Título: Anarquismo contra o “Poder Popular”
Data: 2009–2013
Fonte: @PDF
Notas: Titulo Original: Anarquismo contra el “poder popular” . Tradução e Revisão por André Tunes @Consciência Subversiva
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.

Apresentação

Um sofisma – outro mais – está sendo ouvido por alguns anos. O discurso desse sofisma vem de grupos e vozes que propõem tornar o anarquismo um movimento que adota as formas de partidos de esquerda.

O conceito de “poder popular” é um sofisma do governo popular, do Estado operário, da ditadura do proletariado … daí vem e vai para lá.

Não é por acaso que a promoção desse conceito é praticamente exclusiva da América Latina. Não é coincidência que grupos e vozes individuais, que insistem em amalgamar essa ideia de poder com o anarquismo, sejam também os mesmos que reivindicam ou manifestam “apoio crítico” aos governos de Cuba ou da Venezuela …

Os textos de Patrick Rossineri são uma resposta a esta promoção. São uma resposta aos argumentos daqueles que – por inocência, confusão ou interesses – procuram negar a essência do anarquismo, isto é, a negação de todo poder político.

Os seguintes textos foram originalmente publicados na publicação anarquista ¡Libertad!, de Buenos Aires, em 2009 e 2013.

A Quimera do Poder Popular: Uma forma de integração do sistema

Pelo menos, como é geralmente entendido pela esquerda, o “Poder Popular” seria uma proposta para construir o socialismo através de um modelo de democracia participativa, que reestruturaria a organização na qual o Estado se baseia. O poder popular seria fundado na velha ideia de Rousseau de vontade geral, transferindo os poderes do governo para o povo, instituído em organizações de base e elegendo representantes para o governo popular por meio de voto.

Esta política exige que o governo assuma a transferência acima mencionada, porém de forma gradual para transformar a democracia representativa em participativa, e alcançar o socialismo pelo caminho do poder popular. Ou seja, um objetivo supostamente revolucionário é proposto ao longo de um caminho reformista, temperado com o jargão nacionalista, socialista e antiimperialista. Este foi um experimento que foi truncado no Chile em 1973 pelo golpe de Pinochet contra o governo de Salvador Allende e faz parte do cânone ideológico da Venezuela de Hugo Chávez e do bloco cubano pós-socialista, que recupera o slogan guevarista de desenvolver no povo os “germes do socialismo”. Esse tipo de projeto reformista e autoritário, defendido pela esquerda nacionalista e burguesa, sempre foi repudiado pelos anarquistas e seus mais influentes teóricos, Bakunin e Malatesta, entre outros.

No entanto, há algum tempo muitos libertários latino-americanos (argentinos, uruguaios, colombianos e brasileiros) publicaram declarações sobre a necessidade dos anarquistas de “construir o poder popular” lutando pela socialização do poder para que ele não converta na posse de alguns. A ideia proposta visaria construir um movimento libertário antidogmático, baseado na realidade e conectado com as lutas populares.

Essas formulações, como seus autores pressupõem, podem parecer “uma contradição insolúvel” para qualquer “combatente da liberdade”. Na realidade não parece, mas é “uma contradição insolúvel”. Mas antes de responder por que é, vamos ver em que consiste essa proposta.

Em um documento intitulado Anarquismo e Poder Popular da Rede Libertária Mateo Kramer da Colômbia[1], a seguinte pergunta é feita:

“O poder deve ser entendido apenas como uma imposição autoritária, como um poder sobre? Não se pode entender o poder de outra maneira, isto é, como uma poder-fazer coletivo, ou um poder-construir em conjunto? São os que estão acima, aqueles que governam, que nos fizeram acreditar que o poder é um ‘objeto’ do qual eles têm posse, uma ‘coisa’ desprendida das relações sociais, um aparato transcendente de sujeição.

Mas, por outro lado, nós, os e as de baixo, concebemos o poder de outra maneira: não como uma ‘coisa’, mas como um ‘relacionamento’, como um poder social alternativo e libertador. Assim, nosso poder é principalmente uma capacidade coletiva de imaginar e criar uma nova sociedade no aqui e agora”.

Aqui surge uma confusão na questão que afetará toda a análise subsequente. O termo poder tem múltiplas acepções, significados e interpretações, devido à sua natureza polissêmica. Podemos falar de poder como uma relação de domínio, como a capacidade de fazer, como posse de algo, força, capacidade de provocar efeitos de verdade, comando, coerção e, finalmente, o governo de um país.

Claramente, a questão confunde o significado de relação de domínio (primeira questão) com a acepção capacidade de fazer (segunda questão). Para maior confusão, o raciocínio continua, propondo deixar de ver o poder como um objeto ou instrumento e tomá-lo como uma relação, mas desconsiderando que as relações de poder são relações de domínio, e novamente propondo um poder como uma “capacidade coletiva de imaginar” (isto é, uma competência e não uma relação).

Depois de tal emaranhamento, que não pára de enredar, deixa de ser uma simplicidade e uma frivolidade surpreendente, seria legal perguntar se tudo se resume a preferir um significado a outro ou considerar que os anarquistas sempre foram tão obtusos que sempre confundiram poder com uma “coisa” e nunca perceberam que se tratava de uma relação de dominação. Como se pensar em poder em seu aspecto relacional o tornasse “um poder social alternativo e libertador”, e não uma relação de dominação assimétrica. O capitalismo, entre outras coisas, é também uma relação social assimétrica (de exploração e dominância), e certamente esses companheiros não pensariam em esquecer esse aspecto de propor um “capitalismo social alternativo e libertador”.

Na verdade, nós anarquistas negamos o poder político, a capacidade de domínio de uma instituição, um grupo ou um indivíduo sobre outras pessoas, poder como sinônimo de governo. Isto é, toda a teoria anarquista é fundada em uma crítica do poder e dos efeitos que produz, objetivamente expressos na mídia, nas instituições, dispositivos materiais e instrumentos através dos quais o domínio é exercido, mas também subjetivada em relações assimétricas onde alguns decidem e governam enquanto outros obedecem e executam. Os anarquistas nunca propuseram o poder popular, nem poder para uma classe, precisamente porque apontavam para aquele aspecto relacional do poder, onde se uma classe ou grupo (mesmo se fosse uma maioria) exercesse poder sobre outra, ela se tornaria outra relação de domínio (assimétrica). Quem possui poder exerce controle sobre o comportamento daqueles que o sofrem. Não há relações de poder simétricas, porque quando há simetria e reciprocidade numa relação social, é porque a relação de poder deixou de existir.

O documento também afirma que, “para que esse poder coletivo seja popular, o agente não pode ser outro que o povo, aquele sujeito plural que é definido pela reunião das classes subalternas, dos marginais, dos despossuídos, dos excluídos”. Além da obviedade da proposição, uma avaliação do popular é percebida como positiva em si, o que pode causar certos conflitos. O popular não está isento de portar alguns erros sociais, como o sexismo, o nacionalismo ou o racismo, para mencionar os mais comuns. Se algo fosse definido como popular apenas porque o agente “povo” o produz, e se definirmos o povo gramscianamente como classes subalternas, devemos também aceitar que dentro desse povo existe um grande número de elementos sociais, culturais, políticos e econômicos burgueses, que incluem a dona de casa, o vendedor ambulante e o trabalhador, bem como o policial na esquina, o dono de um verdureiro ou uma barra brava de futebol. A essência popular é precisamente esse caráter policlassista, que combina elementos revolucionários e conservadores, proletários e burgueses, libertários e autoritários.

Se, como eles argumentam, o poder popular é uma nova forma de relacionamento e visa “lançar um novo ethos”, criando “outro mundo possível, um mundo diferente que enfrenta o que já conhecemos”, e ao mesmo tempo “é uma práxis que da mesma maneira em que transforma os lugares de vida das pessoas cria um bloco contra-hegemônico, um bloco que entra em confronto direto com a ordem vigente”, então, o poder popular planeado dessa maneira começa a ter pontos em comum com o poder popular, como a esquerda tem entendido historicamente. Esse poder é apresentado como uma antecipação da sociedade futura, como uma prática gradualista, que visa substituir o Estado e o capital. O que não é explicado é como uma cultura horizontal e libertária, participativa e inclusiva pode ter um lugar em uma sociedade que é seu retumbante negativo, no qual a mídia, a educação, a exploração e a repressão estão nas mãos daqueles que realmente detêm o poder. É claro que há práticas de solidariedade, ajuda mútua, cooperação, altruísmo e atitudes libertárias dentro do povo, mas isso é mais inerente à condição humana do que ao ethos popular. É simplesmente uma ilusão acreditar que, advogando o poder popular (por mais compreendido que seja), estaremos mais próximos da autolibertação das massas. O sistema capitalista demonstrou uma grande capacidade de absorver todos os movimentos populares, de todos os signos: a Venezuela e Cuba são um bom exemplo disso. Quando excepcionalmente os governos que realmente exercem o poder concedem a possibilidade de as pessoas praticarem alguma forma de autogestão, está sempre sob a permissão e supervisão direta ou indireta, se não de interesse, do Estado.

É um erro afirmar que “o anarquismo que quer socializar os meios de produção também quer socializar o poder e impedir que se torne privilégio de poucos”, precisamente porque isso seria socializar a assimetria, tornando o poder o “privilégio da maioria”, e onde o que uma maioria chamada “popular” impõe ao “menos popular” sua visão particular do que deveria ser. É uma ingenuidade perigosa supor que esse poder popular criaria “espaços alternativos de vida coletiva, lugares materiais e virtuais que estão além do controle do capitalismo e da autoridade”. Ainda mais quando todas as experiências históricas mostraram exatamente o oposto, e um espaço libertário nunca poderia coexistir por um longo tempo em uma sociedade estatal sem confrontá-la (como na Ucrânia ou Kronstadt e a revolução espanhola), ou ser absorvido pelo capitalismo e o Estado, como em Cuba ou na Venezuela bolivariana, onde o Poder Popular funciona como mecanismo de autorregulação capitalista.

Contrariamente aquilo que é sustentado pela Rede Libertária de Mateo Kramer, os anarquistas devem aspirar a destruir todas as formas de poder, enquanto continuam a se organizar de forma igualitária e livre, defendendo que as pessoas se auto-libertem. Porque as perspectivas políticas do populismo e do socialismo antiburguês serão sempre reformistas, aspirando, no máximo, a um capitalismo administrado pela classe trabalhadora, através de cooperativas, sindicatos, partidos políticos ou do “Estado Popular”.

Ser anarquista implica ser contra o poder em todas as suas formas, não apenas contra “algumas formas de poder”. O poder coletivo não é ausência de poder, assim como o capital coletivo não é ausência de capital. Ser anarquista não pode ser reduzido a confrontar o poder burguês, seus agentes econômicos, culturais e políticos. Não podemos tornar o povo ou o poder popular um amado fetiche, do qual pressupomos ser revolucionário per si. Caso contrário, vamos colocar as pessoas no trono, para ser seu próprio opressor, alienado de si mesmo. Um Poder Popular que nega a libertação humana e que, parafraseando Bakunin, não será menos arrogante porque tem a inscrição “poder do povo” inscrito.

Publicado en el periódico anarquista ¡Libertad! N° 52,

julio-agosto de 2009, Buenos Aires

Aceitação do conceito de Poder como negação do anarquismo

Em artigo publicado na revista Libre Pensamiento, nº 66, outono de 2010, “Repensando o poder. Em relação à Sociedade contra o Estado de Pierre Clastres”, Beltrán Roca Martínez argumenta que a visão anarquista clássica do Poder, embora contenha contribuições essenciais para sua compreensão, deixa de fora dimensões importantes desse conceito. Ele também afirma que essa abordagem faz uma identificação limitada e reducionista entre poder e coerção. O autor rapidamente despacha o assunto, resolvendo o ponto em questão nas seguintes breves linhas:

Apesar de suas preciosas contribuições, o anarquismo não conseguiu captar totalmente a complexidade do poder. Em particular, o poder foi identificado exclusivamente com coerção. O poder é algo que limita, é incapaz de produzir qualquer coisa. E como um defensor radical da liberdade, de acordo com esse argumento, o anarquista deve se opor a todas as formas de poder. Em outras ocasiões, o poder é identificado com o Estado e o capitalismo, deixando fora das críticas e análises inúmeras relações de poder que percorrem o tecido social: através da medicina, conhecimento, sexualidade, etc. (Embora esse erro tenha sido mais frequente entre os marxistas). Além disso, a maior parte do tempo falando sobre poder nas mesmas organizações anarquistas é tabu; o que contribui ainda mais para a confusão e não é capaz de analisar rigorosamente as estruturas organizacionais do movimento.

No entanto, deve-se esclarecer que nos mesmos autores clássicos você pode encontrar citações que apontam para uma compreensão mais complexa do fenômeno. Bakunin, por exemplo, pede para ‘organizar as forças do povo’:

Organize as forças do povo para realizar tal revolução, que é o único propósito daqueles que sinceramente desejam a liberdade …’(Bakunin, 1977: 108).

As ‘forças do povo’ referidas por Bakunin não são senão o ‘poder popular’, que refletiremos no final deste artigo”.

Começando no final, a primeira coisa que surpreende é essa fantástica conclusão de que “organizar as forças do povo” equivale a organizar o poder popular. Infelizmente, o autor esqueceu-se de substanciar como a partir de um teórico como Bakunin, que nunca falou sobre o poder popular ou algo parecido, pode-se concluir que a referência está sendo feita precisamente ao “poder popular”. Como tal identificação entre o pensamento do grande anarquista russo e o controverso conceito de poder popular não foi discutida por Roca Martínez, passaremos para outras afirmações do artigo que são pelo menos apoiadas por um argumento mínimo.

Não podemos deixar de concordar quando o autor afirma que “o anarquismo não conseguiu captar totalmente a complexidade do poder”, visto de uma perspectiva contemporânea, toneladas de páginas foram escritas no campo das ciências sociais e humanistas e milhares de horas de pesquisa sobre o assunto foram investidas. Mas não podemos nos unir à censura disfarçada de Roca Martínez dos clássicos do anarquismo, por não tê-los aprofundado numa concepção de poder semelhante ou em comum à de Michel Foucault e, em menor grau, à de Pierre Clastres. O absurdo da repreensão seria evidente se a aplicássemos a outros casos, por exemplo: “a física de Newton não compreendeu totalmente a complexidade da relatividade espaço-temporal”; ou “a geometria de Euclides não conseguiu captar as complexidades das geometrias não-euclidianas”, ou melhor ainda, “os criadores de cavalos do século XIX não conseguiram estimar as vantagens da fabricação de automóveis”. Não parece fazer mais sentido convencer os anarquistas há 150 anos por não terem desvendado os labirintos e a anatomia do poder como Foucault fez mais de um século depois. Os problemas e as questões, as ideias e conceitos de um momento político e social particular na história são o produto e a resposta às crises e transformações na ordem política, econômica e social de seu próprio contexto. Uma ideologia é, em grande parte, incompreensível fora do contexto histórico em que foi produzida, porque foi projetada como uma resposta para problemas específicos e por pessoas específicas, não como um intelectual vagando em resposta a questões abstratas.

Em seguida, tentaremos analisar o contexto histórico no qual as ideias anarquistas foram desenvolvidas, aprofundando os conceitos de autoridade e poder, a fim de esclarecer que esses conceitos não foram tomados de forma reducionista ou simplista, nem pelos anarquistas nem pelas diversas sociologias do século XIX e, em vez disso, problematizadas em correspondência com sua realidade e experiência histórica.

A teoria do contrato

Praticamente toda a teoria social do século XIX foi uma reação contra o racionalismo do século XVIII, que foi o fundamento político/filosófico da Revolução Francesa. Dentro desse movimento intelectual, a ideia de Contrato Social que Jean Jacques Rousseau concebeu, foi um dos pilares fundamentais da Nova Ordem Revolucionária que foi proclamada quando os jacobinos tomaram o poder, contra a ideologia do Antigo Regime, isto é, a monarquia semifeudal e o poder da Igreja.

A teoria contratualista postulava que a humanidade tinha origem numa anarquia primal, onde os seres humanos eram livres uns em respeito a outros, sem vínculos ou relações sociais entre si, num estado de natureza próximo ao dos animais e sem formar uma sociedade. Em um segundo estado civil, onde a sociedade foi fundada, tornou-se o contrato entre os governados e os governantes, onde os primeiros delegavam para os últimos, que se tornou os representantes da vontade geral. Aqui foi instituída a ligação política, que deu origem à sociedade e ao Estado, que para a teoria contratualista eram interdependentes, isto é, sem Estado, a sociedade não poderia existir. Esse esquema teórico é chamado de modelo jusnaturalista (Norberto Bobbio, p. 67–93). É uma construção intelectual correspondente com este contexto histórico específico, mas que não tem controle sobre a realidade, uma vez que tal cenário na história e evolução humanas nunca existiu.

Os autores contratualistas (Hobbes, Locke, Rousseau) descreveram de diferentes maneiras o estado de natureza – da guerra hobbesiana de todos contra todos ao mito roussoniano do bom selvagem – mas coincidiram na estrutura da trama. Esse pensamento poderia ser simplificado com base em algumas oposições ou ideias dicotômicas entre o estado de natureza e o estado civil: selvageria/civilização; anarquia/Estado; natureza/sociedade; indivíduo isolado/indivíduo associado; ausência de política/sociedade política; desordem/ordem; igualdade/desigualdade; sobrevivência individual/contrato social. Fundamentalmente, o que foi inferido foi que os humanos (pessoas) concordaram em um acordo ou contrato, renunciando a alguns de seus direitos em uma pessoa ou grupo de pessoas principais (governantes), a fim de beneficiar toda a coletividade. Em alguns autores, essa concessão era temporária e renovada de tempos em tempos (democracia), em outros era permanente e o poder era transmitido por sucessão (monarquia). A quebra do contrato pelos governantes, isto é, se eles governaram contra a vontade geral, permitiu que o povo derrubasse seus governantes e colocasse outros em seu lugar.

A oposição ao contratualismo

O movimento contra o racionalismo individualista tinha três troncos principais, ideologicamente muito diferentes, mas com alguns fundamentos em comum: o conservadorismo (que propunha o retorno ao antigo regime), o liberalismo (que defendia a autonomia e os direitos políticos/civis do indivíduo) e o radicalismo (defendia uma revolução econômica e social; abrangia todas as correntes socialistas, inclusive o anarquismo). Essas três correntes tinham uma visão particular da ideia de poder político, em grande parte oposta à autoridade (política e social).

A ideia de autoridade pode ser descrita como “a estrutura ou ordem interna de uma associação, seja política, religiosa ou cultural, e recebe sua legitimidade por suas raízes na função social, tradição ou fidelidade a uma causa”. Sociologicamente, o conceito antinômico seria o do poder, identificado com as forças repressivas e a burocracia administrativa despersonalizada (Nisbet: p. 18 e 19). O pensamento radical teve como característica distintiva que acreditava nas possibilidades de redenção social através da conquista do poder político e seu uso sem limites. A crença jacobina no poder absoluto a serviço da razão, da nação e da humanidade, eliminando as tiranias e desigualdades, bem como as instituições que as causaram, especialmente a Igreja. Poder e razão exercidos contra autoridade e tradição.

Após o contratualismo, muitos radicais justificaram o poder totalitário com base na ideia de “vontade geral”. O governo revolucionário no poder incorporava a vontade geral, não um poder externo à sociedade, mas o poder coletivo do povo exercido através de seus representantes. Desta forma, o poder total incorporado na Assembleia, ou mesmo em um homem, serviu para alcançar a liberdade para os milhões de oprimidos pela Igreja, a aristocracia, a monarquia e as guildas do Antigo Regime. O poder político foi concebido como um meio de alcançar a liberdade e a igualdade, sendo a nação a fonte de toda autoridade legítima, considerando os homens e mulheres do povo como uma fraternidade nacional. O exercício do poder racional e ilimitado foi o caminho para acabar com a confusão das autoridades tradicionais sobrepostas legadas pela monarquia e pelo feudalismo. Na nova ordem, a devoção a Deus e à Igreja foi substituída pela adoração do Povo e do Estado; Essa seria a base moral do poder político revolucionário. E seria a pedra basal da maioria das correntes democráticas e socialistas dos séculos XIX e XX para a aceitação da conquista do poder do Estado como agente revolucionário.

Socialistas e democratas, como Saint-Simon, Blanqui, Blanc, Mazzini, Marx, Engels, Bernstein ou Lênin, partiram dessa idéia para justificar tanto o nacionalismo democrático quanto o reformismo socialista e a ditadura do proletariado. Sem tomar o poder (absoluto ou parcial) uma nova ordem revolucionária não poderia ser alcançada. Este é o lugar onde os anarquistas de Proudhon e Bakunin para Malatesta e Kropotkin, bem como alguns pensadores socialistas libertários ou utópicos (William Morris, Owen, Fourier) se distanciaram desse desenvolvimento pela tomada do poder político. A solução anarquista passaria pela aniquilação desse poder.

Poder político e autoridade socialismo

Um dos temas fundamentais da sociologia nascente do século XIX foi o tema relacionado à crise e ao declínio da autoridade tradicional e sua substituição por novas formas de poder. Na sociedade do Antigo Regime – a organização social que precedeu a revolução industrial e a revolução democrática burguesa na Europa – a autoridade não foi concebida como uma identidade separada ou distinta do grupo social. Foi “profundamente incorporada nas funções sociais, uma parte inalienável da ordem interna da família, do bairro, da paróquia e da guilda, ritualizada em todas as circunstâncias, a autoridade está tão intimamente ligada à tradição e à moralidade que mal é notada mais do que o ar que os homens respiram. Mesmo nas mãos do rei, tende a manter um caráter difuso e indireto em tal sociedade”(Nisbet: p. 147). A autoridade patriarcal do rei não é diferente da dos pais sobre seus filhos, a autoridade é tão sobreposta e integrada à moral da ordem social que não é possível visualizá-la como algo separado do corpo social.

O golpe mortal dado à autoridade tradicional pelos efeitos da revolução industrial e da Revolução Francesa gerou profundos sentimentos de angústia e preocupação no pensamento conservador. Essa corrente temia que a autoridade perdida deixasse uma massa de indivíduos isolados e indefesos diante de novas formas de poder arbitrário, terrível e totalizante. Esta imagem do poder revolucionário jacobino revelou pensadores como Burke, Burckhardt, Carlyle, Tocqueville, Simmel, etc. A sociologia nascente descreveu o novo poder político que surgiu diante de seus olhos como:

  1. Um poder totalizador, que se estendia a todas as ordens de vida.

  2. Um poder legitimado pelas massas, onde todos os cidadãos são soberanos, que expressavam sua vontade geral por meio do poder político.

  3. Um poder centralizado, que exterminou as comunas, os sindicatos e todos os tipos de administração descentralizada. A centralização surgiu como uma forma de dar participação às massas desse poder. Todas as formas de autoridade tradicional permaneciam entre o governo revolucionário e o povo, por isso deveriam ser desmanteladas; O poder centralizado, mesmo o ditatorial, era o melhor meio para representar a vontade geral.

  4. Um poder racionalizado, onde a administração foi simplificada, as medidas foram padronizadas, uma linguagem foi imposta através do sistema educacional, o exército de massa foi racionalizado, onde uma nova burocracia administrativa emergiu, despersonalizada, onde tudo podia ser medido, pesado, documentado e registrado por meio de um número, uma norma, uma regra, uma fórmula ou um padrão (Nisbet: p. 148–150).

Uma das grandes diferenças entre o pensamento conservador e o revolucionário radical era precisamente a de que os conservadores – seguidores da tradição medieval – exaltavam uma sociedade pluralista, com centros políticos distribuídos, com centros políticos distribuídos, com uma autoridade apoiada pela comunidade local, a família patriarcal, a paróquia e a tradição. Em vez disso, os radicais apostavam na centralização do poder, no racionalismo administrativo e na libertação do povo das instituições tradicionais que o oprimiam. O contraste é resumido na distinção entre autoridade social (ligada ao antigo regime) e poder político (ligado à nova ordem), que será o tema da sociologia de Bonald, Weber e Durkheim, como seus últimos expositores.

Liberdade, Autoridade e Poder em Proudhon

As formas de coerção social, a origem e o fundamento das normas sociais e as formas de controle social serão preocupações dos sociólogos do século XIX e, especialmente, dos anarquistas. Este último é explicado por Robert Nisbet no seguinte e extensivo parágrafo:

“Seria falso supor que essa distinção entre autoridade social e poder político se apoiava apenas pelo pensamento conservador. Essa foi a sua origem, mas depois se espalhou muito. Os anarquistas teriam que usá-lo. Para eles, o problema do poder na sociedade moderna derivava em grande parte de sua intensidade do enorme aumento que a Revolução havia dado à ideia de Estado. ‘A democracia é simplesmente o Estado elevada a enésima potência’, diria Proudhon, (…) [que] tinha um profundo interesse no localismo e na multiplicação de centros de autoridade na sociedade, como meio de conter a centralização, baseada nas massas (…) O pluralismo e descentralização, aspectos notáveis do anarquismo do século XIX – de Proudhon a Kropotkin – ambos provêm de um sentido vívido da diferença entre autoridade social, que está de acordo com a definição anarquista, múltipla, associativa, funcional e autônoma, e o poder político do Estado; este último, por mais ‘democrático’ que possa ter sido, em suas raízes, é destinada à centralização e à burocratização, a menos que seja equilibrada pela autoridade implícita no localismo e na livre associação”(Nisbet, p. 155).

O federalismo de Proudhon e sua ânsia pela comunidade local, bem como sua oposição à centralização da indústria em favor de produções de pequena escala, renderam-lhe o apelido de pequeno-burguês pelo autoritário burguês Karl Marx e seu servo Engels. Em sua visão da indústria, mais do que pequeno-burguês, o pensamento proudhoniano quase podia ser descrito como utópico, mais próximo do pensamento de Owen do que dos anarquistas que o sucederam. O tradicionalismo patriarcal de Proudhon, profundamente criticado pelos anarquistas contemporâneos, não permitiu que ele visualizasse a possibilidade de alcançar a anarquia numa economia de grandes indústrias, mas essa limitação seria em grande parte superada por Bakunin e toda a linha libertária de autores inspirados por suas ideias.

Em O Princípio Federativo, Proudhon argumentou que havia um contraste entre um Regime de Liberdade – com suas variantes de democracia e anarquismo – e um Regime de Autoridade (entendendo isso como uma indivisão do poder) – com sua diferenciação entre monarquia absoluta e comunismo autoritário ou estatista. Apesar de ser ideias antitéticas, segundo o autor, não pode haver um sem o outro: “em todas as sociedades, mesmo as mais autoritárias, é preciso necessariamente deixar uma parte para a liberdade; e, reciprocamente, que em toda sociedade, mesmo a mais liberal, uma parte deve ser reservada à autoridade. Essa condição é tão absoluta que nenhuma combinação política pode ser subtraída dela. Apesar do entendimento, que tende a transformar incessantemente a diversidade em unidade, os dois princípios permanecem em frente uns dos outros e em contínua oposição. O movimento político destaca sua tendência inevitável de se limitar e sua reação mútua”.

Nessa tensão dialética entre Autoridade e Liberdade, não há resolução ou síntese – como em Hegel –, mas uma relação dinâmica e contínua, com vários resultados ou sistemas políticos. O anarquismo seria o sistema em que o princípio da liberdade atinge sua expressão máxima, enquanto o princípio da autoridade é reduzido ao mínimo irredutível necessário.

O princípio da Autoridade, isto é, o poder político indivisível, absoluto e centralizado, é fundado em uma extensão do modelo familiar patriarcal. O monarca assume a figura do pater famílias romanas e se dissolve no Estado-Nação: “Assim, na monarquia, o príncipe é legislador, administrador, juiz, geral, pontífice. Tem eminente domínio sobre a terra e seus produtos; É chefe das artes e ofícios, do comércio, da agricultura, da marinha, da educação pública; Está vestido com toda autoridade e todos os direitos. O rei é, em duas palavras, o representante, a corporificação da sociedade: ele é o Estado. A reunião ou indivisão de poderes é o caráter da monarquia. O princípio da autoridade que distingue o pai da família e do monarca, o princípio da universalidade das atribuições passa a se juntar aqui como corolário”. Em frente ao poder central, Proudhon se opõe à autoridade federal, associada, livre, reduzida em número, restrita, especializada e municipalizada.

Ao contrário de um Saint-Simon, que propôs a reforma do Estado, Proudhon sustentou que a solução para a crise de seu tempo viria da transformação da sociedade, modificando as relações entre a ordem social e política. O papel do Estado – uma organização fora da sociedade – estaria limitado à sua expressão mínima, enquanto a direção econômica e política convergiria na sociedade dos trabalhadores. A oposição proposta por Proudhon não foi entre indivíduo/Estado ou indivíduo/sociedade, que será objeto de individualistas, mas o par antagônico Estado/Sociedade. O indivíduo só existe dentro de um grupo social integrado de múltiplos relacionamentos internos. Pelo contrário, a centralização política do Estado sobre as massas atomiza a sociedade em indivíduos isolados: “O sufrágio universal é uma espécie de atomismo através do qual o legislador, incapaz de deixar o povo falar como uma unidade corpórea, convida os cidadãos a expressar sua opinião por cabeça, viritim, como o filósofo epicurista explica o pensamento, a vontade, o entendimento, por combinações de átomos” (em A Solução do Problema Social, 1848). O corpo da nação é reduzido a um conglomerado de moléculas geridas externamente pela estrutura política superior e centralizada do poder político do Estado (Buber, p. 44–45).

As ideias de Proudhon sobre o poder político – contraditórias, complexas, mutáveis, versáteis e flexíveis – estão longe de ser simplesmente um sinônimo de coerção, como argumenta Roca Martínez. Ao contrário, manifesta-se em um dos mais famosos parágrafos da pena de Proudhon: “Ser governado significa ser vigiado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulado, rotulado, doutrinado, lecionado, controlado, estimado, apreciado, censurado, comandado, por seres que carecem de títulos, ciência e virtude […]. Ser governado significa ser anotado, registrado, padronizado, taxado, selado, medido, avaliado, cotado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, repreendido, contido, recondicionado, emendado, corrigido, ao realizar qualquer operação, qualquer transação, qualquer movimento. Significa, sob o pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, ser obrigada a pagar contribuições, ser inspecionada, saqueada, explorada, monopolizada, predada, pressionada, enganada, roubada; então, à menor resistência, na primeira palavra da denúncia, reprimido, multado, vilipendiado, atormentado, maltratado, espancado, desarmado, preso, baleado, metralhado, julgado, condenado, deportado, abatido, vendido, traído e, para completar, ridicularizado, ultrajado, indignado, desonrado. Esse é o governo, isto é a sua justiça, essa é a sua moral!” (Guerin: p. 43). O mesmo poderia ser dito de Bakunin, cujo pensamento – que é apresentado como sistemático e fragmentado em dezenas de livros, cartas, artigos e manifestos – era de grande profundidade filosófica.

Bakunin frente ao poder

Para Bakunin, a distinção entre autoridade social e poder político ficará perfeitamente evidente em seus escritos. As pessoas deveriam reconhecer que estavam sujeitas à autoridade das leis da natureza, mas o mesmo não se aplicava à autoridade dos homens. “Segue disto que rejeito toda autoridade? Longe de mim esse pensamento. Quando se trata de sapatos, eu prefiro a autoridade do sapateiro; Se é uma casa, um canal ou uma ferrovia, eu consulto o arquiteto ou o engenheiro. Por essa ou aquela outra ciência especial, volto-me para isto ou aquilo. Mas não deixo que o sapateiro, o arquiteto ou o sábio se imponham a mim”, se expressou na sua grande obra Deus e o Estado. As autoridades humanas não são infalíveis, inevitáveis ou inexoráveis. Há aqueles que podem conhecer ou saber sobre uma ciência específica, mas seu conhecimento seria provisório e limitado, pois nenhuma inteligência “poderia cobrir o todo. Onde resulta para a ciência, bem como para a indústria, a necessidade de divisão e associação de trabalho. Eu recebo e dou, tal é a vida humana. Cada um é a autoridade dirigente e cada um é dirigido por sua vez. Portanto, não há uma autoridade fixa e constante, mas uma mudança contínua de autoridade e subordinação mútua, temporária e acima de tudo voluntária”.

Quando uma autoridade se impõe obrigatória em nome de Deus ou da ciência superior de um grupo de sábios, se converte no poder e o abismo entre governantes e governados é aberto. A maior expressão desse poder organizado é a instituição do Estado. Na natureza do poder está “a impossibilidade de sustentar um superior ou um igual, já que o poder não tem outro objeto além da dominação, e a dominação não é real, exceto quando tudo o que a impede está sujeito a ela; nenhum poder tolera outra coisa senão quando é obrigado a fazê-lo, isto é, quando se sente incapaz de destruí-lo ou derrubá-lo” (O princípio do Estado). Na verdade, para Bakunin, o poder político e a autoridade política sempre têm uma dimensão negativa, egoísta, exploradora e opressora, enquanto a autoridade social pode ter um caráter criativo, interativo e autogerido. E isso só é possível quando cada pessoa é autônoma, livre e governa a si mesma, ou seja, não tem autoridade ou poder para se submeter.

Bakunin postulará a existência de um instinto ou vontade de poder nos seres humanos originados nas leis da vida e forjados na luta pela existência, que estava morrendo com a evolução da humanidade. Nos tempos antigos, assumiu a forma de escravidão e sujeição religiosa, enquanto nos tempos modernos “essa luta ocorre sob o duplo aspecto da exploração do trabalho assalariado pelo capital e da opressão política, legal, civil, militar e policial pelo Estado e pela Igreja, e pela burocracia estatal; e o desejo, a necessidade e às vezes a inevitabilidade de mandar e explorar outras pessoas continuam a emergir dentro de todos os indivíduos nascidos na sociedade” (Consideraciones Filosóficas). A natureza instintiva deste comportamento revela um lado escuro da humanidade, “um instinto carnívoro, completamente bestial e selvagem”, que se apresenta de uma maneira idealizada e nobre, como um instrumento da razão ou do bem público, “mas é ainda em sua essência igualmente prejudicial, e se torna ainda mais prejudicial quando, graças à aplicação da ciência, amplia seu horizonte e intensifica o poder de sua ação”.

Bakunin não faz uma rejeição cega ou uma negação da vontade de poder em cada indivíduo, pelo contrário, ele reconhece sua existência e sua inevitabilidade. “A experiência nos mostra que o poder da vontade está muito longe de ser sempre o poder do bem: os maiores criminosos, os criminosos no mais alto grau, são às vezes dotados do maior poder da vontade e, por outro lado, vemos com bastante frequência, homens excelentes, bons, justos, cheios de sentimentos benevolentes, privados dessa faculdade” (Cappelletti p. 146). No entanto, essa determinação negativa é desenvolvida quando as condições sociais possibilitam o surgimento de um grupo capaz de oprimir e explorar o resto: “O crescimento do instinto de poder é determinado pelas condições sociais. E inevitavelmente esse elemento amaldiçoado é encontrado como um instinto natural em todo homem sem exceção. Todos nós carregamos dentro de nós os germes dessa paixão pelo poder, e cada germe, como sabemos, de acordo com uma lei básica da vida se desenvolve e cresce sempre que encontra condições favoráveis em seu meio. Na sociedade humana, essas condições são a estupidez, a ignorância, a indiferença apática e os hábitos servis das massas – pelo que poderíamos dizer com justiça que as próprias massas produzem aqueles exploradores, opressores, déspotas e executores da humanidade daqueles que são vítimas”. Essa vocação de poder que é natural na espécie humana é o que impede qualquer forma de governo popular, já que toda pessoa capacitada se tornará opressora e exploradora das massas. Lá – diz Bakunin – está a natureza corruptora do poder. Por mais que o poder seja exercido em nome da razão ou da ciência, aqueles que o detêm não serão diferentes daqueles que o fizeram em nome de Deus.

Neste ponto, Bakunin se diferenciará dos filósofos do Iluminismo e defensores da ficção do Contrato Social que “proclamam a teoria ameaçadora e desumana do direito absoluto do Estado, enquanto os absolutistas monarquistas o apoiam, com consequências lógicas muito maiores, na graça de Deus”. Tanto liberais quanto revolucionários fazem um culto ao poder absoluto, a fim de preservar seus privilégios de classe. Isso também é válido para o sistema democrático, que Bakunin coloca como uma contradição terminológica: “Onde todos governam, não há mais governo, e não há mais Estado”, enquanto o poder do Estado é “o poder do povo como um todo, mas organizado em detrimento do povo e em favor das classes privilegiadas”. Essa concepção de poder não corresponde à ideia estreita de poder atribuída por Roca Martínez, identificada exclusivamente com coerção.

O fundamento teórico desse sistema democrático refere-se ao modelo jusnaturalista que toma a liberdade individual como anterior à sociedade e não como um produto histórico da sociedade. O Estado e a sociedade estão confusos na mesma estrutura, enquanto os indivíduos são uma massa aglomerada de átomos livres que os moldam. Essa ideia – cuja exacerbação é a teoria liberal – toma o homem como algo que, segundo Bakunin, “não é completamente ele mesmo, um ser inteiro e de alguma forma absoluto mais que fora da sociedade. Sendo anteriormente livre e fora da sociedade, o último necessariamente se forma por um ato voluntário e por um tipo de contrato, seja instintivo ou tácito, reflexivo ou formal. Em uma palavra, nessa teoria não são os indivíduos criados pela sociedade, são eles, ao contrário, quem a cria, impulsionados por alguma necessidade externa, como trabalho e a guerra. Vê-se que, nessa teoria, a sociedade em si não existe; A sociedade humana natural, o verdadeiro ponto de partida de toda civilização humana, o único ambiente em que a personalidade e a liberdade dos homens podem realmente nascer e se desenvolver, é perfeitamente desconhecida. Não reconhece, por um lado, mais do que indivíduos, seres existentes para si e livres de si mesmos, e por outro, aquela sociedade convencional, arbitrariamente formada por esses indivíduos e fundada em um contrato, formal ou tácito, isto é, o Estado”.

Sua crítica ao poder não terá meias medidas nem abrirá a porta a qualquer tipo de poder popular, como Roca Martínez pretende nos fazer crer: “Estamos convencidos como socialistas, você e eu, de que o ambiente social, a posição social e as condições de existência, são mais poderosos que a Inteligência e a vontade do indivíduo mais forte e mais poderoso; e precisamente por essa razão, exigimos uma igualdade natural, não natural, dos indivíduos como condição para a justiça e a fundação da moralidade. É por isso que odiamos o poder, todo poder, assim como as pessoas o detestam”. Mas Bakunin – em suas Considerações Filosóficas faz essa advertência sugestiva, afirmando que a única autoridade respeitável para o povo emana da experiência coletiva, e será “mil vezes mais poderosa” do que a do Estado ou autoridades eclesiásticas, isto é, “será o espírito coletivo e público de uma sociedade fundada na igualdade e solidariedade e no respeito humano mútuo de todos os seus membros”. Influenciado pelas ideias científicas de seu tempo – Darwinismo, mecanicismo e positivismo – Bakunin atribuía às pessoas necessidades e “instintos populares”. Dessa forma, o povo instintivamente ambicionaria a organização de seus interesses econômicos e “a completa ausência de todo poder, de toda organização política, já que toda organização política inevitavelmente leva à negação da liberdade do povo”. É claro que, de uma perspectiva atual, tais instintos atribuídos às massas por Bakunin nunca existiram, e sim são a expressão de seus próprios desejos, de suas próprias ideias sobre o poder.

Kropotkin, uma perspectiva antropológica do poder

Influenciado pela revolução darwiniana e pelas teorias evolucionistas, Piotr Kropotkin assumirá o poder a partir de uma perspectiva etnológica e histórica, estudando as transformações em suas instituições políticas e sociais.

Para Kropotkin, a evolução social sempre apresenta uma série de instituições comunitárias, de solidariedade, relações livres e igualitárias, opostas a outras instituições fora da sociedade, de reivindicações elitistas, autoritárias, exploradoras e opressivas, cujo paradigma moderno é o Estado. Como aponta Nisbet (p. 155), em Kropotkin o contraste entre autoridade social e poder (autoridade política) é perfeitamente perceptível. Em seu magnum opus, Ajuda Mútua expõe isso, a comuna da aldeia funcionou como a principal ferramenta que permitiu aos camponeses sobreviverem à natureza hostil através de laços de solidariedade interna, mas também para enfrentar os setores que procuraram se elevar acima da maioria para fortalecer sua autoridade, e impor sua vontade. Dentro da comunidade da aldeia, eles operavam mecanismos para impor as relações de solidariedade sobre as relações predatórias e autoritárias (essas observações seriam confirmadas por investigações etnológicas subsequentes, especialmente por autores como Marcel Mauss, Marshall Sahlins, Richard Lee, Marvin Harris e Pierre Clastres). O habitante das comunas bárbaras “passou por uma série inteira e completa de instituições, imbuídas de considerações cuidadosas sobre o que pode ser útil ou prejudicial à sua tribo ou à sua confederação; e as instituições desse gênero foram transmitidas religiosamente de geração em geração em versos e canções, em provérbios e tríades, em sentenças e instruções”.

As rinhas, brigas, disputas e conflitos foram arbitradas por membros de prestígio da comuna, onde uma reparação da ofensa e um pedido de desculpas foram solicitados, com base em uma lei consuetudinária local. As disputas entre os membros da aldeia eram de interesse comum e, quando não eram resolvidas na esfera privada, eram feitas publicamente; Esse comportamento tinha a função de restaurar o equilíbrio quebrado pelo conflito: “Além de sua autoridade moral, a assembleia comunal não tinha outra força para fazer cumprir sua sentença. A única ameaça possível era declarar o rebelde, fora da lei, ilegal”. Mas ir contra a lei comum era inimaginável devido ao peso moral da autoridade comunal, então um membro de uma comunidade raramente era expulso. Kropotkin ressalta que a influência moral das comunas da aldeia era tão marcante que, durante o período feudal, elas mantinham a autoridade legal sobre os senhores, limitando seu poder.

Segundo Kropotkin, o acúmulo de riqueza nas mãos de uma minoria foi o primeiro passo para o surgimento do poder:

“por trás da riqueza sempre segue o poder. Mas, no entanto, quanto mais penetramos a vida daqueles tempos – sexto e sétimo séculos – mais nos convencemos de que para o estabelecimento do poder da minoria, além de riqueza e força militar, ainda é um elemento. Esse elemento era a lei e o direito, o desejo das massas de manter a paz e estabelecer o que consideravam justiça; e esse desejo deu aos líderes das mesnadas, dos Knyazi, dos príncipes, dos reis etc., a força que adquiriram dois ou três séculos depois. A mesma ideia de justiça, nascida no período tribal, mas agora concebida como a compensação devida pelo delito causado, passou como um fio vermelho pela história de todas as instituições seguintes; e, em uma extensão muito maior do que as causas militares ou econômicas, serviu como base sobre a qual a autoridade dos reis e senhores feudais foi desenvolvida”.

Então o poder político surge contra a autoridade social da comuna e finalmente se impõe a ela, não tanto pela coerção, mas pela burocratização e cristalização das antigas formas de direito consuetudinário comunal. As forças que anteriormente operavam para manter o equilíbrio de solidariedade se tornariam forças para manter a ordem autoritária recém-criada. Essa transformação gradual não foi necessariamente violenta, não por causa da imposição de força, mas sim pelo surgimento de poderes definidos dentro da aldeia, sendo o poder legal talvez o mais influente. Em seu breve estudo O Estado, Kropotkin afirma – com pouca fundamentação histórica e antropológica – que pouco a pouco a lei comunitária se especializou e foi gradualmente apropriada por algumas famílias que se tornaram especialistas, para as quais os aldeões em particular e até mesmo as tribos, quando precisavam de quem arbitra em um conflito.

“A autoridade do rei ou do príncipe já está germinando nessas famílias, e quando estudo mais as instituições da época, mais claramente vejo que o conhecimento da lei rotineira, do hábito, fez muito mais para constituir essa autoridade do que a força da guerra. O homem foi escravizado melhor pelo seu desejo de punir de acordo com a lei do que pela conquista militar direta. E foi assim que emergiu a primeira concentração de poderes, a primeira segurança mútua para a dominação, a do juiz e a do chefe militar, contra a comuna do povo. Um homem sonha com estas duas funções e rodeia-se de homens armados para executar decisões judiciais, fortalece-se em sua casa, ele acumula em sua família as riquezas do tempo – pão, gado, ferro – e gradualmente impõe seu domínio sobre os camponeses vizinhos. E o homem sábio da época, isto é, o feiticeiro ou o sacerdote, logo lhe deram apoio e compartilharam a dominação, ou, adicionando a lança ao seu poder de mago, ambos serviram para seu próprio benefício”.

Neste último parágrafo de Kropotkin, a influência de Etienne de La Boetie, autor do famoso “Discurso sobre a servidão voluntária”, é claramente visível. A pergunta feita pelo francês era por que os homens – nascidos livres – se submetiam voluntariamente à autoridade, sem a necessidade de mediar a coerção; e é precisamente Kropotkin que tenta encontrar a resposta estudando o surgimento do poder político e do Estado moderno. Como você pode ver, a noção de poder que Kropotkin possuía era muito mais complexa do que a identificação lisa e simples com coerção, como pressupõe Beltrán Roca Martínez.

É necessário esclarecer que a abordagem científica que Kropotkin tentou dar à sua pesquisa, com o desenvolvimento da pesquisa etnográfica, da antropologia cultural e da teoria social tornou-se obsoleta, precisamente devido à natureza provisória de qualquer estudo científico. No entanto, as idéias de Kropotkin influenciaram outros autores posteriores, como Alfred R. Radcliffe-Brown, Pitirim Sorokin e Ashley Montagu, entre outros, que aprofundaram algumas de suas abordagens. Por outro lado, a visão de Kropotkin foi apresentada na aurora do século XX, como uma alternativa refrescante ao historicismo alemão de corte hegeliano, cuja expressão mais famosa era o materialismo histórico de Marx e Engels atualmente naufragado.

O poder na filosofia de Landauer

“O Estado é uma situação, um relacionamento entre homens, é um modo de comportamento dos homens entre si; e é destruído estabelecendo outros relacionamentos, comportando-se com os outros de outra maneira”. Longe do historicismo e sociologismo de Kropotkin, esta declaração de Gustav Landauer mostra uma perspectiva muito original sobre poder, autoridade e Estado. Para Landauer, o Estado é uma relação, onde a coerção é imposta, e que se opõe a outro tipo de relação, que ele denomina de povo, onde a associação voluntária, solidária e descentralizada é a regra. Este último existe de fato em todas as sociedades, é a forma de associação natural que une homens e mulheres, mas isso ainda não formou uma federação ou organização superior, “um organismo de inúmeros órgãos e membros”, onde reside o espírito do socialismo. Para Landauer, o socialismo não é algo novo, mas algo que já existia anteriormente dentro da comunidade, submetido e enterrado pelo Estado e contra o Estado. Esta forma de relação do povo coexiste com a forma de relação Estado, ainda que exterior e aparte deste. De acordo com essa interpretação, o socialismo é sempre possível, em todos os momentos, no espaço histórico e geográfico, desde que os homens assim o desejem e realizem; ou igualmente impossível, se os homens não o quiserem.

Essa relação antagônica entre Estado e comunidade, segundo Martin Buber[2], não se trata do Estado ou não-Estado alternativo: “Se o Estado é uma relação que, na realidade, só é destruído pelo estabelecimento de outra, é destruído precisamente a cada passo em direção a nova relação”. A base do Estado (coerção legal) é a incapacidade dos homens de se unirem voluntariamente em uma ordem justa. Mas o alcance do Estado excede essa base coercitiva e constitui um mais-Estado, que se perpetua com o tempo e se recusa a ser reduzido mesmo quando aumenta a capacidade de uma ordem voluntária de pessoas. O poder acumulado pelo Estado não é retirado se não for obrigado a fazê-lo; Perde sua base racional original que se justifica na incapacidade da sociedade de sustentar uma ordem voluntária justa e torna-se poder puro, poder pelo próprio poder, onde os mortos dominam os vivos.

O avanço e crescimento das comunidades (e pessoas), com seus sindicatos e federações, renovam a estrutura orgânica da sociedade, suplantando e destruindo o Estado. A coexistência da sociedade e do Estado não implica a aceitação do reformismo ou gradualismo em direção à conquista do socialismo, mas uma dialética em que cada passo construtivo em direção à anarquia é um passo para a destruição do Estado. Como Buber argumenta, para Landauer e Proudhon, “uma associação sem espírito comunitário suficiente, vital o suficiente, não substitui o Estado pela sociedade, mas leva ao próprio Estado, e o que ele faz não pode ser outra coisa senão o Estado, isto é: política de poder e expansionismo, sustentada por uma burocracia”. Para Landauer, não é necessário esperar até que a revolução chegue para realizar o propósito da anarquia; ao contrário, Anarquia e Socialismo são feitos na hora, são intermediários e terminam ao mesmo tempo.

Como dissemos, a perspectiva de Landauer toma o Estado como uma forma de relação entre os homens, isto é, uma sociedade estatal é composta de relações de poder entre seus membros, de dominação, que se expressa em várias facetas ao mesmo tempo: relações de poder político, religioso, cultural, econômico, etc. Landauer considerava a sociedade medieval como predominantemente autônoma, onde os vários grupos e comunidades se entrelaçavam sem formar um poder político centralizado. “Em contraste com o princípio do centralismo e do poder político, que faz sua entrada lá onde o espírito comunitário desapareceu, (…) a Era Cristã representa um grau de civilização em que coexistem, lado a lado, múltiplas estruturas sociais específicas, que são permeadas por um espírito unificador e incorporam um coletivo de muitas autonomias livremente ligadas”. Essa situação mudaria radicalmente durante o Renascimento e a ascensão do absolutismo europeu, precursores do Estado-nação moderno, do nacionalismo e do capitalismo.

Precisamente, se o poder do Estado está ligado ao absoluto, o socialismo estará longe do absoluto. Nesse sentido, o socialismo é a criação contínua de comunidade dentro da família humana (Buber, p. 81). E, em contraste, o poder político é a criação contínua de um Estado na sociedade humana. Longe de postular a criação de um poder popular para alcançar a Anarquia, Landauer defenderá a criação de relações comunitárias para o mesmo fim.

Rocker: o Poder contra a cultura

O contemporâneo de Landauer e muito mais prolífico, Rudolf Rocker, desenvolveu uma teoria geral do poder em seu trabalho Nacionalismo y Cultura, escrito alguns anos antes do início da Segunda Guerra Mundial.

Para Rocker, os conceitos de nacionalismo e poder eram antagônicos ao conceito de cultura. Quando o poder aumenta e se expande, a cultura diminui e, inversamente, quando a cultura se expande e se desenvolve, o poder tende a diminuir até a sua expressão mínima. A maneira pela qual o poder político é expresso mais estritamente na sociedade moderna é o Estado, imposto à sociedade.

Para desenvolver sua argumentação, Rocker faz uma viagem através da história humana, desenvolvendo essa tensão entre cultura (que é um produto da sociedade e é o meio que assegura ao homem sua subsistência material, desenvolvimento intelectual e artístico) e poder (tanto poder político, cuja expressão moderna é o nacionalismo e a burocracia, e seus antecessores de natureza religiosa e econômica, que estão concentrados em uma minoria). Para Rocker, o firme crescimento do poder da burocracia política, que dominava e guardava a vida das pessoas, havia liquidado a cooperação voluntária e a liberdade individual dentro da sociedade, implementando a “tirania do Estado totalitário contra a cultura”. A ascensão do fascismo e do stalinismo, que estavam em seu apogeu na época em que Rocker escreveu seu trabalho e constituiu sua grande preocupação, levou o autor a tentar explicar essa nova expressão política que parecia esmagar tudo o que ele se opunha. Assim, descrevia essa nova “religião política” moderna:

“Assim como a teologia dos vários sistemas religiosos assegurava que Deus era tudo e o homem não era nada, então essa teologia política moderna considera que a nação é tudo e o cidadão nada. E assim como após a vontade de Deus sempre esteve escondida a vontade das minorias privilegiadas, então hoje o interesse egoísta daqueles que se sentem chamados a interpretar isso à sua maneira e a impor às pessoas através da força está sempre escondido por trás da vontade da nação”.

Essa “vontade de minorias privilegiadas” mencionada por Rocker, que nada mais é do que a vontade de poder, tem um papel preponderante em sua tese, tanto que no primeiro capítulo do Nacionalismo y Cultura ele assume que “quanto mais profundamente as influências políticas na história são examinadas, mais se chega à convicção de que a vontade de poder tem sido, até agora, um dos estímulos mais vigorosos no desenvolvimento das formas de sociedade humana”. Com essa afirmação, Rocker apontou diretamente para a tese do materialismo histórico, que postulava uma espécie de determinismo das estruturas e condições econômicas em eventos políticos e sociais. Sem negar que a economia tem um papel importante na causalidade dos eventos sociais, Rocker postulou que “a vontade de poder, que sempre começa com indivíduos ou pequenas minorias da sociedade, é, em geral, uma das forças motrizes mais importantes da história, muito pouco valorizada até agora em seu escopo, embora tenha tido, com frequência, uma influência decisiva na formação de toda a vida econômica e social”.

O estudo da evolução social e da história – afirma Rocker – revela que em todos os momentos “dois poderes em luta permanente, franca ou simulada, se enfrentam devido à sua diversidade interna essencial, às formas típicas de ação e os efeitos práticos resultantes dessa diversidade. Fala-se aqui do elemento político e do fator econômico da história, que também poderia ser chamado de elemento estatal e fator social na evolução histórica. Os conceitos do político e do econômico têm sido interpretados muito de perto neste caso, uma vez que toda política tem sua raiz, em última análise, na concepção religiosa dos homens, enquanto tudo que é econômico é de natureza cultural e é encontrado, portanto, no contato mais íntimo com todas as forças criativas da vida social; geralmente se pode falar de uma oposição interna entre religião e cultura”.

Segundo Rocker, dois pares de forças antagônicas estão em tensão e oposição: por um lado, poder, política e religião, incorporados em grupos minoritários que impõem sua dominação sobre as maiorias através de instituições como a Igreja e Estado; e, de outro, a economia e a cultura das maiorias que compõem a sociedade. Mas a religião será a pedra angular, fundamento sobre o qual a evolução social resultará no surgimento do poder político, pois em todos os sistemas religiosos a “condição de dependência do homem diante de um poder superior ao que deu vida à sua própria força imaginativa e da qual ele mais tarde se tornou escravo”. A religião fez do homem (seu criador) o escravo de sua criação (divindades sobrenaturais), da mesma forma que faria depois com o poder político e o Estado, que acabará por ocupar o lugar da suprema divindade. O autor expressará isso direta ou sutilmente: “a religião já estava confusa desde seus primeiros inícios precários, da maneira mais íntima, com a noção de poder, de superioridade sobrenatural, de coerção sobre os crentes, numa palavra, com a dominação”. Essa realidade seria claramente expressa na alegação dos representantes do princípio de autoridade de ser a corporificação do poder de Deus, de sua origem divina.

No entanto, Rocker reconhece a importância dos interesses econômicos nas políticas de dominação dos grupos humanos desde os tempos primitivos: o desejo de apropriar-se dos recursos de outro grupo humano, seu território, sua riqueza ou suas mulheres. A submissão de uma tribo por outra fez os derrotados tributários de uma casta privilegiada. Não entraremos em detalhes sobre esse argumento baseado em fontes não confiáveis e em investigações de uma etnologia neófita e inexperiente. Para Rocker, o comportamento expansionista das castas de poder foi um comportamento universal que se manifestou em toda a experiência histórica e social:

“É na essência de todo poder que seus usufrutuários aspiram continuamente a ampliar a esfera de sua influência e a impor seu jugo aos povos mais fracos. Assim, pouco a pouco, surgiu uma casta especial para a qual a guerra e a dominação sobre outros se tornaram um trabalho. Mas nenhuma dominação poderia, a longo prazo, depender apenas da violência grosseira. Este pode ser, no máximo, o instrumento imediato de subjugação dos homens, mas por si só, no entanto, nunca pode eternizar o poder dos indivíduos ou de uma casta inteira sobre grandes grupos humanos. É por isso que mais é necessário, a crença do homem na inevitabilidade do poder é necessária, a crença em sua missão divina. E tal crença cria raízes, profundamente nos sentimentos religiosos do homem e ganha força com a tradição”.

De fato, a explicação de Rocker do surgimento do poder político/religioso é uma leitura de eventos históricos fortemente influenciados pela experiência capitalista e nacionalista contemporânea. O expansionismo que ele atribui aos grupos tribais primitivos sobre grupos humanos mais fracos, convenientemente se assemelha à avidez sem limite das classes burguesas que expulsam a classe operária ou o expansionismo dos Estados/Nação modernos e imperialismo sobre etnias e comunidades locais. E neste ponto Rocker retorna a um tópico que caracteriza quase toda a literatura anarquista e que tem seu antecedente em Etienne de la Boetie: a aceitação da submissão voluntária pelos dominados. Para Rocker, essa submissão não é imposta exclusivamente pela violência física, mas tem como principal ingrediente a identidade divina da autoridade, “é por isso que o objetivo principal de toda política, até agora, era despertar essa crença nas pessoas e fortalecê-la psicologicamente. (…) É sempre o princípio do poder, que os representantes da autoridade celestial e terrena afirmavam diante dos homens, e é sempre o sentimento religioso de dependência que compele as massas à obediência. O soberano do Estado não é mais venerado nos templos públicos como uma divindade, mas diz com Luís XIV: O Estado sou eu! O Estado é a providência terrestre que vigia os homens e conduz seus passos para que não se desviem do caminho certo. É por isso que o representante da soberania do Estado é o supremo sacerdote do poder, que encontra sua expressão na política, como a veneração divina encontra na religião”. A submissão voluntária ao poder do Estado seria então a consequência da legitimação do poder político através da religião.

Outra questão com a qual Rocker lidará em seu trabalho será a unicidade do poder, ou seja, sua reivindicação e “desejo de ser único, porque, de acordo com sua essência, parece absoluto e se opõe a qualquer barreira que te lembre das limitações de sua influência. O poder é a consciência da autoridade em ação; Ele não pode, como Deus, suportar qualquer outra divindade além de si mesmo”. Essa característica das estruturas de poder se manifesta em uma luta pela hegemonia entre os vários grupos de poder. Na base de todo o poder está esta semente que aspira a sujeitar todo movimento social a uma vontade central e única, às vezes incorporada na figura de um monarca, um partido ou um representante constitucionalmente eleito. A unidade de poder é expressa pelo respeito pelos símbolos que legitimam a autoridade política do sentimento religioso. As instituições de Estado, Nação, Partido e/ou Religião se fundem em um único poder que se expande e se amplia às custas de outros grupos de poder (grupos que, apesar de serem mais fracos, também escondem um domínio universal latente): O sonho de erigir um império universal não é apenas um fenômeno da história antiga; é o resultado lógico de toda atividade de poder e não está ligado a um certo período”. A visão de poder de Rocker estava muito sintonizada com a sociologia do seu tempo; o poder foi estudado como uma estrutura, não como uma relação (como Foucault proporá décadas depois), e em seus argumentos você pode encontrar ideias esboçadas de autores tão diferentes quanto Weber, Marx ou Durkheim. A tese de Rocker sobre o poder foi perfeitamente enquadrada no contexto da sociologia do início do século XX. Nesta linha, nosso autor postulará que uma das primeiras condições para a existência de qualquer poder reside na divisão da sociedade em classes, estamentos e castas superiores e inferiores. Essas estruturas de poder serão legitimadas pela religião, tradição e mitos, apresentando esta situação de desigualdade como inescapável, fatal e necessária, como parte de uma ordem social natural.

Nas sociedades em que grupos de poder politicamente organizados existem, eles se apropriam dos produtos culturais, econômicos e simbólicos que a sociedade cria para sua reprodução vital. Observando essa situação de desigualdade que origina as estruturas de poder nas sociedades, Rocker rejeita a existência de qualquer faculdade criadora de poder:

“A crença nas supostas habilidades criativas do poder é baseada no cruel auto-engano, porque o poder como tal não cria nada e está completamente à mercê da atividade criativa dos súditos, de modo que eles só podem existir. Nada é mais enganador do que reconhecer no Estado o verdadeiro criador do processo cultural, como é quase sempre o caso, infelizmente. Exatamente o oposto é verdadeiro: O Estado foi, desde o início, a energia paralisante que manifestava hostilidade ao desenvolvimento de todas as formas superiores de cultura. Os Estados não criam nenhuma cultura; em vez disso, muitas vezes sucumbem às formas superiores de cultura. Poder e cultura, no sentido mais profundo, são contradições intransponíveis; a força de um sempre anda de mãos dadas com a fraqueza do outro. Um aparato estatal poderoso é o maior obstáculo a todo o desenvolvimento cultural. Onde os Estados morrem ou seu poder é restrito a um mínimo, é onde a cultura se desenvolve melhor”.

A força criativa reside na cultura, “ela se cria e surge espontaneamente das necessidades dos seres humanos e de sua cooperação social”. A cultura nos seus mais variados aspectos, sejam tecnológicos, artísticos, morais ou econômicos, é originada pela sociedade, enquanto as instituições políticas se apropriam desse desenvolvimento para fortalecer seu poder e dominar a vida social. O poder político entra em inevitável contradição com as forças criativas do processo cultural, cuja natureza é multiforme e diversificada, tentando padronizar, rastrear, cristalizar e disciplinar esse processo criativo. Mas a cultura está constantemente se renovando e se adaptando, mesmo que as forças políticas tentem impor seu domínio e impedir sua evolução. O Estado, sempre infértil, aproveita essa força criativa da cultura para direcioná-la a seu benefício e só favorece os elementos da cultura que favorecem a conservação de seu poder. É por isso que Rocker afirma que é impossível falar de uma cultura de Estado, porque cultura e poder são forças contraditórias e em luta permanente:

“E o fato de que toda instituição de domínio sempre tem como base a vontade de minorias privilegiadas, impostas às pessoas de cima a baixo pela violência astuta ou brutal, enquanto em toda fase especial da cultura só se expressa a obra anônima da comunidade, é significativa a contradição interna que existe entre ambas. O poder sempre vem de indivíduos ou pequenos grupos de indivíduos; A cultura está enraizada na comunidade. (…) A Cultura, no sentido mais elevado, é como o instinto de reprodução, cuja manifestação preserva a vida da espécie. O indivíduo morre; a sociedade não. Estados sucumbem; culturas só mudam o cenário de sua atividade e as formas de sua expressão”.

Mas embora essa oposição entre cultura e poder seja tão manifesta, Rocker reconhece que em certas áreas da vida social há um campo comum de ação e entendimento entre ambas. Assim, “quanto mais profundamente a ação cultural dos homens cai na órbita do poder, mais uma petrificação de suas formas, uma paralisia de sua energia criativa, um amortecimento de sua vontade de realização torna-se evidente. Por outro lado, a cultura social ultrapassa ainda mais vigorosamente todas as barreiras políticas do domínio, pelo menos está contido em seu desenvolvimento natural pelos meios políticos e religiosos de opressão. Neste caso, sobe para a condição de perigo imediato para a própria existência do poder”. Essa área de contato entre as estruturas do poder político e a estrutura social cultural é também uma área de conflito e luta permanente. Como resultado dessa luta entre duas tendências opostas, aparecem gradualmente as formas de relação jurídica que enquadram “os limites das atribuições entre Estado e sociedade, entre política e economia, em uma palavra, entre poder e cultura”. O direito, os códigos civis e criminais, as leis e Constituições são a cristalização desse processo de disputa entre poder e sociedade, e essas instituições são o “amortecedor que enfraquece seus choques e preserva a sociedade de um estado de contínuas catástrofes”. Essa discórdia entre a sociedade e o Estado é comparada por Rocker com as oscilações de um pêndulo que se move entre dois polos: o da autoridade e o da liberdade. O ponto em que o pêndulo pára no polo da Liberdade, a sociedade é libertada do Estado, a opressão e a exploração e a Anarquia é estabelecida. O ponto em que o pêndulo para no polo de Autoridade, a desigualdade reina, e as capacidades criativas da sociedade em benefício de uma minoria privilegiada são paralisadas e o Estado nacional, sua burocracia administrativa, o capitalismo é instituído.

Dentro do último, Rocker inclui a variante “capitalismo de Estado”, para se referir ao socialismo autoritário leninista, porque afoga todas as atividades sociais e as substitui pela atividade do Estado. As pessoas que se enquadram no domínio do Estado perdem o espírito de comunidade, a liberdade, a capacidade criativa e a espontaneidade; isto é, eles despersonalizam. Mas Rocker adverte que a malignidade do Poder é tão superlativa que imola seus próprios agentes: “Essa é a maldição secreta de todo poder: não é apenas fatal para suas vítimas, mas também para seus próprios representantes. O louco pensamento de ter que viver para algo que contradiz todo sentimento humano saudável e que é insubstancial em si mesmo, gradualmente transforma os representantes do poder em máquinas inertes, depois de obrigar todos aqueles que dependem de seu poder para a conformidade mecânica de sua vontade”. Nestas palavras finais nos deparamos com uma teoria rudimentar sobre a alienação do Poder que, infelizmente, o autor não aprofundou, mas que constitui uma amostra acabada de suas preocupações contemporâneas: a despersonalização que a burocracia e o totalitarismo (fascista e stalinista) produziram no corpo da sociedade, transformando-a em uma massa inerte, obediente e disciplinada.

Reflexão Final

Durante o período entre 1830 e 1900, a Idade de Ouro da sociologia floresceu, segundo Robert Nisbet. É precisamente nessa época que as ideias anarquistas surgiram e se consolidaram. Dentro deste contexto, os anarquistas teorizaram sobre o Poder e o Estado – entre outros tópicos – com a profundidade e competência intelectual de acordo com seu tempo. Ao contrário do marxismo, os teóricos anarquistas não se ligaram ao pensamento de uma autoridade intelectual dominante, mas, em vez disso, atacaram o problema do poder a partir de várias perspectivas. Mas a diversidade de abordagens não deve nos fazer pensar que essas perspectivas continham propostas que eram inconsistentes ou incompatíveis entre si. A oposição entre a comunidade e o Estado, ou da sociedade e política, eles são resumidos no par antagônico que forma a Anarquia contra o Poder, e está presente em todos os autores anarquistas. É que o anarquismo não tinha uma visão caprichosa ou infantil que igualasse o Estado e o Poder, mas que diferenciava as formas de governo autoritário (estruturas políticas) como um produto da evolução histórica, enquanto o Poder era uma qualidade e característica inerente ao ser humano, assim como a solidariedade, a cooperação, o egoísmo ou o altruísmo. Assim, se o Estado é produto da evolução social, o Poder (ou o desejo de adquiri-lo), por outro lado, é uma força universal presente em todas as sociedades de forma latente ou manifesta, que enfrenta os sentimentos de solidariedade e fraternidade humanas.

Se os anarquistas do presente pretendem discutir seriamente as mesmas exigências que abordaram brilhantemente os grandes teóricos do anarquismo clássico, deveríamos deixar de lado suposições como a de Roca Martínez, que já citamos no início desta resenha. De nossa perspectiva, todas as tentativas de acomodar a noção de Poder para torná-lo compatível com o anarquismo foram estéreis. A ideia de um “poder popular” é tão falaciosa quanto a crença de que os anarquistas clássicos rejeitaram qualquer discussão sobre o poder porque era intrinsecamente ruim ou porque tinham uma ideia de poder como simples dominação ou coerção. A perspectiva que apresentava poder como dominação, no entanto, tem sido uma das grandes linhas de pensamento da sociologia, e seu principal expoente foi Max Weber, talvez o maior sociólogo da história. Portanto, a visão dos anarquistas sobre o poder não era apenas consistente com o contexto no qual as ideias libertárias eram desenvolvidas, mas era mesmo um precursor das ciências sociais que estavam sendo fundadas a partir de meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Muitas das intuições dos teóricos anarquistas sobre o poder político serão tratadas por Max Weber de uma maneira mais metódica e científica. Agora vamos tentar ilustrar esta última imagem.

A ideia de Bakunin de que o poder não pode “sustentar um superior ou um igual, já que o poder não tem outro objeto além da dominação; (…) Nenhuma força tolera outra que não seja quando obrigada a fazê-lo” ou que “a conquista não é apenas a origem, é também o fim supremo de todos os estados grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, monárquicos ou aristocrática, democrática e socialista”, são ideias perfeitamente compatíveis com o ponto de vista weberiano:

“Todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na extensão em que usam ou ameaçam usá-la contra outras organizações políticas. (…) Nem todas as estruturas políticas são igualmente expansivas (…) como estrutura de poder, variam no grau em que são orientadas para o exterior”.

Também a ideia de uma busca de poder incorporada em certos grupos dominantes exercida por Rocker, tem sua correlação em Weber: “a busca de prestígio é característica de todas as estruturas de poder específicas e, portanto, de todas as estruturas políticas. (…) Na prática, o prestígio do poder como tal equivale à glória do poder exercido sobre outras comunidades; É equivalente a uma expansão de poder, embora nem sempre por meio de anexação ou submissão. As grandes comunidades políticas são os expoentes naturais dessas reivindicações de prestígio”. Weber também descreveu as fortes relações entre diferenças de classe e estruturas de poder, a ação das partes orientadas quase exclusivamente para a aquisição de poder, para influenciar ações comunitárias ou para materializar um certo programa político. A teoria do poder de Weber também tem um grau de universalidade e aplicação geral que coincide com a maioria das teorizações anarquistas, e isso se deve em grande parte ao fato de que o que Weber entende (um burguês insuspeito de simpatizar com o anarquismo) por “poder” não difere muito das postulações do anarquismo clássico: “entendemos pelo poder a possibilidade de que uma pessoa ou um número de pessoas executará sua própria vontade em uma ação comunitária, mesmo contra a resistência de outros que participam da ação”. Poderíamos acrescentar também que sua definição do Estado como a instituição que detém o monopólio da força na sociedade, apesar de sua óbvia estreiteza, poderia ser subscrita por muitos dos anarquistas.

O fato de termos mostrado algumas coincidências entre a sociologia weberiana sobre poder e o pensamento anarquista não deveria nos fazer acreditar que nenhum ponto de contato poderia ser encontrado com outros autores do século XIX, como Marx, Tonnies ou Durkheim. Coincidimos com Weber em relação à sua teoria do poder para mostrar que as ideias dos anarquistas clássicos sobre o poder não correspondem de forma alguma à caracterização limitada que Roca Martínez sugeriu. O problema do poder não era algo que os anarquistas se esquivavam por medo de serem contaminados, mas que eles o abordavam de maneira coerente, racional e consistente com seu pensamento; Foi essa visão particular de poder que caracterizou os anarquistas e os diferenciou do resto das correntes ideológicas.

Finalmente, podemos apenas expressar que, se os teóricos do “Poder Popular” insistem em argumentar aplicando a lei do esforço mínimo, como Roca Martínez fez para caracterizar o anarquismo clássico, suas ideias dificilmente podem ser aceitas pelo resto do movimento libertário. Porque, na verdade, o malabarismo argumentativo teria que ser feito a fim de reconciliar significados opostos como Anarquia e Poder, e aceitar o que em nossa visão é absurdo e incoerente. A menos que anarquistas desistam do saudável hábito de se recusar a pensar do ponto de vista daqueles que detêm o Poder.

Publicado en el periódico anarquista ¡Libertad! N° 61,

junio-julio de 2013, Buenos Aires

Bibliografia:

Bobbio, Norberto y Bovero, Michelangelo, Origen y fundamentos del

poder político, México, Grijalbo, 1985.

Buber, Martín, Los caminos de Utopía, FCE, México, 1987.

Cappelletti, Ángel, Bakunin y el Socialismo Libertario, México, 1986.

Kropotkin, Piotr, El apoyo mutuo, Ediciones Madre Tierra, Madrid, 1989.

Kropotkin, Piotr, El Estado y su papel histórico, Fundación Anselmo Lorenzo, Madrid, 1995.

Landauer, Gustav, La Revolución, Tusquets Editores, Barcelona, 1977.

Nisbet, Robert, La formación del pensamiento sociológico, Amorrortu, Buenos Aires, 1977.

Rocker, Rudolf, Nacionalismo y Cultura, Tupac, Buenos Aires, 1942.

Weber, Max, Ensayos de Sociología contemporánea, Barcelona, Planeta Agostini, 1985.

[1] http://redlibertariapopularmk.entodaspartes.net

[2] Em outro momento, empreenderemos a discussão das teorias de poder foucaultianas, predominantemente discursivas, totalizantes e sem base científica/experimental.