações feministas estiveram presentes nas lutas de sindicatos, movimentos sociais e partidos, mas também foram levadas a cabo por organismos e em atos próprios. Ainda nos anos 1970, se destacaram articulações como o Movimento do Custo de Vida, surgido na periferia de São Paulo, e o Movimento Feminino pela Anistia, iniciado pelas mães de estudantes presos na ditadura. Jornais como Brasil Mulher, Nós Mulheres e Mulherio, além do programa TV Mulher, da Rede Globo, ajudaram a fortalecer e dar voz a reivindicações feministas. Também foram marcantes nesse período os três Congressos da Mulher Paulista, entre 1979 e 1981, e iniciativas semelhantes em outros estados. Os anos 1980 foram atravessados por mobilizações feministas ainda mais expressivas. Em 1983, cerca de três mil manifestantes realizaram no Rio de Janeiro uma passeata do Dia Internacional da Mulher. Grupos como o Centro da Mulher Brasileira e a Articulação de Mulheres Brasileiras ganharam força e atuaram em torno de diversas questões, como saúde, educação e violência contra a mulher. A partir de 1982, com a progressiva redemocratização, muitas mulheres ingressaram no MDB, passando a fazer disputas institucionais e de políticas públicas. Isso contribuiu para desviar a energia das mobilizações, as quais deixaram de ser promovidas pelos movimentos populares e, assim, limitaram as possibilidades de conquistas às lutas pela via estatal. Um dos frutos desse esforço foi a criação da Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM), que surgiu em São Paulo e, depois, foi levada para outros estados. A mobilização das feministas também foi crucial para a consolidação dos direitos das mulheres na Constituição de 1988, tais como igualdade no trabalho, direitos previdenciários, proteção à maternidade e combate à violência doméstica. Elas não conseguiram avançar no direito ao aborto, mas, ao menos, impediram retrocessos. Em 1988, o Congresso das Metalúrgicas levantou bandeiras de luta contra a desigualdade salarial e o assédio sexual e, em 1989, o I Congresso Nacional de Mulheres Rurais reuniu centenas de delegadas para discutir terra, saúde e educação.
1. Os anos 1990 foram dedicados à consolidação de conquistas anteriores e à ampliação da presença das mulheres na política institucional; para essa ampliação, foi importante a adoção das cotas de gênero. Em 1992, a fundação da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos impulsionou debates sobre direitos sexuais e aborto legal. Em 1994, a criação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) unificou diversas vertentes feministas em torno de uma agenda comum. Os anos 1990 contaram ainda com o surgimento de movimentos de mulheres negras e de mulheres indígenas, e com a profissionalização de um amplo setor do feminismo brasileiro. Essa profissionalização se deu por meio da criação de fundações e ONGs financiadas por fundações internacionais voltadas à promoção do feminismo e focadas na interlocução com o poder público e na execução de políticas públicas. Essa ênfase nas ONGs foi parte de uma ofensiva neoliberal, capitaneada pelo Banco Mundial e seus aliados, cujo objetivo era substituir os movimentos populares e suas reivindicações políticas estruturais, pela lógica da “especialização na pobreza”, a partir do financiamento provindo de grandes empresas e governos. Desse modo, se substituía a militância pela assessoria remunerada, e os movimentos populares pelas entidades burocratizadas, a partir de limites institucionais colocados pelo Estado e esses organismos internacionais. Ao mesmo tempo em que ajudaram a articular os movimentos feministas no país, as ONGs também acabaram institucionalizando os movimentos e direcionando seus esforços para o lobby parlamentar. Dentre essas ONGs, se destacou o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). Nos anos 2000, a Marcha das Margaridas articulou trabalhadoras rurais numa das maiores mobilizações organizadas por mulheres no Brasil. A primeira marcha, em 2000, reuniu em Brasília cerca de 20 mil mulheres, incluindo camponesas, quilombolas, indígenas, pescadoras e extrativistas. A marcha teve caráter internacional, pois estava aliada à recém-criada Marcha Mundial das Mulheres (MMM), que articulava mulheres em 40 países contra o neoliberalismo e suas consequências. Com a ascensão do PT ao governo federal, parte considerável do movimento feminista também compôs o governo e se dedicou à construção das políticas públicas. Mencionadas conquistas como a Lei Maria da Penha e a PEC das Domésticas são algumas resultantes desse processo.
1. O movimento feminista ganhou novo impulso nos anos 2010 e 2020, com as redes sociais contribuindo para a disseminação de posições favoráveis aos direitos das mulheres, marcadamente entre a juventude. Essas redes se tornaram cada vez mais significativas para articular as mobilizações feministas. Em 2015, foi levada a cabo em diferentes cidades do país a Primavera Feminista, uma onda de protestos liderados por mulheres contra um projeto de lei do então deputado Eduardo Cunha, que dificultava o acesso ao aborto legal. Naquele mesmo ano, a Marcha das Mulheres Negras reuniu 50 mil mulheres em Brasília contra o racismo, a violência e na defesa do bem viver. Em 2018, o movimento “Ele Não” surgiu como uma resposta às declarações misóginas e autoritárias de Bolsonaro, então candidato à presidência. O movimento fez manifestações em mais de 160 cidades brasileiras, reunindo centenas de milhares de pessoas, naquele que foi o maior ato de rua já realizado por mulheres no Brasil. Em 2024, a campanha “Criança não é mãe” impôs uma derrota à bancada evangélica do Congresso, que tentava reverter o aborto legal no país, criminalizando o procedimento até em casos de estupro. Nos últimos anos, feministas de diferentes correntes têm articulado ações conjuntas no 8 de Março e em momentos de ameaça aos direitos das mulheres.
1. Entre 1985 e 2024, o movimento feminista cresceu consideravelmente, tanto em termos de força social, quanto em termos de pluralidade de pautas e sujeitos. Não há dúvida que, ao longo das últimas quatro décadas, se constituiu no Brasil uma nova e potente onda do feminismo, que foi responsável por avanços legislativos e nas políticas públicas.Ao mesmo tempo, o feminismo tem sido alvo da captura por parte do capitalismo e do Estado, algo que se evidencia quando notamos a profissionalização de ONGs e fundações, a priorização da política parlamentar e a adesão aos discursos empresariais de representatividade, visibilidade etc. Essa institucionalização possui riscos enormes, pois retira das mobilizações seu potencial transformador. Por outro lado, há aspectos positivos e oportunidades que também devem ser levados em conta. Primeiro, o fato de que, com esse grande crescimento do feminismo, correntes mais à esquerda, classistas e socialistas têm ganhado força e visibilidade. Segundo, o fato de que, apesar das diferenças, o movimento feminista de maneira geral tem conseguido promover articulações mais amplas e unitárias em diferentes circunstâncias. Finalmente, é preocupante a difusão recente de um certo feminismo radical que, mesmo que se reivindique “materialista”, promove o determinismo biológico e posições reacionárias contra a população trans (transfobia).
1. As mobilizações LGBT+s se iniciaram no Brasil nos anos 1970, num contexto de urbanização que permitia não apenas maior sociabilidade, mas também novas vivências para as minorias sexuais. Em 1978, foi fundado em São Paulo o Somos – Grupo de Afirmação Sexual, pioneiro no então chamado “movimento homossexual brasileiro”. Naquele mesmo ano, surgiu no Rio de Janeiro o jornal Lampião da Esquina, que, de forma bem-humorada e politizada, abordava temas relacionados à sexualidade e aos direitos. Em 1980, foi criado o Grupo Gay da Bahia (GGB), entidade consolidada e ativa até a atualidade, que iniciou em 1981 uma campanha nacional para despatologizar a homossexualidade. Conquistou em 1985 uma significativa vitória junto ao Conselho Federal de Medicina (CFM), cinco anos antes de a OMS tomar uma decisão semelhante. Ainda em junho de 1980, ocorreu o primeiro protesto do movimento LGBT+ no Brasil, que visou enfrentar a “Operação Limpeza” promovida pelo delegado José Wilson Richetti. O ato ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo e contou com participação dos movimentos feminista e negro. Em 1983, o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), uma dissidência do Somos, organizou um protesto no Ferro’s Bar, também em São Paulo, após a expulsão de lésbicas que distribuíam o boletim Chanacomchana. Hoje, esse evento é considerado um marco na luta pelos direitos das mulheres lésbicas no país. Ainda nos anos 1980, o Brasil foi atingido pela epidemia do HIV/Aids, que foi devastadora para a população LGBT+ e a estigmatizou, na medida em que a doença passou a ser chamada de “peste gay”. O movimento se mobilizou não apenas para exigir políticas de prevenção e tratamento à doença, quando se iniciavam as discussões sobre as bases do SUS, mas também para combater os estigmas que recaíram sobre sua própria comunidade.
1. Nos anos 1990, o movimento LGBT+ brasileiro se consolidou e ampliou suas ações. Em 1992, foi fundada a Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL), pioneira na defesa dos direitos de travestis e transexuais. Em 1995, ativistas LGBT+ realizaram uma marcha no Rio de Janeiro, considerada por muitos como a primeira Parada do Orgulho LGBT do Brasil, reunindo cerca de 3 mil pessoas na praia de Copacabana. A Marcha pela Cidadania, como foi chamada, marcou o encerramento da 17ª Convenção Mundial da Associação Internacional de Gays e Lésbicas, realizada naquela cidade. Iniciada em 1997, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo se tornou o maior evento de visibilidade dessa população no mundo. Entre 2000 e 2007, o público estimado de cada evento saltou de 500 mil para 3,5 milhões de pessoas. Outras capitais e cidades médias de todo o país vêm realizando suas próprias paradas, e ampliando o alcance do movimento. Entre o fim dos anos 1990 e a década de 2000, a questão LGBT+ foi marcada por programas governamentais, políticas públicas e eventos de expressão nacional. Destacou-se, em 2002, ainda durante o governo FHC, o 2º Programa Nacional de Direitos Humanos, que estabeleceu direitos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, ampliando o primeiro programa, que tratava apenas de direitos de homossexuais. O governo Lula ampliou tais políticas, por iniciativas como o programa Brasil sem Homofobia, lançado em 2003, e o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, de 2010. Ademais, em 2008, o governo federal convocou a primeira Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT), um evento que reuniu cerca de mil participantes para discutir e propor políticas públicas voltadas à promoção da cidadania e dos direitos humanos dessa população. São desse período conquistas relevantes já mencionadas, como a proibição da “cura gay” e as cirurgias de redesignação sexual pelo SUS.
1. Nos anos 2010, a causa LGBT+ continuou a avançar em conquistas, mas teve que lidar com ameaças mais duras de retrocessos. Por um lado, essa foi a década de outras conquistas citadas, como a legalização do casamento homoafetivo e a possibilidade de alteração de nome e sexo de pessoas trans em cartórios. Essas conquistas se somaram a outras: em 2011, a implantação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT e, em 2019, a equiparação, pelo STF, da homofobia e da transfobia ao crime de racismo. Entretanto, foi também nessa década que grupos conservadores e reacionários no Congresso se fortaleceram. Eles promoveram ataques contra o projeto Escola sem Homofobia, chamado pejorativamente de “kit gay” e conseguindo fazer com que o governo recuasse, e retomaram debates sobre o projeto de lei da “cura gay”, que terminou arquivado dois anos depois. Nessa década o fundamentalismo religioso avançou institucionalmente, colocando direitos em xeque e enfraquecendo a consolidação de políticas públicas para a população LGBT+.
1. Com representatividade institucional muito menor em relação a outros grupos oprimidos, e com demandas de direitos urgentes, o movimento LGBT+ também apostou na institucionalização e na profissionalização das articulações e lutas. Nos últimos dez anos, a eleição de parlamentares da comunidade LGBT+ passou a ser uma das principais estratégias para conter as investidas da direita e da extrema-direita, e para avançar nos direitos para essa população. Em menor grau quando são comparadas a outros setores, organizações LGBT+ também receberam financiamentos de fundações estrangeiras, governos e empresas; foram significativos os patrocínios a manifestações, eventos e publicações. Tal é o caso das Paradas das grandes cidades, que se tornaram festas oficiais, com apoio institucional e celebração do “pink money”. Apesar dos limites apontados, não há dúvida que, nas últimas quatro décadas, houve avanços enormes em termos de visibilidade, articulação, mobilização e mesmo de conquistas relacionadas à comunidade LGBT+.
1. As mobilizações negras haviam tido forte presença desde os anos 1930 e, a partir dos anos 1950, passaram a ser mais disputadas por grupos de esquerda; naquele contexto, nomes como Solano Trindade se destacaram. Durante os anos 1960 e 1970, intelectuais como Clóvis Moura e Lélia González elaboraram novas leituras sobre a questão dos negros no Brasil e adquiriram considerável influência. Tais mobilizações retomaram espaço ainda na esteira da luta contra a ditadura e, por isso, várias de suas ações naquele momento tiveram que ser realizadas clandestinamente. Durante a ditadura, as denúncias de racismo eram consideradas “atitudes impatrióticas”, pois, para os militares, não havia racismo ou discriminação racial no Brasil. Ainda nos anos 1970 se destacou o Grupo Palmares, de Porto Alegre, que propôs substituir o 13 de maio (abolição da escravatura) pelo 20 de novembro (assassinato de Zumbi dos Palmares) como principal data do movimento negro. Em 1978, foi fundado o Movimento Negro Unificado (MNU), que, com uma orientação marcadamente de esquerda, consolidou suas ações na década de 1980, promovendo debates sobre racismo, educação e violência policial, e buscando articular nacionalmente os negros brasileiros. Ademais, o MNU teve incidência na construção do PT e nos debates da Constituinte, conseguindo que, na Constituição, o racismo fosse considerado crime inafiançável.
1. Os anos 1980 foram anos de intenso crescimento do movimento negro. No fim da década, o Catálogo de Entidades de Movimento Negro no Brasil afirmava haver 537 grupos compondo esse movimento no país. Em termos culturais, a estética “black is beautiful”, vinda dos EUA, reforçou a autoestima e a resistência negra, e atraiu a população negra e jovem para os bailes black e, depois, para o movimento hip-hop. No contexto da promulgação da Constituição, em 1988, houve quatro outros marcos de destaque. Primeiro, a criação do Geledés – Instituto da Mulher Negra, uma ONG que construiu articulações e lutas pelos direitos das mulheres negras, abordando as intersecções entre gênero, raça e classe. Desde sua criação, essa entidade contou com o apoio da Fundação Ford e fez parcerias com governos e outros financiadores. Segundo, a convocação, no Rio de Janeiro, da Marcha Contra a Farsa da Abolição. No ano da celebração oficial do centenário da abolição da escravatura, essa marcha construiu um contraponto, promovendo o lema “Nada mudou, vamos mudar!” e chamando atenção para a permanência, um século depois, da exploração e da opressão do povo negro. Terceiro, a conformação da Fundação Cultural Palmares, primeira entidade federal voltada a promover, preservar e difundir as manifestações culturais de origem africana no país. Foi um momento de institucionalização da luta negra brasileira que evidenciou as disputas das forças sociais de centro-esquerda dentro do aparelho de Estado. Quarto, a incorporação da pauta racial, por parte dos sindicatos, em mobilizações e lutas sindicais. Isso se evidenciou em distintos momentos. Quando, em 1986, foi realizado em São Paulo o I Encontro Estadual de Sindicalistas Negros e, pouco tempo depois, a CUT criou uma Comissão Nacional Contra a Discriminação Racial. Quando a CGT e a Força Sindical estabeleceram, na sequência, instrumentos de discussão e combate ao racismo e, em 1995, na ocasião em que essas três centrais sindicais fundaram o Instituto Interamericano pela Igualdade Racial.
1. Entre as diversas iniciativas que surgiram nos anos 1990 podemos destacar ONGs como a Educafro e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em São Paulo, o AfroReggae, no Rio de Janeiro, além do Instituto Cultural Steve Biko, em Salvador. Como fruto da articulação de entidades negras, foi realizado, em 1991, em São Paulo, o I Encontro Nacional de Entidades Negras, que deu origem à Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN). Seu objetivo era unir as diferentes entidades e movimentos para denunciar o Estado Brasileiro frente à falta de reparação histórica em função do problema racial. Outro importante marco foi a organização da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995, que reuniu cerca de 30 mil pessoas em Brasília, e foi finalizada com a entrega de um documento ao governo federal, que apresentava uma série de medidas para o combate a superação do racismo no Brasil. A marcha foi precedida pelo I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais, reunindo quilombolas nos 300 anos de morte de Zumbi. Outro evento importante naquele ano foi o Congresso Continental dos Povos Negros na América.
1. Essa pluralidade de articulações voltadas a lutas específicas contribuíram para outros avanços nas duas décadas seguintes: em 2002, a criação do Programa Nacional de Ações Afirmativas; em 2003, o estabelecimento da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial e a instituição do ensino de História da África e de História Afrobrasileira nas escolas; em 2007, a criação do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, demanda das religiões de matriz africana; em 2010, o estabelecimento do Estatuto da Igualdade Racial; em 2012 e 2014, a aprovação de cotas raciais para o ensino superior e para o funcionalismo público. Para tais avanços também foram relevantes movimentos organizados em grandes centros urbanos para levantar a pauta da violência de Estado contra a população negra: em 2004, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, do Rio de Janeiro; em 2005, o movimento Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, da Bahia; em 2006, o Movimento Mães de Maio, de São Paulo, formado após os chamados crimes de maio. Outros movimentos desse tipo foram articulados pelo país, unindo familiares de vítimas (principalmente mães), estudantes, militantes, ativistas e pesquisadores, na denúncia da violência de Estado, do racismo estrutural e na busca por memória, verdade e justiça. Similarmente, parentes de detentos organizaram movimentos de denúncia contra o encarceramento em massa, principalmente depois da Lei de Drogas, de 2006.
1. Mulheres negras também organizaram seus próprios espaços para discutir estratégias visando enfrentar a dupla opressão do racismo e do sexismo no país. Dentre as articulações realizadas para tanto estão o I Encontro Nacional da Mulher Negra, ocorrido em Valença (RJ), em 1985, e as Reuniões Nacionais do Fórum da Mulher Negra, ocorridas em 1997. Movimentos de mulheres negras continuaram a ter protagonismo, como em 2015, na mencionada Marcha das Mulheres Negras de Brasília, e, em 2018, na pressão pela elucidação do assassinato de Marielle Franco, e na reivindicação por maior participação de mulheres negras nos espaços da política institucional.
1. Entre 1985 e 2024, o movimento negro ampliou muito sua força social atuando em múltiplas frentes e pautas, desde a valorização de aspectos da cultura negra até as questões relacionadas à educação e a violência policial. As articulações em redes e encontros foram constantes, assim como as manifestações em datas simbólicas, sendo a principal delas o 20 de Novembro. Ainda assim, o movimento negro, como outros, não conta com uma articulação unitária e nem com um programa mais ou menos comum, que possa nortear os diferentes coletivos e sujeitos na luta pela causa do povo negro. Tal fragmentação vem dificultando a implementação de mudanças estruturais ou reformas mais duradouras. Outro desafio é a proliferação de institutos e ONGs de perspectivas liberais e financiados por fundações internacionais, que contribuem para retirar o protagonismo dos movimentos populares e para minar radicalidades vindas das bases. Além disso, a presença crescente de negros no ensino superior vem sendo fundamental para ampliar o debate sobre o racismo estrutural dentro e fora das universidades, e para formar educadores e intelectuais negros. Preocupa apenas a forte importação de teorias dos EUA e da Europa, frequentemente liberais e/ou pós-modernas, que vem empurrando para o esquecimento produções intelectuais classistas e socialistas, inclusive de autores brasileiros, como aquelas de Clóvis Moura. Preocupa, ainda, que grandes corporações estejam tentando pautar o debate sobre a questão negra e se beneficiar dela.
1. As mobilizações indígenas foram retomadas na década de 1980, com a criação de diferentes organizações para reivindicar direitos e garantir maior representatividade na sociedade brasileira. Marco importante foi a fundação da União das Nações Indígenas (UNI), em 1980, com o propósito de unir povos indígenas de todo o país e afirmar sua posição como sujeitos políticos com voz própria. A UNI participou ativamente, dentro e fora do Brasil, de conferências, congressos e seminários, e também de eventos organizados por instituições como a OEA, a UNESCO e a ONU. No entanto, sua atuação foi severamente restringida pelo governo, que tentou enquadrá-la na Lei de Segurança Nacional e terminou contribuindo com sua dissolução. Outro marco destacado nesses anos foi a eleição, em 1982, de Mário Juruna, primeiro deputado federal indígena do país, que foi responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio no Congresso. Ainda durante os anos 1980, as assembleias indígenas ganharam força pelo país, e contaram com o apoio tanto do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) quanto das CEBs. Elas contribuíram para atrair novos aliados, como antropólogos, ONGs e ativistas, consolidando uma ampla rede de apoio à causa indígena. Esse fortalecimento teve impacto direto na Constituinte e na Constituição de 1988, assegurando aos povos indígenas: o direito às suas terras tradicionais, o direito à organização social própria, a obrigação do Estado demarcar e proteger as terras indígenas. Cumpre ainda mencionar um marco dos anos 1990: a criação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que reuniu mais de uma centena de organizações locais e sub-regionais voltadas ao fortalecimento da identidade indígena e à articulação política entre os povos da região.
1. Ao longo dos anos 2000 e 2010, as mobilizações indígenas tiveram continuidade e se destacaram em articulações menos e mais institucionalizadas. Marco dessas mobilizações foi a primeira edição do Acampamento Terra Livre, realizada em 2004 na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Desde então, esse evento se tornou anual e vem reunindo centenas de lideranças e se caracterizando como a maior mobilização indígena do país. Em 2005, o Acampamento contou com a participação de mais de 800 representantes, e decidiu fundar a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que se consolidou já no ano seguinte. A APIB tem reunido as principais organizações regionais indígenas do país; ela contribuiu para os trabalhos da Cúpula dos Povos, instituiu uma Comissão Nacional Permanente e passou a organizar o Fórum Nacional de Lideranças Indígenas. A década de 2000 contou também com a luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, homologada em 2005 e confirmada pelo STF em 2009, em meio a uma forte campanha midiática contrária aos interesses indígenas. E com a ocupação, por parte dos indígenas, de espaços importantes nos meios políticos, culturais e educacionais. Num contexto de maior presença indígena no ensino superior, e do início de cursos interculturais indígenas, foram formados Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABIs) em diversas universidades, ampliando as cooperações científicas e acadêmicas, assim como os debates e as pesquisas sobre questões étnico-raciais.
1. Nas últimas duas décadas, os indígenas também se mobilizaram contra projetos que ameaçaram seus direitos. São exemplos: o combate à PEC 215, de 2000, que propunha transferir o poder de demarcar terras ao Congresso; a resistência dos povos do Xingu à construção da usina de Belo Monte, no Pará, entre os anos 2000 e 2010; a luta contra o avanço da exploração mineral em diferentes terras indígenas. Ademais, o movimento indígena protagonizou retomadas de terras nos anos 2010; dentre outros, estão os casos dos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul; dos Tupinambá, na Bahia; dos Xokleng, em Santa Catarina. E realizou protestos em diversas cidades no contexto das Jornadas de 2013. Enfim, por meio de alianças com ONGs e institutos brasileiros e internacionais, o movimento denunciou no exterior a situação dramática vivida a partir de 2016, durante os governos Temer e Bolsonaro. Lideranças indígenas como Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, que haviam ganhado destaque nesse contexto, foram para a política institucional. Fatos marcantes desde década de 2000 têm sido a consolidação de espaços de representação do movimento indígena nas esferas públicas, com a internalização e a gestão de recursos governamentais, assim como a ocupação, por parte de várias lideranças de organizações indígenas, de funções públicas e políticas na esfera da administração pública. Ainda que isso tenha trazido conquistas, também colocou desafios; em especial, relacionados a conflitos, luta pelo poder, subserviência ideológica, identitária etc. Organizações como a APIB contribuíram para fazer avançar as lutas indígenas em nível nacional, mas, muitas vezes, lideranças políticas se descolaram das bases e das lideranças territoriais, complicando e freando essas próprias lutas.
1. Entre 1985 e 2024, o movimento indígena se destacou por seu dinamismo e suas lutas, muitas vezes combativas e radicalizadas, em um contexto de brutal violência. O movimento criou articulações regionais e nacionais, e ganhou relevância internacional nas lutas por demarcação de terras e proteção do meio ambiente e contra o avanço do garimpo, da mineração e do agronegócio. Em vários momentos, evidenciou as contradições capitalistas-estatistas e adotou formas de luta libertárias. Entretanto, as mobilizações dos indígenas em particular, e dos povos tradicionais em geral também mostraram limites, dentre os quais estão: a tentativa de cooptação por parte de ONGs e da institucionalidade liberal, incluindo governos e partidos da esquerda e da centro-esquerda; a falta de unidade interna; as abordagens que se restringiram às reivindicações culturais particularistas e o distanciamento de outros movimentos das classes oprimidas, deixando de lado projetos mais amplos de transformação.
1. As mobilizações ambientais no Brasil, antes mesmo do chamado movimento ambientalista ou ecológico, foram protagonizadas pelos povos tradicionais que, ao lutarem pela preservação de seus modos de vida, lutavam também pela preservação do meio-ambiente. Durante os anos 1980 e 1990, diferentes iniciativas desse tipo se destacaram no país, dentre as quais estão as reivindicações pela demarcação dos territórios dos Kayapó, na região do Xingu, e dos Yanomami, no Amazonas e em Roraima. Foi nesse contexto que figuras do movimento indígena, como o Cacique Raoni, ganharam reconhecimento dentro e fora do país, também pela dedicação demonstrada à causa ambiental. Além disso, foram comuns nas mobilizações ambientais as alianças entre os povos indígenas e outras forças. Tal foi o caso da Aliança dos Povos da Floresta, criada em 1987, na Amazônia, que articulou indígenas, quilombolas e sindicalistas agrários (seringueiros) para a defesa territorial e a conservação ambiental. Foi no seio dessa aliança que despontaram figuras como Chico Mendes e Ailton Krenak.
1. Outros protagonistas da luta ambiental foram os movimentos populares, particularmente aqueles vinculados à Via Campesina. O MST, a partir da crítica ao agronegócio e da defesa da agroecologia, se tornou um agente relevante dessa luta. Denunciou e combateu nacionalmente o desmatamento e a degradação ambiental, a monocultura e o uso intensivo de agrotóxicos; promoveu de maneira ativa e na prática a preservação de biomas, o reflorestamento e a recuperação de nascentes e matas ciliares, o uso sustentável da terra e a produção saudável de alimentos. Em 2010, lançou a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, junto com organizações sociais, científicas e outros movimentos. O MAB foi outro desses agentes importantes, ao denunciar o papel das barragens no desmatamento, na perda de biodiversidade, nas mudanças climáticas e na contaminação da água, e enfrentar processos de privatização da água e da energia. O movimento também se destacou pela defesa da agroecologia, da justiça climática, pelos conflitos que protagonizou contra hidrelétricas – de Belo Monte (PA), Estreito (MA/TO), Itá (RS/SC), Machadinho (SC) etc. – e pela atuação que teve depois das tragédias de Mariana e Brumadinho.
1. Contudo, as mobilizações ambientais brasileiras também envolveram iniciativas liberais, promovidas por ONGs, muitas das quais internacionais. Dentre elas, estão: a WWF Brasil, cuja atuação no país remonta aos anos 1970/1990, e se concentrou na conservação de espécies e ecossistemas ameaçados e na promoção da sustentabilidade; a Fundação SOS Mata Atlântica, criada em 1996 para conservar a biodiversidade e o patrimônio cultural da Mata Atlântica; o Greenpeace Brasil, que iniciou suas atividades no país em 1992 e, desde então, tem atuado para combater o desmatamento, a energia nuclear, os transgênicos e as mudanças climáticas. Esse ambientalismo liberal tem avançado consideravelmente em iniciativas que mobilizam empresas, governos, partidos, terceiro setor, imprensa etc.
1. Toda essa pluralidade de agentes, iniciativas e lutas, com perspectivas ideológicas distintas e até contraditórias, contribui para explicar a grande diversidade de repertório dessas mobilizações. Ele incluiu, nos anos analisados, ações diretas, protestos de rua, organizações populares, ações civis públicas, denúncias internacionais, participação em conselhos, campanhas de conscientização, educação ambiental, lobby político, projetos de preservação e restauração ambiental. Esse repertório tem sido mobilizado mais recentemente em torno dos eventos climáticos extremos, que vêm crescendo nos últimos anos. Juntamente com iniciativas em outros países, se conformaram no Brasil articulações como a Coalizão pelo Clima, que tem promovido ações chamando a atenção para a causa ambiental; marco dessas ações foi a Greve Global pelo Clima, em 2019.
1. Entre 1985 e 2024, as mobilizações ambientais foram plurais em forma e conteúdo. Em muitos momentos, elas contaram com protagonismo das classes oprimidas, em especial nos casos que envolveram o movimento indígena, outros movimentos sociais como o MST e o MAB, e os sindicatos agrários. Mas em muitos outros momentos, elas tiveram protagonismo ONGs e instituições liberais, muitas das quais internacionais, e mesmo às classes dominantes globais que pretendem criar um “capitalismo sustentável” ou “mais humanizado”. Diferente de outras questões, que estão ganhando muito espaço na sociedade brasileira, o problema ambiental, apesar de toda sua urgência e de toda sua gravidade, não tem recebido a devida atenção, sequer por parte dos movimentos populares e organizações políticas de esquerda.
* NOTAS
[1] Utilizamos o PIB, neste momento e adiante, para dar uma noção geral de movimentação econômica e produção de riquezas de um país, mesmo sabendo dos limites desse indicador. Além de ser um indicador geral, que precisa ser entendido nos detalhamentos de seu conteúdo e em conjunto com outros, o PIB não distingue as formas de capital econômico. Por exemplo, um banco que gera lucros em função dos juros que cobra de seus clientes, é considerado uma empresa que está produzindo riqueza... Além disso, o PIB por si mesmo não evidencia um fenômeno econômico muito importante, que é transferência de capital econômico de um país a outro por empresas estrangeiras operando no exterior. Por exemplo, uma empresa dos EUA que produz no Brasil, mas cujos lucros e dividendos são repatriados para os EUA, possui seus resultados contabilizados no PIB brasileiro...
[2] Utilizamos as taxas de desemprego, neste momento e adiante, apenas para dar uma noção geral, a partir de dados oficiais que fazem esse cálculo. Fazemos isso sabendo que essas taxas não explicam precisamente a questão do emprego/desemprego, ocupação/desocupação no trabalho. No caso do Brasil, por exemplo, levando em conta dados e metodologia do IBGE, é mais importante saber qual é a força de trabalho excedente brasileira do que conhecer o percentual ou número de desempregados oficiais. Abordaremos esse tema com mais detalhes quando falarmos do Brasil.
[3] Crise é um momento de instabilidade ou até de colapso/ruptura de um sistema ou de parte dele e, portanto, um fenômeno que implica um contexto de mudança qualitativa na normalidade sistêmica da sociedade. Ela pode ser estrutural ou conjuntural e normalmente é súbita/imprevisível e possui duração limitada. É comum que as classes dominantes (ou ao menos setores delas) se beneficiem das crises e que suas consequências impliquem prejuízos para as classes oprimidas. Nesta análise, utilizamos crise tanto com esse sentido de colapso/ruptura – quando falamos de crise do bloco socialista, por exemplo –, quanto com esse sentido de instabilidade – quando falamos das diversas crises pelas quais o capitalismo-estatismo vem passando, no mundo e no Brasil. De modo que não estamos diagnosticando, seja neste ou em outros trechos, uma “crise do capitalismo” e nem qualquer outro tipo de crise, “cíclica” ou não, que esteja apontando para o colapso ou a ruptura (ou seja, o fim) do capitalismo e, muito menos, para a possibilidade de construção do socialismo no curto ou no médio prazo.
[4] Como já colocamos antes, não faremos discussões conceituais neste texto. Mas vale apenas destacar que nossa concepção de classes sociais se diferencia das abordagens mais conhecidas, sejam marxistas ou liberais. “As classes sociais se definem pela propriedade dos meios econômicos, políticos e intelectuais-morais [...]. E a luta entre classes dominantes e classes oprimidas é o principal (ainda que não o único) conflito social da sociedade capitalista-estatista – sua maior contradição. [...] No sistema capitalista-estatista, o movimento de produção e reprodução das classes sociais explica-se por quatro formas de dominação: a exploração do trabalho (apropriação dos excedentes do trabalho; a maioria trabalha para dar lucro e bem-estar a uma minoria), a coerção física (violência e repressão; uma minoria mata, prende e intimida a maioria), a dominação político-burocrática (mando e obediência; uma minoria decide e a maioria segue as deliberações) e a dominação intelectual-moral (monopólio na produção e difusão de ideias, informações, concepções de mundo; legitimação das relações de dominação; uma minoria produz e distribui essas ideias, informações e concepções, e a maioria as “consome” e reproduz). Essas quatro formas de dominação unificam classes sociais concretas (latifundiários/as, burguesia, proletariado, campesinato etc.) em dois conjuntos mais amplos e contraditórios entre si: classes dominantes e classes oprimidas, que, no capitalismo-estatismo, estão em permanente conflito, luta, contradição. (OSL, “Nossos Princípios e Estratégia Geral”)
[5] Nesta análise, nos concentraremos apenas nas classes dominantes e nas classes oprimidas, deixando de fora os setores intermediários. Mas, somente a título de informação, colocaremos aqui alguns apontamentos sobre eles. Os setores intermediários representam, na atualidade, pouco mais de 11% da população brasileira, e se dividem em duas classes concretas: a pequena burguesia e os médios gestores, sendo que a primeira é muitíssimo maior que a segunda. A pequena burguesia conta com pequenos empresários (indústria, serviço, comércio), “profissionais liberais” (altamente qualificados, como dentistas, médicos, advogados etc.), alta intelectualidade e grandes influenciadores. Os médios gestores contam com gerentes e baixos diretores de empresas médias e grandes, incluindo nas áreas de educação e comunicação.
[6] Conforme apontado, esse critério de definição de cor/raça (de que, no Brasil, negros = pretos + pardos, a partir de dados do IBGE) possui problemas. Isso porque, dentre aqueles identificados como “pardos”, há muitos indígenas. Ou seja, assumir o mencionado critério significa sobrestimar negros e subestimar indígenas. Mesmo que, desde o Censo de 1991, tenha sido incluída a categoria “indígena”, o fato é que a categoria “pardo”, ao agregar pessoas “mestiças” – que se declaram como mistura de duas ou mais raças (dentre pretos, indígenas e/ou brancos) –, termina abarcando também descendentes de indígenas. Diferentes analistas sustentam, inclusive, que a maioria dos indígenas acaba se identificando como “pardo” nessas pesquisas. Ainda que haja um amplo e complexo debate sobre o tema, entendemos que a melhor maneira de lidar com tais dados seja, por um lado, não reivindicar politicamente o conceito de “pardos”, mas de “negros” e “indígenas”; e, por outro, reconhecer que, das cinco categorias do IBGE (branco, preto, pardo, amarelo e indígena), três são vítimas de racismo no Brasil: pretos, pardos e indígenas – tendo sempre em mente que há na estatística de pardos um número considerável de indígenas.
"Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres." - Mikhail Bakunin