Prólogo

  Introdução

  A anarquia nunca funcionaria

  O que é anarquismo exatamente?

  Uma nota sobre inspiração

  O complicado tema da representação

  Leituras Recomendadas

  Capítulo 1 — A natureza humana

  As pessoas não são naturalmente egoístas?

  As pessoas não são naturalmente competitivas?

  A espécie humana não foi sempre patriarcal?

  As pessoas não são naturalmente inclinadas para a guerra?

  A dominação e a autoridade não são naturais?

  Um sentido mais amplo de si

  Leitura recomendada

  Capítulo 2 — Decisões

  Como serão tomadas as decisões?

  Como as decisões serão aplicadas?

  Quem resolverá os conflitos?

  Reunindo-se nas ruas

  Leitura recomendada

  Capítulo 3 — Economia

  Sem salários, qual é o incentivo para trabalhar?

  As pessoas não precisam de patrões e especialistas?

  Quem vai recolher o lixo?

  Quem cuidará dos idosos e dos deficientes?

  Como as pessoas terão assistência médica?

  E a educação?

  E a tecnologia?

  Como funcionarão as trocas?

  E as pessoas que não quiserem largar seu estilo de vida consumista?

  E a construção e a organização de uma infraestrutura ampla e espalhada?

  Como funcionarão as cidades?

  E as secas, fomes e outras catástrofes?

  Satisfazendo nossas necessidades sem contabilizar

  Leitura recomendada

  Capítulo 4 — Meio ambiente

  Como evitar que o meio ambiente seja destruído?

  E os problemas ambientais globais, como a mudança climática?

  O único modo de salvar o planeta

  Leitura recomendada

  Capítulo 5 — Crime

  Sem polícia, quem irá nos proteger?

  E as gangues e “bullies”?

  E o que impedirá uma pessoa de matar outra?

  E o estupro, a violência doméstica e outras formas de agressão?

  Para além da justiça individual

  Leitura recomendada

  Capítulo 6 — Revolução

  Como as pessoas organizadas horizontalmente poderiam superar o Estado?

  Como saberemos se os revolucio-nários não se converterão em novas autoridades?

  Para começar, como as comunida-des decidem se organizar por conta própria?

  Como funcionarão as reparações de opressões passadas?

  Como aparecerá um ethos comunitário, antiautoritário e ecológico?

  Uma revolução que são muitas revoluções

  Leituras Recomendadas

  Capítulo 7 — Sociedades vizinhas

  Uma sociedade anarquista poderia defender-se de um vizinho autoritário?

  O que faremos com as sociedades que permaneçam patriarcais ou racistas?

  O que evitará as disputas e guerras constantes?

  Redes, e não fronteiras

  Leituras Recomendadas

  Capítulo 8 — O Futuro

  Com o tempo, será que o Estado não iria reaparecer?

  E os outros problemas que não podemos prever?

  Fazendo com que a Anarquia funcione

  Leituras Recomendadas

  Funciona quando fazemos

  Bibliografia

A Anarquia funciona

Peter Gelderloos

escrito em 2010

traduzido coletivamente entre 2014 e 2017

este livro está disponível gratuitamente em:

Prólogo

Chega de falar dos velhos tempos, é hora de algo especial.

Quero que você se mexa e faça funcionar...

Thom Yorke

Dedicado às pessoas extraordinárias da RuinAmalia, La Revoltosa, e do centro social Kyiv, por fazerem a anarquia funcionar.

Embora este livro tenha iniciado como um projeto individual, no fim das contas, um grande número de pessoas, a maioria das quais prefere permanecer anônima, ajudou a torná-lo possível, através de revisão, checagem de fatos, recomendação de fontes, edição, e por aí vai. Para reconhecer apenas uma pequena parte desta ajuda, o autor gostaria de agradecer John, Jose, Vila Kula, aaaa!, L, J e G por proporcionarem acesso a computadores ao longo de um ano de mudanças, despejos, panes, vírus, e assim por diante. Obrigado a Jessie Dodson e Katie Clark por ajudarem com a pesquisa de um outro projeto, que eu acabei usando para este livro. Obrigado, ainda, a C e a E, por emprestarem suas senhas para o acesso livre aos bancos de dados de artigos acadêmicos disponíveis para estudantes universitários, mas não para o resto de nós.

Há histórias escondidas em toda a nossa volta,

crescendo em aldeias abandonadas nas montanhas

ou em terrenos baldios na cidade,

fossilizando-se sob nossos pés, nos resquícios

de sociedades diferentes de tudo que já vimos,

sussurrando-nos que as coisas poderiam ser diferentes.

Mas o político que você sabe que está te mentindo,

o gerente que te contrata e te demite,

o proprietário que te despeja,

o presidente do banco que é dono da sua casa,

o professor que dá nota ao seus trabalhos,

o policial que ronda a tua rua,

o repórter que te informa,

o médico que te medica,

o marido que te bate,

a mãe que te espanca,

o soldado que mata por você,

e o assistente social que acomoda seu passado e seu futuro numa pasta em um arquivo

todos perguntam

"O QUE VOCÊ FARIA SEM NÓS?

Isso seria anarquia."

E a filha que foge de casa,

a motorista de ônibus no piquete,

a veterana de guerra que deixou para trás sua medalha, mas se agarra a seu fuzil,

o garoto salvo do suicídio pela força da amizade,

a empregada que precisa se curvar a quem nem consegue cozinhar para si mesmo,

a imigrante marchando pelo deserto para encontrar sua família do outro lado,

a jovem indo para a cadeia porque incendiou o shopping que construíam sobre seus sonhos de infância,

o vizinho que limpa as seringas do terreno baldio, na esperança de que alguém o transforme em um jardim,

o mochileiro na estrada,

o jovem que largou a faculdade, desistiu da carreira e do plano de saúde, e às vezes até da comida, para que pudesse escrever poesia revolucionária para o mundo,

talvez já possamos sentir isto:

nossos patrões e carrascos têm medo do que eles poderiam fazer sem nós,

e a sua ameaça é uma promessa —

as melhores partes de nossas vidas já são anarquia.

Introdução

A anarquia nunca funcionaria

O anarquismo é o mais ousado dos movimentos sociais revolucionários que emergiram da luta contra o capitalismo — ele busca um mundo livre de todas as formas de dominação e exploração. Mas, na sua essência, há uma proposição simples e convincente: as pessoas sabem como viver suas próprias vidas e se organizar melhor do que qualquer especialista poderia saber. Outros afirmam cinicamente que as pessoas não sabem bem o que lhes interessa, que elas precisam de um governo para protegê-las, que a ascensão de algum partido político poderia assegurar, de alguma forma, os interesses de todos os membros da sociedade. Anarquistas contra-argumentam que a tomada de decisões não deveria ser centralizada nas mãos de qualquer governo, mas que, em vez disso, o poder deveria ser descentralizado: em outras palavras, cada pessoa deveria ser o centro da sociedade, e todas deveriam ser livres para criar as redes e associações de que precisam para suprir as necessidades que têm em comum com outras pessoas.

A educação que recebemos nas escolas do Estado nos ensina a duvidar de nossa habilidade de nos organizarmos. Isto leva muita gente a concluir que a anarquia é impraticável e utópica: ela nunca funcionaria. Pelo contrário, a prática anarquista já tem um longo histórico, e, com frequência, tem funcionado muito bem. Os livros de história oficiais contam uma história seletiva, encobrindo o fato de que todos os componentes de uma sociedade anarquista já existiram em diversos períodos, e de que inúmeras sociedades sem Estado prosperaram por milênios.

Como seria uma sociedade anarquista em comparação com sociedades capitalistas e estatistas? É claro que sociedades hierárquicas funcionam bem de acordo com certos critérios. Elas tendem a ser extremamente eficazes em conquistar sociedades vizinhas e assegurar enormes fortunas para seus governantes. Por outro lado, à medida que se intensificam as mudanças climáticas, a escassez de água e de alimentos, a instabilidade do mercado e outras crises globais, os modelos hierárquicos não estão se mostrando especialmente sustentáveis. As histórias deste livro mostram que uma sociedade anarquista pode obter muito mais sucesso em possibilitar que todas as pessoas dentro dela satisfaçam seus desejos e necessidades.

As muitas histórias, do passado e do presente, que demonstram como a anarquia funciona foram suprimidas e distorcidas, devido às conclusões revolucionárias que poderíamos tirar delas. Podemos viver em uma sociedade sem chefes, mestres, políticos ou burocratas; uma sociedade sem juízes, sem polícia, e sem criminosos, sem ricos ou pobres; uma sociedade livre de sexismo, homofobia e transfobia; uma sociedade em que as feridas de séculos de escravidão, colonialismo e genocídio finalmente tenham chance de cicatrizar. As únicas coisas que nos impedem são as prisões, o condicionamento e os salários recebidos dos poderosos, além da nossa própria falta de fé em nós mesmxs.

Obviamente, anarquistas não precisam ser excessivamente práticos. Se algum dia conquistarmos a liberdade de viver nossas próprias vidas, provavelmente descobriremos abordagens completamente novas de organização que aprimorem aquelas formas testadas e provadas pelo tempo. Então, deixe que essas histórias sejam um ponto de partida, e um desafio.

O que é anarquismo exatamente?

Muitos livros já foram escritos para responder essa pergunta, e milhões de pessoas dedicaram suas vidas para criar, expandir, definir e lutar pela anarquia. Há inúmeros caminhos para o anarquismo e inúmeros pontos de partida: trabalhadoras e trabalhadores na Europa do século XIX lutando contra o capitalismo e acreditando em sua força em vez de nas ideologias dos partidos políticos autoritários; povos indígenas lutando contra a colonização e recuperando suas culturas horizontais tradicionais; colegiais despertando para a profundidade de sua alienação e infelicidade; místicos da China de mil anos atrás ou da Europa de quinhentos anos atrás, taoistas ou anabatistas, lutando contra o governo e a religião organizada; mulheres se rebelando contra o autoritarismo e o sexismo da esquerda. Não há Comitê Central distribuindo carteirinhas de filiação, e nenhuma doutrina padrão. Anarquia significa coisas diferentes para pessoas diferentes. No entanto, há alguns princípios básicos sobre os quais a maioria das pessoas anarquistas concordam.

Autonomia e Horizontalidade: Todas as pessoas merecem a liberdade de se definir e se organizar em seus próprios termos. Estruturas de tomada de decisão devem ser horizontais, em vez de verticais, para que ninguém domine ninguém; elas devem promover o poder para agir livremente, em vez do poder sobre outras pessoas. O anarquismo se opõe a todas as hierarquias coercivas, incluindo o capitalismo, o Estado, a supremacia branca e o patriarcado.

Apoio Mútuo: Pessoas devem ajudar umas às outras de forma voluntária; laços de solidariedade e de generosidade geram um vínculo social mais forte do que o medo inspirado por leis, fronteiras, prisões e exércitos. Apoio mútuo não é nem uma forma de caridade, nem uma troca de soma zero; quem doa e quem recebe são iguais e intercambiáveis. Já que nenhuma dessas pessoas tem poder sobre a outra, elas aumentam seu poder coletivo ao criarem oportunidades de trabalhar em conjunto.

Associação Voluntária: Pessoas devem ser livres para cooperar com quem elas quiserem, da maneira que julgarem adequada; da mesma forma, elas devem ser livres para recusar qualquer relação ou arranjo que julguem não estar de acordo com seus interesses. Todo mundo deve ser capaz de se mover livremente, tanto física quanto socialmente. Anarquistas são contra fronteiras de todos os tipos e categorizações involuntárias por nacionalidade, gênero ou raça.

Ação Direta: É mais empoderador e efetivo atingir objetivos de forma direta do que depender de autoridades ou representantes. Pessoas livres não pedem as mudanças que querem ver no mundo; elas criam essas mudanças.

Revolução: Não há como abolir os sistemas de repressão enraizados atualmente por meio de reformas. Quem detém o poder em um sistema hierárquico são aqueles que instituem as reformas, e eles geralmente o fazem de formas que preservam ou até amplificam seu poder. Sistemas como o capitalismo e a supremacia branca são formas de guerra travadas pelas elites; uma revolução anarquista significa lutar para derrubar essas elites, a fim de criar uma sociedade livre.

Autolibertação: "A libertação dos trabalhadores e trabalhadoras é dever dos próprios trabalhadores e trabalhadoras", como diz o velho lema. Isso também se aplica a outros grupos: as pessoas devem estar à frente de sua própria libertação. A liberdade não pode ser concedida; ela deve ser conquistada.

Uma nota sobre inspiração

Pluralismo e liberdade não são compatíveis com ideologias ortodoxas. Os exemplos históricos de anarquia não precisam ser explicitamente anarquistas. A maioria das sociedades e organizações que tiveram êxito vivendo livres de governo não se chamaram de "anarquistas"; esse termo se originou na Europa no século XIX, e o anarquismo como um movimento social autoconsciente não é nem de perto tão universal quanto o desejo por liberdade.

É presunçoso atribuir o rótulo de "anarquista" a pessoas que não o escolheram; em vez disso, podemos usar uma série de outros termos para descrever exemplos de anarquia na prática. "Anarquia" é uma situação social livre de governo e de hierarquias coercivas sustentada por relações horizontais auto-organizadas; "anarquistas" são pessoas que se identificam com o movimento social ou a filosofia do anarquismo. Antiautoritárias são as pessoas que expressamente querem viver em uma sociedade sem hierarquias coercivas, mas que, até onde vai nosso conhecimento, não se identificam como anarquistas — seja porque o termo não estava disponível a elas, seja porque não veem o movimento especificamente anarquista como relevante para seu mundo. Afinal, o movimento anarquista, como tal, surgiu na Europa e herdou uma visão de mundo em conformidade com esse contexto; enquanto isso, há muitas outras lutas contra a autoridade que surgem de visões de mundo distintas e não precisam chamar a si mesmas de "anarquistas". Uma sociedade que existe sem Estado, mas não se identifica como anarquista, é "sem Estado"; se essa sociedade não é sem Estado por acaso, mas trabalha conscientemente para impedir a emergência de hierarquias e se identifica com características igualitárias, pode-se descrevê-la como "anárquica".[1.1]

Os exemplos deste livro foram selecionados de uma vasta gama de períodos e lugares — cerca de noventa no total. Trinta deles são explicitamente anarquistas; os restantes são todos sem Estado, autônomos ou conscientemente antiautoritários. Mais da metade dos exemplos são da sociedade ocidental atual, um terço é proveniente de sociedades sem Estado que fornecem uma perspectiva da amplitude de possibilidades humanas fora da civilização ocidental, e os poucos restantes são exemplos históricos clássicos. Alguns destes, tal como a Guerra Civil Espanhola, são citados diversas vezes, porque são bem documentados e oferecem uma riqueza de informações. O número de exemplos incluídos torna impossível explorar cada um deles com o detalhamento merecido. Idealmente, quem lê se inspirará a investigar essas questões por si, extraindo mais lições práticas dos esforços de quem veio antes.

Ficará evidente ao longo deste livro que a anarquia existe em confronto com o Estado e o capitalismo. Muitos dos exemplos oferecidos aqui foram, no fim das contas, esmagados pela polícia ou por exércitos conquistadores, e é, em grande medida, por causa dessa repressão sistemática de alternativas que não houve mais exemplos de anarquia em funcionamento. Esta história sangrenta sugere que, para ser completa e exitosa, uma revolução anarquista teria de ser global. O capitalismo é um sistema global, expandindo-se e colonizando, de forma constante, toda sociedade autônoma que encontra. No longo prazo, nenhuma comunidade ou país pode permanecer anarquista enquanto o resto do mundo é capitalista. Uma revolução anticapitalista deve destruir o capitalismo de forma completa, ou então será destruída. Isso não significa que o anarquismo deve ser um único sistema global. Muitas formas diferentes de sociedade anarquista poderiam coexistir, e estas, por sua vez, poderiam coexistir com sociedades que não fossem anarquistas, desde que estas não fossem hostilmente autoritárias ou opressivas. As páginas seguintes apresentarão a grande diversidade de formas que anarquia e autonomia podem tomar.

Os exemplos deste livro mostram a anarquia funcionando por um período de tempo, ou obtendo sucesso de alguma forma específica. Até que o capitalismo seja abolido, todos esses exemplos serão necessariamente parciais. Esses exemplos são pedagógicos em suas fraquezas e em seus pontos fortes. Além de oferecerem um retrato de pessoas criando comunidades e satisfazendo suas necessidades sem chefes, eles levantam a questão de o que deu errado e como poderíamos fazer melhor na próxima vez.

Para isso, eis alguns temas recorrentes sobre os quais pode ser bom refletir ao longo da leitura deste livro:

Isolamento: Muitos projetos anarquistas funcionam muito bem, mas têm impacto apenas sobre as vidas de um pequeno número de pessoas. O que provoca este isolamento? O que tende a contribuir para ele, e o que pode corrigi-lo?

Alianças: Em uma série de exemplos, anarquistas e outras pessoas antiautoritárias foram traídas por supostas alianças, que sabotaram a possibilidade de libertação para ganharem poder para si mesmas. Por que anarquistas escolheram essas alianças, e o que podemos aprender sobre quais os tipos de aliança a se fazer hoje?

Repressão: Comunidades autônomas e atividades revolucionárias foram e têm sido abruptamente interrompidas pela repressão policial ou por invasão militar repetidamente. Pessoas são intimidadas, presas, torturadas ou mortas, e as sobreviventes precisam se esconder ou sair da luta; comunidades que antes ofereciam suporte recuam para proteger a si mesmas. Que ações, estratégias e formas de organização mais bem equipam as pessoas para sobreviver à repressão? Como podem as pessoas de fora oferecer uma solidariedade efetiva?

Colaboração: Alguns movimentos sociais ou projetos radicais optam por participar ou se acomodar a aspectos do sistema atual, a fim de superar o isolamento, tornar-se acessíveis a um número maior de pessoas ou para evitar a repressão. Quais são as vantagens e armadilhas dessa abordagem? Há maneiras de superar o isolamento ou evitar a repressão sem isso?

Ganho temporário: Muitos dos exemplos deste livro não existem mais. Obviamente, anarquistas não estão tentando criar instituições permanentes que ganhem vida própria; organizações específicas devem deixar de existir quando não são mais úteis. Considerando isso, como podemos aproveitar ao máximo as bolhas de autonomia enquanto elas duram, e como elas podem continuar nos ensinando depois de terem deixado de existir? Como uma série de espaços e eventos temporários pode ser conectada de forma a criar uma continuidade de luta e de comunhão?

O complicado tema da representação

No maior número possível de casos, buscamos opiniões diretas de pessoas com experiência pessoal nas lutas e comunidades descritas neste livro. Com alguns dos exemplos, isso foi impossível devido aos abismos intransponíveis de distância e do tempo. Nestes casos, tivemos de confiar exclusivamente em exposições escritas, geralmente feitas por observadores externos. Mas a representação não é, de forma alguma, um processo neutro, e observadores externos projetam seus próprios valores e experiências sobre aquilo que estão observando. Obviamente, representação é uma atividade inevitável no discurso humano, e, além disso, observadores externos podem contribuir com novas e úteis perspectivas.

Entretanto, nosso mundo não é tão simples. Enquanto a civilização europeia se espalhava e dominava o resto do planeta, os observadores que ela enviava eram geralmente os agrimensores, missionários, escritores e cientistas da ordem dominante. Em uma escala mundial, essa civilização é a única com o direito de interpretar a si mesma e a todas as outras culturas. Os sistemas ocidentais de pensamento foram forçosamente espalhados por todo o mundo. Sociedades colonizadas foram divididas e exploradas como trabalho escravo, fonte de recursos econômicos e capital ideológico. Povos não ocidentais foram representados para o Ocidente de formas que confirmassem a visão de mundo e o senso de superioridade ocidentais, e que justificassem o projeto imperial em curso como necessário para o bem dos povos que eram civilizados à força.

Como anarquistas tentando abolir a estrutura de poder responsável pelo colonialismo e muitas outras injustiças, queremos abordar essas outras culturas de forma honesta, a fim de aprender com elas, mas, se não formos cuidadosos, podemos facilmente cair no padrão eurocêntrico costumeiro de manipular e explorar essas outras culturas para nosso próprio capital ideológico. Em casos em que não pudemos encontrar nenhuma pessoa da comunidade em questão para avaliar e criticar nossas próprias interpretações, tentamos situar o narrador dentro da narração, para subverter sua objetividade e invisibilidade, para confrontar deliberadamente a validade de suas próprias informações, e para propor representações que sejam flexíveis e modestas. Não sabemos exatamente como realizar esse malabarismo, mas nossa esperança é de aprender enquanto tentamos.

Alguns povos indígenas que consideramos camaradas na luta contra a autoridade acham que as pessoas brancas não têm o direito de representar as culturas indígenas, e esta posição é especialmente justificada dado que, ao longo de quinhentos anos, as representações euro/americanas de povos indígenas têm sido interesseiras, exploratórias e ligadas a processos de genocídio e colonização em curso. Por outro lado, parte de nosso objetivo ao publicar este livro tem sido o de contestar o eurocentrismo histórico do movimento anarquista e encorajar nossa abertura para outras culturas. Não poderíamos fazer isto apresentando apenas histórias de ausência de Estado vindas de nossa própria cultura. O autor e a maioria das pessoas trabalhando na edição deste livro são brancas e não é surpresa que o que escrevemos reflete nossas experiências. Na verdade, a questão central que este livro procura abordar, se a anarquia poderia funcionar, parece, ela mesma, ser eurocêntrica. Somente um povo que obliterou a memória de seu próprio passado sem Estado poderia se perguntar se precisa do Estado. Reconhecemos que nem todo mundo compartilha deste ponto cego histórico e que o que publicamos aqui pode não ser útil para pessoas de outros contextos. Todavia, esperamos que, ao contar histórias das culturas e lutas de outras sociedades, possamos ajudar a corrigir o eurocentrismo endêmico a algumas de nossas comunidades e a nos tornarmos melhores aliados e aliadas, e melhores ouvintes, sempre que pessoas de outras culturas escolherem nos contar suas próprias histórias.

Uma pessoa que leu este texto nos apontou que a reciprocidade é um valor fundamental de visões de mundo indígenas. A questão que essa pessoa nos colocou foi: se anarquistas que são majoritariamente euro/americanos vão tirar lições de comunidades, culturas e nações indígenas, ou outras, o que ofereceremos em troca? Espero que, onde for possível, ofereçamos solidariedade — ampliando a luta e apoiando outras pessoas que lutam contra a autoridade sem se chamarem de anarquistas. Afinal, se somos inspirados por algumas outras sociedades, não deveríamos fazer mais para reconhecer e apoiar suas lutas em curso?

O livro de Linda Tuhiwai Smith Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples (Londres: Zed Books, 1999) oferece uma perspectiva importante sobre alguns destes temas.

Leituras Recomendadas

Errico Malatesta, No Café: Diálogos sobre o Anarquismo. Curitiba: L-Dopa Publicações, 2010.

The Dark Star Collective, Quiet Rumours: An Anarcha-Feminist Reader. Oakland: AK Press, 2002.

CrimethInc., Dias de Guerra, Noites de Amor. Porto Alegre: Editora Deriva. 2010.

Daniel Guerin, Anarchism: From Theory to Practice. New York: Monthly Review, 1996.

bell hooks, Ain’t I a Woman? Black women and feminism. Boston: South End Press, 1981.

Mitchell Verter and Chaz Bufe, eds. Dreams of Freedom: A Ricardo Flores Magon Reader. Oakland: AK Press, 2005.

Derrick Jensen, A Culture of Make Believe. White River Junction, Vermont: Chelsea Green, 2004.

Vine Deloria, Jr. Custer Died for Your Sins: an Indian Manifesto. New York: Macmillan, 1969.

Ward Churchill, From a Native Son: Selected Essays on Indigenism 1985–1995, Cambridge: South End Press, 1999; ou sua entrevista sobre indigenismo e anarquismo na revista Upping the Anti.

Capítulo 1 — A natureza humana

O anarquismo desafia a concepção ocidental típica sobre a natureza humana por visionar sociedades construídas na cooperação, na ajuda mútua e na solidariedade entre pessoas, não baseadas na competição e na sobrevivência da mais apta.

As pessoas não são naturalmente egoístas?

Todas as pessoas têm um senso de interesse próprio e a capacidade de agir de um modo egoísta às custas de outras pessoas. Mas todas também têm um senso das necessidades daquelas ao redor de si, e somos todas capazes de efetuar ações generosas e altruístas. A sobrevivência humana depende da generosidade. Da próxima vez que alguém lhe disser que uma sociedade comunal e anárquica não poderia funcionar porque as pessoas são naturalmente egoístas, recomende-lhe que só dê comida a seus filhos se eles lhe pagarem, não faça nada para dar a seus pais uma aposentaria digna, nunca doe para a caridade e nunca ajude seus vizinhos ou seja gentil para com desconhecidas, a menos que receba alguma recompensa. Essa pessoa poderia levar uma existência completa levando a filosofia capitalista às suas conclusões lógicas? É claro que não. Mesmo depois de centenas de anos sendo reprimidos, o compartilhamento e a generosidade permanecem sendo vitais para a existência humana. Você não precisa olhar para movimentos sociais radicais para encontrar exemplos disto. Os Estados Unidos podem ser, em um nível estrutural, a nação mais egoísta do mundo – é o mais rico dos países “desenvolvidos”, mas têm uma das menores expectativas de vida porque a cultura política prefere que os pobres morram a que recebam assistência médica ou social. Porém, mesmo nos EUA é fácil encontrar exemplos institucionais de compartilhamento que constituem uma parte importante da sociedade. As bibliotecas oferecem uma rede interconectada de milhões de livros gratuitos. Os churrascos de vizinhança ou de outros grupos reúnem pessoas para compartilhar comida e desfrutar da companhia umas das outras. Que outros exemplos de compartilhamento poderiam se desenvolver fora das barreiras restritivas do Estado e do capital?

Economias monetárias existem somente há alguns milhares de anos, e mesmo o capitalismo está aí há apenas algumas centenas de anos. Este provou funcionar sordidamente, levando às maiores desigualdades de riqueza, às maiores fomes em massa e aos piores sistemas de distribuição na história do mundo – apesar de produzir aparelhos eletrônicos maravilhosos. Pode surpreender as pessoas aprender como eram comuns outros tipos de economia em tempos passados, e como elas eram diferentes do capitalismo.

Uma economia comum desenvolvida por humanos em todos os continentes foi a economia da dádiva. Neste sistema, se as pessoas têm mais do que precisam para qualquer coisa, elas passam adiante o excedente. Elas não conferem valor, não contam dívidas. Tudo o que você usa pessoalmente pode ser dado como um presente – ou dádiva – para alguma outra pessoa e, dando mais, você inspira mais generosidade e fortalece as amizades que também mantêm você nadando em presentes. Muitas economias da dádiva duraram milhares de anos, e provaram-se muito mais efetivas para permitir que todos os participantes satisfizessem suas necessidades. O capitalismo pode ter aumentado drasticamente a produtividade, mas com que finalidade? Uma parte de uma típica cidade capitalista está morrendo de fome, enquanto a outra está comendo caviar.

Economistas e cientistas políticos ocidentais inicialmente supunham que muitas dessas economias da dádiva eram na verdade economias de escambo: sistemas de troca proto-capitalistas sem uma moeda efetiva: “eu te darei uma ovelha em troca de vinte pães”. Em geral, não é assim que essas sociedades descrevem a si mesmas. Posteriormente, antropólogos que foram viver nessas sociedades e conseguiram observar as suas tendências culturais mostraram na Europa que muitas daquelas economias eram baseadas na dádiva, nas quais as pessoas intencionalmente não mantinham nenhum registro de quem devia o quê a quem, com o fim de promover uma sociedade de generosidade e compartilhamento.

O que esses antropólogos talvez não soubessem é que as economias da dádiva nunca desapareceram totalmente no Ocidente; na realidade, elas emergiam frequentemente em movimentos de revolta. Anarquistas nos EUA atualmente também fornecem um exemplo do desejo por relações baseadas na generosidade e na garantia de que as necessidades de todas as pessoas serão satisfeitas. Em várias cidades, anarquistas mantêm Mercados Realmente Realmente Livres – essencialmente, mercados de pulgas sem preços fixados. As pessoas trazem bens que elas próprias fizeram ou coisas de que não necessitam mais e as dão para os transeuntes ou para outros participantes, ou ainda compartilham habilidades úteis com outras pessoas. Em um mercado livre na Carolina do Norte, todo mês:

duzentas pessoas ou mais de todas as classes sociais reúnem-se no centro de nossa cidade. Elas trazem de tudo para dar, desde jóias até lenha, e pegam o que querem. Há barracas oferecendo conserto de bicicletas, corte de cabelo e até mesmo consultas de tarô. As pessoas vão embora com estrados de cama inteiros e computadores velhos; se não têm um veículo para transportá-las, motoristas voluntários estão disponíveis. Nenhum dinheiro circula, ninguém é constrangido por estar necessitando de algo. Contrariando o regulamento governamental, nenhuma quantia é paga pelo uso do espaço público, e ninguém está “no comando”. Algumas vezes, uma banda marcial aparece; algumas vezes há a apresentação de uma trupe de marionetes, ou as pessoas formam uma fila para bater numa piñata. Jogos e conversas ocorrem na periferia e todas as pessoas têm um prato quente de comida e uma bolsa com alimento de graça. Faixas com os dizeres “Para todos, não para os proprietários ou a burocracia” e “Ni jefes, ni fronteras” são penduradas em árvores e casas, e um grande cobertor é estendido com livros radicais em cima, mas isso não é essencial para o evento – essa é uma instituição social, não uma manifestação.

Graças aos nossos Mercados Livres mensais, todas as pessoas na cidade têm um ponto de referência efetivo de uma economia anarquista. A vida é um pouco mais fácil para aqueles de nós com pouca ou nenhuma renda, e os relacionamentos desenvolvem-se em um espaço em que a classe social e os meios financeiros são ao menos temporariamente irrelevantes.[2.1]

A sociedade tradicional dos Semai, na Malásia, é baseada mais na doação de presentes do que no escambo. Não conseguimos achar relatos de sua sociedade feitos pelos próprios Semai, mas eles explicaram como ela funcionava a Robert Dentan, um antropólogo ocidental que viveu com eles por um tempo. Dentan escreve que o “sistema através do qual os Semai distribuem comida e serviços é um dos modos mais significativos pelos quais os membros de uma sociedade se unem (...) As trocas econômicas dos Semai são mais como trocas natalinas do que trocas comerciais”.[2.2] Era considerado punan, ou tabu, para os membros da sociedade calcular o valor dos presentes dados ou recebidos. Outras regras de etiqueta mantidas conjuntamente envolviam o compromisso de compartilhar tudo o que se tinha e de que não se precisaria imediatamente, e de compartilhar com pessoas convidadas ou com qualquer outra que pedisse. Era punan tanto não compartilhar ou recusar um pedido quanto pedir mais do que alguém podia dar.

Muitas outras sociedades também distribuíam e trocavam excedentes em forma de presentes. Além da coesão social e do contentamento ganhos a partir do compartilhamento com sua comunidade, sem manter gananciosamente contas ou registros, uma economia da dádiva também pode ser justificada em termos de interesses pessoais. Geralmente, uma pessoa não consegue consumir o que produz sozinha. A carne de um dia de caça vai estragar antes que você consiga comê-la toda. Uma ferramenta, como uma serra, vai ficar sem uso a maior parte do tempo se for propriedade de uma única pessoa. Faz mais sentido dar a maior parte da carne ou compartilhar a sua serra com a vizinhança, porque você está assegurando que, no futuro, ganhará comida e terá ferramentas compartilhadas com você – assegurando, desse modo, que você tenha acesso a mais comida e a uma variedade maior de ferramentas; você e seus vizinhos vão se tornar mais ricos sem ter que explorar ninguém.

Pelo que sabemos, entretanto, membros de economias da dádiva provavelmente não justificariam suas ações com argumentos de interesse próprio calculado, mas com um raciocínio moral, explicando que compartilhar é a coisa certa a se fazer. Afinal, uma economia de excedente é o resultado de uma certa maneira de enxergar o mundo: é uma escolha social, não uma certeza material. As sociedades precisam escolher, ao longo do tempo, trabalhar mais do que precisam, quantificar valor, ou somente consumir o mínimo requerido para a sua sobrevivência e ceder todo o resto de sua produção para um armazém comum controlado por uma classe de líderes. Mesmo se um bando de caçadores ou um grupo de coletores tiverem sorte e trouxerem para casa uma enorme quantidade de comida, não há excedente se eles consideram normal compartilhar com todas as outras pessoas, realizar uma grande festa ou convidar uma comunidade vizinha para comemorar, até que todo o alimento seja comido. Esse modo é certamente mais divertido que medir quilos de comida e calcular qual porcentagem cada um merece.

No caso dos ociosos, mesmo se o valor dos presentes não é calculado, nem é mantido um balancete, é notado quando alguém se recusa constantemente a compartilhar ou a contribuir com o grupo, violando os costumes da sociedade e o senso de ajuda mútua. Gradualmente, essas pessoas vão prejudicar suas relações e perder alguns dos melhores benefícios de viver em sociedade. Parece que, em todas as economias da dádiva conhecidas, não se recusava comida mesmo às pessoas mais ociosas – em completo contraste ao capitalismo –, mas alimentar alguns ociosos é um dreno insignificante dos recursos de uma sociedade, especialmente quando comparado à criação de fartura da elite voraz da nossa sociedade. E perder essa pequena quantidade de recursos é de longe preferível a perder nossa compaixão e deixar as pessoas morrerem de fome. Em casos mais extremos, se os membros dessa sociedade são mais agressivamente parasitários, tentando monopolizar recursos ou forçar outras pessoas a trabalhar para eles – em outras palavras, se agem como capitalistas –, eles podem ser ostracizados ou mesmo expulsos da sociedade.

Algumas sociedades sem Estado têm chefes que desempenham papéis rituais, geralmente relacionados a dar presentes e espalhar os recursos. Na realidade, o termo “chefe” pode ser enganoso, porque houve muitas sociedades humanas diferentes que contaram com o que o Ocidente classifica como “chefes”, e em cada sociedade o papel significava alguma coisa um pouco diferente. Em muitas sociedades, os chefes não possuíam poderes coercitivos: a sua responsabilidade era mediar disputas ou conduzir rituais e esperava-se que eles fossem mais generosos do que todas as outras pessoas. No final, eles trabalhavam mais e tinham menos riqueza pessoal que os outros. Um estudo constatou que uma razão comum para depor ou expulsar um chefe era se ele não era considerado generoso o suficiente.[2.3]

As pessoas não são naturalmente competitivas?

Na sociedade ocidental, a competição é tão normal que não surpreende que se a considere como o modo natural das relações humanas. Desde a juventude, somos ensinados que temos que ser melhores que todos as outras pessoas para valer alguma coisa. As corporações justificam as demissões de trabalhadores, privando-os de sustento e assistência médica alegando que precisam “permanecer competitivas”. Felizmente, as coisas não precisam ser assim. O capitalismo industrial é apenas uma das milhares de formas de organização social que os humanos desenvolveram e, com sorte, não será a última. Obviamente, os humanos podem ter um comportamento competitivo, mas não é difícil notar como a nossa sociedade o estimula e reprime o comportamento cooperativo. Incontáveis sociedades ao redor do mundo desenvolveram formas cooperativas de viver que contrastam bastante com as normas de trabalho no capitalismo. Atualmente, quase todas essas sociedades foram integradas no sistema capitalista através do colonialismo, da escravidão, da guerra, ou da destruição de seu meio ambiente, mas há muitos relatos que permanecem para documentar a grande diversidade de sociedades que existiram ao longo da história.

Os Mbuti, caçadores-coletores da Floresta de Ituri, na África Central, viviam tradicionalmente sem governo. Relatos de antigos historiadores sugerem que eles viviam como caçadores-coletores sem Estado durante o período dos faraós no Egito, e, de acordo com os próprios Mbuti, sempre viveram desse modo. Contrariamente ao retrato comum feito por pessoas de fora, grupos como os Mbuti não são isolados ou primitivos. Na realidade, eles têm interações frequentes com povos Bantu sedentários das cercanias da floresta e tiveram muitas oportunidades de ver como são as sociedades supostamente avançadas. Durante centenas ou milhares de anos atrás, os Mbuti desenvolveram relações de troca e dádiva com agricultores próximos, enquanto conservavam sua identidade como “os filhos da floresta”.

Atualmente, alguns milhares de Mbuti ainda vivem na Floresta de Ituri e negociam relações dinâmicas com o mundo dos aldeões, enquanto lutam para preservar seu modo de vida tradicional. Muitos outros Mbuti vivem em acampamentos na beira das novas estradas. A mineração de coltan[2.4], matéria-prima de celulares, é um incentivo financeiro chave para a guerra civil e a destruição do habitat que está devastando a região e matando centenas de milhares de seus habitantes. Os governos de Congo, Ruanda e Uganda querem controlar essa indústria bilionária que produz primariamente para os EUA e a Europa, enquanto mineiros à procura de emprego vêm de toda a África para acampar na região. O desmatamento, a explosão populacional e o crescimento da caça para prover carne para os soldados e mineiros exauriram a vida selvagem local. Sem comida e competindo pelo controle territorial, soldados e mineiros promoveram atrocidades, como canibalismo, contra os Mbuti. Alguns Mbuti estão exigindo atualmente que uma corte internacional julgue essas violações.

Europeus que viajavam pela África Central durante a sua colonização do continente impuseram o seu próprio modelo moral aos Mbuti. Como eles encontraram os Mbuti nas vilas dos agricultores Bantu nas cercanias da Floresta de Ituri, eles supuseram que os Mbuti constituíam uma classe servil primitiva. Na década de 1950, os Mbuti convidaram o antropólogo Colin Turnbull para viver com eles. Eles toleraram as suas perguntas rudes e ignorantes e ensinaram-lhe sobre a sua cultura. As histórias que ele relata descrevem uma sociedade bastante distante do que uma visão de mundo ocidental considera possível. Enquanto antropólogos – e depois anarquistas – ocidentais começavam a debater sobre o que os Mbuti “significavam” para suas respectivas teorias, instituições econômicas globais estavam elaborando um processo de genocídio que ameaça destruir os Mbuti como povo. Mesmo assim, vários escritores ocidentais já idealizaram ou rebaixaram os Mbuti para produzir argumentos a favor ou contra o primitivismo, o veganismo, o feminismo e outras pautas políticas.

Portanto, talvez a lição mais importante a ser tirada da história dos Mbuti não seja que a anarquia – uma sociedade cooperativa, livre e relativamente saudável – é possível, mas que sociedades livres não são possíveis enquanto os governos tentam esmagar qualquer rastro de independência, as corporações financiam um genocídio para fabricar celulares e as pessoas supostamente solidárias estão mais interessadas em escrever etnografias do que em lutar.

Na perspectiva de Turnbull, os Mbuti eram resolutamente igualitários e muitas das maneiras pelas quais eles organizavam a sua sociedade reduziam a competição e promoviam a cooperação entre seus membros. Coletar comida era um afazer comunitário e, quando caçavam, geralmente o bando inteiro ia junto. Uma metade vasculhava os arbustos, indo em direção à outra metade, que a esperava com redes para pegar o animal que aparecesse. Uma caça bem sucedida era resultado do trabalho coletivo e toda a comunidade compartilhava a presa.

As crianças Mbuti tinham um alto grau de autonomia e passavam a maior parte de seus dias em uma parte do acampamento fora do alcance dos adultos. Um jogo frequente consistia em um pequeno grupo de crianças escalar uma árvore jovem até que seu peso dobrasse-a até o chão. Idealmente, as crianças sairiam todas ao mesmo tempo e a árvore, flexível, retornaria à posição original. Assim, se uma criança não estivesse em sincronia e saísse muito tarde, ela seria lançada através das árvores e tomaria um bom susto. Esses jogos ensinam a harmonia de grupo, em vez da performance individual, e estabelecem uma forma inicial de socialização numa cultura de cooperação voluntária. Os jogos de guerra e a competição individualizada que caracterizam as brincadeiras ocidentais estabelecem uma forma notavelmente diferente de socialização.

Os Mbuti também desestimulavam a competição ou mesmo a excessiva distinção entre gêneros. Eles não usavam o gênero para pronomes ou palavras familiares – p. ex., ao invés de “filho/a”, falam “criança” –, exceto no caso dos pais, em que há uma diferença funcional entre quem dá à luz ou provê o leite e quem provê outras formas de cuidado. Um importante jogo ritual realizado pelos Mbuti adultos funcionava para acabar com a competição entre os gêneros. Conforme a descrição de Turnbull, o jogo inicia como uma partida de cabo de guerra, com mulheres puxando uma extremidade da corda ou cipó e os homens puxando a outra. Mas, assim que um lado começava a vencer, alguém desse lado corria para o outro lado, ao mesmo tempo mudando simbolicamente seu gênero e tornando-se membro do outro grupo. No final, os participantes caíam amontoados rindo, todos tendo mudado seu gênero várias vezes. Nenhum lado “vencia” e esse parecia ser o objetivo. A harmonia do grupo era restaurada.

Os Mbuti também viam conflitos ou “rumores” como um problema comum e uma ameaça à harmonia do grupo. Se os disputantes não conseguiam resolver as coisas por si mesmos ou com a ajuda de amigos, o bando inteiro realizava um importante ritual que geralmente durava a noite toda. Todas as pessoas reuniam-se para debater e, se o problema ainda não fosse resolvido, os jovens, que geralmente desempenhavam um papel de fomentadores de justiça na sociedade, percorriam o acampamento promovendo rebuliços enquanto tocavam uma corneta que soava como um elefante, simbolizando como o problema ameaçava a existência do bando inteiro. Em caso de uma disputa particularmente séria que tivesse rompido a harmonia do grupo, os jovens podiam dar uma expressão maior às suas frustrações quebrando o próprio acampamento, apagando fogueiras e derrubando casas. Enquanto isso, os adultos cantavam uma harmonia de duas vozes, construindo um senso de cooperação e comunidade.

Os Mbuti também passavam por um tipo de fissão e fusão ao longo do ano. Geralmente motivados por conflitos interpessoais, o bando se dividia em grupos menores e mais íntimos. As pessoas tinham a opção de se afastar das outras, ao invés de serem forçadas pela comunidade maior a acabar com seus problemas. Depois de viajarem e viverem separadamente por um tempo, os grupos menores voltavam a se reunir, depois que os conflitos esfriavam. Eventualmente o grupo inteiro reunia-se e o processo reiniciava. Parece que os Mbuti sincronizavam essa flutuação social com suas atividades econômicas, de modo que o seu período de vivência conjunta como bando coincidia com o período em que formas específicas de caça e coleta requeriam a cooperação de um grupo maior. Já o período dos grupos pequenos e separados coincidia com a época do ano em que os alimentos eram melhor colhidos por grupos menores espalhados pela floresta.

Infelizmente para nós, as estruturas econômicas, políticas ou sociais da sociedade ocidental não tendem à cooperação. Quando nossos empregos e nosso status social dependem de sermos melhores que os nossos iguais, com os “perdedores” sendo demitidos ou ostracizados sem nenhuma consideração por quanto isso afeta a sua dignidade ou a sua capacidade de sustentarem a si mesmos, não é surpreendente que haja mais comportamentos competitivos que cooperativos. Mas a capacidade de viver cooperativamente não está perdida para as pessoas que vivem sob as influências destrutivas do Estado e do capitalismo. A cooperação social não está restrita a sociedades como a dos Mbuti, que habitam um dos poucos lugares autônomos remanescentes no mundo. Viver cooperativamente é uma possibilidade para nós agora mesmo.

Nesta mesma década [de 2000], em uma das sociedades mais individualistas e competitivas na história humana, a autoridade estatal colapsou por um tempo em uma cidade. Mesmo nesse período de catástrofe, com centenas de pessoas morrendo e com extrema limitação de recursos de sobrevivência, estranhos reuniram-se para se auxiliarem, com um espírito de ajuda mútua. A cidade em questão é Nova Orleans, depois de ser atingida pelo Furacão Katrina, em 2005. Inicialmente, a mídia corporativa difundiu histórias racistas de selvagerias cometidas pelos sobreviventes negros, com a polícia e as tropas da guarda nacional protagonizando resgates heroicos enquanto combatiam bandos de saqueadores. Mais tarde, admitiu-se que essas histórias eram falsas. Na realidade, a vasta maioria dos resgates foi realizada não pela polícia ou por profissionais, mas pelos habitantes comuns de Nova Orleans, geralmente desafiando as ordens das autoridades.[2.5] A polícia, enquanto isso, estava matando pessoas que salvavam água potável, fraldas e outros suprimentos de mercados abandonados, suprimentos que, do contrário, seriam jogados fora, pois a contaminação pela água da enchente os teria tornado inutilizáveis.

Nova Orleans não é atípica: qualquer pessoa pode aprender comportamentos cooperativos quando tiver o desejo ou a necessidade de fazê-lo. Estudos sociológicos constataram que, em quase todos os desastres naturais, a cooperação e a solidariedade entre as pessoas crescem, e são as pessoas comuns – não os governos – que fazem voluntariamente a maior parte do trabalho, efetuando resgates e protegendo-se mutuamente durante a crise.[2.6]

A espécie humana não foi sempre patriarcal?

Uma das formas mais antigas de opressão e hierarquia é o patriarcado: a divisão dos humanos em dois papéis rígidos de gênero e a dominação dos homens sobre as mulheres. Mas o patriarcado não é natural ou universal. Muitas sociedades têm mais de duas categorias de gênero e algumas permitem que seus membros mudem de gênero. Algumas inclusive possuem papéis espirituais respeitados para aqueles que não se encaixam em nenhum dos gêneros primários. A maior parte da arte pré-histórica retrata pessoas que ou não eram de um gênero determinado ou que tinham combinações ambíguas e exageradas de traços masculinos e femininos. Nessas sociedades, o gênero era fluido. É uma espécie de engodo histórico impor a noção de dois gêneros fixos e idealizados que consideramos natural atualmente. Falando em termos estritamente físicos, muitas pessoas perfeitamente saudáveis são intersexuais, com características fisiológicas masculinas e femininas, mostrando que essas categorias existem num continuum fluido. Não faz sentido que pessoas que não se encaixam facilmente em uma categoria sintam-se como se fossem não naturais.

Mesmo em nossa sociedade patriarcal, na qual todas as pessoas são condicionadas a acreditar que o patriarcado é natural, sempre houve resistência. Boa parte da resistência de pessoas queer e pessoas transgênero assume uma forma horizontal. Uma organização em Nova Iorque, a FIERCE![2.7], envolve um largo espectro de pessoas excluídas e oprimidas pelo patriarcado: transgêneros, lésbicas, gays, bissexuais, dois-espíritos (uma categoria respeitada em muitas sociedades ameríndias para pessoas que não se identificam como homens ou mulheres), queers e questionadoras (pessoas que não se decidiram sobre sua sexualidade ou sua identidade de gênero, ou que não se sentem confortáveis em nenhuma categoria). A FIERCE! foi fundada em 2000, na maior parte por jovens negros, com participação anarquista. Sua ética horizontal de “organização por nós e para nós” une ativamente a resistência ao patriarcado, à transfobia e à homofobia com a resistência ao capitalismo e ao racismo. Suas ações envolvem protestos contra a brutalidade policial contra jovens transgênero e queer; educação através de documentários, zines e internet; e organização por uma boa assistência médica e contra a gentrificação, particularmente quando esta ameaça destruir importantes espaços culturais e sociais para a juventude queer.

Quando da escrita deste livro, a FIERCE! estava particularmente ativa em uma campanha para impedir a gentrificação do Christopher Street Pier, que tem sido um dos únicos espaços públicos seguros para a juventude queer de baixa renda e negra encontrar-se e construir uma comunidade. Desde 2001, a cidade tem tentado aumentar o píer, ao mesmo tempo em que o assédio policial e as prisões se multiplicaram. A campanha da FIERCE! ajudou a constituir um ponto de encontro para aquelxs que querem conservar o espaço e transformou o debate público, de modo que outras vozes são ouvidas, além daquelas do governo e dos donos de negócios. As atitudes da nossa sociedade sobre gênero mudaram radicalmente nos últimos séculos por causa de grupos como esse, que realizam ações diretas para criar o que se diz ser impossível.

A resistência ao patriarcado remonta a tanto tempo quanto quisermos analisar. Nos “bons velhos tempos”, quando os papéis de gênero supostamente eram aceitos como naturais e não eram desafiados, podemos encontrar histórias de utopia que contradizem a hipótese de que o patriarcado é natural e a noção de que o progresso civilizado está nos levando lentamente de nossas origens brutais rumo a sensibilidades mais iluminadas. Na realidade, a ideia de liberdade total sempre desempenhou um papel na história humana.

No século XVII, europeus estavam indo para a América do Norte por várias razões, construindo novas colônias que exibiam um amplo espectro de características. Havia economias de plantations baseadas no trabalho escravo, colônias penais, redes de comércio que procuravam compelir os habitantes indígenas a produzir grandes quantidades de peles de animais, e utopias religiosas fundamentalistas baseadas no total genocídio da população nativa. Mas, assim como as colônias das plantations tinham suas revoltas de escravos, as colônias religiosas tinham seus hereges. Uma conhecida herege foi Anne Hutchinson. Uma anabatista que migrou para a Nova Inglaterra para fugir da perseguição religiosa no Velho Mundo, ela começou a promover encontros de mulheres em sua casa, grupos de discussão baseados na livre interpretação da Bíblia. À medida em que a popularidade desses encontros aumentou, os homens também começaram a participar. Anne ganhou apoio popular por suas ideias bem sustentadas, que se opunham à escravidão dos africanos e dos nativos americanos, criticavam a Igreja e insistiam que nascer mulher era uma bênção, não uma maldição.

Ela foi julgada pelos líderes religiosos da Colônia de Massachusetts Bay por blasfêmia, mas permaneceu firme em suas ideias. No inquérito a que foi submetida, foi chamada de instrumento do diabo; um ministro disse “você saiu do seu lugar, você prefere ser um marido a ser uma esposa, uma pregadora a uma ouvinte, e uma magistrada a uma súdita”. Depois de sua expulsão, Anne Hutchinson organizou um grupo, em 1637, para constituir um povoado, Pocasset. A instalação do povoado ocorreu intencionalmente perto de onde Roger Williams, um teólogo progressista, tinha fundado Providence Plantations, um povoado baseado na ideia de total igualdade e liberdade de consciência de todos os habitantes, com relações amistosas com a vizinhança indígena. Os povoados se tornariam, respectivamente, Portsmouth e Providence, em Rhode Island. Ambos juntaram-se para formar a Colônia de Rhode Island. Além disso, mantinham relações amigáveis com a nação indígena vizinha, os Narragansett; o povoado de Roger Williams foi presenteado com a terra em que se instalou, enquanto o grupo de Hutchinson negociou uma troca para comprar o seu terreno.

Inicialmente, Pocasset organizou-se através de conselhos eleitos e as pessoas recusavam ter um governante. O povoado reconheceu a igualdade entre sexos e o julgamento por júri, aboliu a pena de morte, as acusações de bruxaria, a prisão por dívida e a escravidão, além de ter garantido total liberdade religiosa. A segunda sinagoga da América do Norte foi construída na colônia de Rhode Island. Em 1651, um membro do grupo de Hutchinson conseguiu poder para fazer com que a administração britânica lhe concedesse o governo da colônia; entretanto, depois de dois anos, as outras pessoas do povoado o expulsaram numa mini-revolução. Depois desse incidente, Anne Hutchinson notou que suas crenças religiosas opunham-se à “magistratura” ou à autoridade governamental e diz-se que, em seus anos finais, ela desenvolveu uma filosofia político-religiosa muito semelhante ao individualismo anarquista. Pode-se dizer que Hutchinson e companheiros estavam à frente de seu tempo, mas em qualquer período histórico houve histórias de pessoas criando utopias, mulheres defendendo sua igualdade, leigos rejeitando o monopólio da verdade de seus líderes religiosos.

Fora da sociedade ocidental, podemos encontrar muitos exemplos de sociedades não patriarcais. Algumas sociedades sem Estado preservam intencionalmente a fluidez de gênero, como os Mbuti já descritos. Muitas sociedades aceitam gêneros fixos e a divisão de papéis entre homens e mulheres, mas procuram preservar a igualdade entre esses papéis. Algumas dessas sociedades permitem expressões transgêneras – indivíduos mudando seu gênero ou adotando uma identidade de gênero única para si. Em sociedades caçadoras-coletoras, “uma nítida e rígida divisão de trabalho entre os sexos não é universal (…) [e no caso de uma sociedade em particular,] virtualmente toda atividade de subsistência pode ser, e geralmente é, realizada por homens ou mulheres”.[2.8]

Os Igbo da África ocidental tinham esferas de atividade separadas para homens e mulheres. As mulheres eram responsáveis por certas tarefas econômicas e os homens por outras, enquanto cada grupo mantinha poder autônomo em sua esfera. Essas esferas indicavam quem produzia quais bens, domesticava que animais e quais responsabilidades assumia para plantar e comercializar. Caso um homem interferisse na esfera de atividade feminina ou maltratasse sua esposa, as mulheres promoviam um ritual de solidariedade coletiva que preservava o equilíbrio e punia o ofensor, chamado “sentar num homem”. Todas as mulheres reuniam-se fora da casa do homem, gritando para ele e insultando-o para causar-lhe vergonha. Se ele não saísse para se desculpar, a multidão de mulheres podia destruir a cerca ao redor de sua casa e as os locais de armazenamento de mantimentos próximos dela. Se a ofensa dele era grave o suficiente, as mulheres podiam entrar na sua casa, arrastá-lo para fora e espancá-lo. Quando os britânicos colonizaram os Igbo, eles reconheceram as instituições e os papéis masculinos, mas ignoraram ou estavam cegos à esfera correspondente de vida social feminina. Quando as mulheres Igbo reagiram à indecência britânica com a tradicional prática de “sentar num homem”, os britânicos, possivelmente tomando a movimentação por uma insurreição feminina, abriram fogo, colocando um fim no ritual de equilíbrio de gêneros e cimentando a instituição do patriarcado na sociedade que colonizaram.[2.9]

Os Haudennosaunne, chamados iroqueses pelos europeus, são uma sociedade matrilinear igualitária do leste da América do Norte. Eles usam tradicionalmente vários meios para equilibrar as relações de gênero. Enquanto a civilização europeia utiliza a divisão de gênero para socializar as pessoas em rígidas regras e para oprimir mulheres, pessoas queer e pessoas transgênero, a divisão de gênero do trabalho e dos papéis sociais entre os Haudennosaunne funciona para preservar um equilíbrio, concedendo a cada grupo nichos e poderes autônomos, permitindo um maior grau de movimentação entre gêneros do que é considerado possível na sociedade ocidental. Por centenas de anos, os Haudennosaune organizaram-se em várias nações usando uma estrutura federativa e, a cada nível organizacional, havia conselhos de mulheres e conselhos de homens. No que poderia ser chamado de nível nacional, que envolvia questões de guerra e paz, o conselho dos homens tomava as decisões, embora as mulheres tivessem poder de veto. No nível local, as mulheres possuíam mais influência. Considerava-se que a unidade sócio-econômica básica, a casa comunal, pertencia às mulheres, enquanto os homens não tinham nenhum conselho nesse nível. Quando um homem casava-se com uma mulher, ele se mudava para a casa dela. Qualquer homem que não se comportasse podia ser expulso da casa comunal pelas mulheres.

A sociedade ocidental tipicamente vê os níveis “mais altos” de organização como mais importantes e poderosos – inclusive a linguagem que usamos reflete isso. Mas, como os Haudennosaune eram igualitários e descentralizados, os níveis mais baixos ou locais de organização, onde as mulheres tinham mais influência, eram mais importantes para a vida diária. Na realidade, quando não havia conflitos entre as diferentes nações, o conselho mais alto podia ficar um longo tempo sem encontros. Entretanto, a sua sociedade não era “matriarcal”: os homens não eram explorados ou diminuídos da maneira como as mulheres o são em sociedades patriarcais. Pelo contrário, cada grupo tinha uma medida de autonomia e meios para preservar um equilíbrio. Apesar de séculos de colonização por uma cultura patriarcal, muitos grupos Haudennosaune permanecem com suas relações de gênero tradicionais e ainda são um forte contraste à cultura de gênero opressiva do Canadá e dos Estados Unidos.

As pessoas não são naturalmente inclinadas para a guerra?

Filósofos políticos como Thomas Hobbes e psicólogos como Sigmund Freud supunham que a civilização e o governo têm um efeito moderador no que eles viam como tendência para a guerra e instintos brutais das pessoas. Representações da cultura pop das origens humanas, como as primeiras cenas do filme 2001: Uma odisseia no espaço ou as ilustrações nos livros infantis de homens das cavernas hiper-masculinizados lutando contra mamutes ou tigres dente-de-sabre fornecem uma imagem que pode ser tão convincente quanto a memória: os primeiros humanos tinham que lutar entre si e contra a natureza para sobreviver. Mas, se a vida humana primitiva tivesse sido tão sangrenta e guerreira como a nossa mitologia a retrata, os humanos simplesmente teriam se extinguido. Qualquer espécie com um ciclo reprodutivo de quinze a vinte anos e que geralmente só pode produzir uma prole por vez simplesmente não consegue sobreviver se a sua possibilidade de morrer em um dado ano for maior que 1 ou 2%. Teria sido matematicamente impossível para o Homo sapiens sobreviver àquela batalha imaginária contra a natureza e contra os outros humanos.

Os anarquistas têm defendido há tempos que a guerra é um produto do Estado. Algumas pesquisas antropológicas produziram relatos de sociedades pacíficas sem Estado, e de guerras entre sociedades sem Estado que não eram mais que um esporte bruto, com poucas mortes.[2.10] Naturalmente, o Estado encontrou seus defensores, que procuravam provar que a guerra era inevitável e portanto não era culpa de estruturas sociais opressivas. Em um estudo monumental, War Before Civilization, Lawrence Keeley mostrou que, de uma amostra extensa de sociedades sem Estado, um grande número empenhava-se em ofensivas militares e uma grande maioria empenhava-se ao menos em guerras de defesa. Somente uma pequena minoria nunca tinha feito guerras, e poucas fugiram de suas terras natais para evitar a guerra. Keeley esforçava-se para mostrar que as pessoas eram inclinadas para a guerra, mesmo que seus resultados mostrassem que elas podiam escolher entre uma grande variedade de comportamentos que envolviam tender para a guerra, evitar a guerra mas ainda assim se defender de agressões, não conhecer a guerra ou ter tanta aversão a guerras que preferiam fugir da sua terra natal a lutar. Contrariamente ao título de seu trabalho, Keeley estava mostrando a guerra depois e não antes da “civilização”. Uma grande parte dos dados sobre sociedades não ocidentais vieram de exploradores, missionários, soldados, comerciantes e antropólogos que conduziam as ondas de colonização pelo mundo, levando conflitos fundiários e tensões étnicas a escalas antes inimagináveis através da escravidão em massa, do genocídio, da invasão, do evangelismo e da introdução de novas armas, doenças e substâncias viciantes. Também é desnecessário dizer que a influência civilizadora dos colonizadores gerou guerras colaterais.

O estudo de Keeley caracteriza como sociedades inclinadas para a guerra aquelas que foram pacíficas por cem anos, mas foram expulsas de sua terras e, dadas as opções de morrer ou de invadir o território de seus vizinhos para ter espaço para viver, escolheram a segunda. O fato de que, sob essas condições de colonialismo global, genocídio e escravização, algumas sociedades permanecerem pacíficas prova que, se as pessoas realmente querem, elas podem ser pacíficas mesmo na pior das circunstâncias. Sem falar que, nessas circunstâncias, não há nada de errado em revidar as agressões!

A guerra pode ser o resultado do comportamento humano natural, mas a paz também o é. A violência certamente existia antes do Estado, mas o Estado levou a guerra e a dominação a níveis sem precedentes. Como indicou um de seus maiores proponentes, “a guerra é a saúde do Estado”. Não é um engano que as instituições de poder em nossa civilização – mídia, academia, governo, religiões – tenham exagerado a prevalência da guerra e subestimado a possibilidade de paz. Essas instituições ganham poder com guerras e ocupações; elas tiram proveito delas e as tentativas de criar uma sociedade mais pacífica ameaçam a sua existência.

Uma dessas tentativas é o Acampamento de Paz de Faslane, uma ocupação existente ao lado da Base Naval de Faslane, na Escócia, que abriga mísseis nucleares Trident. O Acampamento da Paz é uma expressão popular do desejo de uma sociedade pacífica organizada em linhas anarquistas e socialistas. O Acampamento de Paz de Faslane existe continuamente desde junho de 1982 e hoje está bem estabelecido, com água quente e banheiros, cozinha e quartos comunais, doze trailers de habitantes permanentes e espaço para visitantes. Esse acampamento serve como uma área de base para protestos nos quais as pessoas bloqueiam as rodovias, fecham os portões e inclusive entram na base para promoverem sabotagens. Estimulados pelo Acampamento da Paz, uma difundida oposição popular à base naval e alguns dos partidos políticos da Escócia reivindicaram o fechamento da base. Em setembro de 1981, um grupo de mulheres galesas formaram um acampamento similar, o Acampamento da Paz de Mulheres Greenham Common, ao lado de uma base da Força Aérea Britânica que abriga mísseis de cruzeiro em Berkshire, na Inglaterra. As mulheres foram expulsas à força em 1984, mas reocuparam imediatamente o local e, em 1991, os últimos mísseis foram removidos. O acampamento permaneceu até 2000, quando elas ganharam permissão para montar um memorial comemorativo.

Esses acampamentos da paz possuem alguma semelhança com a Comuna Vida e Trabalho, a maior das comunas tolstoianas. Tratava-se de uma comuna agrícola estabelecida nas cercanias de Moscou, em 1921, seguindo os ensinamentos pacifistas e anarquistas de Liev Tolstoi. Seus membros, quase mil em seu auge, estavam numa disputa com o governo soviético por se recusarem a realizar o serviço militar. Por essa razão, a comuna foi fechada pelas autoridades em 1930. Entretanto, durante sua existência, os participantes criaram uma grande comunidade auto-organizada em paz e resistência.

O movimento Trabalhador Católico [Catholic Worker] teve início em 1933, nos Estados Unidos, como resposta à Grande Depressão, mas, atualmente, muitas das 185 comunidades do movimento pela América do Norte e Europa focam na oposição ao militarismo do governo e na criação de fundações para uma sociedade pacífica. Inseparável de sua oposição à guerra é o seu comprometimento com a justiça social, manifesto em restaurantes populares, albergues e outros projetos que visam a ajudar os mais pobres. Apesar de cristão, o movimento geralmente critica a hierarquia da Igreja e promove a tolerância religiosa. Ele também é anticapitalista, pregando pobreza voluntária e “comunitarismo distributivista; autossuficiência através da agricultura, de ofícios variados e da tecnologia apropriada; uma sociedade radicalmente nova onde as pessoas confiarão nos frutos do seu próprio trabalho e labuta; associações mutualistas e um senso de justiça para resolver conflitos.”[2.11] Alguns integrantes do movimento denominam-se inclusive anarquistas cristãos. Comunidades dos Trabalhadores Católicos, que funcionam como comunas ou centros de assistência aos pobres, geralmente servem como base para protestos e ações diretas contra o Exército. Os Trabalhadores Católicos entraram em bases militares para sabotar o armamento, embora tenham esperado a chegada da polícia para serem intencionalmente presos como mais uma ação de protesto. Algumas de suas comunidades também abrigam vítimas de guerra, como sobreviventes de tortura que fogem dos resultados do imperialismo norte-americano em outros países.

O quão pacífica poderia ser uma sociedade que criássemos superando a beligerância de governos e promovendo novas normas em nossa cultura? Os agricultores Semai, na Malásia, oferecem uma indicação. A sua taxa de homicídios de é apenas 0,56/100.000 por ano, comparado com 0,86 na Noruega, 6,26 nos EUA e 20,2 na Rússia.[2.12] Isso pode estar relacionado à sua estratégia de criação dos filhos: tradicionalmente os Semai não batem em seus filhos e o respeito à autonomia das crianças é um valor comum na sua sociedade. Uma das poucas ocasiões em que um adulto intervém é quando a criança perde a calma e briga com outra; nesse caso, adultos próximos pegam as crianças e as levam para suas respectivas casas. As maiores forças sociais que sustentam a pacificidade dos Semai parecem ser uma ênfase em aprender o autocontrole e a grande importância conferida à opinião pública nessa sociedade cooperativa.

De acordo com Robert Dentan, um antropólogo ocidental que viveu com eles, “há pouca violência entre os Semai. A violência, na realidade, parece aterrorizar os Semai. Um Semai não confronta a força com força, mas com passividade ou fuga. Entretanto, não há um modo institucionalizado de evitar a violência – nenhum controle social, nem polícia ou tribunais. De algum modo, um Semai aprende automaticamente a sempre manter um domínio rígido sobre seus impulsos agressivos”[2.13]. Claramente, a guerra não é uma inevitabilidade e certamente não é uma necessidade humana: mais que isso, é uma consequência de arranjos políticos, sociais e econômicos, arranjos esses que são modelados por nós.

A dominação e a autoridade não são naturais?

Atualmente está mais difícil construir justificativas ideológicas para o Estado. Um massivo conjunto de pesquisas demonstra que muitas sociedades humanas foram firmemente igualitárias e que, mesmo dentro do capitalismo, muitas pessoas continuam a formar redes e comunidades igualitárias. Tentando reconciliar isso com sua visão de que a evolução é uma questão de competição feroz, alguns cientistas propuseram uma “síndrome humana igualitária”, teorizando que os humanos evoluíram para viver em grupos unidos e homogêneos nos quais a transmissão dos genes de seus membros não era assegurada pela sobrevivência do indivíduo, mas pela sobrevivência do grupo.

De acordo com essa teoria, cooperação e igualitarismo prevaleciam dentro desses grupos porque estava no interesse genético de todos que o grupo sobrevivesse. A competição genética ocorria entre diferentes grupos e aqueles que cuidavam melhor de seus membros eram os que transmitiam seus genes. A competição genética direta entre indivíduos era diminuída pela competição entre diferentes grupos, que empregavam diferentes estratégias sociais; desse modo, os humanos desenvolveram várias habilidades sociais que permitiram uma maior cooperação. Isso explicaria por que, pela maior parte da existência humana, nós vivemos em sociedades com pouca ou nenhuma hierarquia, até que certos desenvolvimentos tecnológicos permitiram que algumas sociedades se estratificassem e dominassem outras.

Isso não é dizer que a dominação e a autoridade eram não-naturais e que a tecnologia foi o fruto proibido que corrompeu uma humanidade inocente. Na realidade, algumas sociedades caçadoras-coletoras eram tão patriarcais que praticavam estupro grupal como forma de punição contra as mulheres, enquanto algumas sociedades com agricultura e ferramentas de metal eram fortemente igualitárias. Alguns dos povos do Pacífico Noroeste da América do Norte eram caçadores-coletores sedentários e tinham uma sociedade altamente estratificada com uma classe de escravos. Na Austrália, grupos nômades caçadores-coletores eram dominados por anciãos homens; os homens mais velhos podiam ter várias esposas, os mais novos não tinham nenhuma e as mulheres eram evidentemente distribuídas como propriedade social.[2.14]

Os humanos são capazes de comportamento tanto autoritário quanto antiautoritário. Sociedades horizontais que não eram intencionalmente antiautoritárias poderiam ter desenvolvido facilmente hierarquias coercitivas quando novas tecnologias tornavam isso possível, e, mesmo sem tanta tecnologia, elas podiam tornar um inferno a vida de grupos considerados inferiores. Parece que as formas mais comuns de desigualdade entre sociedades parcialmente igualitárias eram a discriminação por gênero e idade, que podia habituar uma sociedade à desigualdade e criar o protótipo de uma estrutura de poder – governada por anciãos homens. Essa estrutura de poder podia tornar-se mais poderosa ao longo do tempo com o desenvolvimento de ferramentas de metal e armas, excedentes, cidades etc.

O ponto, porém, é que essas formas de desigualdade não eram inevitáveis. Sociedades que desaprovavam comportamentos autoritários conscientemente evitaram a avanço da hierarquia. Na realidade, muitas sociedades abandonaram organizações centralizadas ou tecnologias que permitiam a dominação. Isso mostra que a história não é uma via de sentido único. Por exemplo, os berberes – ou Imazighen –, do norte da África, não constituíram sistemas políticos centralizados nos últimos séculos, mesmo quando outras sociedades ao redor o fizeram. “Estabelecer uma dinastia é quase impossível”, escreveu um comentarista, “devido ao fato de que o chefe enfrenta revoltas constantes que, afinal, acabam bem sucedidas e fazem o sistema retornar à ordem anárquica descentralizada”.[2.15]

Qual é o fator que permite que sociedades evitem a dominação e a autoridade coercitiva? Um estudo feito por Christopher Boehm, com dados de dezenas de sociedades em todos os continentes, envolvendo povos forrageadores, horticultores, agricultores e pastoris, concluiu que o fator comum é um desejo consciente de permanecer igualitário: uma cultura antiautoritária. “A causa primária e mais imediata do comportamento igualitário é uma determinação moral por parte dos atores principais dos grupos locais de que nenhum de seus membros deve poder dominar os outros”[2.16]. Mais que a cultura ser determinada por condições materiais, parece que a cultura molda as estruturas sociais que reproduzem as condições materiais de um povo.

Em certas situações, alguma forma de liderança é inevitável, já que algumas pessoas possuem mais habilidades ou uma personalidade mais carismática. Sociedades conscientemente igualitárias respondem a essas situações não institucionalizando a posição de líder, não concedendo ao líder qualquer privilégio especial ou ainda estimulando uma cultura que torna vergonhoso para aquela pessoa ostentar a sua liderança ou tentar ganhar poder sobre os outros. Além disso, as posições de liderança mudam de uma situação para outra, dependendo das habilidades necessitadas para a tarefa em questão. Os líderes durante uma caçada são diferentes dos líderes durante a construção de uma casa ou durante uma cerimônia. Se uma pessoa em papel de liderança tenta obter mais poder ou dominar seus pares, o resto do grupo emprega “mecanismos niveladores intencionais”: comportamentos que visam a manter o líder com os pés no chão. Por exemplo, entre muitas sociedades antiautoritárias caçadoras e coletoras, o caçador mais habilidoso em um bando é criticado e ridicularizado se é visto se gabando e usa seus talentos para alimentar seu ego, em vez de usá-los em benefício do grupo inteiro.

Se essas pressões sociais não funcionam, as sanções aumentam e, em muitas sociedades igualitárias, na instância final o líder incuravelmente autoritário é expulso ou morto muito antes de ser capaz de assumir poderes coercitivos. Essas “hierarquias de dominação reversa”, nas quais os líderes devem obedecer a vontade popular porque não têm poder para manter as suas posições de liderança sem apoio, apareceram em muitas sociedades diferentes e funcionaram por longos períodos de tempo. Algumas das sociedades igualitárias documentadas no levantamento de Boehm possuem um chefe ou um xamã que desempenha um papel ritual ou age como mediador imparcial em disputas; outras indicam um líder em tempos conturbados ou têm um chefe para a paz e um chefe para a guerra. Mas essas posições de liderança são não coercitivas, e, durante centenas de anos, não se tornaram papéis autoritários. Geralmente as pessoas que ocupam esses papéis veem-nos como uma responsabilidade social temporária que desejam abandonar rapidamente por causa do alto nível de críticas e de responsabilidade que enfrentam enquanto os ocupam.

A civilização europeia demonstrou historicamente um tolerância muito mais alta em relação ao autoritarismo do que as sociedades igualitárias descritas no levantamento. No entanto, enquanto os sistemas políticos e econômicos que se tornariam o Estado moderno e o capitalismo estavam se desenvolvendo na Europa, houve várias rebeliões que demonstraram que mesmo aí a autoridade era uma imposição. Uma das maiores rebeliões foi a Revolta Camponesa, na atual Alemanha e arredores. Entre 1524 e 1525, cerca de trezentos mil camponeses insurgentes, unidos a citadinos e parte da baixa nobreza, revoltaram-se contra os donos de terras e contra a hierarquia eclesiástica em uma guerra que deixou cerca de cem mil pessoas mortas pela Bavária, Saxônia, Turíngia, Suábia, Alsácia e parte do que hoje é Suíça e Áustria. Os príncipes e o clero do Sacro Império Romano-Germânico estavam aumentando constantemente as taxas e impostos para sustentar os crescentes custos administrativos e militares, ao passo que o governo tornava-se pesado demais. Os artesãos e trabalhadores das cidades foram afetados por esses impostos, mas os camponeses receberam o maior fardo. Para aumentar o seu poder e as suas rendas, os príncipes forçaram os camponeses livres à servidão e retomaram o direito romano, que instituía a propriedade privada da terra, um passo atrás em relação ao sistema feudal, em que a terra era uma custódia entre o camponês e o senhor que envolvia direitos e obrigações.

Enquanto isso, integrantes da velha hierarquia feudal, como a cavalaria e o clero, estavam tornando-se obsoletos e conflitavam com outros integrantes da classe dominante. A nova classe mercantil dos burgos, assim como muitos príncipes progressistas, se opunha aos privilégios do clero e à estrutura conservadora da Igreja Católica. Uma nova estrutura, menos centralizada, que pudesse basear o poder em conselhos nas cidades e vilas, como o sistema proposto por Martinho Lutero, permitiria que a nova classe política ascendesse.

Nos anos imediatamente precedentes à guerra, vários profetas anabatistas começaram a viajar pela região, defendendo ideias revolucionárias contra a autoridade política, contra a doutrina eclesiástica e inclusive contra as reformas de Lutero. Entre essas pessoas estavam Thomas Dreschel, Nicolas Storch, Mark Thomas Stübner, e, mais notavelmente, Thomas Müntzer. Alguns deles defendiam a liberdade religiosa total, o fim do batismo não voluntário e a abolição do governo na Terra. Não é preciso dizer que eles foram perseguidos por autoridades católicas e por apoiadores de Lutero e banidos de muitas cidades, mas, mesmo assim, continuaram a viajar pela Boêmia, Bavária e Suíça, ganhando apoiadores e dando combustível à rebeldia camponesa.

Em 1524, camponeses e trabalhadores urbanos reuniram-se na região da Floresta Negra, na Alemanha, e redigiram os Doze Artigos; o movimento criado espalhou-se rapidamente. Os artigos, com referência bíblicas usadas como justificação, pediam a abolição da servidão e a liberdade para todas as pessoas; o poder municipal para eleger e derrubar pregadores; a abolição de taxas no gado e nas heranças; o fim do privilégio da nobreza de aumentar os impostos arbitrariamente; o acesso livre a água, caça, pesca e às florestas; e a restauração das terras comunais expropriadas pela nobreza. Outro texto que foi impresso e que circulou em quantidade massiva pelas mãos dos insurgentes foi o Bundesordnung, a ordem federal, que expunha um modelo de ordem social baseado em municipalidades federadas. Integrantes menos letrados do movimento eram ainda mais radicais, como se julga por suas ações e pelo folclore a que deram origem; o seu objetivo era limpar a nobreza da face da Terra e instituir uma utopia mística.

A tensão social cresceu durante aquele ano, enquanto as autoridades tentavam evitar uma rebelião suprimindo encontros rurais como festivais populares e casamentos. Em agosto de 1524, o conflito finalmente estourou em Stühlingen, na região da Floresta Negra. Uma condessa exigiu que os camponeses lhe entregassem uma colheita especial em um feriado religioso. Ao invés disso, os camponeses rejeitaram-se a pagar todos os impostos e formaram um exército de mil e duzentas pessoas, sob a liderança de um antigo mercenário, Hans Müller. Marchando até a cidade de Waldshut, receberam o apoio dos citadinos e avançaram sobre o castelo de Stühlingen, sitiando-o. Percebendo que precisariam de algum tipo de estrutura militar, decidiram eleger seus próprios capitães, sargentos e cabos. Em setembro, defenderam-se de um exército dos Habsburgo em uma batalha sem vencedores e posteriormente recusaram-se a largar as armas e pedir perdão quando solicitados a fazê-lo. Naquele outono, greves camponesas, recusas ao pagamento do dízimo e rebeliões estouraram pela região à medida em que os camponeses expandiam sua política das queixas individuais para uma rejeição unificada do sistema feudal como um todo.

Com a chegada da primavera de 1525 – e, consequentemente, com o fim do frio –, as lutas voltaram com ferocidade. Os exércitos camponeses tomaram cidades e executaram um grande número de integrantes do clero e da nobreza. Porém, em fevereiro, a Liga Suábia, em aliança com a nobreza e o clero da região, alcançou uma vitória na Itália, onde esteve lutando em nome de Carlos V, o então imperador do Sacro Império, e pôde trazer as tropas para casa, usando-as para esmagar as revoltas. Enquanto isso, Martinho Lutero, os habitantes dos burgos e os príncipes progressistas voltaram atrás no seu apoio e passaram a defender a aniquilação dos camponeses revolucionários; eles queriam reformar o sistema, não o destruir, e o levante já tinha desestabilizado o suficiente a estrutura de poder. Finalmente, em 15 de maio de 1525, o principal exército camponês foi derrotado em Frankenhausen; Müntzer e outros líderes influentes foram capturados e executados e a rebelião foi suprimida. Entretanto, durante os anos seguintes, o movimento anabatista espalhou-se por Alemanha, Suíça e Países Baixos e as revoltas camponesas continuaram a irromper na esperança de que um dia a Igreja e o Estado seriam destruídos definitivamente.

O capitalismo e os modernos Estados democráticos obtiveram sucesso em se estabelecer nos séculos seguintes, mas foram sempre assombrados pelo espectro de uma rebelião vinda de baixo. Dentro de sociedades com Estado, a habilidade de organizar-se sem hierarquias existe ainda hoje, e essa possibilidade permanece viva para criar culturas antiautoritárias que consigam limitar os poderes de líderes em potencial. De modo muito apropriado, boa parte da resistência contra a autoridade global é organizada horizontalmente. O movimento mundial antiglobalização surgiu em grande medida a partir da resistência dos zapatistas no México, dos autonomistas e anarquistas na Europa, de agricultores e trabalhadores na Coreia e de rebeliões populares contra instituições financeiras como o Fundo Monetário Internacional (FMI) que ocorreram pelo mundo inteiro, da África do Sul à Índia. Os zapatistas e os autonomistas, especialmente, são marcados por suas culturas antiautoritárias, uma quebra pronunciada em relação à hierarquia dos marxistas-leninistas que dominaram as lutas internacionais em gerações anteriores.

O movimento antiglobalização provou ser uma força global em junho de 1999, quando centenas de milhares de pessoas pelo mundo inteiro – de Londres, na Inglaterra, a Port Harcourt, na Nigéria – tomaram as ruas no Carnaval Contra o Capitalismo, ou simplesmente J18. Em novembro daquele ano, participantes desse mesmo movimento chocaram o mundo ao evitar a realização da reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle.

O aspecto mais notável dessa resistência global foi que ela foi criada horizontalmente por diversas organizações e grupos de afinidade, abrindo caminho para novas formas de consenso. Esse movimento não tinha líderes e fomentou uma oposição constante a todas as formas de autoridade que tentavam se desenvolver dentro de seus quadros. Aqueles que tentaram colocar-se permanentemente no papel de chefe ou de porta-voz caíram no ostracismo – ou levaram uma torta na cara, como a que a organizadora Medea Benjamin recebeu no Fórum Social dos EUA em 2007.

Sem liderança, com pouca organização formal, criticando constantemente as dinâmicas de poder internas e estudando formas mais igualitárias de organização, ativistas antiglobalização continuaram a alcançar mais vitórias táticas. Em Praga, em setembro de 2000, quinze mil manifestantes superaram a massiva presença policial e impediram que o último dia da reunião do FMI ocorresse. Em abril de 2001, na cidade de Quebec, manifestantes romperam a barreira policial ao redor de uma reunião que planejava a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA); a polícia respondeu jogando tanto gás lacrimogêneo pela cidade que a fumaça entrou no local onde as conversações ocorriam. Consequentemente, muitos moradores da cidade tornaram-se favoráveis aos manifestantes. A polícia aumentou a repressão para conter o crescente movimento antiglobalização, prendendo seiscentos manifestantes e ferindo três com tiros de arma de fogo na reunião da União Europeia na Suécia, em 2001; um mês depois, policiais assassinaram o anarquista Carlo Giuliani na reunião do G8 em Gênova, onde 150 mil pessoas reuniram-se para protestar contra a conferência dos oito governos mais poderosos do planeta.

A rede Dissent! [“Dissidência!”] surgiu do movimento europeu antiglobalização com a finalidade de organizar protestos maiores contra a reunião do G8 na Escócia, em 2005. A rede também organizou acampamentos de protesto e bloqueios contra a reunião do G8 na Alemanha, em 2007, e ajudou nas mobilizações contra a reunião do G8 no Japão, em 2008. Sem hierarquia ou uma liderança central, a rede facilitou a comunicação entre grupos de diferentes cidades e países e organizou encontros para discutir e decidir estratégias para ações posteriores contra o G8. As estratégias visavam a tornar possíveis abordagens diversas, de modo que os grupos de afinidade pudessem organizar ações de apoio mútuo dentro de uma base comum, ao invés de cumprir as ordens de uma organização central. Por exemplo, um plano para realizar um bloqueio podia definir uma estrada que levasse ao local da reunião como uma zona para as pessoas que preferiam táticas pacíficas e teatrais, enquanto as pessoas que queriam construir barricadas e defender-se da polícia concentravam-se em outro lugar. Esses encontros para traçar estratégias reuniam pessoas de vários países e tinham tradução para vários idiomas. Posteriormente, panfletos, anúncios, documentos e críticas eram traduzidos e colocados em um site na internet. As formas anarquistas de coordenação usadas pelos manifestantes provaram-se efetivas muitas vezes para conter e algumas vezes enganar a polícia e a mídia corporativa, que possuíam equipes de milhares de profissionais pagos, uma avançada infraestrutura de comunicação e vigilância, e muito mais recursos que os que o movimento tinha.

Cabe uma comparação entre o movimento antiglobalização e o movimento antiguerra que surgiu em resposta à chamada Guerra ao Terror. Depois do 11 de Setembro de 2001, os líderes mundiais passaram a visar a destruição do crescente movimento anticapitalista, identificando o terrorismo como o inimigo número um, recriando a narrativa do conflito global. Após o colapso do Bloco Soviético e o fim da Guerra Fria, era preciso uma nova guerra e uma nova oposição. As pessoas tinham que escolher entre dois poderes hierárquicos – uma democracia estatista ou terroristas fundamentalistas –, ao invés de poder optar entre dominação e liberdade. No contexto conservador que se seguiu ao 11 de Setembro, o movimento antiguerra acabou rapidamente dominado por grupos reformistas e hierarquizados. Apesar de o movimento ter começado no dia do maior protesto da história da humanidade, em 15 de fevereiro de 2003, os organizadores canalizaram deliberadamente a energia dos participantes para rituais rigidamente controlados que não desafiavam a máquina de guerra. Em dois anos, o movimento antiguerra tinha desperdiçado completamente o impulso construído durante a era antiglobalização.

O movimento antiguerra não conseguiu deter a ocupação do Iraque, ou mesmo sustentar a si mesmo, porque as pessoas não são nem empoderadas nem ficam satisfeitas somente participando passivamente de espetáculos simbólicos. Por outro lado, a efetividade das redes descentralizadas pode ser notada nas muitas vitórias do movimento antiglobalização: as reuniões de organizações interrompidas, o colapso da OMC e da ALCA, o dramático recuo do FMI e do Banco Mundial.[2.17] Esse movimento não hierárquico demonstrou que as pessoas desejam libertar-se da dominação e que elas têm a capacidade de cooperar de uma forma antiautoritária, mesmo em grupos grandes de desconhecidos de diferentes nações e culturas.

Assim, desde estudos científicos sobre a história humana até manifestantes fazendo a história hoje em dia, as evidências contradizem claramente a concepção estatista da natureza humana. A humanidade não vem de um ancestral brutalmente autoritário que reprimiu esses instintos dentro de um sistema competitivo baseado na obediência à autoridade; pelo contrário, ela não tem uma trajetória única. Os primórdios da espécie parecem ter sido caracterizados por um espectro que variava de um igualitarismo estrito a uma hierarquia de pequena escala, com uma distribuição de riqueza relativamente igual. Quando as hierarquias coercitivas apareceram, elas não se espalharam por todo lugar imediatamente e, geralmente, provocaram resistências significativas. Mesmo em sociedades governadas por estruturas autoritárias, a resistência é uma parte importante da realidade, assim como a dominação e a obediência. Mesmo que uma revolução global ainda não tenha obtido sucesso, temos muitos exemplos de sociedades pós-estatais das quais podemos tirar dicas para um futuro sem Estado.

Meio século atrás, o antropólogo Pierre Clastres concluiu que as sociedades sem Estado e antiautoritárias que estudou na América do Sul não eram os resquícios de uma era primeva, como os ocidentais acreditavam. Ele defendia que, pelo contrário, elas eram bastante conscientes da emergência possível do Estado e organizavam-se para evitar que isso ocorresse. Muitas delas eram sociedades pós-estatais fundadas por refugiados e rebeldes que tinham fugido ou sido expulsos de Estados mais antigos. De modo parecido, o anarquista Peter Lamborn Wilson levantou a hipótese de que sociedades antiautoritárias no leste da América do Norte formaram-se como resistências às sociedades dos Hopewell; pesquisas recentes parecem estar confirmando isso. O que outros interpretaram com etnias a-históricas eram os resultados finais de movimentos políticos.

Os cossacos que viviam nas fronteiras russas fornecem um outro exemplo deste fenômeno. As suas sociedades foram formadas por pessoas que fugiam da servidão e de outras inconveniências da opressão governamental. Eles aprenderam a montaria e desenvolveram impressionantes habilidades guerreiras para sobreviver no ambiente de fronteira e defender-se contra os Estados vizinhos. Eventualmente, eles acabaram sendo vistos como uma etnia distinta com uma autonomia privilegiada e o czar, a quem os seus ancestrais tinham renunciado, acabou querendo-os como aliados militares.

De acordo com o cientista político de Yale James C. Scott, todos os aspectos dessas sociedades – desde os vegetais cultivados até os seus sistemas de parentesco – podem ser considerados como estratégias sociais antiautoritárias. Scott documenta o povo das montanhas do sudeste asiático, uma aglomeração de sociedades que habitam um terreno acidentado onde as frágeis estruturas estatais enfrentam uma severa desvantagem. Por centenas de anos, esses povos resistiram à dominação estatal, no que envolveu frequentes guerras de conquista e extermínio levadas a cabo pelo Império Chinês, e períodos de ataques contínuos por parte de escravizadores. A diversidade cultural e linguística é exponencialmente maior nas montanhas do que nos arrozais dos vales controlados pelo Estado, onde domina uma cultura única. As pessoas das montanhas frequentemente falam várias línguas e pertencem a várias etnias. A sua organização social permite uma dispersão e uma posterior reunião fáceis e rápidas, permitindo que eles escapem de ataques e promovam táticas de guerrilha. Seus sistemas de parentesco baseiam-se em relações justapostas e redundantes que criam uma forte rede social e limitam a formalização do poder. As suas culturas orais são mais descentralizadas e flexíveis que as culturas letradas vizinhas nas quais o assentamento na palavra escrita fortalece a ortodoxia e dá mais poder àquelas pessoas com recursos para manter registros.

Esse povo das montanhas tem um interessante relacionamento com os Estados próximos. Os povos dos vales veem-nos como “ancestrais vivos”, ainda que eles sejam uma reação a essas mesmas civilizações do vale. Esse povo é pós-estatal, não pré-estatal, mas a ideologia do Estado rechaça o reconhecimento de uma categoria como “pós-estatal” porque o Estado supõe-se o auge do progresso. Integrantes das civilizações do vale frequentemente vão para as montanhas para viver mais livremente. Entretanto, as narrativas e mitologias das civilizações autoritárias como a chinesa, vietnamita e birmanesa, nos séculos anteriores à Segunda Guerra Mundial, pareciam ser planejadas para evitar que seus membros “voltassem” às civilizações que consideravam bárbaras. De acordo com alguns estudiosos, a Grande Muralha da China foi construída tanto para evitar que os chineses saíssem quanto para evitar que os bárbaros entrassem; mesmo assim, nas civilizações dos vales da China e do sudeste asiático, não havia mitos, línguas e rituais que pudessem explicar essas deserções culturais. A cultura era usada como outra muralha para manter essas frágeis civilizações unidas. Não é de admirar que os “bárbaros” tenham largado a escrita em favor de uma cultura oral mais descentralizada: sem registros escritos e uma classe especializada de escribas, a história tornava-se propriedade comum, e não uma ferramenta de doutrinação.

Longe de ser um avanço social que as pessoas aceitam prontamente, o Estado é uma imposição de que muitas pessoas tentam fugir. Um provérbio da Birmânia capta isso: “É fácil para um sujeito encontrar um senhor, mas difícil para um senhor encontrar um súdito”. No sudeste asiático, até recentemente, o principal objetivo da guerra não era tomar território, mas capturar súditos, já que as pessoas frequentemente iam para as montanhas criar sociedades igualitárias.[2.18] É irônico que tantos de nós estejamos convencidos de que temos uma necessidade essencial do Estado quando, na realidade, é o Estado que necessita de nós.

Um sentido mais amplo de si

Um século atrás, Piotr Kropotkin, o geógrafo e teórico anarquista russo, publicou seu livro revolucionário Ajuda mútua, que defende que a tendência das pessoas a ajudar outras, em um espírito de solidariedade, era um fator mais importante na evolução humana do que a competição. Podemos observar comportamentos cooperativos que desempenham um papel similar na sobrevivência de muitas espécies de mamíferos, pássaros, peixes e insetos. Ainda assim, persiste a crença de que os seres humanos são naturalmente egoístas, competitivos, inclinados para a guerra e dominados pelos machos. Essa crença funda-se numa representação errônea dos chamados povos primitivos como brutais, com o Estado sendo necessário como força pacificadora.

Os ocidentais que enxergam a si mesmos como o auge da evolução humana tipicamente veem os caçadores-coletores e outros povos sem Estado como relíquias do passado, mesmo que eles vivam no presente. Com isso, presumem que a história é uma progressão inevitável do menos complexo para o mais complexo e que a civilização ocidental é mais complexa que outras culturas. Se a história é organizada em Idade da Pedra, Idade do Bronze, Idade do Ferro, Era Industrial, Era da Informação – e por aí vai –, então alguém que não usa ferramentas de metal deve viver ainda na Idade da Pedra, não? É eurocêntrico, para dizer o mínimo, assumir que um caçador-coletor que sabe os usos de mil plantas é menos sofisticado que um operador de uma usina nuclear que sabe apertar mil botões diferentes mas não sabe de onde vem a sua comida.

O capitalismo pode ser capaz de realizar façanhas de produção e distribuição que nunca foram possíveis anteriormente, mas, ao mesmo tempo, esta sociedade é tragicamente incapaz de manter todos os seus integrantes alimentados e saudáveis; além disso, ela nunca existiu sem grandes desigualdades, opressão e devastação ambiental. Pode-se defender que alguns membros da nossa sociedade são socialmente atrasados, se não totalmente primitivos, quando se trata de ser capaz de cooperar e organizar-se sem controle autoritário.

Uma visão aprofundada de sociedades sem Estado mostra que elas têm suas próprias formas desenvolvidas de organização social e suas próprias histórias complexas, dois aspectos que vão de encontro às noções ocidentais sobre características humanas “naturais”. A grande diversidade de comportamentos humanos considerados normais em diferentes sociedades coloca em questão a própria ideia de natureza humana.

O nosso entendimento de natureza humana influencia diretamente o que esperamos das pessoas. Se os humanos são naturalmente egoístas e competitivos, não podemos esperar viver em uma sociedade cooperativa. Quando observamos o quão diferentemente outras culturas caracterizaram a natureza humana, conseguimos reconhecer a natureza humana como um valor cultural, uma mitologia idealizada e normativa que justifica o modo como uma sociedade é organizada. A civilização ocidental destina uma imensa quantidade de recursos para o controle social, policiamento e produção cultural que reforce os valores capitalistas. A ideia ocidental de natureza humana funciona como uma parte deste controle social, desencorajando a revolta contra a autoridade. Desde a infância, somos ensinadas que, sem autoridade, a vida humana acabaria num caos.

Essa visão de natureza humana foi desenvolvida por Hobbes e outros filósofos europeus para explicar as origens e os propósitos do Estado; isso marcou uma mudança em direção a argumentos científicos num tempo em que argumentos divinos não bastavam mais. Hobbes e seus contemporâneos não possuíam os dados psicológicos, históricos, arqueológicos e etnográficos que temos hoje; além disso, seu pensamento era fortemente influenciado por um legado de ensinamentos cristãos. Mesmo agora que temos acesso a uma abundância de informação que contradiz a cosmologia cristã e a ciência política estatista, a concepção popular de natureza humana não mudou muito. Por que ainda somos educados tão erroneamente? Uma segunda pergunta responde a primeira: quem controla a educação na nossa sociedade? E, mesmo assim, qualquer pessoa que se oponha ao dogma autoritário enfrenta uma dura batalha contra a acusação de “romântico”.

Mas se a natureza humana não é fixa, se ela pode abranger uma grande variedade de possibilidades, nós não poderíamos usar uma dose romântica de imaginação para pensar em novas possibilidades? Os atos de revolta que ocorrem agora mesmo em nossa sociedade, do Acampamento da Paz de Faslane aos Mercados Realmente Realmente Livres, contêm os germes de uma sociedade pacífica e aberta. As respostas populares a desastres naturais como o Furacão Katrina mostram que todas as pessoas têm o potencial para cooperar quando a ordem social dominante é interrompida. Esses exemplos indicam o caminho para um sentido mais amplo de si – uma compreensão dos seres humanos como criaturas capazes de um amplo espectro de comportamentos.

Pode-se dizer que o egoísmo é natural, no sentido de que as pessoas vivem inevitavelmente de acordo com seus próprios desejos e experiências. Mas o egoísmo não precisa ser competitivo ou atuar contra as outras pessoas. Nossas relações vão bem além de nossos corpos e mentes – vivemos em comunidades, dependemos de ecossistemas para ter comida e água e precisamos de amigos, famílias e amantes para a nossa saúde emocional. Sem competição e exploração institucionalizadas, o interesse próprio de uma pessoa e os interesses da sua comunidade e meio ambiente acabam convergindo. Ver nossos relacionamentos com nossos amigos e com a natureza como partes fundamentais de nós mesmos expande o nosso senso de conexão com o mundo e a nossa responsabilidade para com ele. Não faz parte de nosso interesse próprio ser dominado por autoridades ou dominar outras pessoas; desenvolvendo um sentido mais amplo de si, podemos estruturar nossas vidas e comunidades uma de acordo com a outra.

Leitura recomendada

Robert K. Dentan, The Semai: A Nonviolent People of Malaya. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979.

Christopher Boehm, “Egalitarian Behavior and Reverse Dominance Hierarchy,” Current Anthropology, Vol.34, No.3, June 1993.

Pierre Clastres, Society Against the State, (1974), Nova Iorque: Zone Books, 1987.

Leslie Feinberg, Transgender Warriors: Making History from Joan of Arc to Dennis Rodman, Boston: Beacon Press, 1997.

David Graeber, Fragments of an Anarchist Anthropology, Chicago: Prickly Paradigm Press, 2004.

Colin M. Turnbull, The Forest People, Nova Iorque: Simon & Schuster, 1961.

James C. Scott, Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts, New Haven: Yale University Press, 1990.

Bob Black, The Abolition of Work, 1985.

Capítulo 2 — Decisões

A anarquia é a ausência de mandantes. Pessoas livres não seguem ordens; tomam suas próprias decisões e chegam a acordos com suas comunidades, e desenvolvem formas compartilhadas para pôr essas decisões em prática.

Como serão tomadas as decisões?

Não se deve haver dúvidas de que o ser humano pode tomar decisões de formas não-hierárquicas e igualitárias. A maioria das sociedades humanas foram sem Estado e muitas dessas sociedades não foram governadas pelas opiniões de algum “Grande Homem”, mas sim pelas assembleias usando algumas formas de consenso. Várias sociedades baseadas no consenso sobreviveram por milhares de anos até os dias de hoje, inclusive através do colonialismo europeu, na África, Austrália, Ásia, nas Américas e nas periferias da Europa.

Pessoas de sociedades cujo poder de decisão foi monopolizado pelo Estado e por corporações podem achar inicialmente difícil tomar decisões de uma forma igualitária, mas se torna mais fácil com a prática. Felizmente, todos nós temos alguma experiência com tomadas de decisões horizontais. A maioria das decisões que tomamos no cotidiano, com amigos e espero que com colegas e também com nossos familiares, fazemos com base na cooperação em lugar da autoridade. A amizade é preciosa pois é um espaço em que interagimos como iguais, onde nossas opiniões são valorizadas independente do status social. Grupos de amigos frequentemente usam consensos informais para decidir como gastarão seu tempo juntos, organizar atividades, ajudar-se mutuamente, e enfrentar desafios em suas vidas diárias. Então, muitos de nós já entendem o consenso intuitivamente; se requer mais prática para se aprender como buscar o consenso com pessoas que são significativamente diferentes de nós, especialmente em grandes grupos ou quando é necessário coordenar atividades complexas, mas é possível.

O consenso não é a única forma empoderadora de se tomar decisões. Em certas contingências, grupos que são verdadeiras associações voluntárias podem empoderar seus membros mesmo quando se utiliza a tomada de decisões pela maioria. Ou uma única pessoa tomando suas decisões e agindo sozinha pode inspirar dúzias de pessoas a tomar atitudes semelhantes, ou a ajudar o que ela começou, evitando assim todo o peso às vezes asfixiante das reuniões. Em circunstâncias criativas ou inspiradoras, as pessoas frequentemente são bem-sucedidas em coordenar-se espontânea e caoticamente, produzindo resultados sem precedentes. A forma específica da tomada de decisão é apenas uma ferramenta, e com o consenso ou a ação individual como com a decisão majoritária, as pessoas podem ter uma participação ativa na utilização dessa ferramenta como bem lhes couber.

Anarquistas coreanos tiveram uma oportunidade para demonstrar a habilidade do povo em tomar suas próprias decisões em 1929. A Federação Anarquista Comunista Coreana [Korean Anarchist Communist Federation (KACF)] era uma grande organização em seu tempo, com apoio suficiente que pôde declarar uma zona autônoma na província de Shinmin. Shinmin estava fora da Coreia, na Manchúria, porém dois milhões de imigrantes coreanos viviam por lá. Utilizando-se de assembleias e uma estrutura federativa descentralizada que cresceu por fora da KACF, eles criaram conselhos de vilarejos, conselhos distritais e conselhos locais para lidar com assuntos de agricultura cooperativa, educação e finanças. Eles também formaram um exército liderado pelo anarquista Kim Jwa-Jin, que se utilizou de táticas de guerrilha para combater as forças soviéticas e japonesas. As seções da KACF na China, Coreia e Japão organizaram esforços de apoio internacionais. Pegos entre os stalinistas e o exército japonês imperial, a província autônoma foi finalmente esmagada em 1931. Mas, por dois anos, um número grande de pessoas puderam ser livres da autoridade dos latifundiários e governos e puderam reafirmar o seu próprio poder pra se tomar decisões coletivas, pra organizar sua vida diária, perseguir seus sonhos e defender esses sonhos de exércitos invasores.[3.1]

Uma das histórias anarquistas mais bem conhecidas é a da Guerra Civil Espanhola. Em julho de 1936, o General Franco começou um golpe fascista na Espanha. Do ponto de vista da elite, era uma ação necessária; os oficiais militares da nação, latifundiários e as hierarquias religiosas estavam aterrorizadas pelo crescimento dos movimentos anarquistas e socialistas. A monarquia já tinha sido abolida, mas os trabalhadores e camponeses não estavam satisfeitos com a democracia representativa. O golpe não foi sutil. Enquanto em várias áreas o governo republicano facilmente se resignou ao fascismo, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) e outros anarquistas que trabalhavam autonomamente formaram milícias, saquearam arsenais, assaltaram quartéis e derrotaram tropas treinadas. Os anarquistas eram especialmente fortes na Catalunha, Aragão, Astúrias e em grande parte da Andaluzia. Os trabalhadores também derrotaram o golpe em Madrid e em Valência, onde os socialistas eram fortes, e em grande parte do país Basco. Nas áreas anarquistas, o governo definitivamente deixou de funcionar.

Nessas áreas sem Estado no interior da Espanha rural em 1936, os camponeses se organizaram seguindo os princípios de comunismo, coletivismo, ou mutualismo de acordo com suas preferências e condições locais. Eles formaram milhares de coletivos, especialmente em Aragão, Catalunha e em Valência. Alguns aboliram todo o dinheiro e a propriedade privada, já alguns organizaram sistemas de cotas para garantir que todo mundo teria o que se precisasse. A diversidade de formas que desenvolveram é uma prova de que a liberdade foi criada por eles mesmos. Onde antes esses vilarejos estavam presos no mesmo asfixiante contexto de feudalismo e capitalismo em desenvolvimento, logo após meses brigando pela derrota da autoridade governamental e reunindo-se em assembleias populares, as pessoas criaram centenas de sistemas diferentes, unidas por valores comuns de solidariedade e auto-organização. E desenvolveram todas essas diferentes formas através da manutenção das assembleias abertas e tomando decisões a respeito de seu futuro em comum.

A cidade de Magdalena de Pulpis, por exemplo, aboliu por completo o dinheiro. Um habitante comenta, “Todo mundo trabalha e todos têm o direito de conseguir o que precisam de graça. Ele simplesmente vai até a loja onde as provisões e todas as outras necessidades estão armazenadas. Tudo é distribuído gratuitamente com apenas uma notificação do que ele pegou.”[3.2] Registrando o que todo mundo pegou permitia à comunidade distribuir os recursos de forma igualitária em tempos de escassez, e em geral para se assegurar a contabilidade.

Outros coletivos trabalharam seus próprios sistemas de trocas. Estes emitiram uma moeda local em forma de vales, fichas, agendas de racionamento, certificados e cupons, sem nenhum interesse e que não eram negociáveis fora do coletivo que o emitia. As comunidades que tinham dinheiro sobrando pagavam aos trabalhadores em cupons de acordo com o tamanho da família – um “salário familiar”, baseado nas necessidades da família mais que na produtividade de seus membros. Os produtos abundantes da localidade como pão, vinho e azeite de oliva eram distribuídos gratuitamente, enquanto outros itens “poderiam ser obtidos por meio de cupons no depósito comunal. Os produtos que sobravam eram trocados com outros vilarejos ou cidades anarquistas.”[3.3] Havia muita experimentação com o novo sistema monetário. Em Aragão, havia centenas de diferentes tipos de cupons e sistemas monetários, então a Federação de Coletivos Camponeses de Aragão decidiu por unanimidade substituir as moedas locais por um folheto de ração padronizado – através do qual cada coletivo detinha o poder de decidir quais os produtos que seriam distribuídos e a quantidade de cupons que os trabalhadores deveriam receber.

Todos os coletivos, uma vez que eles tivessem tomado o controle de seus vilarejos, organizavam assembleias abertas de massa para discutir problemas e planejar como se organizar. As decisões eram feitas via votação ou consenso. As assembleias de vilarejos normalmente aconteciam uma vez por mês ou por semana; observadores externos comentavam que a participação era ampla e entusiasmada. Muitos dos vilarejos coletivizados uniam-se a outros coletivos com o intuito de juntar recursos, ajudar-se mutuamente e organizar o comércio. Os coletivos em Aragão doaram centenas de toneladas de comida para os milicianos voluntários que seguravam o avanço fascista no fronte, e também acolheu um grande número de refugiados que tinham fugido dos fascistas. A cidade de Graus, por exemplo, com uma população de 2.600 habitantes, acolheu e ajudou 224 refugiados, dos quais apenas 20 estavam em condições de trabalhar.

Nas assembleias, os coletivos discutiam problemas e soluções. Muitos coletivos elegeram comitês administrativos, geralmente consistindo de uma média de dezenas de pessoas que gestionavam os assuntos até a próxima reunião. As assembleias abertas:

permitiam aos habitantes se conhecerem, entenderem-se, e a se sentirem mentalmente integrados na sociedade, participarem da administração dos assuntos públicos, das responsabilidades, e as recriminações e tensões que sempre ocorrem quando o poder de decisão é encarregado a alguns poucos indivíduos, ali não ocorriam. As assembleias eram públicas, as objeções, as propostas publicamente discutidas, todas as pessoas sendo livres, como nas assembleias sindicais, para participar das discussões, criticar, propor, etc. A democracia era estendida para todos os aspectos da vida social. Em muitos casos mesmo os individualistas [pessoas que não tinham participado de nenhum coletivo] podiam participar das deliberações. Era-lhes dado a mesma atenção que aos coletivistas.”[3.4]

Caso nem todas as pessoas habitantes do vilarejo fossem membros de algum coletivo, poderia haver um conselho municipal além da assembleia coletiva, assim ninguém seria excluído da tomada de decisões.

Em muitos coletivos concordou-se que, se um membro violou alguma regra coletiva, ele era repreendido. Se acontecesse novamente, ele era levado para a assembleia geral. Somente a assembleia geral poderia expulsar algum membro de um coletivo; delegados e administradores eram privados de poder punitivo. O poder da assembleia geral para responder a transgressões era também usado para prevenir que pessoas que tinham tarefas delegadas fossem irresponsáveis ou autoritárias; delegados ou administradores eleitos que falharam em cumprir as decisões coletivas ou usurparam autoridade eram suspensos ou removidos através do voto geral. Em alguns vilarejos que se dividiam entre anarquistas e socialistas, os camponeses formaram dois coletivos, um ao lado do outro, para permitir diferentes formas de tomar e estimular as decisões em vez de impor um método único para todas as pessoas.

Gaston Leval descreveu uma assembleia geral ocorrida no vilarejo de Tamarite de Litera, na província de Huesca, onde camponeses não-coletivistas eram também permitidos a assistir. Um dos problemas surgidos em reunião era o de que vários camponeses que não faziam parte do coletivo deixaram seus pais já idosos aos cuidados do coletivo enquanto pegavam suas terras para cultivá-las como se fossem próprias. Todo o grupo discutiu a questão, e eventualmente decidiu-se em adotar uma proposta específica: não expulsariam os pais idosos do coletivo, o que queriam era responsabilizar os camponeses, pelo que decidiram que estes últimos teriam que cuidar de seus pais ou não mais receberiam solidariedade nem tampouco terras do coletivo. Por fim, uma resolução que é consensuada por toda a comunidade carregará mais legitimidade, e é mais propensa a ser seguida do que uma que é decidida unilateralmente por um especialista ou oficial do governo.

Decisões importantes também eram tomadas todos os dias no trabalho nos campos:

O trabalho dos coletivos era conduzido por times de trabalhadores, tendo um delegado escolhido por cada time. A terra era dividida em zonas cultivadas. As pessoas que eram delegadas trabalhavam tanto quanto as outras. Não havia privilégios especiais. Após o dia de trabalho, delegados de todos os grupos de trabalho se encontravam no trabalho e faziam os arranjos técnicos necessários para o próximo dia de trabalho. A assembleia fazia as decisões finais em todas as questões importantes e repartia as instruções para ambos os delegados das equipes quanto a comissão administrativa.”[3.5]

Muitas áreas tinham também Comitês Distritais que agrupavam os recursos de todos os coletivos em um distrito, basicamente agindo como um centro de informação que fazia circular os excedentes que tinham certos coletivos para outros que os necessitavam. Centenas de coletivos juntaram-se em federações organizadas através da CNT ou UGT (a União Socialista do Trabalho). As federações providenciavam coordenação econômica, agrupando recursos que permitiam aos camponeses construir suas próprias reservas de frutas e vegetais, reunindo informações sobre quais itens estavam em abundância e quais eram escassos, e organizando sistemas de troca padronizados. Essa forma de tomada de decisão coletiva provou-se efetiva para aproximadamente sete a oito milhões de camponeses envolvidos nesse movimento. Metade da terra na Espanha anti-fascista – três quartos da terra em Aragão – era coletivizada e auto-organizada.

Em Agosto de 1937, apenas um ano após os camponeses anarquistas e socialistas começarem a formar coletivos, o Governo Republicano, sob controle dos stalinistas, estava suficientemente consolidado para mover-se contra as zonas sem lei de Aragão. A Brigada Karl Marx, unidade das Brigadas Internacionais, e outras unidades desarmaram e dissolveram os coletivos em Aragão, esmagando qualquer resistência e mandando inúmeros anarquistas e socialistas libertários para as prisões e câmaras de tortura que os stalinistas tinham montado para se usar contra seus aliados revolucionários.

O Brasil de hoje tem uma certa similaridade com a Espanha de 1936, onde uma pequena porcentagem da população detém aproximadamente metade de toda a terra enquanto milhões de pessoas não têm terra nem tampouco sustento. Um importante movimento social surgiu em resposta. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é feito por 1,5 milhão de trabalhadores pobres que ocupam terras inutilizadas para assentar coletivos agrícolas. Desde sua fundação em 1984, o MST ganhou o título de propriedade para 350.000 famílias que vivem em 2.000 assentamentos diferentes. A unidade básica de organização consiste em um grupo de famílias que vivem juntas em um assentamento em uma terra ocupada. Esses grupos têm autonomia e auto-organização para os assuntos da vida diária. Para a participação em encontros regionais, apontam-se duas ou três representações, no qual em princípio se deve incluir um homem e uma mulher, embora na prática nem sempre ocorra. O MST tem uma estrutura federativa; há também as Direções Estaduais e Nacional. Enquanto a maioria das tomadas de decisão se deem na base com as ocupações de terra, a agricultura e o estabelecimento de assentamentos, o MST também se organiza em níveis superiores para coordenar protestos massivos e bloqueios de rodovias para pressionar o governo a dar os títulos de propriedade dos assentamentos. O MST tem mostrado uma grande quantidade de inovação e força, organizando escolas e protegendo-se eles mesmos da frequente repressão policial. Eles desenvolveram práticas de agricultura sustentável, incluindo a criação de bancos de sementes para as sementes nativas, e têm invadido e destruído as florestas de eucalipto prejudiciais ao meio ambiente e os terrenos de testes para os cultivos modificados geneticamente.

Com a lógica da democracia, 1,5 milhão de pessoas é considerado simplesmente um grupo muito grande para que seja permitido a todas as pessoas participar de forma direta das tomadas de decisão; a maioria deveria confiar esse poder aos políticos. Mas o MST mantém um ideal no qual todas as possíveis tomadas de decisão permaneçam a nível local. Na prática, entretanto, frequentemente esse ideal não é seguido. Como uma organização de massas que não visa abolir o capitalismo ou derrotar o Estado, mas sim pressioná-lo, o MST acabou por entrar no jogo político, no qual todos os princípios estão à venda. Por sua parte, uma grande porção de seus membros vieram da extrema pobreza e de comunidades oprimidas que por gerações têm sido controladas por uma combinação de religião, patriotismo, crime, vícios em drogas e patriarcado. Tais dinâmicas não desaparecem quando as pessoas entram para o movimento, e acabam por causar problemas significantes dentro do MST.

Ao longo dos anos 80 e 90, novos assentamentos do MST foram criados por ativistas da organização que procuravam por pessoas que não tinham terras no meio rural ou especialmente nas favelas do meio urbano, que queriam formar um grupo e ocupar terras. Eles deveriam passar por um período de construção de base de dois meses, no qual fariam encontros e debates para tentar construir um senso de comunidade, afinidade e base política em comum. Para então ocupar algum pedaço de terra inutilizada cujo proprietário seja um latifundiário, escolher representações para federar com a organização maior, e começar a cultivar. Ativistas que trabalham com o MST local passariam periodicamente pelo assentamento para ver se necessitava-se de alguma ajuda com a aquisição de ferramentas e materiais, resolução de disputas internas ou proteção da polícia, paramilitares ou dos grandes latifundiários, todos os quais frequentemente conspiraram para ameaçar e assassinar membros do MST.

Em parte devido a autonomia de cada assentamento, eles conquistaram uma variável de resultados. Esquerdistas de vários países tipicamente romantizam o MST enquanto a mídia capitalista brasileira os retrata como violentos bandidos que roubam a terra e posteriormente a vendem. De fato, o retrato da mídia capitalista é correto em alguns casos, mas o que não quer dizer que o seja em sua maioria. Não é desconhecido para as pessoas em um novo assentamento dividir a terra e em seguida lutar pelas alocações. Alguns podem vender seu terreno para algum latifundiário local, ou abrir uma loja de bebidas em seu terreno e favorecer o alcoolismo, ou gradualmente invadir o terreno de seu vizinho, e dentro de seus limites as disputas podem, as vezes, serem resolvidas com violência. A maioria dos assentamentos divide-se em casas independentes, completamente individualizadas em vez de trabalhar a terra de forma coletiva e comunal. Outra frequente fraqueza reflete a sociedade de onde esses trabalhadores sem terra vêm – muitos dos assentamentos são dominados por uma cultura cristã, patriótica e patriarcal.

Ainda que essas fraquezas precisem ser citadas, o MST conseguiu uma longa lista de vitórias. O movimento ganhou terras e autossuficiência para um grande número de pessoas em situação de extrema pobreza. Muitos dos assentamentos que criaram têm um padrão de vida muito mais elevado que as favelas que deixaram para trás, e são unidos por um senso de solidariedade e comunidade. Em qualquer medida, o seu êxito é um triunfo para a ação direta: ao ignorar a legalidade ou pedir aos poderosos por alguma mudança, mais de um milhão de pessoas ganharam suas próprias terras e o controle de suas próprias vidas ao sair e fazer por si mesmas. A sociedade brasileira não colapsou devido a esta onda de anarquia; ao contrário, tornou-se mais saudável, ainda que muitos problemas permaneçam, seja na sociedade como um todo ou nos assentamentos. Isso em grande medida acontece se um assentamento em particular está empoderado e livre ou se é competitivo e opressivo.

De acordo com um membro do MST que trabalhou por vários anos em uma das regiões mais perigosas do Brasil, dois meses simplesmente não era tempo suficiente na maioria dos casos para se desconstruir o treinamento antissocial das pessoas e criar um senso real de comunidade, mas era muito melhor que o padrão prevalecente no período subsequente. Como a organização experimentava uma tendência ao crescimento, muitos ativistas começaram assentamentos através do recrutamento de grupos de estrangeiros, prometendo-lhes terra, e enviavam-nos para as regiões com os solos mais pobres ou com os latifundiários mais violentos, muitas vezes contribuindo com o desflorestamento durante o processo. Naturalmente, essa ênfase em resultados quantitativos amplificou as piores características da organização e em muitas formas a enfraqueceu, inclusive quando se aumentava seu poder político.[3.6]

O contexto para esse divisor de águas no MST foi a eleição do Presidente Lula do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2003. Anteriormente, o MST havia sido autônomo: eles não cooperavam com partidos ou permitiam políticos dentro da organização, ainda que muitos organizadores tenham utilizado o MST para lançar carreiras políticas. Porém, com a vitória sem precedentes do Partido dos Trabalhadores (PT), progressista e socialista, a liderança do MST tentou proibir qualquer pessoa na organização de falar publicamente de forma contrária à nova política agrária do governo. Ao mesmo tempo, o MST começou a receber enormes quantias de dinheiro do governo. O Lula prometeu dar terras a um certo número de famílias e a lideraça do MST apressou-se em atingir essa cota e a engolir a sua própria organização, abandonando a base e os seus princípios. Muitos organizadores e líderes influentes do MST, apoiados pelos assentamentos mais radicais, criticaram essa colaboração com o governo e pressionaram por uma maior posição anti-autoritária, e de fato em meados de 2005, quando o programa agrário do PT provou ser uma decepção, o MST começou a questionar ferozmente ao governo novamente.

Aos olhos dos anti-autoritários, a organização perdeu sua credibilidade e provou mais uma vez os previsíveis resultados de se colaborar com o governo. Mas ainda há dentro do movimento muitas causas para inspiração. Muitos dos assentamentos continuam a demonstrar a habilidade das pessoas para derrotar as suas socializações capitalistas e autoritárias, se assim estão dispostas a fazê-lo. Talvez o melhor exemplo sejam as Comunas da Terra, uma rede de assentamentos que são uma minoria dentro do MST, que cultiva a terra comunalmente, nutre um espírito de solidariedade, desafia o sexismo e a mentalidade capitalista internamente, e cria exemplos práticos de anarquia. É notável que as pessoas nas Comunas da Terra desfrutem de um maior padrão de vida que aquelas que vivem nos assentamentos individualizados.

Existem exemplos contemporâneos de organizações não-hierarquizadas também na América do Norte. Ao longo dos Estados Unidos de hoje, há dezenas de projetos anarquistas que funcionam com base no consenso. Tomadas de decisões baseadas no consenso podem ser usadas como base para o planejamento de um evento ou campanha, ou de maneira mais permanente para executar um centro de informações: um centro social anarquista que pode vir a servir como uma livraria radical, biblioteca, café, espaço de reuniões, teatro ou loja gratuita. Um encontro característico pode começar com voluntários preenchendo as posições de facilitador e relator. Muitos grupos também se utilizam de um “observador de vibrações”, alguém que se voluntaria para prestar atenção especial nas emoções e interações dentro do grupo, reconhecendo que o pessoal é político e que a tradição da supressão de emoções em espaços políticos deriva da separação entre público e privado, uma separação no qual o patriarcado e o Estado estão baseados.

Em seguida, as pessoas participantes criam uma agenda no qual elas listam todos os tópicos que querem abordar. Para cada tópico, começam a compartilhar informações. Caso uma decisão precise ser feita, conversa-se até que se chegue a um ponto onde as necessidades e desejos de todos converja. Alguém apresenta uma proposta que sintetize todas as opiniões, e então se vota: aprova-se, se abstém ou reprova. Se uma pessoa se opõe, o grupo procura por alguma outra solução. As decisões nem sempre vêm das primeiras opções propostas pelas pessoas, mas todas elas devem se sentir confortáveis com todas as decisões adotadas pelo grupo. Ao longo desse processo, quem facilita encoraja a completa participação de todos e se assegura que ninguém está sendo silenciado.

Às vezes, o grupo é incapaz de resolver algum problema em particular, mas com a opção de não se decidir por nada demonstra que com o consenso, a saúde do grupo é mais importante que a eficiência. Alguns grupos baseiam-se no princípio de associação voluntária – todo mundo é livre para deixar o grupo se assim desejar, em contraste a estruturas autoritárias que podem negar às pessoas o direito de partir ou deixar a algumas isentas de alguma decisão que não concordem. De acordo com esse princípio, é melhor respeitar os diferentes pontos de vista dos membros de um grupo do que insistir em uma decisão que pode excluir ou silenciar algumas pessoas. Isso pode parecer impraticável para quem não participa de tal processo, mas o consenso tem servido a muitos infoshops e projetos semelhantes nos Estados Unidos por anos. Usando o consenso, esses grupos têm feito as decisões necessárias para a organização de espaços e eventos, para se chegar a comunidades próximas, atrair novos participantes, levantar fundos, e a resistir a tentativas de sabotagem por parte dos governos locais ou líderes empresariais. Além do mais, o número de projetos que se utilizam do consenso nos EUA aparenta estar em constante crescimento. É claro, o consenso funciona melhor com pessoas que se conheçam entre si e tenham um interesse em comum para se trabalhar em conjunto, se são voluntárias que desejam montar um infoshop, vizinhas que queiram resistir ao processo de gentrificação, ou membros de um grupo de afinidade planejando ataques contra o sistema - mas que funciona, funciona.

Uma crítica comum é a de que as reuniões que se baseiam no consenso levam mais tempo, mas são realmente menos eficientes? Modelos autoritários de tomadas de decisão, incluindo o voto majoritário no qual a minoria é forçada a acatar a decisão da maioria, escondem ou externalizam seus custos verdadeiros. As comunidades que usam métodos autoritários para tomarem suas decisões não podem existir sem a polícia ou alguma outra estrutura que apliquem essas decisões. O consenso exclui a necessidade de forçar ou castigar ao se assegurar que todo mundo está satisfeito de antemão. Quando nos damos conta de quantas horas de trabalho uma comunidade perde para que se mantenha uma força policial, o que é um grande desperdício de recursos, as horas gastas em reuniões baseadas no consenso parecem ser, afinal, uma forma bem melhor de se usar o tempo.

A rebelião que ocorreu no estado sulista mexicano de Oaxaca oferece um outro exemplo de tomadas de decisões populares. Em 2006, as pessoas tomaram a Cidade de Oaxaca e grande parte do estado. A população de Oaxaca é composta em mais da metade por indígenas, e as lutas contra o colonialismo e o capitalismo vêm desde quinhentos anos atrás. Em junho de 2006, 70.000 professores em greve se reuniram em Oaxaca de Juárez, a capital, para pressionar por suas demandas por um salário digno e melhorias para os estudantes. Em 14 de junho, a polícia atacou o acampamento dos professores, mas eles contra-atacaram, forçando a polícia para fora do centro da cidade, ocupando os prédios governamentais e expulsando os políticos, e montando barricadas para mantê-los longe. A cidade de Oaxaca foi auto-organizada e autônoma por cinco meses, até que as tropas federais foram enviadas para lá.

Após expulsarem a polícia para fora da capital, os professores em greve tiveram o reforço dos estudantes e outros trabalhadores, e conjuntamente formaram a Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca (Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca). A APPO tornou-se um corpo coordenador para os movimentos sociais de Oaxaca, efetivamente organizando a vida social e a resistência popular por vários meses no vácuo criado pelo colapso do controle estatal. Reuniu os delegados dos sindicatos, organizações não-governamentais, organizações sociais, e cooperativas por todo o estado, procurando tomar as decisões no espírito das práticas indígenas de consenso – ainda que a maioria das assembleias tomassem suas decisões através do voto majoritário. As pessoas fundadoras da APPO rejeitaram as políticas eleitorais e clamaram às pessoas por todo o estado para que organizassem suas próprias assembleias em qualquer nível.[3.7] Reconhecendo o papel dos partidos políticos na cooptação das movimentações populares, a APPO os proibiu de participarem.

De acordo com um ativista que ajudou a fundar a APPO:

Então a APPO foi formada com o intuito de encarar os abusos e criar uma alternativa. Era pra ser um espaço de discussão, reflexão, análise e ação. Nós reconhecemos que não deveria ser somente uma organização, mas sim um órgão de coordenação que envolvessem muitos e diferentes grupos. Ou seja, uma ideologia não deveria prevalecer; nós nos focaríamos em achar um terreno comum para que se juntassem diversos atores sociais. Estudantes, professores, anarquistas, marxistas e crentes – todas as pessoas eram convidadas.

A APPO nasceu sem uma estrutura formal, mas logo desenvolvemos uma impressionante capacidade organizativa. As decisões na APPO eram feitas por consenso através da assembleia geral, o que era um corpo privilegiado de tomadas de decisões. Nas primeiras semanas de nossa existência criamos o Conselho de Estado da APPO. O conselho era originalmente composto por 260 pessoas – aproximadamente dez representatividades das sete regiões de Oaxaca e representatividades das vizinhanças urbanas de Oaxaca e municipalidades.

A Coordenação Provisória foi criada para facilitar a operação da APPO através de diferentes comissões. Uma variedade de comissões foi estabelecida: judicial, financeira, de comunicações, direitos humanos, igualdade de gênero, defesa dos recursos naturais e muitas outras. As propostas eram geralmente feitas em assembleias menores de cada setor da APPO para então serem trazidas para a assembleia geral onde eram novamente debatidas ou ratificadas.[3.8]

Uma e outra vez, assembleias populares espontâneas como a criada em Oaxaca têm provado serem capazes de tomar decisões corretas e coordenar as atividades de toda uma população. Naturalmente, elas também atraem pessoas que querem capitalizar em cima dos movimentos sociais e pessoas que consideram a si mesmas como líderes naturais. Em muitas revoluções, o que começa como uma rebelião horizontal, libertária acaba por se tornar autoritária a partir do momento em que partidos políticos ou pessoas que se autodenominem como líderes cooptam e calam as estruturas populares de tomadas de decisão. Participantes muito visíveis nas assembleias populares podem também ser empurrados para o conservadorismo pela repressão governamental, uma vez que são os alvos mais visíveis.

Essa é uma forma de interpretar as dinâmicas que se desenvolveram na APPO após a invasão federal de Oaxaca em finais de outubro de 2006. À medida que a repressão se intensificava, alguns dos participantes mais radicais na assembleia começaram a pedir por moderação, para desagrado dos segmentos do movimento que ainda estavam nas ruas. Muitos dos membros da APPO e movimentos participantes queixam-se que o grupo estava tomado por stalinistas e outros parasitas que se utilizam de movimentos populares como ferramentas para atingirem suas ambições políticas. E ainda que a APPO tivesse sempre tomado uma postura contrária aos partidos políticos, a autodenominada liderança tirou vantagem da difícil situação para chamar por participação nas eleições que viriam como o único e pragmático meio de ação.

Muitas pessoas se sentiram traídas. O apoio à colaboração estava longe de ser universal dentro da APPO; foi polêmico inclusive dentro do Conselho da APPO, o grupo provisório de tomada de decisões que se perfilava como um corpo de liderança. Algumas pessoas dentro da APPO criaram outras formações para disseminar as perspectivas anarquistas, indígenas ou outras que fossem anti-autoritárias, e muitas simplesmente continuaram com seu trabalho e ignoraram as chamadas para comparecer às cabines de votação. Ao fim, a ética anti-autoritária que constituiu a coluna vertebral do movimento e a base de sua estrutura formal provaram-se mais fortes. A vasta maioria de habitantes de Oaxaca boicotaram as eleições, enquanto que as poucas pessoas que foram votar pertenciam ao PRI, o partido conservador que até então detinha o poder. A tentativa de transformar os poderosos movimentos sociais libertadores de Oaxaca em uma aposta pelo poder político foi um fracasso absoluto.

Uma cidade menor de Oaxaca, Zaachila, cujo população era de 25.000 pessoas, pode fornecer um olhar mais próximo de uma tomada de decisão horizontal. Por anos, grupos têm trabalhado juntos contra as formas locais de exploração; entre outros esforços, haviam conseguido derrotar o plano de construir uma planta da Coca Cola que havia consumido grande parte da água potável disponível. Quando a rebelião eclodiu na cidade de Oaxaca, a maioria dos residentes decidiram tomar medidas. Eles convocaram a primeira assembleia popular de Zaachila ao soar dos sinos, reunindo todo mundo, para compartilhar as informações sobre o ataque da polícia na cidade de Oaxaca e para decidir o que fazer em sua própria cidade. Mais reuniões e ações acontecerem em seguida:

Homens, mulheres, crianças e os membros do conselho da cidade juntaram-se com o objetivo de ocupar os prédios municipais. Uma grande parte dos prédios estavam trancados e nós só usamos o hall de entrada ou os escritórios que já estavam abertos. Permanecemos nos prédios municipais por dia e noite, tomando conta de tudo. E assim foi como nasceram as assembleias de bairro. Dizíamos: “será o turno do bairro de La Soledad e amanhã será o de San Jacinto”. Assim foi como foram utilizadas as assembleias de bairro num primeiro momento, e depois tornaram-se órgãos de tomadas de decisões, que é onde estamos agora.

A ocupação dos prédios municipais foi algo totalmente espontâneo. As pessoas que eram ativistas anteriormente agiram e inicialmente direcionaram certas coisas, mas a estrutura da assembleia popular estava se desenvolvendo de pouco a pouco.

As assembleias de bairro, compostas por um corpo rotativo de cinco pessoas, foram também formadas em cada seção da cidade e juntas deveriam formar a assembleia popular permanente, o Conselho Popular de Zaachila. As pessoas das assembleias de bairro podem não ser ativistas de fato, mas aos poucos, à medida que seguem com suas obrigações de levar informações de ida e volta desde o Conselho, desenvolveram sua própria capacidade de liderança. Todas as decisões tomadas no Conselho eram estudadas por essas cinco pessoas e então trazidas de volta para os bairros para uma revisão. Essas assembleias são completamente abertas; qualquer um pode participar e ter sua voz ouvida. As decisões sempre vão para o voto majoritário, e todos os adultos presentes podem votar. Por exemplo, caso alguém pense que uma ponte precise ser construída, mas outras pessoas pensam que se é mais necessário melhorar a eletricidade, nós votamos em qual deva ser a prioridade. A simples maioria vence, cinquenta por cento mais um.”[3.9]

A população da cidade expulsou o prefeito enquanto mantinham os serviços públicos, e também estabeleceram uma estação comunitária de rádio. A cidade serviu como um modelo para outras dezenas de municípios ao longo do estado que logo proclamaram sua autonomia.

Anos antes desses eventos em Zaachila, outro grupo estava organizando vilarejos autônomos no estado de Oaxaca. Vinte e seis comunidades rurais afiliadas ao CPIO-RFM (Conselho dos Povos Indígenas de Oaxaca – Ricardo Flores Magón), uma organização que se identifica com as tradições indígenas e resistência anarquista do sul do México; o nome se refere a um indígena anarquista bastante influente na Revolução Mexicana. Enquanto podiam, vivendo sob um regime opressivo, as comunidades do CPIO reafirmaram sua autonomia e ajudavam-se mutuamente para suprir suas necessidades, dando fim à propriedade privada e trabalhando comunalmente a terra. Tipicamente, quando algum vilarejo expressava interesse em se juntar ao grupo, alguém do CPIO viria e explicaria como eles trabalham, e deixaria o vilarejo decidir se querem ou não juntar-se. O governo frequentemente nega recursos aos vilarejos do CPIO, na esperança de matá-los de fome, mas não é nenhuma surpresa que tantas pessoas pensaram que poderiam viver com uma maior riqueza sendo donas de suas próprias vidas, mesmo se com isso significasse uma maior pobreza material.

Como as decisões serão aplicadas?

O Estado tem por tanto tempo obscurecido o fato de que as pessoas são capazes de implementar suas próprias decisões que aquelas que estão em posições elevadas nessa sociedade não conseguem imaginar como isso poderia ser feito sem dar a uma pequena minoria a autoridade para coagir as pessoas a seguirem ordens. Pelo contrário, o poder para se fazer cumprir as decisões deveria ser tão universal e descentralizado quanto o poder para se tomar decisões. Houve sociedades sem Estado em todos os continentes que usaram sanções difusas em vez de fiscalizadores especializados. Somente através de um longo e violento processo é que os Estados roubaram essa habilidade das pessoas e monopolizaram-na como se fosse deles mesmos.

Essa é a forma como as sanções difusas acontecem: em um processo em andamento, uma sociedade decide como quer se organizar e quais comportamentos são considerados inaceitáveis. Isso pode ocorrer com o tempo ou em contextos formais e imediatos. A participação de todas as pessoas nessas decisões é complementada pela participação de todas elas na sua própria implementação. Caso alguém quebre esses padrões comuns, todos estão acostumados em reagir. Eles não chamam a polícia, nem apresentam uma queixa ou esperam para que outro faça alguma coisa; se aproximam da pessoa que pensam estar errada e contam a ela, ou tomam alguma outra ação apropriada.

Por exemplo, as pessoas em um determinado bairro podem decidir que cada casa diferente tome turnos para executar a limpeza da rua. Se alguma casa falha em cumprir essa decisão, todo mundo na quadra tem a habilidade de pedir a eles que cumpram com sua responsabilidade. A depender de quão grave seja a transgressão, outras pessoas no bairro podem reagir com a crítica, o ridículo ou o ostracismo. Caso a casa tenha uma boa desculpa para não fazê-lo, talvez alguém que lá viva está muito doente e os outros estão ocupados demais tomando conta dele, os vizinhos podem escolher ter simpatia e perdoar o ocorrido. Essa flexibilidade e sensibilidade tipicamente inexistem em sistemas baseados em leis. Por outro lado, caso o vizinho não tenha desculpa alguma, e não apenas nunca limpa a rua como joga todo o seu lixo nela, seus vizinhos podem fazer uma reunião geral para demandar uma mudança em seu comportamento, ou podem tomar alguma ação como empilhar todo o lixo em frente da sua porta. Enquanto isso, nas interações cotidianas, vizinhos individuais podem compartilhar suas críticas aos membros da casa transgressora, ou ridicularizá-los, não convidando-os para as atividades conjuntas ou expondo-os na rua. Se alguém é incorrigivelmente antissocial, sempre bloqueando ou contradizendo os desejos do resto do grupo e se recusando a responder às preocupações das pessoas, a última resposta é a expulsão desse indivíduo para fora do grupo.

Esse método é muito mais flexível, e mais libertador que os métodos legalistas e coercitivos. Ao invés de estar atado à cega carta da lei, que não se atentam a circunstâncias específicas ou às necessidades das pessoas, e a depender de uma poderosa minoria que impõe, o método das sanções difusas permite que todas possam medir quão séria é a transgressão. Também permite a quem transgrediu a oportunidade de convencer aos outros de que suas ações foram justificadas, provendo assim desafios constantes para a moral dominante. Em contraste, em um sistema estatal, as autoridades não têm que demonstrar que algo está certo ou errado antes de invadir a casa de alguém ou confiscar uma droga considerada ilegal. Tudo o que têm que fazer é citar algum estatuto de um livro penal em que as suas vítimas não tiveram oportunidade alguma de escrever.

Em uma sociedade horizontal, as pessoas cumprem as decisões de acordo com o quão entusiasmadas elas estão com essas decisões. Se quase todo mundo apoia fortemente a decisão, ela será feita vigorosamente, enquanto que se uma decisão deixa a maioria das pessoas se sentindo neutras ou sem entusiasmo, será apenas parcialmente encorajada, deixando mais espaços abertos para transgressões criativas e para explorar outras soluções. Por outro lado, a falta de entusiasmo em implementar as decisões pode significar que na prática a organização cai sobre os ombros de alguma pessoa que informalmente é detentora de poder – aquelas a que lhe são delegadas posições informais de liderança pelo resto do grupo, ainda que não queiram isso. Isso significa que os membros de grupos horizontais, de moradias coletivas a sociedades inteiras, devem confrontar o problema da auto-disciplina. Eles devem se responsabilizar pelos acordos feitos e as críticas de seus companheiros, e a arriscar serem impopulares ou de confrontar conflitos devido a crítica a aqueles que não cumprem com os acordos firmados – chamando a atenção do companheiro de casa que não lava as louças ou a comunidade que não contribui com a manutenção da estrada. É um processo difícil, frequentemente ausente em muitos projetos anarquistas corriqueiros, mas sem este a tomada de decisões em grupo é uma fachada, e a responsabilidade é vaga e distribuída de maneira desigual. Ao passar por tal processo, as pessoas se tornam mais poderosas e estão mais conectadas com o meio ao seu redor.

Grupos sempre possuem a possibilidade da conformação e a do conflito. Grupos autoritários tipicamente evitam o conflito ao impor grandes níveis de conformidade. A pressão pela conformidade também existe em grupos anarquistas, mas sem restrições ao movimento humano, sendo mais fácil para as pessoas saírem e entrarem em outros grupos ou a agir ou viver sozinhas. Assim, as pessoas podem escolher os níveis de conformidade e conflito que querem tolerar, e no processo de se achar e deixar grupos, elas mudam e desafiam as normas sociais.

No recentemente criado estado de Israel, os judeus que participaram nos movimentos socialistas da Europa tiveram a oportunidade de criar centenas de kibbutz, as fazendas comunais utópicas. Nessas fazendas, os membros criaram um forte exemplo de vivência comunal e tomada de decisão. Num típico kibbutz, a maioria das decisões eram tomadas em uma reunião geral da cidade, que acontecia duas vezes por semana. A frequência e a duração das reuniões surgiram do fato de que vários aspectos da vida social estavam abertos ao debate, e da crença comum de que decisões bem embasadas “só podem ser tomadas após uma intensa discussão coletiva.”[3.10] Havia em torno de uma dezena de posições elegidas no kibbutz, relacionadas ao manuseio dos assuntos financeiros da comuna e à coordenação da produção e do comércio, mas a política geral tinha que ser decidida nas assembleias gerais. As posições oficiais eram limitadas a períodos de poucos anos, e os membros encorajavam uma cultura de “ódio aos cargos”, uma relutância a assumir um cargo e o desprezo por aqueles que pareciam estar sedentos por poder.

Ninguém no kibbutz tinha poder coercitivo. Nem tampouco havia polícia no kibbutz, sendo comum pra qualquer um o pensamento de deixar as suas portas destrancadas. A opinião pública era o fator mais importante para assegurar a coesão social. Se houvesse algum problema com um membro da comuna, isso era discutido nas reuniões gerais, mas na maioria das vezes somente a ameaça de ser discutido na reunião geral já bastava para motivar as pessoas a trabalharem suas diferenças. No pior cenário possível, caso um membro se recuse a aceitar as decisões do grupo, o resto do coletivo podia votar pela expulsão dele. Mas essa última sanção difere das táticas coercitivas utilizadas pelo Estado em um aspecto crucial: grupos voluntários só existem porque todas as pessoas envolvidas querem trabalhar com todas as outras. Alguém que é excluído não é privado da habilidade de sobreviver ou manter suas relações, já que há tantos outros grupos no qual essa pessoa pode se juntar. Mais importante ainda, ela não é forçada a acatar as decisões coletivas. Em uma sociedade baseada nesse princípio, as pessoas usufruiriam de uma mobilidade social que é negada àquelas que vivem em contextos estadistas, no qual as leis são impostas a uma pessoa mesmo que ela aprove isso ou não. Em qualquer caso, expulsão não era comum nos kibbutz, porque a opinião pública e a discussão do grupo eram suficientes para resolver a maior parte dos conflitos.

Mas os kibbutz tinham outros problemas, que podem nos ensinar lições importantes sobre a criação de coletivos. Após uma década, mais ou menos, os kibbutzim começaram a sucumbir à pressão do mundo capitalista que os rodeava. Ainda que internamente os kibbutz eram muitos comunais, nunca foram adequadamente anticapitalistas, desde o princípio tentaram existir como produtores competitivos em uma economia capitalista. A necessidade de competir na economia, e assim a se industrializar, encorajou uma grande dependência nos especialistas, enquanto influenciava um crescimento do consumismo em todo o restante da sociedade.

Ao mesmo tempo, havia uma reação negativa em relação à falta de privacidade intencionalmente estruturada no kibbutz – chuveiros comuns, por exemplo. O propósito dessa falta de privacidade era o de encorajar um maior espírito comunal. Mas devido aos idealizadores do kibbutz não perceberem que a privacidade é tão importante para o bem estar social das pessoas quanto estarem socialmente conectadas, os membros do kibbutz começaram a se sentir com o tempo sufocados, e a se excluírem da vida pública do kibbutz, incluindo as suas participações nas tomadas de decisões.

Uma outra lição que os kibbutzim nos dão é que a construção de utopias coletivas devem envolver uma luta incansável contra as estruturas autoritárias contemporâneas, ou elas se tornarão parte dessas estruturas. Os kibbutzim foram fundados numa terra roubada pelo Estado de Israel dos palestinos, contra quem continuam as políticas genocidas ainda hoje. O racismo dos fundadores europeus permitiu a eles ignorar o abuso infligido aos habitantes anteriores do que eles veem como a terra prometida, da mesma forma religiosa que os peregrinos na América do Norte massacraram os indígenas para a construção de sua nova sociedade. O Estado de Israel teve uma vitória enorme com o fato de que quase todos os seus potenciais dissidentes – incluindo socialistas e pessoas veteranas da luta armada contra o nazismo e o colonialismo – voluntariamente se auto-sequestraram em comunas escapistas que contribuíram para a economia capitalista. Se essas utopias tivessem usado o kibbutz como uma base para a luta contra o capitalismo e o colonialismo em solidariedade com os palestinos enquanto construíam os pilares de uma sociedade comunal, a história no Oriente Médio poderia ter sido um tanto diferente.

Quem resolverá os conflitos?

Os métodos anarquistas de resolução de conflitos abrem um leque bem mais saudável de opções do que os disponíveis em um sistema estatista e capitalista. As sociedades sem Estado ao longo da história desenvolveram numerosos métodos para a resolução de conflitos que buscam comprometimento, permitem a reconciliação e mantêm o poder na mão de quem está em conflito e da sua comunidade.

Os Núbios são uma sociedade de pessoas fazendeiras sedentárias no Egito. Tradicionalmente, elas não tinham Estado, e mesmo hoje, de acordo com relatos recentes, é altamente imoral que se busque o governo para resolver os conflitos. Em contraste com os jeitos individualistas e legalistas de se ver os conflitos em sociedades autoritárias, a norma na cultura núbia é a de considerar o problema de uma pessoa como o de todas as outras; quando há algum conflito, estranhos, amigos, parentes ou terceiros intercedem para ajudar aos conflituosos a achar alguma resolução que seja mutuamente satisfatória. De acordo com o antropólogo Robert Fernea, a cultura núbia se refere aos conflitos entre membros de um grupo de afinidade parental como perigoso, no qual eles ameaçam a rede de apoio social no qual todos dependem.

Essa cultura de cooperação e responsabilidade mútua tem respaldo também pelas estruturas econômicas e sociais. Entre os núbios, a propriedade como os moinhos de água, o rebanho e as palmeiras tem sido tradicionalmente de posse comunitária. Portanto, no trabalho cotidiano de alimentar a si mesmas as pessoas estão imersas em vínculos de cooperação social que ensinam a solidariedade e a importância de se estar bem. Adicionalmente, os grupos de parentesco que compõem a sociedade núbia, chamados de “nogs”, se entrelaçam, não atomizados como os núcleos familiares da sociedade ocidental: “Isso significa que o nog de uma pessoa sobrepõe e envolve a diversidade, tendo os seus membros dispersos. Essa característica é muito importante para que a comunidade núbia não se divida facilmente em facções opostas.”[3.11] A maioria dos conflitos são resolvidos rapidamente por algum terceiro parente. Já os conflitos maiores que envolvem mais pessoas são resolvidos em um conselho familiar com todos os membros do nog, incluindo as mulheres e as crianças. O conselho é presidido por um familiar mais idoso, mas o objetivo é o de se chegar a um consenso e que as pessoas em conflito se reconciliem.

Os Hopi do sudoeste da América do Norte costumavam ser mais adeptos da guerra que em tempos recentes. As facções ainda existem dentro dos vilarejos Hopi, mas eles superaram os conflitos através da cooperação em rituais, e eles utilizam o constrangimento e mecanismos de nivelamento com as pessoas que são orgulhosas ou dominantes. Quando os conflitos já não mais estão ao alcance deles, utilizam peças rituais com palhaços nas danças kachina para ridicularizar as pessoas envolvidas. Os Hopi oferecem um exemplo de uma sociedade que desistiu do feudalismo e desenvolveu rituais para cultivar uma postura mais pacífica.[3.12] A imagem dos palhaços e as danças sendo utilizadas para a resolução de conflitos dá uma ideia tentadora do humor e da arte como meio para se responder aos problemas cotidianos. Há um mundo de possibilidades mais interessantes que as assembleias gerais ou processos de mediação! As resoluções artísticas de conflitos encorajam novos modos de se olhar os problemas, e subverte a possibilidade de mediadores permanentes ou facilitadores de reunião ganharem poder ao monopolizar o papel de árbitro.

Reunindo-se nas ruas

Os políticos e tecnocratas são claramente incapazes de tomar decisões responsáveis para milhões de pessoas. Eles aprenderam o bastante de muitos de seus erros passados que os governos normalmente não colapsam sob o peso de sua própria incompetência, mas eles dificilmente criaram o melhor de todos os mundos possíveis. Se eles dão conta de manter suas absurdas burocracias funcionando, não é um pulo irracional pensar que nós poderíamos nos organizar em nossas comunidades ao menos por nós mesmos. A hipótese da sociedade autoritária, de que uma população grande e diversificada precisa de instituições especializadas para controlar as tomadas de decisões, pode ser refutada muitas vezes. O MST do Brasil mostra como num grande grupo de pessoas, a maioria dos poderes de tomadas de decisão pode residir em níveis de base, com comunidades individuais que dão conta de suas próprias necessidades. As pessoas de Oaxaca mostraram que toda uma sociedade moderna pode se organizar e coordenar a resistência contra os constantes assédios da polícia e paramilitares, com assembleias abertas. Os infoshops anarquistas e os kibbutz israelenses mostram que grupos realizando operações complexas, que têm que pagar o aluguel ou cumprir com horários de produção enquanto cumprem os objetivos sociais e culturais que as empresas capitalistas nem tentam, podem tomar decisões de forma oportuna e cumprir essas decisões sem que haja imposição de classe. Os núbios mostraram que a tomada de decisão horizontal pode permanecer por gerações, mesmo depois da colonização, e que com uma cultura restauradora e compartilhada de resoluções de conflitos não há a necessidade de uma instituição especializada para resolver os conflitos.

Durante a maioria da história humana, nossas sociedades têm sido igualitárias e auto-organizadas, e não perdemos a capacidade de tomar e cumprir decisões que afetam nossas vidas, ou a imaginar novas e melhores formas de organização. Sempre que as pessoas superam a alienação e juntam-se em seus bairros, elas desenvolvem incríveis novas formas de coordenar e tomar decisões. Uma vez que libertadas por conta própria dos latifundiários, padres, e prefeitos, os camponeses sem educação e oprimidos de Aragão provaram a si mesmos dignos da tarefa de não somente construir todo um mundo novo, mas centenas deles.

Novos métodos de tomadas de decisões são normalmente influenciadas por valores culturais e instituições preexistentes. Quando as pessoas recapturam a autoridade para a tomada de decisões sobre os aspectos de suas vidas, elas deveriam perguntar a si mesmas quais pontos de referência e precedentes já existem em suas culturas, e quais desvantagens arraigadas elas terão que superar. Por exemplo, pode haver uma tradição das reuniões da cidade que pode expandir-se do ornamento simbólico de janelas para a auto-organização de fato; por outro lado, as pessoas podem estar partindo de uma cultura machista, que neste caso terão que aprender a escutar, a se comprometer e a fazer perguntas. Alternativamente, se um grupo desenvolve um método de tomada de decisão que é totalmente original e alheio a sua sociedade, ele pode ter dificuldades ao integrar novas pessoas e explicar seus métodos para gente de fora – às vezes, isso é uma fraqueza dos infoshops nos Estados Unidos, que empregam uma forma de tomar decisões bem pensada, ideal e suficientemente complexa para que resulte estranha, incluindo para muitos dos participantes.

Um grupo antiautoritário pode usar alguma forma de consenso, ou o voto majoritário. Muitos grupos acharam o voto uma forma mais rápida e mais eficiente, mas pode ser também silenciador de uma minoria. Talvez a parte mais importante do processo seja a discussão que acontece antes da decisão; a votação não diminui a importância de métodos que permitem a todas as pessoas se comunicarem e a chegarem a bons compromissos. Muitos vilarejos autônomos em Oaxaca, em última instância, usaram o voto para tomar decisões, e eles deram um exemplo inspirador de auto-organização para radicais que rejeitam o voto a priori. Ainda que a estrutura de um grupo influencie sem sombra de dúvidas na cultura e nos seus resultados, a formalidade do voto pode ser uma forma aceitável se todas as discussões que estão em pauta forem antecipadas por um espírito de solidariedade e cooperação.

Em uma sociedade auto-organizada, nem todo mundo participará de forma igual em reuniões ou outros espaços formais. Um órgão de tomada de decisões pode eventualmente se tornar dominado por certas pessoas, e a assembleia por si só pode se tornar uma instituição burocratizada com poderes coercitivos. Por essa razão, pode ser necessário desenvolver formas descentralizadas e sobrepostas de organização e tomada de decisão, assim como manter um espaço para a organização espontânea que ocorre fora de toda as estruturas pré-existentes. Caso haja somente uma única estrutura no qual todas as decisões são feitas, uma cultura interna pode desenvolver algo que não é inclusivo para todo mundo na sociedade; então participantes experientes podem galgar posições de liderança, e a atividade humana externa à estrutura pode ser deslegitimada. Mais cedo ou mais tarde, se tem um governo. Os kibbutz e a APPO ambos evidenciaram o crescente desenvolvimento da burocracia e da especialização.

Mas, se existe múltiplas estruturas de tomadas de decisões para as mais diferentes esferas da vida, e se elas podem surgir ou desaparecer de acordo com a necessidade, nenhuma delas pode monopolizar a autoridade. Neste sentido, o poder precisa permanecer nas ruas, nas casas, nas mãos das pessoas que o exercitam, nas reuniões das pessoas que se juntam para resolver os problemas.

Leitura recomendada

Gaston Leval, Collectives in the Spanish Revolution, London: Freedom Press, 1975 (translated from the French by Vernon Richards).

Melfor E. Spiro, Kibbutz: Venture in Utopia, New York: Schocken Books, 1963.

Peter Gelderloos, Consensus: A New Handbook for Grassroots Social, Political, and Enviromental Groups, Tucson: See Sharp Press, 2006.

Natasha Gordon and Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey through Argentina's Popular Uprising, Leeds (UK): University of Leeds, 2004.

Marianne Maeckelbergh, The Will of the Many: How the Alterglobalisation Movement is Changing the Face of Democracy, London: Pluto Press, 2009.

Capítulo 3 — Economia

O anarquismo opõe-se ao capitalismo e à propriedade privada de instrumentos, infraestrutura e recursos que as pessoas precisam para o seu sustento. Modelos econômicos anarquistas vão desde comunidades caçadoras-coletoras e comunas agrícolas até complexos industriais nos quais o planejamento é conduzido por sindicatos e a distribuição é realizada através de cotas ou de uma forma limitada de moeda. Todos esses modelos baseiam-se nos princípios de trabalhar conjuntamente para satisfazer necessidades comuns e de rejeitar de todas as formas de hierarquia – como patrões, gerencialismos e a divisão da sociedade em classes como ricos e pobres ou proprietários e trabalhadores.

Sem salários, qual é o incentivo para trabalhar?

Algumas pessoas preocupam-se com que ninguém mais irá trabalhar se abolirmos o capitalismo e o trabalho assalariado. É verdade que o trabalho tal como existe atualmente para a maioria das pessoas vai deixar de existir; porém, o trabalho que é socialmente útil oferece muitos incentivos além do pagamento. Na realidade, receber pagamento para fazer algo torna esse algo menos agradável. A alienação do trabalho, que é uma parte do capitalismo, destrói os incentivos naturais para trabalhar, como o prazer de agir livremente e a satisfação de um trabalho bem feito. Quando o trabalho nos coloca em uma posição de inferioridade – em relação ao patrão que nos vigia e às pessoas ricas que são donas do nosso local de trabalho – e não temos o poder de tomada de decisão em nosso trabalho, tendo que seguir ordens sem pensar, ele pode tornar-se penosamente odioso e anestesiante. Também perdemos nosso incentivo natural para o trabalho quando não estamos fazendo algo útil para nossas comunidades. Dos poucos trabalhadores que têm atualmente a sorte de realmente ver o que produzem, quase todos estão fazendo algo que é rentável para seus empregadores, mas completamente sem sentido para eles pessoalmente. A linha fordista de estruturação do trabalho transforma as pessoas em máquinas. Ao invés de cultivar habilidades de que os trabalhadores podem se orgulhar, ela prova-se mais efetiva em relação a custos ao dar a cada pessoa uma tarefa única e repetitiva, colocando-a em uma linha de montagem. Não admira que tantos trabalhadores sabotem ou roubem os seus locais de trabalho, ou ainda que apareçam com uma pistola automática e “vão à loucura”.

A ideia de que sem salários as pessoas parariam de trabalhar não tem fundamento. Na vasta linha do tempo da história humana, os salários são uma invenção relativamente recente, e as sociedades que existiram sem moeda ou salários não morriam de fome porque ninguém pagava os trabalhadores. Com a abolição do trabalho assalariado, somente aquele tipo de trabalho cuja utilidade ninguém consegue justificar desapareceria; todo o tempo e os recursos gastos para fazer toda essa porcaria inútil em que a nossa sociedade está se afogando seriam poupados. Pense no quanto de nossos recursos e trabalho vão para publicidade, embalagens e bens descartáveis – coisas de que ninguém se orgulha de fazer, feitas para durar pouco tempo, de modo que você tenha que comprar a próxima versão.

Sociedades indígenas com menor divisão do trabalho não têm nenhum problema em viver sem salário porque suas atividades econômicas primárias – produzir comida, moradia, vestimenta, ferramentas – são todas facilmente ligadas às necessidades comuns. Nessas circunstâncias, o trabalho é uma atividade social necessária e uma clara obrigação de todo membro apto da comunidade. E como o trabalho se dá em lugares flexíveis e pessoais, ele pode ser adaptado às capacidades de cada pessoa, não havendo nada que o impeça de se tornar uma brincadeira. Consertar sua casa, caçar, passear pela mata identificando plantas e animais, costurar, cozinhar – a classe média entediada não faz isso em seus momentos de lazer para esquecer seus empregos asquerosos por um momento?

Sociedades anticapitalistas com maior especialização econômica desenvolveram vários métodos para dar incentivos e para distribuir os produtos do trabalho. Os já mencionados kibbutzim israelenses oferecem um exemplo de incentivos para o trabalho na ausência de salários. Um livro que documenta a vida e o trabalho em um kibbutz identifica quatro motivações maiores para se trabalhar dentro de equipes cooperativas, sem competição individual ou intenção de lucro: a produtividade do grupo afeta o padrão de vida da comunidade inteira, então existe uma pressão do grupo para se trabalhar duro; as pessoas trabalham onde quiserem e obtêm satisfação em seus trabalhos; elas desenvolvem um orgulho competitivo se sua área de trabalho se sai melhor que as outras; enquanto valor cultural, o trabalho gera prestígio no ‘’kibbutz’’.[4.1] Como descrito anteriormente, o declínio dos kibbutzim origina-se do fato de que eles eram empresas socialistas competindo dentro de uma economia capitalista, e, por isso, submetidas mais à lógica da competição do que à da ajuda mútua. Uma comuna organizada de modo semelhante em um mundo sem o capitalismo não enfrentaria esses problemas. Em todo caso, a rejeição ao trabalho devido à falta de salários não era um dos problemas que os kibbutzim enfrentavam.

Muitos anarquistas sugerem que os germes do capitalismo estão contidos na própria mentalidade da produção. Mesmo que um dado tipo de economia consiga sobreviver, com muito menor crescimento, dentro do capitalismo, essa é uma fraca medida de seu potencial de libertação. Anarquistas propõem e debatem muitas formas diferentes de economia, algumas podendo ser praticadas em um grau limitado porque são completamente ilegais no mundo atual. No movimento europeu de ocupações [squats, okupas], algumas cidades tiveram ou continuam a ter muitas casas e centros sociais ocupados que constituem uma outra sociedade. Em Barcelona, no ano de 2008, havia pelo menos quarenta centros sociais e duzentas casas ocupadas. Os coletivos de pessoas que moram nessas ocupações geralmente usam o consenso e as assembleias, e a maioria é anarquista ou explicitamente antiautoritária. Para uma grande parcela, o trabalho e a troca foram abolidos de suas vidas, cujas redes envolvem milhares de pessoas. Muitas dessas pessoas não têm empregos assalariados ou trabalham sazonal ou esporadicamente, já que não precisam pagar aluguel. O autor deste livro, por exemplo, viveu nesta rede por dois anos e sobreviveu na maior parte do tempo com menos de um euro por dia. Além disso, o grande número de atividades que ocorre dentro do movimento autônomo não são remuneradas. Mas não há necessidade de salários: as pessoas trabalham para si mesmas. Elas ocupam prédios abandonados pela especulação imobiliária, tanto como protesto contra a gentrificação quanto como ação direta anticapitalista, para prover moradia a si mesmas. Ensinando-se e aprendendo as habilidades de que necessitam, elas arrumam suas novas casas, limpando-as, consertando os telhados, instalando janelas, banheiros, luzes, cozinhas e tudo do que precisam. Geralmente elas fazem gatos para ter eletricidade, água e internet, e boa parte da sua comida vem da coleta do que era lixo para outras pessoas, furtos e hortas ocupadas.

Na total ausência de salários ou gerentes, elas têm bastante trabalho, mas em seu próprio ritmo e lógica – a da ajuda mútua. Além de consertar suas próprias casas, elas também direcionam suas energias trabalhando para a vizinhança e para o enriquecimento de suas comunidades, satisfazendo muitas de suas necessidades coletivas além da moradia. Alguns centros sociais têm oficinas de conserto de bicicletas, permitindo que as pessoas consertem ou façam suas próprias bicicletas, usando partes usadas. Outros oferecem oficinas de carpintaria, autodefesa, ioga e vida saudável, bibliotecas, hortas, refeições conjuntas, grupos de arte e teatro, aulas de idiomas, mídias alternativas e contrainformação, apresentações de música e de filmes, laboratórios de informática onde as pessoas podem usar a internet e aprender sobre segurança nos seus e-mails ou hospedar seus próprios sites, e eventos de solidariedade para lidar com a inevitável repressão. Quase todos esses serviços são oferecidos de maneira completamente gratuita. Não existe troca: um grupo se organiza para fornecer um serviço e a rede social inteira se beneficia.

Com uma grande quantidade de iniciativas em uma sociedade tão passiva, as ocupações têm regularmente ideias para organizar refeições conjuntas, oficinas de conserto de bicicletas ou exibições semanais de filmes; depois de falar com amigos e amigos de amigos, até terem pessoas e recursos suficientes para tornar a ideia concreta, são espalhados convites para as atividades, oralmente ou através de cartazes, com a esperança de que o maior número de pessoas compareça e participe. Numa mentalidade capitalista, elas estão avidamente convidando pessoas para roubá-las, mas as ocupações nunca param para questionar atividades que não lhes dão retorno em dinheiro. É evidente que foi criada aí uma nova forma de riqueza, e compartilhar o que as ocupações fazem as torna claramente mais ricas.

A vizinhança próxima também se torna mais rica, já que as ocupações tomam a iniciativa de criar projetos muito mais rapidamente do que o governo local conseguiria. Por exemplo, uma revista de uma associação de bairro em Barcelona elogiava uma ocupação local por responder a uma demanda que o governo ignorava havia anos: construir uma biblioteca. Além disso, uma revista da grande imprensa notava que “os integrantes das ocupações realizam os trabalhos que a prefeitura ignora”.[4.2] No mesmo bairro, as ocupações demonstraram ser grandes aliadas dos vizinhos que pagavam aluguel e estavam sendo pressionados pelos locatários. Os integrantes das ocupações trabalharam incansavelmente junto a uma associação de pessoas que enfrentavam situações de expulsão ilegal e assédio por parte dos locatários, impedindo, no fim, a expulsão de seus vizinhos.

Em uma tendência que parece comum à total abolição do trabalho, o social e o econômico parecem misturar-se de modo inseparável. Não se fixa um valor monetário ao trabalho e aos serviços, pois eles são atividades sociais realizadas individual ou coletivamente como parte da vida cotidiana, sem qualquer necessidade de contabilidade ou gerenciamento. O resultado é que, em cidades como Barcelona, as pessoas podem passar a maior parte do seu tempo e satisfazer a maioria das suas necessidades – desde a moradia até o entretenimento – dentro dessa rede social de ocupações, sem trabalho assalariado e quase sem dinheiro. É claro que nem tudo pode ser furtado (não ainda) e os integrantes das ocupações ainda têm que vender seu trabalho para pagar assistência médica e outros custos. Mas, para muitas pessoas, a natureza excepcional dessas coisas que não podem ser produzidas pelas próprias pessoas, coletadas nas ruas ou furtadas e a afronta que é ter de vender momentos valiosos da sua vida para trabalhar para uma corporação podem ter o efeito de aumentar o grau de conflito com o capitalismo.

Uma armadilha de qualquer movimento poderoso o suficiente para criar uma alternativa ao capitalismo é que seus participantes podem facilmente tornar-se complacentes ao viver em sua bolha de autonomia e perder a vontade de lutar pela abolição completa do capitalismo. O ato de ocupar em si pode facilmente se tornar um ritual; em Barcelona, por exemplo, o movimento como um todo não usou a mesma criatividade que tem no que se refere a muitos aspectos práticos de conserto de casas, ou para encontrar a sua subsistência com pouco ou nenhum dinheiro, em atividades de resistência ou de ataque. A natureza autossustentável da rede de ocupações, a presença imediata de liberdade, iniciativa, prazer, independência e comunidade em suas vidas não destruíram de nenhuma forma o capitalismo, mas revelaram que este é um morto-vivo, com somente a polícia para impedir que ele seja extinto e substituído por formas muito superiores de vivência.

As pessoas não precisam de patrões e especialistas?

Como os anarquistas podem organizar-se no seu local de trabalho e coordenar as questões de produção e distribuição em uma economia inteira sem patrões e gerentes? Na realidade, perde-se uma grande quantidade de recursos na competição e nos intermediários. No fim das contas, a produção e a distribuição são conduzidas por trabalhadores, e eles sabem como coordenar o seu próprio trabalho na ausência de patrões.

Em Turim e arredores, na Itália, 500 mil trabalhadores participaram do movimento de tomada de fábricas ocorrido depois da Primeira Guerra Mundial. Comunistas, anarquistas e outros trabalhadores que estavam cansados de ser explorados realizaram greves selvagens, muitas vezes ganhando o controle de suas fábricas e instalando Conselhos Fabris para coordenar suas atividades, sendo capazes de conduzir as fábricas por conta própria, sem patrões. Eventualmente, os Conselhos foram legalizados e acabaram – em parte cooptados e absorvidos pelos sindicatos, cuja existência institucional, tanto quanto a dos proprietários, estava ameaçada pelo poder autônomo dos trabalhadores.

Em dezembro de 2001, uma crise econômica que vinha se arrastando havia tempos alcançou seu auge numa corrida aos bancos que precipitou uma revolta popular. A Argentina era a menina-dos-olhos de instituições neoliberais como o Fundo Monetário Internacional, mas as políticas que enriqueceram os investidores estrangeiros e deram à classe média nacional um estilo de vida de primeiro mundo acabaram criando uma pobreza aguda para a maior parte a população. A resistência anticapitalista já estava amplamente desenvolvida entre as pessoas sem emprego e, depois que a classe média perdeu todas as suas economias, milhões de pessoas tomaram as ruas, rejeitando todas as falsas soluções e justificativas oferecidas pelos políticos, economistas e mídia, declarando, por sua vez: “Que se vayan todos!”. Dezenas de pessoas foram mortas pela polícia; mesmo assim, houve resistência. O terror disseminado lembrou a ditadura militar das décadas de 1970 e 80.

Centenas de fábricas abandonadas por seus proprietários foram ocupadas por trabalhadores, que reiniciaram a produção para poderem sustentar suas famílias. As fábricas ocupadas mais radicais chegaram a nivelar salários e compartilhar os compromissos da gerência entre todos os trabalhadores. As decisões eram tomadas em encontros abertos e alguns trabalhadores compartilhavam conhecimento em áreas como a contabilidade. Para garantir que uma nova classe diretiva não surgisse, algumas fábricas promoviam a rotação de tarefas de direção ou exigiam que as pessoas que ocupavam papéis de gerência também trabalhassem no chão de fábrica. Quando da escrita deste livro, algumas fábricas ocupadas tinham conseguido expandir sua força de trabalho e contratar mais trabalhadores da imensa população desempregada argentina. Em alguns casos, fábricas ocupadas comercializavam suprimentos e produtos necessários entre si, criando uma outra economia com um espírito de solidariedade.

A Zanon [hoje FaSinPat, acrônimo de “Fábrica Sin Patrones”], fábrica de cerâmica localizada no sul da Argentina, é um dos exemplos mais conhecidos. Ela foi fechada pelo proprietário em 2001 e ocupada pelos trabalhadores em janeiro de 2002. A fábrica começou a ser administrada através de reuniões e comissões abertas realizadas para os trabalhadores gerenciarem os setores de vendas, administração, planejamento, segurança, higiene, compras, produção, distribuição e imprensa. Após a ocupação, os trabalhadores demitidos por causa do fechamento foram recontratados. Em 2004, a fábrica somava duzentos e setenta trabalhadores e produzia 50% do que era produzido antes do fechamento. A assistência médica foi provida por médicos e psicólogos trazidos ao local. Os trabalhadores descobriram que podiam pagar sua mão-de-obra com apenas dois dias de produção, então diminuíram os preços em 60% e organizaram uma rede de vendedores jovens, anteriormente desempregados para vender telhas de cerâmica pela cidade. Além da produção de telhas, a Zanon envolve-se com movimentos sociais, doando dinheiro para hospitais e escolas, vendendo telhas a preço de custo para pessoas pobres, servindo de sede para apresentações de filmes e espetáculos e conduzindo ações de solidariedade juntamente com outras lutas. Ela também apoia a luta dos Mapuche por autonomia; e quando o seu principal fornecedor deixou de fazer negócios com ela por razões políticas, os Mapuche tornaram-se os principais fornecedores de barro. Até abril de 2003, a fábrica havia enfrentado quatro tentativas de expulsão pela polícia, com o apoio dos sindicatos. Em todas, os trabalhadores resistiram à força, com a ajuda de pessoas próximas, piqueteros',' entre outras.

Em julho de 2001, os trabalhadores do supermercado El Tigre, em Rosário, na Argentina, ocuparam o local. O proprietário o tinha fechado dois meses antes e declarado bancarrota, ainda devendo dois meses de salário aos funcionários. Depois de protestar sem resultados, os trabalhadores reabriram o supermercado e começaram a administrá-lo por conta própria através de uma assembleia que dava a todos os trabalhadores espaço na tomada de decisões. Dentro de um espírito de solidariedade, eles reduziram os preços e começaram a vender frutas e vegetais de uma cooperativa de agricultores local e produtos feitos nas fábricas ocupadas. Parte do espaço também foi usada para abrir um centro cultural para o bairro, sediando discussões políticas, grupos de estudo, oficinas de teatro e ioga, apresentações de marionetes, um café e uma biblioteca. Em 2003, o centro cultural de El Tigre sediou o encontro nacional de fábricas recuperadas, com a presença de mil e quinhentas pessoas. Maria, uma integrante do coletivo, falou o seguinte sobre sua experiência: “Três anos atrás, se alguém tivesse me dito que poderíamos administrar esse lugar, eu nunca teria acreditado... Acreditava que nós precisávamos de patrões para nos dizer o que fazer, mas agora percebo que, em conjunto, podemos fazer melhor que antes”.[4.3]

Em Euskal Herria, o país Basco ocupado pelos Estados da Espanha e da França, um grande complexo de negócios cooperativos e de propriedade dos trabalhadores surgiu nas proximidades da pequena cidade de Mondragón. Tudo começou com uma cooperativa de vinte e três trabalhadores, em 1956; em 1986, já eram 19.500 trabalhadores em mais de cem cooperativas, sobrevivendo apesar da forte recessão de então na Espanha e com uma taxa de sobrevivência muito maior do que a média das empresas capitalistas:

Mondragón teve uma rica experiência por muitos anos na fabricação de produtos bastante variados, como móveis, equipamentos para cozinha, máquinas e componentes eletrônicos e na impressão, na construção naval e fundição de minérios. Mondragón criou cooperativas híbridas compostas tanto por consumidores e trabalhadores quanto por agricultores e trabalhadores. O complexo desenvolveu sua própria cooperativa de previdência social e um banco cooperativo que está crescendo mais rapidamente que qualquer outro banco nas províncias bascas.[4.4]

A mais alta autoridade nas cooperativas de Mondragón é a assembleia geral, em que todo trabalhador tem direito ao voto; a administração específica da cooperativa é realizada por um conselho governante eleito, auxiliado por um conselho administrativo e um conselho social.

Também há muitas críticas ao complexo de Mondragón. Para anarquistas, não é surpresa que uma estrutura democrática possa ter um grupo de elite, e, de acordo com as críticas, é exatamente isso o que ocorreu à medida que o complexo cooperativo procurava – e alcançava – o sucesso dentro da economia capitalista. Apesar de tudo o que alcançou ser impressionante e contrariar a suposição de que grandes indústrias devem ser organizadas hierarquicamente, a compulsão das cooperativas para atingir a rentabilidade e serem competitivas levou-as a administrar sua própria exploração. Por exemplo, depois de décadas mantendo-se fiéis aos seus princípios igualitários em relação ao pagamento, eventualmente as cooperativas de Mondragón decidiram aumentar os salários dos especialistas gerenciais e técnicos. A justificativa dada foi que era difícil manter pessoal que pudesse receber um pagamento muito mais alto em uma outra empresa. Esse problema indica uma necessidade de congregar tarefas manuais e intelectuais para evitar a profissionalização de especialistas (isto é, desenvolver especialidades como qualidades restritas a uma pequena elite); para construir uma economia na qual as pessoas produzem não para o lucro, mas para os outros membros da rede, de modo que o dinheiro perca a sua importância e as pessoas ajam dentro de um senso de comunidade e solidariedade.

As pessoas nas sociedades de alta tecnologia de hoje em dia são treinadas para acreditar que eventos do passado ou do mundo “subdesenvolvido” não têm valor para a nossa situação atual. Muitas pessoas que se consideram sociólogas e economistas renegam o exemplo de Mondragón classificando a cultura basca como excepcional. Mas existem outros exemplos da eficácia de locais de trabalho igualitários, mesmo no coração do capitalismo.

A Gore Associates é uma empresa bilionária com sede no estado norte-americano de Delaware que produz o Gore-Tex, um material à prova d'água que funciona como isolamento especial para cabos de computadores, usado pelas indústrias médica, automotiva e de semicondutores. Lá, os salários são decididos coletivamente, não há desigualdade entre posições na empresa ou uma estrutura formal de gerenciamento e a diferença entre empregados é minimizada. De acordo com todos os padrões capitalistas de desempenho – rotatividade de pessoal, rentabilidade, reputação do produto, listas das melhores companhias para trabalhar –, a Gore é um sucesso.

Um fator importante em seu sucesso é a sua adesão ao que alguns acadêmicos chamam de Regra dos 150. Com base na observação de que grupos caçadores-coletores pelo mundo – assim como comunidades e comunas intencionais bem sucedidas – parecem manter seu tamanho entre cem e cento e cinquenta pessoas, a teoria assume que o cérebro é mais bem equipado para se guiar em redes de relações pessoais de até cento e cinquenta pessoas. Manter relações pessoais, lembrar nomes, status sociais e códigos de conduta e comunicação estabelecidos – tudo isso exige espaço mental; assim como outros primatas tendem a viver em grupos de um número máximo de integrantes, os seres humanos são provavelmente adaptados para manter um certo número de colegas. Todas as fábricas da Gore mantêm menos de cento e cinquenta pessoas empregadas, de modo que cada planta pode ser inteiramente autogestionada – não somente no chão de fábrica, mas também por aqueles responsáveis pelo marketing, pesquisas e outras tarefas.[4.5]

Pessoas céticas geralmente rejeitam o exemplo anarquista de sociedades “primitivas” de pequena escala argumentando que não é mais possível organizar-se em tal escala, dada a imensa população atual. Mas é justamente a organização em muitas pequenas unidades que dá um fim a essa sociedade imensa. A organização de pequena escala é obviamente possível. Mesmo dentro de uma indústria de alta tecnologia, as indústrias Gore conseguem coordenar-se entre si e com fornecedores e consumidores ao mesmo tempo que mantêm sua estrutura organizacional de pequena escala. Cada unidade é capaz de organizar suas relações internas do mesmo modo que as externas.

É claro que o exemplo de uma fábrica produzindo com sucesso dentro do sistema capitalista deixa muito a desejar. A maioria dos anarquistas preferiria ver todas as fábricas reduzidas a cinzas a ver formas de organização antiautoritárias sendo usadas para suavizar o capitalismo. Esse exemplo, entretanto, deve mostrar que, mesmo dentro de uma sociedade grande e complexa, a auto-organização funciona.

O exemplo da Gore também é problemático porque os trabalhadores não são donos da fábrica, além de haver o risco de um gerenciamento formal ser imposto novamente a qualquer momento pelos donos da companhia. Anarquistas teorizam que os problemas do capitalismo não existem somente na relação entre trabalhadores e proprietários, mas também entre trabalhadores e gerentes; enquanto a relação gerente-trabalhador persistir, o capitalismo pode reemergir. Essa teoria certamente nasceu do exemplo de Mondragón, em que gerentes que faziam hora extra ganhavam maiores salários e mais poder, renovando as dinâmicas desiguais e com vistas ao lucro típicas do capitalismo. Levando isso em conta, alguns anarquistas fizeram um esboço de uma “economia participativa”, ou parecon[4.6], apesar de ainda não ter havido oportunidade para instalar uma economia como essa em uma escala considerável. A ênfase da economia participativa está, entre outras questões, na importância de empoderar todos os trabalhadores, misturando tarefas criativas e repetitivas, mentais e manuais, criando assim “complexos de trabalho balanceado” que evitarão o surgimento de uma classe gerencial.[4.7]

Durante a revolta em Oaxaca em 2006, pessoas sem experiência prévia organizaram-se para gerenciar estações de rádio e televisão ocupadas. Sua motivação era a necessidade social de meios de comunicação livres. A Marcha das Panelas [Marcha de las Cacerolas], a lendária marcha das mulheres realizada em 1º de agosto de 2006, culminou com milhares de mulheres tomando espontaneamente a estação de televisão estatal. Inspiradas pelo repentino senso de poder que ganharam rebelando-se contra uma sociedade patriarcal, elas tomaram o Canal 9, o qual continuamente difamava os movimentos sociais, ao mesmo tempo em que afirmava ser o canal do povo. Primeiramente, elas fizeram o pessoal da engenharia ajudá-las a dirigir a estação, mas em pouco tempo elas estavam aprendendo a realizar as tarefas por conta própria. Como uma mulher relatou:

Eu ia diariamente ao canal para montar guarda e ajudar. As mulheres estavam organizadas em diferentes comissões: comida, higiene, produção e segurança. Uma coisa de que gostei é que não havia líderes individuais. Para cada tarefa, havia um grupo de algumas mulheres encarregado. Aprendemos tudo do início. Lembro de alguém perguntando quem sabia usar um computador. Então muitas das garotas mais jovens levantaram dizendo “eu, eu, eu sei!”. Na Radio Universidad, anunciaram que precisávamos de gente com habilidades técnicas e mais pessoas vieram ajudar. No começo, filmávamos cortando a cabeça das pessoas. Mas a experiência no Canal 9 nos mostrou que, onde há vontade, há um caminho. As coisas foram feitas, e bem feitas.

No curto período [três semanas] em que estávamos conduzindo o Canal 9 – até o Governador Ulises ordenar a destruição das antenas –, conseguimos disseminar muita informação. Passávamos filmes e documentários que você nunca poderia imaginar que passassem na TV: sobre diferentes movimentos sociais, sobre o massacre de estudantes de Tlatelolco, na Cidade do México, em 1968, os massacres de Aguas Blancas em Guerrero [em 1995] e de Acteal em Chiapas [em 1997], sobre guerrilhas em Cuba e El Salvador. Nesse momento, o Canal 9 não era mais somente o canal das mulheres, era o canal de todas as pessoas. Aquelas que participaram também fizeram seus próprios programas. Havia um programa para jovens e outro com participação de comunidades indígenas. Havia um programa de denúncias, no qual qualquer pessoa podia vir e denunciar como o governo a tinha tratado. Muitas pessoas de vários bairros e comunidades queriam participar, de modo que mal havia tempo suficiente para todas.[4.8]

Depois que a estação de televisão ocupada foi tirada do ar, o movimento respondeu ocupando todas as onze estações de rádio comerciais em Oaxaca. A homogeneidade das rádios comerciais foi substituída por uma miríade de vozes – uma rádio para estudantes universitários, uma para os grupos de mulheres, uma para os anarquistas de uma ocupação de punks – e havia mais vozes indígenas no rádio do que em qualquer outra ocasião. Em pouco tempo, as pessoas no movimento decidiram devolver as rádios aos seus antigos proprietários, mas mantiveram o controle de duas delas. Seu objetivo não era suprimir as vozes que se lhes opunham – mesmo que as vozes comerciais sejam artificiais –, mas criar meios para se comunicar. As estações de rádio remanescentes operaram com sucesso por meses, até que a repressão governamental fechou-as. Um estudante universitário envolvido na tomada, no controle e na defesa das estações de rádio disse:

Depois da tomada, li um artigo que dizia que os autores intelectuais e materiais das tomadas das rádios não eram de Oaxaca, mas que tinham vindo de outros lugares para dar apoio especializado. Lá dizia que teria sido impossível para qualquer pessoa sem treinamento prévio operar as rádios em tão pouco tempo, porque o equipamento é muito sofisticado para qualquer pessoa usar. O artigo estava errado.[4.9]

Quem vai recolher o lixo?

Se todas as pessoas estiverem livres para trabalharem como escolherem, quem vai recolher o lixo ou realizar outros trabalhos indesejados? Felizmente, em uma sociedade anticapitalista localizada não poderíamos externalizar, ou esconder, os custos de nosso estilo de vida pagando para outras pessoas limparem nossa sujeira. Teríamos de pagar pelas consequências de todas as nossas ações, em vez de pagar para a China levar o nosso lixo tóxico, por exemplo. Se um serviço necessário como a coleta de lixo estivesse sendo negligenciado, a comunidade rapidamente notaria e teria de decidir como resolver esse problema. As pessoas poderiam concordar em conceder um pagamento adicional a esse trabalho – nada que se traduza em poder ou autoridade; pelo contrário, algo como ser o primeiro da fila quando produtos diferentes chegam à cidade, receber uma massagem ou um bolo, ou simplesmente o reconhecimento e a gratidão por ser um bom membro da comunidade. Ou seja, em uma sociedade cooperativa, ter uma boa reputação e ser visto pelas outras pessoas como responsável são incentivos maiores do que recompensas materiais.

A comunidade também poderia decidir que todas as pessoas deveriam envolver-se nessas tarefas de maneira rotativa. Uma atividade como a coleta do lixo não precisa ser a “carreira” de alguém numa economia anticapitalista. Tarefas necessárias que ninguém deseja realizar devem ser compartilhadas por todas as pessoas. Assim, ao invés de umas poucas pessoas tendo de tirar o lixo sua vida inteira, todas as que estivessem fisicamente capazes teriam de fazer isso por algumas horas mensais.

A “cidade livre” de Christania é um quarteirão em Copenhague, na Dinamarca, que está ocupado desde 1971. Seus 850 habitantes são autônomos dentro de 34 hectares. As pessoas recolhem seu próprio lixo há mais de trinta anos. O fato de que elas recebem mais de um milhão de visitante por ano faz o seu feito ainda mais impressionante. Ruas, prédios, restaurantes e banheiros públicos são todos razoavelmente limpos – especialmente para hippies! O curso d'água que corre por Christania não é muito limpo, mas, levando em conta que Christania é bem arborizada e não tem automóveis, suspeita-se que a maior parte da poluição venha da cidade ao redor, que compartilha o curso d'água.

Os habitantes construíram dezenas de casas em Christania usando eco-designs inovadores. Também foram usados:

energia solar e eólica, compostagem e uma gama de outras inovações que respeitam o meio ambiente. Um método de tratamento de esgoto através de juncos – o que significa que a água que sai de Christania é tão limpa quanto a que sai das outras plantas de tratamento de Copenhague – ajudou a comuna a entrar na lista das concorrentes a um prêmio pan-escandinavo de vida ecológica.[4.10]

Diferentes pessoas entrevistadas têm diferentes concepções de como Christania é mantida limpa, sugerindo um tipo de sistema dual. Uma pessoa recém chegada disse que você limpa depois de usar e quando você sente que fez trabalho extra, é porque você fez. Um residente mais antigo e mais envolvido na tomada de decisões explicou que há um comitê do lixo responsável por manter Christiania limpa, embora a ajuda voluntária e a limpeza por todos os moradores seja claramente a parte mais fundamental.

Quem cuidará dos idosos e dos deficientes?

Somente numa sociedade com aquilo que é chamado eufemisticamente de “mercado altamente competitivo” as pessoas idosas e deficientes são tão marginalizadas. Para aumentar as margens de lucro, quem emprega evita contratar pessoas com deficiências e forçam trabalhadores mais velhos a se aposentarem. Quando os trabalhadores são compelidos a buscar frequentemente novos empregos, em uma cultura na qual o rito de passagem para a idade adulta é a mudança para sua própria casa, os pais são deixados sozinhos à medida que envelhecem ou têm de se mudar para qualquer tipo de asilo que possam pagar. Muitas dessas pessoas idosas morrem negligenciadas, sozinhas e em condições indignas, apresentando escaras (feridas causadas por imobilidade no leito) e não tendo as fraldas trocadas por dias. Em um mundo anarquista e anticapitalista, o tecido social não seria tão cruel.

Nos muitos experimentos que surgiram na Argentina em resposta à crise de 2001, floresceram economias de solidariedade e cuidado por todos os membros da sociedade. O colapso econômico no país não levou ao cenário de caos que os capitalistas temem. Em vez disso, o resultado foi uma explosão de solidariedade, e as pessoas idosas e deficientes não foram deixadas fora dessa rede de ajuda mútua. Participando das assembleias de bairro, elas tiveram uma chance de garantir suas próprias necessidades e representar a si mesmas nas decisões que afetariam suas vidas. Em algumas assembleias, os participantes sugeriam que aquelas pessoas que possuíam suas próprias casas dessem o dinheiro destinado ao imposto sobre propriedade para o hospital local e outras instalações de amparo. Em partes da Argentina com altos índices de desemprego, movimentos de trabalhadores desempregados tomaram efetivamente o controle e estão construindo novas economias. Em General Mosconi, uma cidade localizada na província de Salta (norte do país), cuja economia baseia-se no petróleo, a taxa de desemprego é superior a 40% e a área é bastante autônoma. O movimento organizou mais de trezentos projetos para descobrir as necessidades das pessoas, incluindo as das idosas e deficientes.

Mesmo na ausência de riqueza armazenada ou infraestrutura fixa, sociedades caçadoras-coletoras sem Estado geralmente tomam conta de todos os membros de sua comunidade, não importando se são economicamente produtivos. Na realidade, avós – geneticamente inúteis de um ponto de vista darwinista, já que sua idade de reprodução já passou[4.11] – são uma característica marcante da humanidade que remonta a milhões de anos atrás, e os fósseis do início de nossa espécie mostra que os idosos recebiam cuidados. Sociedades caçadoras-coletoras modernas demonstram não somente cuidado material pelas pessoas idosas, mas também algo que é invisível nos fósseis: o respeito. Os Mbuti, por exemplo, reconhecem cinco grupos etários – bebês, crianças, jovens, adultos e idosos – e desses somente os adultos possuem produção econômica significativa na forma de coleta e caça; no entanto, a riqueza social é compartilhada por todas as pessoas, não importando sua produtividade. Seria impensável deixar as idosas ou deficientes morrerem de fome simplesmente porque não trabalham. Do mesmo modo, os Mbuti incluem todos os membros de sua sociedade na tomada de decisões e na participação na vida política e social, e as pessoas idosas desempenham um papel especial na resolução de conflitos e na pacificação.

Como as pessoas terão assistência médica?

Capitalistas e burocratas veem a assistência médica como uma indústria – um modo de extorquir dinheiro das pessoas em necessidade – e também como um modo de acalmar a população e evitar revoltas. Não é surpresa que a qualidade da assistência médica seja geralmente sofrível. No país mais rico do mundo [EUA], milhões de pessoas não têm acesso a assistência médica, incluindo este autor, e, a cada ano, milhares de pessoas morrem de doenças que poderiam ser prevenidas ou tratadas.

Prover assistência médica é um objetivo chave de revolucionários anticapitalistas, tendo em vista que trabalhos e condições de vida perigosas e a falta de assistência médica foram sempre algumas das maiores injustiças dentro do capitalismo. Por exemplo, piqueteros desempregados e assembleias de bairro na Argentina geralmente instalavam clínicas ou tomavam e financiavam hospitais abandonados pelo Estado.

Durante a Guerra Civil Espanhola, o Sindicato Médico de Barcelona, organizado na maior parte por anarquistas, administrou dezoito hospitais (seis criados pelo próprio sindicato), dezessete sanatórios, vinte e duas clínicas, seis estabelecimentos psiquiátricos, três enfermarias e uma maternidade. Departamentos para atender pacientes eram instalados nas principais localidades da Catalunha. O sindicato enviava médicos para os locais que os pediam; o médico só poderia recusar com uma boa razão, “já que a medicina era considerada um serviço comunitário”[4.12]. Fundos para clínicas vinham de contribuições das municipalidades locais. A Unión de Trabajadores de Salud, de caráter anarquista, envolvia oito mil trabalhadores da saúde: 1020 médicos, 3206 enfermeiras, 133 dentistas, 330 parteiras e 153 herboristas, entre outros. A União operava trinta e seis centros de saúde distribuídos pela Catalunha para prover assistência médica a todas as pessoas na região inteira. Havia um sindicato central em cada uma das nove zonas e, em Barcelona, um comitê de controle composto por um delegado de cada seção reunia-se a cada semana para lidar com problemas comuns e implementar um plano comum. Cada departamento era autônomo dentro de sua própria esfera, mas não isolado, já que uns prestavam apoio aos outros. Além da Catalunha, a assistência médica era provida gratuitamente em coletivos agrários nas regiões de Aragón e Levante.

Mesmo no incipiente movimento anarquista nos EUA atual, anarquistas estão aprendendo sobre assistência médica e oferecendo-a. Em algumas comunidades, anarquistas estão aprendendo medicina alternativa para usar em suas comunidades. Em protestos, dada a probabilidade da violência policial, são organizadas redes de médicos voluntários que instalam estações de primeiros socorros e reúnem médicos que se deslocam para prover primeiros socorros a milhares de manifestantes. Esses médicos, geralmente treinados por conta própria, tratam dos efeitos de spray de pimenta e gás lacrimogêneo, de golpes de cassetete, armas de choque, balas de borracha, e ferimentos ocasionados por cavalos, entre outros, além de choques e traumas. O Grupo Médico de Libertação da Área de Boston [BALM Squad, na sigla em inglês] é um exemplo de grupo médico que se organiza permanentemente. Formado em 2001, seus integrantes já viajaram para protestos em outras cidades e oferecem treinamento de primeiros socorros. O grupo tem um site que compartilha informação e apresenta links para outras iniciativas, como a clínica Common Ground [Base Comum], descrita abaixo. Essa clínica é não-hierárquica e toma decisões em consenso, assim como o Coletivo Radical de Saúde da Área da Baía [Bay Area Radical Health Collective – Bay, no caso, refere-se à baía de São Francisco, na Califórnia], um grupo similar da costa oeste dos EUA.

Entre um protesto e outro, algumas feministas radicais dos EUA e do Canadá formaram Coletivos de Saúde da Mulher para lidar com as necessidades femininas. Alguns desses coletivos ensinam anatomia feminina de modos empoderadores e positivos, mostrando às mulheres como fazer em si mesmas exames ginecológicos, passar confortavelmente pela menstruação e praticar métodos contraceptivos seguros. O establishment médico patriarcal do Ocidente geralmente ignora a saúde da mulher a ponto de se tornar degradante e perigoso. Uma abordagem anti-establishment do tipo faça-você-mesma permite que pessoas marginalizadas subvertam um sistema negligente organizando-se para satisfazer suas próprias necessidades.

Depois que o Furacão Katrina devastou Nova Orleans, médicos ativistas se uniram a um antigo grupo dos Panteras Negras para criar a clínica Common Ground em uma das regiões mais necessitadas da cidade. Logo essas pessoas foram ajudadas por centenas de anarquistas e de outras voluntárias de todo o país, a maior parte sem experiência. Fundada a partir de doações e gerida por voluntárias, a clínica Common Ground já forneceu tratamento a dezenas de milhares de pessoas. O fracasso do “Gerenciamento Emergencial” criado por especialistas do governo durante a crise é amplamente reconhecido. Mas a Common Ground estava tão bem organizada que prestou mais auxílio que a Cruz Vermelha, apesar de esta ter muito mais experiência e recursos.[4.13] No processo, foi popularizado o conceito de ajuda mútua e o fracasso do governo foi posto às claras. No momento desta escrita, a Common Ground tinha quarenta organizadores que trabalhavam em tempo integral e estava em busca de uma saúde em um sentido muito mais amplo, criando jardins comunitários e lutando pelo direito de moradia, para que as pessoas que estavam sem teto por causa da tempestade não fossem impedidas de ter uma casa por causa dos planos governamentais de gentrificação. Ela ajudou a esvaziar e reconstruir muitas casas nos bairros mais pobres, os quais as autoridades queriam botar abaixo para dar mais espaço às pessoas brancas e ricas.

E a educação?

A educação é, há bastante tempo, uma prioridade de movimentos anarquistas e revolucionários pelo mundo. Mesmo que as pessoas ignorem totalmente a organização da educação depois da revolução, ela seria ainda assim uma melhoria em comparação com as formas de educação patrióticas, degradantes, manipuladoras e automáticas patrocinadas pelo Estado-Nação. Como quaisquer outras pessoas, as crianças são capazes de educar a si mesmas e motivam-se a fazê-lo num contexto adequado. Mas as escolas públicas raramente oferecem esse contexto e também não educam os estudantes em tópicos de utilidade imediata, como sobreviver à infância, expressar emoções de modo saudável, desenvolver seus potenciais criativos individuais, tomar cuidados com a saúde ou cuidar de pessoas doentes, lidar com violência de gênero, abuso doméstico ou alcoolismo, combater o bullying, comunicar-se com os pais, explorar sua sexualidade de uma maneira respeitosa, encontrar um emprego e um apartamento ou viver sem dinheiro, ou outras capacidades que jovens precisam para viver. Nas poucas aulas em que são ensinadas habilidades úteis – quase todas eletivas –, os estudantes são “guiados”. As garotas aprendem a cozinhar e costurar em trabalhos domésticos, enquanto os garotos, que provavelmente vão para empregos de colarinho azul (isto é, manuais), aprendem a trabalhar com madeira em lojas. É seguro dizer que a maior parte dos garotos termina o ensino médio [a high school, nos EUA, onde a escolarização vai até os 18 anos] sem saber cozinhar ou remendar suas roupas, enquanto a maioria das garotas e futuros trabalhadores de colarinho branco recebem o diploma sem saber consertar uma privada ou uma bicicleta, montar uma instalação elétrica, calcinar um muro ou trabalhar com madeira. Ainda, nas aulas de computação e tecnologia, o fato de que os estudantes geralmente sabem mais que os professores é uma clara indicação de que algo está errado com essa forma de educação. As escolas não ensinam às crianças nem mesmo as habilidades de que precisam para os péssimos empregos em que vão acabar trabalhando. As pessoas ensinam a si mesmas ou aprendem com amigas e companheiras: a escola da vida já é anarquista.

As mais importantes lições ensinadas pelas escolas sob o comando do Estado consistem em obedecer arbitrariamente a autoridade, aceitar a imposição das prioridades alheias em suas vidas e parar de sonhar acordado. Quando as crianças iniciam a escola, elas guiam-se por conta própria, têm curiosidade sobre o mundo em que vivem e acreditam que tudo é possível. Quando a terminam, são cínicas, autocentradas e têm o costume de dedicar quarenta horas semanais a atividades que não escolheram. Elas também tendem a ser deseducadas sobre muitas coisas: a não saber que a maior parte das sociedades humanas ao longo da história eram igualitárias e não tinham Estado, que a polícia só recentemente tornou-se uma instituição importante e supostamente necessária, que seu governo tem uma trajetória de tortura, genocídio e repressão, que seus estilos de vida estão destruindo o meio ambiente, que sua comida e água estão envenenadas, ou que há uma história de resistência esperando para ser descoberta em sua própria cidade.

Sua deseducação sistemática surpreende pouco, dada a história das escolas públicas. Embora as escolas públicas tenham sido desenvolvidas gradualmente a partir de vários precedentes, o regime de Otto von Bismarck é geralmente considerado como o primeiro a estabelecer um sistema escolar público nacional. Seu objetivo era preparar a juventude para carreiras na burocracia e no Exército, discipliná-la, instilar-lhe patriotismo e doutriná-la com a cultura e história de uma nação alemã que não existia anteriormente. O sistema escolar era uma das modernizações que permitiam que um grupo de províncias conflituosas entre si, algumas delas praticamente feudais, formassem um Estado que pudesse ameaçar o resto do continente – e grandes partes da África – dentro de uma geração.

Em resposta, vários teóricos anarquistas começaram a desenvolver escolas não-hierárquicas nas quais os professores serviriam como ajudantes para os estudantes aprenderem e explorarem os assuntos que escolhessem. Alguns desses experimentos anarquistas na educação foram chamados nos EUA de Modern Schools [Escolas Modernas], seguindo o modelo da Escuela Moderna do anarquista espanhol Francisco Ferrer. Essas escolas ajudaram a educar milhares de estudantes e desempenharam papéis importantes nos movimentos anarquista e trabalhista. Em 1911, pouco tempo depois da execução de Ferrer na Espanha, a primeira Escola Moderna nos EUA foi fundada em Nova Iorque por Emma Goldman, Alexander Berkman, Voltairine de Clyere e outros anarquistas. Vários artistas e escritores famosos ajudaram a ensinar lá, e, entre os pupilos, estava o fotógrafo e cineasta Man Ray. Ela durou algumas décadas, eventualmente deixando Nova Iorque num período de intensa repressão política, tornando-se o centro de uma comuna rural.

Mais recentemente, anarquistas e outros ativistas nos EUA organizaram “escolas livres”. Algumas delas são aulas temporárias ad hoc, enquanto outras são escolas organizadas. Uma delas, a Escola Livre de Albany, existe há mais de trinta e dois anos nessa cidade. Essa escola antiautoritária está comprometida tanto com a justiça social quanto com a educação – ela oferece ensinos de escalas variáveis e não exclui ninguém por motivos financeiros. A maior parte das escolas experimentais são acessíveis somente à elite, mas o corpo discente da Escola Livre de Albany é diverso, com muitas crianças pobres do subúrbio. A escola não tem currículo ou aulas obrigatórias, operando de acordo com a seguinte filosofia: “Confie nas crianças e elas aprenderão”. Porque quando você confia às crianças a sua chamada “educação” – que, afinal de contas, não é uma coisa, mas uma ação presente – elas aprenderão continuamente, cada uma em seu modo e ritmo próprios. A Escola Livre ensina as crianças até o oitavo ano, e recentemente abriu uma escola de ensino médio, a Escola Livre Harriet Tubman. Ela organiza uma pequena horta orgânica na cidade que fornece outra importante oportunidade de aprendizado para os estudantes. Eles também trabalham em projetos de serviço comunitário como sopas populares e creches. Apesar de limitações financeiras e de outras naturezas, as escolas tiveram bastante sucesso.

Nossa reputação com estudantes que estão lutando acadêmica e/ou comportamentalmente, e cujas necessidades o sistema não conseguiu suprir, é tanta que um crescente número de crianças estão vindo a nós, tendo sido diagnosticadas anteriormente com TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade] e tratadas com ritalina e outras medicações biopsiquiátricas. Seus pais nos procuram preocupados com os efeitos colaterais das drogas e porque ouvem que nós trabalhamos com efetividade com essas crianças sem drogas ou coisas do tipo. Nosso ambiente ativo, flexível e individualmente estruturado torna as drogas totalmente desnecessárias.[4.14]

O MST, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no Brasil, teve a educação como uma de suas prioridades nos assentamentos criados em terras ocupadas. Entre 2002 e 2005, o MST afirma ter ensinado mais de 50 mil trabalhadores sem terra a ler; 150 mil crianças estão em mil e duzentas escolas construídas nos assentamentos; além disso, mais de mil educadores foram treinados. As escolas do MST são independentes do controle estatal, de modo que as comunidades têm o poder de decidir o que suas crianças aprendem e podem desenvolver métodos alternativos de educação, assim como currículos livres de valores racistas, patriotas e capitalistas que fazem parte da educação pública. O governo brasileiro reclama que se ensina nos assentamentos que organismos geneticamente modificados são um risco à saúde humana e ao meio ambiente, o que sugere que lá a educação é muito mais exata que nas escolas geridas pelo Estado. As escolas do MST nos assentamentos focam na alfabetização e usam os métodos de Paulo Freire, que desenvolveu a pedagogia do oprimido. Em São Paulo, o MST construiu uma universidade autônoma que treina agricultores escolhidos pelos assentamentos. Em vez de se ensinar, por exemplo, sobre o agronegócio, como uma universidade capitalista faria, ensina-se sobre agricultura familiar com uma crítica das técnicas exploradoras e ambientalmente destrutivas predominantes na agricultura contemporânea. Para outros cursos técnicos, o MST também ajuda as pessoas a conseguir formação em universidades públicas, embora geralmente ganhem a colaboração de professores de esquerda para oferecer mais aulas críticas do mais alto calibre, permitindo inclusive que criem seus próprios cursos. Enfatiza-se em todas essas formas de educação que é responsabilidade dos estudantes usar o que aprenderam para sua comunidade e não para proveito individual.

O Movimiento Campesino de Santiago del Estero (o MOCASE, sediado na Argentina) é um grupo formado por agricultores, muitos deles quéchuas, com similaridades e conexões com o MST. O movimento começou como um grupo de agricultores em luta pela terra frente à expansão das companhias silvicultoras do Norte Global, e reúne oito mil famílias em 58 comunidades ativas em um largo espectro de lutas. Trabalhando juntamente com a Universidad Transhumante, foi criada uma Escola de Agricultores para ajudá-los a aprender as habilidades necessárias para a autogestão. Os estudantes também aprendem a ensinar para poder ajudar a treinar outros agricultores. A Universidad Transhumante é interessante por si só. Ela é uma universidade de educação popular, também inspirada por Freire, que organiza uma caravana que dura o ano inteiro e percorre oitenta cidades pela Argentina, levando oficinas de educação popular e aprendendo sobre os problemas que as pessoas enfrentam.[4.15] Fora do controle estatal, a educação não precisa ser uma coisa estática e fixa: ela pode ser uma ferramenta de empoderamento, como quando as pessoas aprendem a ensinar, podendo assim passar adiante as lições que aprenderam, em vez de depender permanentemente de uma classe de educadores profissionais. Ela pode ser uma ferramenta de libertação, como quando as pessoas aprendem sobre autoridade e resistência e estudam como tomar o controle de suas vidas. Ela pode ser uma caravana, um circo, como quando as pessoas viajam por um país, mas, em vez de levar espetáculos engaiolados, levam novas ideias e técnicas. Ela também pode ser uma ferramenta de sobrevivência, como quando pessoas oprimidas aprendem sobre suas histórias e preparam-se para o futuro.

Em 1969, ativistas nativos-americanos, organizados sob o nome “Índios de Todas as Nações”, ocuparam a abandonada ilha de Alcatraz, citando uma lei norte-americana esquecida que garantia que os povos indígenas tinham o direito de ocupar qualquer terra que a nação colonizadora tivesse abandonado. Por seis meses, a ocupação contou com centenas de pessoas e, apesar de a maioria ter ido embora por causa de um bloqueio governamental, a ocupação acabou durando dezenove meses, revitalizando a cultura indígena e rejeitando o controle colonial. Durante o período inicial, a ocupação indígena organizou uma escola que ensinava história e cultura indígena da sua própria perspectiva, sem a propaganda racista que enche os livros didáticos das escolas governamentais. A educação foi então usada como um meio de renovação cultural; antes, era usada contra os indígenas para destruir sua identidade e inserir os sobreviventes do genocídio na civilização que os colonizou.

E a tecnologia?

Muitas pessoas consideram que a complexidade da tecnologia moderna e o alto nível de integração entre a infraestrutura e a produção nos tempos atuais tornam a anarquia um sonho do passado. Na realidade, essa visão tem alguma sustentação. No entanto, não é tanto a complexidade da tecnologia que está em desacordo com a criação de uma sociedade anarquista, mas o fato de que a tecnologia não é neutra. Como bem colocou Uri Gordon, o desenvolvimento da tecnologia reflete os interesses e necessidades da camada dominante da sociedade; assim, a tecnologia dá forma ao mundo exterior de modo a reforçar a autoridade e desencorajar a revolta.[4.16] Não é coincidência que o armamento nuclear e infraestrutura de energia nuclear forjem a necessidade de uma organização militar centralizada e de alta segurança e agências de gerenciamento de desastres com poderes emergenciais e com a capacidade de suspender direitos constitucionais; ou que rodovias interestaduais permitam o rápido deslocamento de tropas militares e estimulem o transporte de mercadorias e as viagens em automóveis particulares; ou que novas fábricas demandem trabalhadores sem habilidade, e portanto substituíveis, que não conseguem manter o emprego até sua aposentadoria – assumindo que o patrão quisesse conceder esse tipo de benefício –, porque, dentro de alguns anos, lesões laborais geradas pela repetição de tarefas ou pelo ritmo inseguro – porque muito rápido – da linha de produção os deixarão incapazes de continuar trabalhando.

Os subsídios e a infraestrutura fornecidos pelo governo tendem a favorecer invenções que aumentam o poder estatal, geralmente para o azar de todas as outras pessoas: aviões de guerra, sistemas de vigilância ou mesmo a construção de pirâmides no Egito Antigo. Mesmo as formas mais benevolentes de apoio governamental a invenções, como os subsídios estatais à pesquisa médica, vão, no melhor dos casos, para criar tratamentos que são patenteados por corporações, sem nenhum escrúpulo por deixar morrer as pessoas que não podem pagar por eles – a mesma ausência de escrúpulos de quando se torturam e matam milhares de animais na fase de testes da pesquisa.

As demandas por liberdade confrontam-nos com uma escolha muito mais profunda do que simplesmente mudar nossas estruturas de tomada de decisões. Teremos que desmontar fisicamente muito do mundo em que vivemos e construí-lo novamente. A liberdade, assim como o equilíbrio ecológico do planeta – e, portanto, nossa própria sobrevivência –, é incompatível com a energia nuclear, com a dependência de combustíveis fósseis como petróleo e carvão e com uma cultura do automóvel que cria cisões no espaço público e fomenta um sistema de comércio no qual a maior parte das mercadorias não é produzida localmente.

Essa transformação exigirá muita inventividade; assim, a questão relevante é: um movimento social e uma sociedade anarquistas serão inventivos o suficiente para levar a cabo essa transformação? Acho que a resposta é sim. Afinal, as ferramentas mais úteis na história humana foram inventadas antes que o governo e o capitalismo surgissem.

Diz-se que o chamado “livre mercado” capitalista motiva a inovação e que competição pelo mercado contribui para a proliferação de invenções rentáveis, que não são necessariamente invenções úteis. A competição capitalista prevê que em poucos anos, todos os antigos aparelhos eletrônicos vão se tornar obsoletos à medida que novos serão inventados, de modo que as pessoas terão de jogar fora seus antigos para comprar novos – em detrimento do meio ambiente. Por causa dessa “obsolescência planejada”, poucas invenções tendem a ser bem feitas ou bem pensadas, já que estão destinadas desde o início a virarem lixo.

A doutrina da propriedade intelectual impede a disseminação de tecnologias úteis, permitindo, pelo contrário, o seu controle ou retenção, de acordo com o que é mais rentável. As pessoas que fazem apologia ao capitalismo argumentam tipicamente que a propriedade intelectual estimula o desenvolvimento tecnológico porque dá segurança, como incentivo, de que as pessoas poderão lucrar com as suas invenções. Que tipo de cretino inventaria algo socialmente útil se não recebesse o crédito exclusivo e lucrasse com isso? Mas as bases tecnológicas do nosso mundo foram desenvolvidas por grupos de pessoas que deixaram as suas invenções difundirem-se livremente e não levaram o crédito por elas – tudo, desde o martelo até instrumentos musicais de corda, passando pela domesticação dos grãos.

Na prática, a própria economia capitalista fornece contraexemplos à suposição de que a propriedade intelectual fomenta a inovação. Assim como qualquer tipo de propriedade, a propriedade intelectual geralmente não pertence a quem a produz: muitas invenções são feitas por escravos assalariados em laboratórios, os quais não recebem o crédito pela invenção nem ficam com o lucro, uma vez que seus contratos estipulam que a corporação em que trabalham tem a propriedade das patentes.

As melhores pessoas para desenvolver inovações úteis são aquelas que as necessitam, não precisando de governo ou do capitalismo para ajudá-las. As próprias anarquistas têm uma rica história de inventar soluções para os problemas que enfrentam. Assaltantes de banco anarquistas, como o Bando Bonnot, inventaram o carro de fuga. Makhno, o anarquista ucraniano, foi o primeiro a usar metralhadoras altamente móveis – ele as montou em tatchankis, as carroças de tração equina usadas pelos camponeses, com efeitos devastadores contra inimigos de mais força que usavam táticas convencionais. Na Espanha revolucionária, depois de expropriar os grandes latifundiários, coletivizar a terra e libertar-se da necessidade de produzir uma única cultura para exportação, os agricultores melhoraram a saúde do solo e aumentaram a sua autossuficiência promovendo a interplantação – especificamente, cultivando espécies tolerantes à sombra debaixo de laranjeiras. A Federação Regional de Camponeses de Levante, na Espanha, criou uma universidade agrícola, enquanto outros coletivos agrícolas fundaram um centro para o estudo das doenças das plantas e o cultivo de árvores.

Nas terras altas da Nova Guiné, milhões de agricultores vivem em altas densidades populacionais em vales montanhosos íngremes; as suas comunidades não possuem Estado, utilizam o consenso e, até relativamente pouco tempo, não tinham contato com o Ocidente. Apesar de parecerem pessoas primitivas da Idade da Pedra para os europeus racistas, elas desenvolveram um dos mais complexos sistemas agrícolas do mundo. Suas técnicas são tão precisas e numerosas que levam anos para serem aprendidas. Cientistas ocidentais, centrados em si mesmos, ainda não conhecem as bases de muitas dessas técnicas, que eles provavelmente chamariam de superstição. Pelos últimos sete mil anos, os habitantes dessa região praticaram uma forma dinâmica de agricultura sustentável em resposta aos impactos ao seu meio ambiente, os quais poderiam ter levado sociedades menos inovadoras ao colapso. Entre os seus métodos estão formas complexas de irrigação, retenção de solo e interplantação. Esses povos não têm chefes e tomam suas decisões em longas discussões comunitárias. Eles também desenvolveram todas as suas técnicas sem governo e sem o capitalismo, através de inovações individuais e coletivas difundidas livremente dentro de uma sociedade ampla e descentralizada.[4.17]

Muitas pessoas ocidentais poderiam pensar que quem não usa ferramentas de metal não conseguiria prover um modelo de sofisticação tecnológica. Esse cinismo, entretanto, é insuflado pelas mitologias e superstições euro-americanas. Tecnologia não é luzes piscantes e aparelhos eletrônicos. Tecnologia é adaptação. Adaptando um complexo conjunto de técnicas que lhes permitiram satisfazer as suas necessidades sem destruir o seu meio ambiente por mais de sete mil anos, os agricultores de Nova Guiné conseguiram algo de que a civilização ocidental nunca sequer esteve perto.

Há ainda muitos exemplos anarquistas para a multidão impressionada pelas luzes piscantes. Considere a recente proliferação da tecnologia de código aberto [open source, que é quase equivalente ao software livre]. Redes descentralizadas que envolvem milhares de pessoas trabalhando aberta, voluntaria e cooperativamente criaram algumas das melhores formas de softwares complicados dos quais a economia da Era da Informação depende. O método usual das grandes corporações é manter o código, ou a fonte, de seus softwares em sigilo e também patenteá-lo; o código aberto, por outro lado, prevê o compartilhamento do código, de modo que qualquer pessoa pode revisá-lo e melhorá-lo. Como resultado, ele é geralmente muito melhor e mais fácil de ser arrumado. O software patenteado tradicional é mais vulnerável a travamentos e vírus, porque só um grupo pequeno de cérebros tem permissão para procurar falhas e resolver os problemas. Aquele pessoal do suporte técnico para quem você liga quando o sistema operacional do seu computador trava também não pode ver o código e, além de procurar erros e falhas superficiais, o máximo que ele pode fazer é indicar a você um embaraçoso “remendo” [“patch”] ou aconselhar uma formatação do seu disco rígido e a reinstalação do sistema operacional. Pessoas que usam os produtos da Microsoft, por exemplo, estão sem dúvida familiarizadas com falhas frequentes; Ao mesmo tempo, defensores da privacidade alertam sobre a existência de spywares e sobre a cooperação entre corporações e o governo. Como disse uma pessoa envolvida na criação de software de código aberto: “a melhor propaganda para o Linux é a Microsoft”.

Tradicionalmente, boa parte dos softwares de código aberto não era especialmente amigável ao usuário, embora isso tenha a ver com o fato de que o código aberto habite uma subcultura geek e seus usuários típicos sejam conhecedores profundos de computação. Entretanto, o código aberto e a tecnologia participativa estão se tornando aos poucos acessíveis a uma quantidade de pessoas sem precedentes, em comparação com o software proprietário. A Wikipédia fornece um exemplo dessa questão. Iniciada recentemente, em 2001, em um software de código aberto para Linux, ela já é a maior e mais acessada enciclopédia do mundo, com mais de dez milhões de artigos em mais de 250 idiomas. Ao invés de ser o domínio exclusivo de especialistas pagos, ela é escrita por qualquer pessoa, já que todas podem criar e editar um artigo. Ao permitir essa abertura e confiança, a Wikipédia fornece um fórum instantâneo para a revisão da comunidade. Os interesses da comunidade maior da Wikipédia, que conta com milhões de usuárias, cumpre uma função autorreguladora, de modo que o vandalismo (isto é, edições com informações falsas) é rapidamente desfeito; além disso, exigem-se fontes dos fatos citados nos artigos. Os artigos da Wikipédia valem-se de um corpo de conhecimentos muito maior do que o pequeno e geralmente elitista círculo representado pela academia. Em um teste cego dentro de um estudo realizado com revisão dos pares, ela foi considerada tão exata quanto a Encyclopædia Britannica.[4.18]

A Wikipédia é “auto-organizativa” e editada por um corpo aberto de administradores eleitos pelos usuários.[4.19] Houve alguns casos de sabotagem intencional, como quando o programa de comédia The Colbert Report reescreveu um artigo da Wikipédia para uma piada em seu programa, apesar de isso ter sido rapidamente desfeito, como costuma ocorrer com a maior parte da informação falsa no site. Um problema mais complicado é colocado por corporações que utilizam a Wikipédia para relações públicas, pagando gente para manter uma imagem limpa da empresa nos artigos sobre ela. Entretanto, interpretações contraditórias dos fatos podem ser registradas no mesmo artigo, e a Wikipédia veicula muito mais informação sobre crimes corporativos do que qualquer enciclopédia tradicional.

Como funcionarão as trocas?

Há muitas formas diferentes de troca que poderiam funcionar em uma sociedade sem Estado e anticapitalista, dependendo do tamanho, da complexidade e das preferências da sociedade. Muitas dessas formas são muito mais efetivas do que o capitalismo para assegurar uma distribuição justa dos bens e evitar que as pessoas ganhem mais do que sua justa parcela. O capitalismo criou mais desigualdade no acesso aos recursos do que qualquer outro sistema econômico na história humana. Mas os princípios do capitalismo que os economistas doutrinaram o público a aceitar como leis não são universais.

Muitas sociedades usaram e usam tradicionalmente a economia da dádiva, a qual pode tomar muitas formas diferentes. Em sociedades com alguma estratificação social, as famílias mais ricas mantêm seu status dando presentes, promovendo banquetes esbanjadores e espalhando sua riqueza; em alguns casos, elas arriscam ser alvo da ira alheia se não são generosas o suficiente. Outras economias da dádiva são pouco estratificadas, ou nem o são; as pessoas participantes simplesmente não possuem o conceito de propriedade, dando e tomando a riqueza social livremente. Colombo observou maravilhado que os primeiros povos indígenas que encontrou no Caribe não tinham um senso de propriedade e davam intencionalmente tudo o que tinham; de fato, davam presentes para saudar seus estranhos visitantes. Numa sociedade como essa, ninguém podia ser pobre. Agora, depois de centenas de anos de genocídio e desenvolvimento capitalista, muitas partes das Américas têm algumas das maiores desigualdades de riqueza do mundo.

Na Argentina, pessoas pobres começaram uma imensa rede de trocas que cresceu enormemente depois do colapso econômico em 2001, tornando as formas capitalistas de troca sem função. O sistema de troca evoluiu desde encontros para realizar escambo até uma imensa rede que envolvia, estima-se, três milhões de pessoas intercambiando bens e serviços – qualquer coisa, desde artesanato, comida e roupas feitas em casa até aulas de idiomas. Até mesmo médicos, fabricantes de produtos diversos e algumas ferrovias participaram. Estima-se que dez milhões de pessoas eram sustentadas pela rede de trocas em seu auge.

O clube de trocas facilitava os negócios desenvolvendo um sistema de crédito e moeda. À medida que a rede crescia e a crise capitalista se aprofundava, a rede enfrentava vários problemas, como pessoas – geralmente de fora da rede – que roubavam ou forjavam a moeda. Alguns anos depois, quando a economia havia sido estabilizada com o Presidente Kirchner, o clube de trocas encolheu, mas ainda manteve uma imensa quantidade de membros, levando em conta que era uma economia alternativa num país que um dia havia sido um modelo para o capitalismo neoliberal. Ao invés de desistir, os membros remanescentes desenvolveram várias soluções para os problemas que enfrentaram, como somente aceitar produtores como membros, de modo que a rede só seja usada por gente que contribui com ela.

Anarquistas contemporâneos dos EUA e Europa estão experimentando outras formas de distribuição que vão além da troca. Um projeto anarquista popular é a “loja livre” ou “loja passe-adiante”. Lojas livres servem como pontos de concentração de itens doados ou retirados do lixo que as pessoas não precisam mais, como roupas, comida, móveis, livros, discos e inclusive – mas mais raramente – geladeiras, televisões ou carros. A clientela é livre para andar pela loja e levar o que precisa. Muitas pessoas acostumadas com uma economia capitalista que vão a uma loja livre ficam perplexas com como ela pode funcionar. Tendo crescido com uma mentalidade de escassez, elas assumem que, como pegar coisas dá lucro e doá-las não dá, uma loja livre rapidamente ficaria vazia. Entretanto, isso quase nunca ocorre. Muitas lojas livres operam sustentavelmente e a maior parte transborda de bens ofertados. De Harrisonburg, em Virgínia, até Barcelona, na Catalunha, centenas de lojas livres desafiam diariamente a lógica capitalista. A Weggeefwinkel, loja “passe-adiante” em Groningen, na Holanda, funcionou em uma ocupação por mais de três anos, abrindo duas vezes por semana para repassar roupas, livros, móveis e outros itens gratuitamente. Outras lojas livres captam recursos quando precisar pagar o aluguel, o que não seria problema numa sociedade completamente anarquista. Lojas livres são um recurso importante para pessoas pobres, que ou não têm emprego dentro dessa fantasia do livre mercado ou têm um emprego – ou dois, ou três – e, mesmo assim, não conseguem comprar roupas para seus filhos.

Um exemplo de mais alta tecnologia de trocas livres é a relativamente conhecida e muito bem sucedida rede Freecycle. A Freecycle é uma rede global formada originalmente por um grupo ambientalista sem intenção de lucro para promover a doação de produtos que acabariam no lixo. No momento desta escrita, ela tinha mais de quatro milhões de membros organizados em 4.200 seções locais espalhadas por cinquenta países. Num site, circula uma grande quantidade de roupas, móveis, brinquedos, artes, ferramentas, bicicletas, carros e outros muitos produtos. As pessoas podem escolher quais produtos precisam e quais vão doar. Uma das regras da Freecycle é de que tudo tem de ser gratuito: nem trocado por escambo, nem vendido. A Freecycle não é uma organização controlada centralizadamente; seções locais estabelecem-se por conta própria, baseadas num modelo comum, e usam o site no qual esse modelo se baseia.

No entanto, como é de se esperar que ocorra com um grupo liberal sem intenção de lucro e também sem aspirações revolucionárias ou qualquer crítica ao capitalismo e ao Estado, a Freecycle tem alguns problemas. Na realidade, a organização aceita patrocínio corporativo de uma grande companhia de reciclagem e o presidente teria freado a expansão da ideia da Freecycle ao atacar vários grupos membros ou sites similares com processos ou ameaças de processo por violação de marca registrada e também ao colaborar com grupos notoriamente autoritários do Yahoo! para fechar seções locais por não aderirem às regras de organização no que diz respeito a logotipo e linguagem. Naturalmente, em uma sociedade anarquista não haveria processos por violação de marca registrada e um presidente não poderia tiranizar uma rede mantida por milhões de pessoas. Enquanto isso, a Freecycle demonstra que economias da dádiva podem funcionar mesmo dentro de sociedades ocidentais individualistas e saturadas, e podem tomar novas formas com a ajuda da internet.

E as pessoas que não quiserem largar seu estilo de vida consumista?

Mesmo que uma revolução anticapitalista crie novas relações e valores sociais, e liberte os desejos das pessoas do controle da publicidade, algumas delas provavelmente ainda iriam querer manter um estilo de vida consumista – demandando entretenimento eletrônico, comidas exóticas importadas e outros luxos que o (neo)colonialismo lhes oferece atualmente. Ao tornar rotina o ato de ir a uma loja, pegar a sua carteira e comprar uma cômoda de mogno ou uma barra de chocolate, o capitalismo cria a ilusão de que os seres humanos possuem naturalmente a capacidade de obter bens de luxo que na realidade são produzidos por escravos em outro continente. De fato, isso exige uma infraestrutura massiva e muitas instituições de governo e de colonialismo para proporcionar esse privilégio a umas poucas e seletas pessoas. Após uma revolução anarquista, os campos de trabalho escravo que atualmente produzem a maior parte do chocolate e da madeira do mundo não existiriam mais.

Se uma pessoa ou um grupo quiser se cercar com os bens de consumo que ainda desejam, elas serão perfeitamente livres para fazê-lo; entretanto, sem uma força policial para constranger outras pessoas a suportarem os custos ambientais e trabalhistas de seu estilo de vida, elas mesmas teriam que obter os recursos, realizar a produção e dar conta da poluição. É claro que elas poderiam tornar o processo mais eficiente ao se especializar em um bem de consumo: por exemplo, uma união de chocolateiros poderia produzir chocolate que respeitasse o meio ambiente – sem prejuízos ecológicos para o resto da sociedade – e trocar parte do chocolate por, digamos, equipamentos de entretenimento visual produzidos por uma união de viciados em televisão. Por que não? Em última análise, entretanto, todo esse trabalho e responsabilidade pessoal talvez não combinassem com a mentalidade consumista; o resultado final seria uma união de produtores. Quando as pessoas têm de tomar responsabilidade por todos os custos de suas próprias ações, o isolamento patológico das consequências – no qual se apoiam os desejos capitalistas – acaba sendo destruído. O resultado são desejos ponderados e maduros.

Em revoluções anarquistas e em sociedades capitalistas sem Estado ao longo da história, as pessoas usavam o que podiam produzir ou negociar com as sociedades próximas. Nas tomadas de fábricas na Argentina, várias fábricas ocupadas começaram a negociar seus produtos entre si, permitindo que os trabalhadores tivessem acesso a uma variedade de produtos manufaturados. Em muitos coletivos da Revolução Espanhola de 1936, as comunidades decidiam juntas quanto e que tipo de consumo elas poderiam permitir-se coletivamente, substituindo salários por cupons que podiam ser trocados por produtos na despensa comunal. Todas as pessoas tinham voz na determinação de quantos cupons um indivíduo podia obter e de que tipo. Também havia liberdade para negociar os cupons com outras pessoas, de modo que uma pessoa que preferia mais de um certo produto como, digamos, roupas, podia obter mais trocando os cupons por algo que não se importava de perder, como ovos. Portanto, não há imposição de uma uniformidade espartana como ocorre em alguns estados comunistas; as pessoas são livres para seguir o estilo de vida que querem, mas somente se puderem pessoalmente sustentar os custos dele. Elas não podem explorar outras, roubar seus recursos ou envenenar suas terras

E a construção e a organização de uma infraestrutura ampla e espalhada?

Muitos livros de história ocidentais afirmam que o governo centralizado surgiu da necessidade de se construírem amplos projetos de infraestrutura, especialmente de irrigação. Entretanto, essa afirmação baseia-se na suposição de que essas sociedades precisam crescer e que não podem escolher limitar sua escala para evitar a centralização – uma suposição que já foi muito contestada. E, como projetos de irrigação de grande escala requerem alguma coordenação, a centralização desponta como a única forma de coordenação.

Na Índia e no leste da África, sociedades locais construíram redes de irrigação massivas que eram administradas sem governo ou centralização. Na região dos montes Taita, no atual Quênia, foram criados complexos sistemas de irrigação que duraram centenas de anos, até as práticas agrícolas coloniais acabarem com eles. As famílias compartilhavam víveres de uso diário, cada uma sendo responsável pela seção mais próxima da infraestrutura de irrigação, que era de propriedade comum. Um outro costume levava as pessoas a se reunirem periodicamente para efetuar consertos: o “trabalho harambee” era um forma de trabalho socialmente motivado similar a tradições em outras sociedades descentralizadas. O povo dos montes Taita assegurava um uso justo através de vários arranjos sociais passados adiante pela tradição, que determinavam quanta água cada casa podia tomar; aquelas que violassem essas práticas sofriam sanções do resto da comunidade.

Quando os britânicos colonizaram a região, eles achavam que tinham mais conhecimento que os locais e instalaram um novo sistema de irrigação – feito, obviamente, para rentabilizar a produção de commodities – baseado no seu conhecimento de engenharia e de energia mecânica. Durante a seca da década de 1960, o sistema britânico falhou e muitos habitantes locais retornaram ao sistema tradicional de irrigação para conseguir abastecimento. De acordo com um etnólogo, “os trabalhos de irrigação do leste da África parecem ter sido mais amplos e mais bem administrados durante a era pré-colonial”.[4.20]

Durante a Guerra Civil Espanhola, os trabalhadores das fábricas ocupadas coordenaram uma economia inteira. Organizações anarquistas que serviram de instrumento para fazer a revolução, especialmente a CNT, geralmente acabavam fornecendo as bases para a nova sociedade. Na cidade industrial de Barcelona, principalmente, a CNT forneceu sua estrutura para uma economia controlada pelos trabalhadores – uma tarefa para a qual ela se preparava havia anos. Cada fábrica organizava-se com seus próprios trabalhadores técnicos e administrativos; as fábricas da mesma indústria organizavam-se na Federação Local daquela indústria; e todas as Federações Locais de uma localidade organizavam-se em um Conselho Econômico Local “no qual todos os centros da produção e dos serviços eram representados”; e os Conselhos e Federações Locais organizavam-se nas respectivas Federações Nacionais de Indústria e Federações Econômicas Nacionais.[4.21]

O congresso de todos os coletivos catalães, realizado em 28 de agosto de 1937 em Barcelona, fornece um exemplo de suas atividades de coordenação e de decisão. As fábricas de calçados coletivizadas precisavam de crédito de dois milhões de pesetas. Por causa de uma escassez de couro, foi preciso cortar horas de trabalho dos funcionários, ainda que eles recebessem salário integral. O Conselho Econômico estudou a situação e relatou que não havia excedente de calçados. O congresso concordou em garantir crédito para comprar couro e modernizar as fábricas para diminuir os preços dos calçados. Posteriormente, o Conselho Econômico esboçou planos para construir uma fábrica de alumínio, que era necessária durante a guerra. Foram localizados materiais disponíveis, foi assegurada a cooperação de químicos, engenheiros e técnicos e decidiu-se coletar o dinheiro por meio dos coletivos. O congresso também decidiu mitigar o desemprego urbano elaborando um plano que definia que os trabalhadores do campo passariam a cultivar novas áreas com o auxílio de trabalhadores desempregados das cidades.

Em Valência, a CNT organizou a indústria da laranja, com 270 comitês em diferentes cidades e vilarejos para cultivar, comprar, empacotar e exportar; nesse processo, ela se livrava de alguns milhares de intermediários. Em Laredo, a indústria da pesca foi coletivizada – os trabalhadores expropriaram os barcos, excluíram os intermediários que ficavam com todo o lucro e usaram os lucros para melhorar as embarcações e outros equipamentos, ou para pagar a si mesmos. A indústria têxtil da Catalunha empregava 250 mil trabalhadores em dezenas de fábricas. Durante a coletivização, eles se livraram dos diretores, que recebiam altos salários, aumentaram seus salários em 15%, reduziram sua jornada de 60 para 40 horas semanais, compraram novas máquinas e elegeram comitês de administração.

Na Catalunha, trabalhadores libertários mostraram resultados impressionantes na manutenção do complexo de infraestrutura da sociedade industrial que tomaram. Os trabalhadores, que sempre foram os responsáveis por essas funções, provaram-se capazes de levar adiante e inclusive de melhorar seu trabalho na ausência de patrões. “Sem esperar ordens de ninguém, os trabalhadores restauraram o serviço telefônico em três dias [após o fim de uma pesada batalha]... Depois desse trabalho emergencial, um encontro geral de trabalhadores da telefonia decidiu coletivizar o sistema telefônico”.[4.22] Os trabalhadores votaram a favor do aumento dos salários dos membros que recebiam menos. Serviços de gás, água e eletricidade também foram coletivizados. A administração coletiva da água abaixou a tarifa em 50%, mantendo, ainda assim, uma contribuição para o comitê da milícia antifascista. Os ferroviários coletivizaram as vias férreas e trabalhadores experientes substituíram os técnicos que haviam fugido. Os substitutos provaram-se adequados, apesar de não terem escolarização formal, porque haviam aprendido através da experiência de trabalho com os técnicos como manter as linhas.

Trabalhadores do transporte municipal de Barcelona – dos 7 mil totais, 6,5 mil eram membros da CNT – pouparam bastante dinheiro ao expulsar os diretores e outros administradores que ganhavam muito. Depois disso, reduziram sua jornada para 40 horas semanais, aumentaram seus salários entre 60% (para os que ganhavam menos) e 10% (para os que ganhavam mais), e ajudaram a população inteira ao diminuir o preço da passagem e dar passe livre a estudantes e membros da guerrilha feridos. Além disso, efetuaram reparos em equipamentos e ruas destruídas, limparam barricadas, logo colocaram o sistema de transporte em operação, cinco dias depois que as lutas cessaram em Barcelona, e organizaram uma frota de setecentos bondes pintados de vermelho e preto – mais que os seiscentos que circulavam antes da revolução. Em sua organização:

os vários profissionais coordenavam e organizavam seu trabalho em um sindicato industrial de todo os trabalhadores do transporte. Cada seção era administrada por um engenheiro indicado pelo sindicato e por um trabalhador indicado pelo corpo geral de membros. As delegações de várias seções coordenavam operações em uma dada área. Enquanto as seções tinham reuniões separadas para conduzir as suas operações específicas, as decisões que afetavam os trabalhadores em geral eram tomadas em reuniões gerais.

Os engenheiros e técnicos, ao invés de ficarem fechados num grupo de elite, integravam-se com os trabalhadores manuais. “O engenheiro, por exemplo, não podia levar a cabo um projeto importante sem consultar os outros trabalhadores; não somente porque as responsabilidades eram divididas, mas também porque, em problemas práticos, os trabalhadores manuais tinham a experiência que geralmente faltava aos técnicos”. O transporte público em Barcelona também alcançou uma maior autossuficiência: antes da revolução, 2% dos suprimentos para manutenção eram fabricados pela companhia e o resto era comprado ou importado. Um ano depois da coletivização, 98% dos suprimentos para reparos eram fabricados em oficinas coletivizadas. “O sindicato também oferecia serviços médicos gratuitos, como acesso a clínicas e tratamento doméstico para os trabalhadores e suas famílias”.[4.23]

Os revolucionários espanhóis também tiveram experiências com Bancos Camponeses, Bancos de Trabalho e Conselhos de Crédito e Troca. A Federação de Coletivos de Camponeses de Levante criou um banco organizado pelo Sindicato dos Bancários para ajudar agricultores a conseguir um grande conjunto de recursos sociais necessários para certos tipos de plantio que requerem muita infraestrutura ou recursos. O Banco Central de Trabalho de Barcelona transferia o crédito de coletivos prósperos para coletivos socialmente úteis que estivessem em necessidade. Transações em dinheiro eram mínimas e o crédito era transferido como crédito. O Banco de Trabalho também realizava negócios com o exterior, importando e comprando matérias-primas. Quando possível, o pagamento era realizado em mercadorias, não em dinheiro. O banco era uma empresa sem intenção de lucro e cobrava somente 1% de juros para custear as suas despesas. Diego de Abad de Santillan, o economista anarquista, disse, em 1936: “o crédito será uma função social, não uma especulação ou usura privada. (...) Ele será baseado nas possibilidades econômicas da sociedade e não em juros ou lucros. (…) O conselho de Crédito e Trocas será como um termômetro dos produtos e necessidades do país”.[4.24] Nessa experiência, o dinheiro funcionava como um símbolo de apoio social e não como símbolo de propriedade – ele significava recursos sendo transferidos entre uniões de produtores ao invés de investimentos feitos por especuladores. Dentro de uma economia industrial complexa, esses bancos tornam as trocas e a produção mais eficientes, embora ainda apresentem um risco de centralização ou de reemergência do capital como força social. Além disso, considerar produção e trocas eficientes como um valor deve ser visto com suspeitas, no mínimo, por quem se interessa por libertação.

Há vários métodos que poderiam evitar que instituições como bancos de trabalho permitam o retorno do capitalismo, mas, infelizmente, os ataques de totalitarismo tanto dos fascistas quanto dos comunistas impediram que as anarquistas espanhóis tivessem a chance de desenvolvê-los. Entre eles, estão a criação de tarefas rotativas e misturadas para evitar a emergência de uma nova classe gerencialista, o desenvolvimento de estruturas fragmentadas que não possam ser controladas em um nível central ou nacional, a promoção do máximo de descentralização e simplicidade e a manutenção de uma forte tradição que sustente que os recursos e instrumentos comuns não podem ser vendidos.

Entretanto, enquanto o dinheiro permanece sendo um fato central da existência humana, uma miríade de atividades humanas é reduzida a valores quantitativos. Esse valor pode ser concentrado em forma de poder, alienado, dessa forma, da atividade que o criou: em outras palavras, ele pode ser convertido em capital. Naturalmente, anarquistas discordam na questão de como encontrar um ponto de equilíbrio entre a prática e a perfeição, ou em quão fundo deve-se cortar para arrancar as raízes do capitalismo, mas estudar todas as possibilidades, incluindo aquelas que podem estar fadadas ao fracasso ou a algo pior, sempre ajuda.

Como funcionarão as cidades?

Muitas pessoas acreditam que uma sociedade anarquista poderia funcionar na teoria, mas que o mundo moderno apresenta muitos obstáculos que impedem uma libertação total. Cidades grandes são as maiores representantes dessas supostas pedras no caminho. Sociedades capitalistas são uma maçaroca de burocracias que supostamente só continuam operando pelas mãos das autoridades. Mas a manutenção de uma cidade grande não tem tudo aquilo de mistificação quanto somos levados a acreditar. Algumas das maiores cidades do mundo são compostas em grande parte por bairros pobres auto-organizados que se estendem por quilômetros. A sua qualidade de vida deixa muito a desejar, mas eles mostram que as cidades não entram simplesmente em colapso na ausência de especialistas.

Anarquistas têm alguma experiência em manter cidades grandes; a solução parece residir na tomada da organização e da infraestrutura pelos trabalhadores de serviços de manutenção – serviços pelos quais eles já são responsáveis – e na formação de assembleias de bairro de modo que quase todas as decisões possam ser tomadas em níveis locais nos quais todas as pessoas possam participar. É provável que uma revolução anarquista seja acompanhada por um processo de desurbanização, ao mesmo tempo que as cidades encolherão para tamanhos mais administráveis. Muitas pessoas provavelmente retornarão à terra à medida que a agricultura industrial diminuirá ou acabará, sendo substituída por uma agricultura sustentável – ou “permacultura” – que possa sustentar uma maior densidade populacional em áreas rurais.

Nesse período, talvez seja necessário criar novos arranjos sociais apressadamente, mas não será a primeira vez que anarquistas terão formado uma cidade ou vilarejo do zero. Em maio de 2003, enquanto os enviados dos oito principais governos do mundo preparavam-se para o encontro do G8 em Evian, na França, o movimento anticapitalista montava uma série de vilarejos interligados para servirem como base para protestos e como um exemplo de vida coletiva e anticapitalista. Eram os VAAAG (Village Alternatif Anticapistalist et Anti-Guerres – Vilarejo Alternativo Anticapitalista e Antiguerras). Durante a mobilização, milhares de pessoas viveram nesses vilarejos, organizando a alimentação, moradia, o cuidado das crianças, fóruns de debate, mídia e serviços legais, tomando decisões de modo comum. O projeto foi amplamente considerado como um sucesso. O VAAAG também exibia a forma dual de organização sugerida acima. “Bairros” específicos, cada um com menos de duzentas pessoas, organizavam-se em torno de uma cozinha comunitária, enquanto serviços do vilarejo inteiro – espaços coletivos entre os bairros, como espaços legais e médicos – eram organizados pelas pessoas envolvidas no provimento desses serviços. Essa experiência foi repetida durante as mobilizações de 2005 contra o G8 na Escócia e nas mobilizações de 2007 no norte da Alemanha, quando cerca de seis mil pessoas conviveram no Acampamento Reddelich.

Esses vilarejos de protesto tiveram seus precedentes no movimento antinuclear alemão da geração anterior. Quando o Estado quis construir um grande complexo de armazenamento de lixo nuclear em Gorleben, em 1977, os agricultores locais começaram a protestar. Em maio de 1980, cinco mil pessoas montaram um acampamento no local, construindo uma pequena cidade com as árvores cortadas, chamada de República Livre de Wendland. Elas emitiram seus próprios passaportes, fizeram programas de rádios ilegais, imprimiram jornais e promoveram debates públicos para decidir como gerir o acampamento e responder às agressões policiais. A comida era compartilhada e não era usado dinheiro na vida cotidiana. Um mês depois, oito mil policiais atacaram o vilarejo, que decidiu resistir não-violentamente. Eles apanharam brutalmente e foram expulsos. Depois disso, as manifestações do movimento antinuclear acabaram pendendo menos para o pacifismo.[4.25]

Na Inglaterra, um festival de viajantes e hippies que se reuniam anualmente em Stonehenge para marcar o solstício de verão do hemisfério norte tornou-se uma importante zona autônoma contracultural e um experimento de “anarquia coletiva”. O Festival Livre de Stonehenge [Stonehenge Free Festival] teve sua primeira edição em 1972 como um encontro durante o mês de junho até o solstício. Mais que um festival de música, era um espaço não-hierárquico para a criação de música, arte e novas relações, assim como de exploração espiritual e psicodélica. Ele tornou-se um ritual e evento social essencial na crescente cultura de viajantes da Inglaterra. Em 1984, reuniu 30 mil participantes que criaram um vilarejo que durou um mês. Nas palavras de um participante, o festival foi “anarquia, e funcionou”.[4.26] O regime de Thatcher viu-o como uma ameaça; em 1985, o 14º Festival Livre de Stonehenge foi proibido. A polícia atacou as centenas de pessoas que se reuniram para o evento, no que ficou conhecido como Batalha de Beanfield.

Esses exemplos de acampamentos improvisados não são tão marginais quanto parecem à primeira vista. Centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo vivem em cidades organizadas informalmente, algumas vezes chamadas de vilas ou favelas, que são auto-organizadas, criadas por conta própria e autossustentáveis. As questões sociais colocadas pelas favelas são muito complexas. Milhões de agricultores são forçados a cada ano a deixar suas terras e se mudar para as cidades, onde a periferia é o único lugar em que conseguem morar; mas muitas outras pessoas também se mudam para a cidade por vontade própria para escapar de áreas rurais de cultura rígida e construir uma vida nova. Muitas favelas enfrentam problemas de saúde causados por falta de acesso a água potável, assistência de saúde e nutrição. Entretanto, muitos desses problemas são próprios do capitalismo, não da estrutura de favelas, visto que seus habitantes geralmente são inventivos o suficiente para sustentar-se apesar dos recursos artificialmente limitados.

Água e eletricidade privatizadas são geralmente muito caras, e, mesmo nos locais onde esses recursos são públicos, as autoridades geralmente restringem seu acesso aos assentamentos informais. As pessoas que moram nesses lugares acabam com esse tipo de problema construindo seus próprios poços e fazendo gatos na rede de eletricidade. A assistência médica é altamente profissionalizada em sociedades capitalistas e distribuída em troca de dinheiro, não da necessidade por ela; consequentemente, raramente há médicos bem treinados nas favelas. Mas a medicina popular e os curandeiros lá presentes geralmente estão disponíveis com base na ajuda mútua. O acesso à comida também é artificialmente limitado, porque a horticultura de pequena escala foi substituída pela produção em larga escala de gêneros lucrativos, privando as pessoas do Sul Global de diversas fontes de comida locais. Esse problema aumenta em áreas assoladas pela fome, já que a ajuda alimentar fornecida pelos EUA, que se dá em conjunto com estratégias militares e econômicas, consiste mais em importações do que em subsídio à produção local. Mas, dentro dos assentamentos, a comida disponível geralmente é compartilhada, e não comercializada. Um antropólogo estimava que, em um assentamento informal em Gana, as pessoas passavam adiante quase um terço de todos os seus recursos. Isso faz muito sentido. A polícia raramente tem o controle das favelas, e alguma força armada é necessária para sustentar uma distribuição desigual de recursos. Posto de outro modo, aquelas pessoas que acumulam recursos tem mais probabilidade de serem roubadas. Com poucos recursos, pouca segurança e nenhuma garantia do direito de propriedade, as pessoas conseguem viver melhor passando adiante uma grande parcela dos recursos que obtêm. Dar presentes aumenta a sua riqueza social: amizades e outras relações que criam uma rede de segurança que não pode ser alvo de roubos.

Além da ajuda mútua, os objetivos anarquistas como a descentralização, a associação voluntária, a produção própria ao invés da profissionalização de habilidades e serviços, e a democracia direta são princípios guiadores em muitas favelas. Também é importante notar que, numa era de crescente devastação ambiental, os moradores das favelas se sustentam com somente uma fração do percentual de recursos consumidos por moradores de outras partes da cidade. Alguns deles inclusive têm uma pegada ecológica negativa, já que reciclam mais lixo do que produzem.[4.27] Em um mundo sem o capitalismo, assentamentos informais teriam potencial para serem lugares mais saudáveis. Mesmo hoje em dia, eles contradizem os mitos capitalistas de que as cidades somente podem ser mantidas por especialistas e por uma organização central, ou que só é possível viver nos níveis atuais de população se entregarmos nossas vidas ao controle de autoridades.

Um exemplo inspirador de uma cidade informal é El Alto, na Bolívia. El Alto situa-se no altiplano andino, em maior altitude que La Paz, a capital. Algumas décadas atrás, El Alto era somente um vilarejo, mas, à medida que as mudanças econômicas globais causaram o fechamento de minas e o fim de pequenas fazendas, uma quantidade enorme de pessoas migrou para lá. Não tendo condições de morar em La Paz, elas construíram assentamentos, transformando o vilarejo em uma cidade com quase 850 mil habitantes. 70% da população que tem empregos lá ganha a vida com negócios de família numa economia informal. O uso da terra não é regulado e o Estado fornece pouca ou nenhuma infraestrutura: a maior parte dos bairros não tem ruas asfaltadas, serviço de coleta de lixo ou água encanada, 75% da população não possui assistência médica básica e 40% é analfabeta.<rewf>Emily Achtenberg, “Community Organizing and Rebellion: Neighborhood Councils in El Alto, Bolivia,” Progressive Planning, No.172, verão de 2007.</ref> Em face dessa situação, os moradores da cidade informal levaram a sua auto-organização um passo adiante criando conselhos de vizinhança, ou juntas. As primeiras juntas em El Alto remontam aos anos 1950. Em 1979, essas juntas começaram a coordenar-se através de uma nova organização, a Federación de Juntas Vecinales de El Alto, a FEJUVE. Hoje existem cerca de seiscentas juntas em El Alto. Elas permitem que as diferentes regiões da cidade reúnam recursos para criar e manter a infraestrutura necessária, como escolas, parques e utilidades básicas. Elas também mediam disputas e impõem sanções em casos de conflito e prejuízos sociais. A FEJUVE agrega os recursos das juntas para coordenar protestos e bloqueios e faz com que os moradores dessas regiões sejam uma força social. Até 2005, a FEJUVE teve um papel de protagonismo ao estabelecer uma universidade pública em El Alto, evitar novos impostos municipais e desprivatizar os serviços de água. A FEJUVE também foi um instrumento no movimento popular que forçou o governo a nacionalizar o gás natural.

Cada junta conta com pelo menos duzentas pessoas e reúne-se mensalmente, tomando decisões gerais através de discussões públicas e de consenso. Também é eleito um comitê que se reúne mais frequentemente e tem um papel administrativo. Líderes de partidos políticos, comerciantes, especuladores imobiliários e pessoas que colaboraram com a ditadura não são aceitas como delegados dos comitês. Há mais homens que mulheres nesses comitês; entretanto, há mais mulheres com papel de liderança na FEJUVE do que em outras organizações populares bolivianas.

Paralelamente à organização nos conselhos de bairro, há a organização de infraestrutura e da atividade econômica em sindicatos. Vendedores ambulantes e trabalhadores do setor de transporte, por exemplo, organizam-se autonomamente em seus próprios sindicatos.

Tanto os conselhos de bairro quanto as suas contrapartes na economia informal têm como modelo a organização comunitária tradicional de comunidades indígenas rurais (Ayllu), no que diz respeito a territorialidade, estrutura e princípios organizacionais. Eles também refletem a tradição de sindicatos radicais de mineiros, que, durante décadas, lideraram o movimento sindical na Bolívia. Fundindo essas experiências, os migrantes de El Alto reproduziram, transplantaram e adaptaram suas comunidades de origem para facilitar a sobrevivência num ambiente urbano hostil. (…) Por meio das juntas de bairro, El Alto desenvolveu uma cidade construída pelos próprios moradores e gerida por uma rede de microgovernos[4.28] independente do Estado. Na visão de Raúl Zibechi, a organização autônoma do trabalho no setor informal, baseada na produtividade e em relações entre as famílias – ao invés de relações entre chefes e trabalhadores – reforça esse senso de empoderamento: os cidadãos podem autogerir-se e controlar o seu próprio ambiente.[4.29]

Redes horizontais “sem lideranças tradicionais” também desempenham um papel importante, complementando essas estruturas formais tanto na organização da vida diária quanto na coordenação de protestos, bloqueios e lutas contra o Estado.

Agora que a Bolívia tem um presidente indígena [Evo Morales] e um governo progressista liderado pelo MAS [Movimiento Al Socialismo], a FEJUVE enfrenta o perigo da incorporação e da cooptação que tipicamente neutraliza os movimentos horizontais que têm objetivos e meios explicitamente anti-estatais. Durante a escrita deste texto, a FEJUVE apoiava as medidas de reversão de políticas neoliberais de Evo Morales, e, ao mesmo tempo, permanecia crítica do MAS e do governo, não se sabendo em que medida ela será cooptada pelo Estado.

Na África do Sul, há muitos outros exemplos de assentamentos urbanos informais que se organizam para criar uma vida melhor e lutar contra o capitalismo. Movimentos específicos de moradores de locais pobres geralmente têm origem em momentos de resistência violenta. As pessoas que se encontram nas ruas para evitar um despejo ou um corte de água continuam a se reunir para criar estruturas de cuidado para os doentes, combate a incêndios, patrulhas de segurança, serviços funerários, educação, jardinagem, coletivos de costura e distribuição de alimentos. Esse foi o caso do movimento Abahlali, com base em Mjondolo, que surgiu em 2005 a partir de um bloqueio de uma rodovia para evitar a expulsão de um assentamento para as obras para a Copa do Mundo de 2010.

O assentamento Symphony Way [cujo nome se origina da rodovia às margens da qual ele se localiza, em Delft, na África do Sul] é uma comunidade composta por 127 famílias que foram expulsas à força de suas casas pelo governo, que tenta cumprir a meta, dentro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, de erradicar todas as favelas do país até 2020. O governo realocou alguns dos despejados em um acampamento cercado por arame farpado e guardas armados e o resto deles em Áreas de Realocação Provisórias, descritas por um morador como “um lugar perdido no inferno” com alta taxa de crime e frequentes estupros de crianças.[4.30]

Recusando-se a negociar com partidos políticos nos quais ninguém confia ou viver nos infernos oferecidos pelo governo, as famílias do Symphony Way decidiram ocupar ilegalmente uma área às margens de uma rodovia para instalar sua comunidade. Sua organização envolve a realização de assembleias de massa das quais todas as pessoas participam, assim como o fomento de um alto grau de iniciativa individual. Por exemplo, Raise, uma enfermeira que mora no Symphony Way, é professora voluntária dentro do centro comunitário, ajuda a organizar uma equipe feminina de basquete e uma masculina de futebol, uma banda de percussão, um acampamento para as crianças durante as férias e também ajuda em partos. As crianças possuem muita importância dentro do assentamento, tendo inclusive seu próprio comitê para discutir os problemas com que se deparam. “No comitê, resolvemos nossos problemas cotidianos, como quando alguém briga e coisas assim. Reunimo-nos e conversamos. Há crianças de outros assentamentos, não só desta rodovia”, explica um membro do comitê. A comunidade é multirracial e multirreligiosa e reúne rastafáris, muçulmanos e cristãos, que trabalham em conjunto para construir uma cultura de respeito entre os diferentes grupos. Uma vigilância noturna no assentamento tenta evitar crimes antissociais e apagar possíveis incêndios. Os moradores contaram a um anarquista russo que os visitava que se sentiam muito mais seguros em sua comunidade do que se sentiriam em um dos acampamentos oferecidos pelos governo, onde o crime é desenfreado, porque no Symphony Way a comunidade trabalha em conjunto para proteger a si mesma. “Quando alguém está com problemas, todo mundo ajuda”, explicou Raise. O senso de comunidade é uma razão pela qual os moradores não querem ir para um acampamento governamental, apesar da ameaça de violência policial e de haver fornecimento gratuito de alimentos e água nos acampamentos do governo. “A comunidade é forte e nós a tornamos forte vivendo e trabalhando em conjunto, mas não nos conhecíamos quando chegamos aqui. Esse ano e meio nos fez uma grande família”.

Há milhares de exemplos de pessoas criando cidades, vivendo em altas densidades populacionais e satisfazendo suas necessidades básicas com recursos escassos, ajuda mútua e ação direta. Mas e o contexto maior? Como cidades densamente povoadas sustentam-se sem subjugar ou explorar o meio rural? É possível que a subjugação de áreas rurais pelas cidades tenha tido relevância na emergência do Estado, há milhares de anos. Mas as cidades não precisam ser tão insustentáveis como são atualmente. O anarquista Pietr Kropotkin, que viveu no século XIX, escreveu sobre um fenômeno que sugere possibilidades interessantes para cidades anarquistas. Horticultores urbanos em Paris e arredores forneciam a maior parte dos vegetais da cidade através de uma agricultura intensiva, com insumos como o esterco da cidade, assim como produtos industriais como vidros para estufas, que eram muito caros para agricultores em áreas rurais. Esses horticultores suburbanos viviam perto o suficiente da cidade para lá poderem vender seus produtos semanalmente no mercado. O desenvolvimento espontâneo desse sistema de horticultura foi uma das inspirações de Kropotkin ao escrever sobre cidades anarquistas.

Em Cuba, a agricultura centralizada industrial entrou em colapso após a queda do bloco soviético, que era o seu principal fornecedor de petróleo e maquinário. O subsequente aperto do embargo por parte dos EUA acabou piorando a situação. Em média, os cubanos emagreceram 9kg. Rapidamente, boa parte do país adotou uma agricultura urbana intensiva e de pequena escala. Em 2005, metade dos alimentos frescos consumidos pelos dois milhões de habitantes de Havana era produzida por cerca de 22 mil horticultores urbanos dentro da própria cidade.[4.31] O exemplo parisiense trazido por Kropotkin mostra que tal mudança também ocorre sem orientação estatal.

E as secas, fomes e outras catástrofes?

Os governos obtêm maior controle com os “poderes de emergência”, segundo a premissa de que uma maior centralização é necessária em uma emergência. Porém, pelo contrário, estruturas centralizadas são menos ágeis na resposta a situações caóticas. Estudos demonstram que, logo após desastres naturais, a maioria dos resgates é efetuada por pessoas comuns, não por especialistas do governo ou profissionais. Além disso, a maior parte da ajuda humanitária é oferecida por pessoas individuais, não por governos. A ajuda governamental geralmente facilita agendas políticas como apoiar aliados políticos contra seus adversários, disseminar alimentos geneticamente modificados e enfraquecer a agricultura local com imensas remessas de alimentos gratuitos rapidamente substituídos por importações comerciais que acabam monopolizando o mercado local em ruínas. Ainda nessa questão, uma parcela significativa do tráfico internacional de armas ocorre por trás do disfarce de carregamentos com ajuda governamental.

É possível que as pessoas estivessem em melhor posição nas catástrofes sem governos. Também podemos desenvolver alternativas efetivas à assistência governamental baseadas no princípio da solidariedade. Se uma comunidade anarquista é afetada por uma catástrofe, ela pode contar com a ajuda de outras. Enquanto que, num contexto capitalista, uma catástrofe é uma ocasião para formas de ajuda politicamente motivadas – se não de completo oportunismo –, anarquistas dão assistência livremente com a garantia de que haverá reciprocidade quando necessário.

A Espanha de 1936 fornece novamente um exemplo adequado. Em Mas de las Matas, assim como em outros lugares, o Comitê Cantonal (estadual) verificava onde havia escassez ou excesso de produtos e fazia arranjos para realizar uma distribuição igualitária. Parte de sua tarefa era assegurar que todos os coletivos recebessem ajuda na eventualidade de um desastre natural.

Por exemplo: este ano, as lavouras de Mas de las Matas, Seno e La Ginebrosa foram destruídas pelo granizo. Em um regime capitalista, esses desastres naturais teriam significado privações sem fim, dívidas pesadas, execuções de hipotecas e até a emigração de trabalhadores por alguns anos. Mas no atual regime de solidariedade libertária, essas dificuldades foram superadas pelos esforços do distrito inteiro. Provisões, sementes, (…) todo o necessário para reparar o dano foram fornecidos dentro do espírito de fraternidade e solidariedade – sem condições, sem contratação de débitos. A Revolução criou uma nova civilização![4.32]

O anarquismo é uma das poucas ideias revolucionárias que não requerem modernização; as sociedades anarquistas são livres para se organizarem em qualquer nível sustentável de tecnologia. Isso significa que as sociedades caçadoras-coletoras atualmente existentes ou grupos que escolhem adotar esse estilo de vida podem praticar essa forma mais eficiente e ecológica de subsistência, que também é a que melhor conduz a um ecossistema resiliente e menos vulnerável a desastres naturais.

Satisfazendo nossas necessidades sem contabilizar

O capitalismo produziu alguns dispositivos eletrônicos incríveis, mas o setor militar e a polícia são quase sempre os primeiros a utilizar as novas tecnologias e geralmente as pessoas mais ricas são as únicas a se beneficiarem delas. O capitalismo produziu uma riqueza nunca sonhada, mas que é acumulada por parasitas que não a produziram e que dominam os escravos e trabalhadores assalariados que a criaram. A competição pode parecer um princípio útil para estimular a eficiência – mas uma eficiência com que propósito? Apesar do que diz a mitologia que criou, o capitalismo na realidade não é um sistema competitivo. Os trabalhadores são divididos e jogam uns contra os outros, enquanto a elite coopera para manter seu domínio. Os mais ricos podem competir por maiores pedaços do bolo, mas regularmente acabam se dando as mãos para assegurar que o bolo seja assado e levado à mesa todos os dias. Quando o capitalismo ainda era um fenômeno novo, era possível descrevê-lo mais honestamente, sem a confusão das décadas de propaganda sobre suas supostas virtudes: Abraham Lincoln, dificilmente um anarquista, conseguia ver claramente que “capitalistas geralmente agem harmoniosamente e em combinação para espoliar o povo”.

Quando se trata de satisfazer a necessidade das pessoas e realizar uma distribuição justa dos bens, nota-se que o capitalismo falhou miseravelmente. Pelo mundo inteiro, milhões de pessoas morrem de doenças tratáveis porque não conseguem pagar os remédios que as salvariam, enquanto outras morrem de fome enquanto seus países exportam commodities vegetais. Sob o capitalismo, tudo está à venda – a cultura é uma mercadoria que pode ser manipulada para vender lingerie ou creme dermatológico, a natureza é um recurso que pode ser sugado até o fim e destruído em busca de lucro. As pessoas precisam vender seu tempo e energia para a classe dominante para comprar de volta uma fração do que produziram. Esse é um sistema profundamente enraizado que modela nossos valores e relações e reage contra a maior parte das tentativas de aboli-lo. As revoluções socialistas na URSS e na China não foram suficientemente a fundo: como nunca aboliram totalmente o capitalismo, ele re-emergiu, mais forte do que antes. Muitas tentativas anarquistas também não foram suficientemente a fundo; o capitalismo também poderia ter ressurgido nessas experiências se governos hostis não as tivessem esmagado antes.

O poder e a alienação precisam ser combatidos em suas raízes. Não é suficiente para os trabalhadores possuírem coletivamente suas próprias fábricas se permanecem sendo controlados por chefes e o trabalho ainda os reduz a máquinas. A alienação não é simplesmente a ausência de propriedade legal dos meios e dos resultados da produção – é a falta de controle sobre a relação das pessoas com o mundo. A propriedade de uma fábrica pelos trabalhadores não tem sentido se ela ainda é administrada por outros em seu proveito próprio. Os trabalhadores devem organizar-se e controlar a fábrica diretamente. E mesmo se eles controlam a fábrica diretamente, a alienação persiste onde as relações econômicas mais amplas – a fábrica em si – dita a forma que o trabalho toma. Uma pessoa pode ser realmente livre trabalhando em uma linha de produção em série, tendo sua criatividade negada e sendo tratada como máquina? A forma de trabalho em si precisa mudar para que as pessoas possam ir atrás das habilidades e atividades que lhes deem contentamento.

A separação entre o trabalho e as outras atividades humanas é uma das raízes da alienação. A própria produção torna-se um tipo de obsessão que justifica a exploração de pessoas ou a destruição do meio ambiente em favor da eficiência. Ao considerar a felicidade uma necessidade humana da mesma relevância que a alimentação e o vestuário, então a divisão entre atividades produtivas e não produtivas, entre trabalho e diversão, desaparece. O movimento de ocupações em Barcelona e a economia da dádiva de muitas sociedades indígenas fornecem exemplos de indistinção entre trabalho e diversão.

Em uma sociedade livre, a troca é simplesmente uma garantia simbólica de que todas as pessoas estão contribuindo para os recursos comuns – ninguém acumula recursos ou tira vantagem das outras pessoas porque é preciso dar para receber. Mas a troca pode apresentar problemas quando se atrela um valor quantitativo a cada objeto e experiência, separando-os de seu valor subjetivo.

Onde outrora um picolé valia uns deliciosos minutos de lambuzamento dos beiços ao sol e um livro valia algumas tardes de prazer e reflexão e até, possivelmente, um insight que pode mudar a vida da pessoa – depois que esses bens são avaliados conforme o regime de troca, um picolé vale um quarto de um livro. Ainda nesse processo, para tornar as trocas mais eficientes, ao fixar o valor quantitativo – ao invés de comparativo – como inerente ao produto, um picolé vale uma unidade de moeda e um livro vale quatro unidades de moeda. O valor monetário substitui o valor subjetivo do objeto – o prazer que as pessoas encontram nele. Por um lado, as pessoas e seus desejos são retirados da equação, enquanto, por outro lado, todos os valores – prazer, utilidade, inspiração – são absorvidos por um valor quantitativo, e o dinheiro em si torna-se um símbolo de todos esses outros valores.

Com efeito, ter dinheiro acabou simbolizando ter acesso a alegria e prazer ou satisfazer um desejo; mas o dinheiro, ao fixar um valor quantitativo, toma dos objetos o senso de satisfação que eles poderiam trazer, porque os humanos não experienciam o valor quantitativo e abstrato. Ao comer um picolé, o prazer está no ato – mas ao comprar uma mercadoria, o prazer está na aquisição, no momento mágico em que um valor abstrato é transformado em uma posse tangível. O dinheiro exerce uma influência tão poderosa nas noções de valor que o consumo em si nunca leva ao clímax: uma vez que a mercadoria é comprada, ela perde seu valor, especialmente à medida que as pessoas acabam priorizando o valor abstrato em vez do valor subjetivo. Além disso, ao comprar, você perde dinheiro e a sua posse total de valor simbólico diminui – daí o sentimento de culpa que acompanha o gasto de dinheiro.

Além da alienação, a troca cria poder-sobre: se uma pessoa acumula mais valor quantitativo, a ela cabe o direito a uma maior porção dos recursos comunitários. Sistemas de troca e monetários, como a rede de trocas na Argentina ou o sistema de cupons para adquirir bens em partes da Espanha anarquista, dependem de costumes e arranjos sociais para evitar a re-emergência do capitalismo. Por exemplo, uma economia da dádiva poderia funcionar num nível local, com as trocas sendo usadas somente para o comércio regional. As pessoas poderiam estabelecer intencionalmente ambientes que estimulassem o desenvolvimento pessoal, a criatividade, a diversão e a auto-organização, ao mesmo tempo em que federações descentralizadas desses locais de trabalho poderiam conceder cupons às pessoas para elas terem acesso à riqueza criada pelo coletivo.

Mas tentar reunir a troca e o sistema monetário é um desafio que não vale a pena. Dentro de lojas livres ou do Freecycle, a garantia simbólica provida pela troca ou pelo escambo é desnecessária. A garantia de que todas as pessoas contribuirão para a riqueza comum provém da cultura dos próprios espaços. Como participante, você expressa o desejo de dar e receber, e a sua inclusão no espaço social aumenta à medida que você realiza essas duas atividades. Nesses contextos, o ato de dar satisfaz uma pessoa tanto quanto o de receber.

O mundo tem abundância suficiente para satisfazer as necessidades de todas as pessoas. A escassez é uma ilusão perigosa que funciona como uma profecia que serve a si mesma. Quando as pessoas param de dar e começam a acumular, a riqueza coletiva diminui. Ao superarmos o medo da escassez, a própria escassez desaparece. Os recursos comuns serão fartos se todas as pessoas compartilharem e contribuírem – ou mesmo se a maioria delas fizer isso. As pessoas gostam de ser ativas, criar e melhorar as coisas. Se elas têm acesso assegurado aos recursos comuns e abrirem mão da pobreza do trabalho assalariado, elas criarão com sobra as coisas de que precisam e que lhes dão prazer – assim como a infraestrutura necessária para fazer e distribuir essas coisas.

Leitura recomendada

Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, Nova Iorque: Free Life Editions, 1974.

Natasha Gordon and Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey Through Argentina’s Popular Uprising. Leeds, Reino Unido: University of Leeds, 2004.

Michael Albert, Parecon: Life After Capitalism, Nova Iorque: Verso, 2003.

Peter Kropotkin, Fields, Factories and Workshops Tomorrow. Londres: Freedom Press, 1974.

Jac Smit, Annu Ratta e Joe Nasr, Urban Agriculture: Food, Jobs and Sustainable Cities, UNDP, Habitat II Series, 1996.

The Curious George Brigade, Liberate, Not Exterminate, Nova Iorque: CrimethInc., 2005.

Gonzalo Casanova, Armarse Sobre Las Ruinas: Historia del movimiento autónomo en Madrid (1985–1999). Madri: Potencial Hardcore, 2002.

Vários autores. Colectividades y Ocupación Rural, Madri: Traficantes de Sueños, 1999.

Marcel Mauss, The Gift: forms and functions of exchange in archaic societies. 1924 (Versão inglesa Londres: Routledge Press, 1990).

p.m. Bolo’Bolo. Zurique: Paranoia City Verlag, 1983.

Capítulo 4 — Meio ambiente

Nenhuma filosofia ou movimento de libertação pode ignorar a conexão entre a exploração humana do meio ambiente e a exploração entre humanos; tampouco pode ignorar as ramificações suicidas da sociedade industrial. Uma sociedade livre precisa produzir uma relação respeitosa e sustentável com a sua biorregião, compreendendo que os humanos dependem da saúde do planeta inteiro.

Como evitar que o meio ambiente seja destruído?

Algumas pessoas se opõem ao capitalismo baseadas no ambientalismo, mas pensam que algum tipo de Estado é necessário para evitar um ecocídio. Porém, o Estado é, em si, uma ferramenta para a exploração da natureza. Estados socialistas como a União Soviética e a República Popular da China estão entre os regimes mais ecocidas que se possa imaginar. Que essas duas sociedades nunca tenham escapado das dinâmicas do capitalismo indica uma característica da estrutura do Estado: ele requer relações hierárquicas e exploradoras de controle e comando, e, nesse jogo, nada se iguala ao capitalismo. Contudo, o Estado apresenta a possibilidade de mudar forçosamente o comportamento das pessoas em uma escala massiva, e esse poder é atrativo para alguns ambientalistas. Poucos Estados na história mundial tomaram medidas de proteção ao meio ambiente em seu território quando essa proteção ia de encontro aos seus interesses estratégicos. Um deles é o Japão, que interrompeu e reverteu o desmatamento no arquipélago na Era Meiji.[5.1] Mas neste caso e em outros casos, as proteções ambientais domésticas levadas a cabo pelo Estado eram combinadas com explorações maiores no estrangeiro. A sociedade japonesa consumia crescentes quantidades de madeira importada, estimulando o desmatamento em outros países e incentivando o desenvolvimento de um exército imperial para assegurar esses recursos vitais. Isso não levou somente à devastação ambiental, mas também à guerra e ao genocídio. De modo semelhante, na Europa Ocidental as proteções ambientais do Estado vieram à custa da exploração colonial, o que também resultou em genocídio.

Em sociedades de menor escala, a existência de uma elite tende a estimular a exploração ambiental. O famoso colapso ambiental na Ilha de Páscoa foi causado em grande parte pela elite, que compeliu a sociedade a erguer estátuas em sua honra. Isso gerou o desmatamento da ilha, já que eram necessárias toras para fazer andaimes e para o transporte das estátuas; além disso, as lavouras cultivadas para alimentar os trabalhadores foram feitas à custa de mais desmatamento. Sem florestas, a fertilidade do solo caiu dramaticamente, e, sem comida, a população humana também diminuiu drasticamente. Mas não só houve fome e diminuição da taxa de natalidade: as elites dos clãs guerrearam umas com as outras, derrubando as estátuas rivais e realizando ataques que acabaram em canibalismo, até a sociedade inteira se extinguir.[5.2]

Uma sociedade descentralizada e comunal com um ethos ecológico compartilhado é a mais bem equipada para evitar a destruição ambiental. Em economias que valorizam a autossuficiência local mais que o comércio e a produção, as comunidades têm de lidar com as consequências ambientais de seus próprios comportamentos econômicos. Elas não podem pagar outras pessoas para recolher seu lixo ou para passar fome enquanto elas desfrutam de abundância.

O controle local dos recursos também desestimula a superpopulação. Estudos mostraram que, quando membros de uma sociedade conseguem ver diretamente que ter muitos filhos diminui os recursos disponíveis para todos, eles mantêm o tamanho de suas famílias dentro de um limite sustentável. Porém, quando essas sociedades localizadas são incorporadas em uma economia globalizada na qual a maior parte dos recursos e resíduos são importados e exportados, e a escassez resulta de flutuações de preço aparentemente arbitrárias – ao invés de ser consequência da diminuição quantidade dos recursos locais –, a população cresce insustentavelmente, mesmo se formas mais efetivas de contracepção estiverem disponíveis.[5.3] Em Seeing like a State, James Scott explica como os governos inculcam uma “legibilidade” – uma uniformidade que permite a compreensão desde cima, com o objetivo de controlar e rastrear sujeitos. Como resultado, essas sociedades perdem o conhecimento local necessário para compreender problemas e situações.

O capitalismo, o cristianismo e a ciência ocidental partilham uma certa mitologia em relação à natureza, a qual estimula a exploração e o desprezo, e enxerga o mundo natural como morto e mecânico, existindo somente para satisfazer o consumo humano. Essa megalomania disfarçada de Razão ou Verdade Divina revelou-se, além de qualquer dúvida, suicida. Precisa-se, ao contrário desse pensamento, de uma cultura que respeite o mundo natural como sendo uma coisa viva e interconectada, e que entenda o nosso lugar dentro dele. Bruce Stewart, um escritor e ativista Maori, disse em uma entrevista, apontando para uma vinha florida que ele tinha plantado na sua casa:

Essa vinha não tem mais um nome. O nosso nome Maori para ela se perdeu, de modo que vamos ter que encontrar outro. Só uma espécime dessa planta sobrou no mundo, vivendo numa ilha infestada por cabras. A planta podia ser extinta a qualquer momento. Então eu consegui uma semente e a plantei aqui. A vinha cresceu e, apesar de levar normalmente vinte anos para florescer, esta está florescendo depois de sete.

...Se queremos sobreviver, cada um de nós deve tornar-se kaitiaki, que é, para mim, o mais importante conceito da minha cultura Maori. Precisamos nos tornar cuidadores, guardiões, protetores, cultivadores. Nos tempos antigos, cada whanau – ou família – costumava cuidar de um pedaço específico de terra. Uma família podia cuidar de um trecho do rio, desde uma certa pedra até a sua curva seguinte. E eles eram os kaitiaki dos pássaros e dos peixes e das plantas. Sabiam quando era a época de alimentá-los e quando não era. Quando os pássaros precisavam ser protegidos, as pessoas colocavam um rahui neles, o que significa que os pássaros eram temporariamente sagrados. E alguns pássaros eram permanentemente tapu, o que significa que eram protegidos sempre. Essa proteção era tão forte que as pessoas morriam se a quebrassem. Simples assim. Não havia necessidade de policiar. Em sua ânsia de desselvagizar meus ancestrais, os missionários cristãos mataram o conceito de tapu juntamente com muitos outros.[5.4]

Tikopia, uma ilha no Pacífico habitada por um povo polinésio, traz um bom exemplo de uma sociedade descentralizada e anárquica que lidou com sucesso com problemas ambientais de vida e morte. A ilha tem somente 4,66 km² de área e possui 1200 habitantes. A comunidade existe sustentavelmente há três mil anos. Tikopia é coberta por pomares-hortas que imitam as florestas úmidas naturais. À primeira vista, a maior parte da ilha parece ser coberta pela floresta, embora só tenha sobrado floresta úmida em algumas partes íngremes da ilha. Tikopia é pequena o suficiente para que todos os seus habitantes tornem-se familiares com seu ecossistema inteiro. Ela também é isolada; assim, por um longo tempo, não se pôde importar recursos ou exportar as consequências de seu estilo de vida. Cada um dos quatro clãs tem um chefe, apesar de estes não possuírem poderes coercitivos e desempenharem um papel cerimonial de guardadores da tradição. Tikopia está entre as sociedades menos estratificadas socialmente das ilhas polinésias. Por exemplo, os chefes também têm de trabalhar para produzir sua própria comida. O controle populacional é um valor comum e é considerado imoral ter mais que um certo número de filhos. Em um impressionante exemplo do poder desses valores compartilhados coletivamente e mantidos coletivamente, por volta do ano 1600 os habitantes da ilha tomaram a decisão de interromper a criação de porcos. Eles mataram todos os porcos da ilha, mesmo que a carne suína fosse uma fonte de alimento altamente valorizada, porque sustentar os porcos causava uma pressão muito grande no meio ambiente.[5.5] Em uma sociedade mais estratificada e hierarquizada, isso poderia ter sido impossível, porque a elite provavelmente forçaria os mais pobres a sofrer as consequências do seu estilo de vida, ao invés de abandonar um produto de luxo muito estimado.[5.6]

Antes da colonização e da desastrosa chegada dos missionários, os métodos de controle populacional em Tikopia envolviam contracepção natural, aborto e abstinência para os mais jovens – embora este fosse um celibato compassivo que correspondia mais a uma proibição da reprodução que do sexo em si. Os tikopianos também tinham outras formas de controle populacional, como o infanticídio – o que muitas pessoas em outras sociedades considerariam inadmissível – mas Tikopia ainda nos traz um exemplo perfeitamente válido porque, com a efetividade da contracepção moderna e das técnicas abortivas, nenhum outro método é necessário para uma abordagem descentralizada do controle populacional. O aspecto mais importante do exemplo tikopiano é seu ethos: reconhecer viver em uma ilha em que os recursos eram limitados, de modo que aumentar sua população seria equivalente a um suicídio. Outras sociedades de ilhas polinésias ignoravam essa questão e acabaram extinguindo-se. O planeta Terra, neste sentido, também é uma ilha; nessa linha, precisamos desenvolver tanto uma consciência global quanto economias localizadas, de modo que possamos evitar exceder a capacidade do solo e permanecer atentas às outras coisas vivas com as quais compartilhamos esta ilha.

Atualmente, a maior parte do mundo não está organizado em comunidades estruturadas para serem sensíveis aos limites do meio ambiente local, mas é possível recriar essas comunidades. Existe um movimento crescente de comunidades ecologicamente sustentáveis – ou “ecovilas” –, organizadas em linhas horizontais e não hierárquicas, nas quais grupos de pessoas, variando de uma dezena a algumas centenas, reúnem-se para criar sociedades anárquicas de modelos orgânicos e sustentáveis. A construção dessas vilas maximiza a eficiência dos recursos e a sustentabilidade ambiental, além de cultivar a sensibilidade pelo meio ambiente local em nível cultural e espiritual. Essas ecovilas estão na vanguarda do desenvolvimento de tecnologias sustentáveis. Toda comunidade alternativa pode degenerar em um escapismo yuppie e as ecovilas estão vulneráveis a isso, mas uma parte importante desse movimento procura desenvolver e difundir inovações relevantes para o resto do mundo ao invés de fechar-se para ele. Para ajudar a proliferar essas ecovilas e adaptá-las a todas as regiões do planeta, e também facilitar a coordenação entre as ecovilas existentes, quatrocentos delegados de quarenta países encontraram-se em Fundhom, na Escócia, em 1995, e estabeleceram a Global Ecovillage Network [Rede Global de Ecovilas].

Cada ecovila é um pouco diferente das outras, mas alguns exemplos podem dar uma ideia de sua diversidade. The Farm, no Tennessee, sudeste dos Estados Unidos, tem 350 habitantes. Estabelecida em 1971, ela mantém hortas com composto orgânico, aquece a água com o calor do sol, tem um negócio sustentável de shiitake, casas de palha e um centro para treinar pessoas para construir as suas próprias ecovilas. A antiga Bassaisa, no Egito, tem algumas centenas de habitantes e existe há milhares de anos. Os habitantes aperfeiçoaram um modelo de vila ecológica e sustentável a partir de métodos tradicionais. Ela conta agora com um Centro de Futurologia e está desenvolvendo novas tecnologias sustentáveis como uma unidade de produção de gás metano que extrai gases do esterco do gado para evitar o uso de lenha, que é escassa. Os resíduos viram fertilizante para seus campos. Ecotop, perto de Düsseldorf, oeste da Alemanha, é um subúrbio inteiro com centenas de habitantes que moram em vários prédios de quatro andares e algumas casas em separado. A arquitetura promove um senso de comunidade e liberdade, com vários espaços comunais e privados. Entre os prédios, em uma espécie de centro da vila, há uma zona multiuso que serve como pátio, parque e passeio, com abundância de plantas e árvores. Os prédios, que têm uma estética totalmente moderna e urbana, foram construídos com materiais naturais e projetados com aquecimento e resfriamento passivo e tratamento biológico local do esgoto.

Earthhaven, que conta com cerca de sessenta habitantes, foi fundada em 1995 por permacultores na Carolina do Norte, leste dos Estados Unidos. É composta de alguns grupos de casas instaladas nas encostas dos Montes Apalaches. A maior parte da terra é coberta com floresta, mas os habitantes tomaram recentemente a difícil decisão de derrubar parte da floresta para lavouras, de modo a ficar mais perto da autossuficiência alimentar, ao invés de exportar os custos de seu estilo de vida comprando comida de outros lugares. Eles debateram o assunto por um longo tempo, prepararam-se espiritualmente e tentaram limpar a terra de um modo respeitoso. Esse tipo de atitude, que a ideologia capitalista classificaria como sentimental e ineficiente, é exatamente o que pode evitar a destruição do meio ambiente em uma sociedade anarquista.

Também é necessário ímpeto e vontade para agir diretamente e defender o meio ambiente. No istmo de Tehuantepec, em Oaxaca, no sul do México, indígenas anarquistas e antiautoritários mostraram exatamente essas qualidades ao proteger a terra contra uma série de ameaças. Organizações como a União de Comunidades Indígenas da Zona Norte do Istmo (UCIZONI), que congrega uma centena de comunidades em Oaxaca e Veracruz – e depois também o grupo anarquista/magonista CIPO-RFM (Conselho Indígena Popular de Oaxaca “Ricardo Flores Magón”) – lutaram contra a construção de parques eólicos, criadouros de camarões, plantações de eucaliptos e a expropriação de terras pela indústria madeireira, que devastavam o meio ambiente. Eles também reduziram as pressões econômicas para devastar o meio ambiente ao estabelecer cooperativas de milho e café e construir escolas e hospitais. Enquanto isso, também criaram uma rede de estações de rádio comunitárias autônomas pra educar as pessoas sobre as ameaças ao meio ambiente e informar as comunidades próximas sobre novos projetos industriais que destruiriam mais terras. Em 2001, as comunidades indígenas barraram a construção de uma rodovia que fazia parte do Plano Puebla Panamá, um megaprojeto neoliberal que planejava conectar as Américas do Norte e do Sul com uma infraestrutura de transporte planejada para aumentar o fluxo de mercadorias. Durante a rebelião zapatista de 1994, eles interromperam linhas de transporte para frear o movimento das tropas, além de terem bloqueado rodovias e fechado gabinetes do governo para apoiar a rebelião de 2006 em Oaxaca.

Em 1998, o Departamento de Transporte de Minnesota queria retraçar uma rodovia para que passasse através de um parque em Minneapolis ao longo da confluência dos rios Minnesota e Mississipi. O traçado proposto destruiria uma área que tinha árvores antigas, um precioso ecossistema de savana de carvalhos, uma antiga fonte de água, e lugares sagrados para indígenas – um espaço selvagem vital no meio da cidade que também servia de refúgio para a vizinhança próxima. Ativistas indígenas, junto com o Movimento Indígena Americano e a Comunidade Mendota Mdewakanton Dakota reuniram-se para trabalhar em coalizão com as pessoas brancas que habitavam o local, ambientalistas do Earth First! e anarquistas de todo o país para tentar parar a construção. O resultado foi o Estado Livre de Minnehaha, uma zona autônoma que tornou-se a primeira – e de mais longa duração – ocupação contra uma rodovia na história dos EUA. Por um ano e meio, centenas de pessoas ocuparam a terra para evitar que o Departamento de Transporte cortasse as árvores e construísse a rodovia, e milhares apoiaram e visitaram o Estado Livre. A ocupação empoderou incontáveis participantes, reconectou muitos povos Dakota com sua herança, ganhou o apoio de muitos vizinhos, criou uma zona autônoma de mais de ano e uma comunidade auto-organizada, e atrasou significativamente a destruição da área – tempo durante o qual muitas pessoas conseguiram descobrir e desfrutar o espaço de uma maneira íntima e espiritual.

Para acabar com a ocupação, o Estado foi forçado a recorrer a uma variedade de técnicas repressivas, como assédio, vigilância e infiltração no acampamento. Um exército de policiais invadiu e destruiu os acampamentos várias vezes; torturou, feriu e quase matou gente; e promoveu mais de uma centena de prisões. No final, o Estado cortou as árvores e construiu a rodovia, mas os manifestantes conseguiram salvar a Fonte Coldwater, que é um lugar sagrado para os povos indígenas da área e uma parte importante da bacia hidrográfica da região. Os indígenas participantes consideraram uma importante vitória espiritual.

Por toda Minneapolis, pessoas que inicialmente haviam apoiado o projeto destrutivo por seus supostos benefícios para o sistema de transporte foram conquistadas pela resistência para salvar o parque e acabaram se opondo à rodovia. Se a decisão fosse delas, a rodovia não teria sido construída. O Estado Livre criou e nutriu coalizões e laços comunitários que duram até hoje, servindo de modelo para novas gerações de comunidades radicais e inspirando novos esforços similares pelo mundo afora.

Nos arredores de Edimburgo, na Escócia, eco-anarquistas tiveram mais sucesso ao salvar uma floresta. O acampamento Bilston Glen contra a construção de rodovias existe há mais de sete anos [o escrito é de 2010], atraindo a participação de centenas de pessoas e paralisando a construção de um viaduto planejado para atender os interesses das instalações de um empresa de biotecnologia na área. Para permitir que se morasse lá permanentemente com baixo impacto para a floresta e também para dificultar que a polícia os expulsasse, os ativistas construíram casas nas árvores, ocupadas por cerca de um ano. A vila certamente tem baixa tecnologia, mas também é de baixo impacto, e algumas das casas são claramente trabalhos de amor, confortáveis o suficiente para serem consideradas casas permanentes. Os cerca de dez habitantes também estiveram tomando conta da floresta, removendo espécies invasivas e estimulando o crescimento de espécies nativas. As casas nas árvores de Bilston Glen constituem somente uma de uma série de ocupações contra rodovias e ações diretas no Reino Unido que criaram uma força coletiva que faz o Estado pensar duas vezes quando se trata de abrir novas estradas ou expulsar manifestantes. A vila também cruza a linha entre simplesmente fazer oposição à polícia e criar novas relações sociais com o meio ambiente: enquanto defendiam a floresta, dezenas de pessoas fizeram dela sua casa, e centenas de outras notaram pessoalmente a importância de se relacionar com a natureza de um modo respeitoso e de defendê-la da civilização ocidental.

E os problemas ambientais globais, como a mudança climática?

Anarquistas ainda não tiveram experiência em lidar com problemas globais porque nossos sucessos até agora foram somente locais e temporários. Sem Estados, sociedades anárquicas já cobriram o mundo, mas isso foi muito tempo antes da existência de problemas ambientais globais como aqueles criados pelo capitalismo. Atualmente, membros de muitas sociedades indígenas estão no fronte da resistência global contra a destruição ecológica causada por governos e corporações.

Anarquistas também coordenam uma resistência global. Eles organizam protestos internacionais contra grandes poluidores e seus apoiadores estatais, como as mobilizações durante os encontros do G-8, as quais reuniram centenas de milhares de pessoas de dezenas de países para protestar contra os Estados mais responsáveis pelo aquecimento global e por outros problemas. Em resposta à atividade global de corporações transnacionais, anarquistas de tendência ecológica compartilham informação globalmente. Desse modo, ativistas pelo mundo podem coordenar ações simultâneas contra corporações, visando especificamente uma indústria ou mina poluidora em um continente, lojas em outro continente e uma sede de uma corporação ou uma reunião de acionistas em um outro continente.

Por exemplo, grandes protestos, boicotes e atos de sabotagem contra a Shell foram coordenados entre pessoas na Nigéria, Europa e América do Norte ao longo das décadas de 1980 e 90. Em 1986, autonomistas na Dinamarca realizaram múltiplos bombardeios simultâneos de postos da Shell pelo país porque ela apoiava o governo responsável pelo apartheid na África do Sul. Na Holanda, o grupo antiautoritário clandestino RaRa (Ação Revolucionária Antirracista) realizou uma campanha de bombardeios não letais contra a Shell, desempenhando um papel crucial para forçá-la a sair da África do Sul. Em 1995, quando a Shell quis se livrar de uma antiga plataforma de petróleo no Mar do Norte, ela foi forçada a abandonar seus planos por protestos na Dinamarca e no Reino Unido, por uma ocupação da plataforma feita por ativistas do Greenpeace, por uma explosão e um tiroteio contra postos da Shell em suas cidades da Alemanha e por um boicote que diminuiu suas vendas em 10% naquele país.[5.7] Ações como essas prefiguram as redes globais descentralizadas que poderiam proteger o meio ambiente em um futuro anarquista. Se tivermos sucesso em abolir o capitalismo e o Estado, teremos acabado com os grandes saqueadores sistêmicos do meio ambiente e também com as barreiras estruturais que atualmente impedem ações populares em defesa da natureza.

Há exemplos históricos de sociedades sem Estado que responderam a problemas ambientais coletivos e de larga escala através de redes descentralizadas. Embora os problemas não fossem globais, as distâncias relativas que eles enfrentavam – com a informação viajando na velocidade de um caminhante – eram talvez maiores que as distâncias que marcam o mundo de hoje, no qual as pessoas podem se comunicar instantaneamente mesmo vivendo em lados opostos do planeta.

Tonga é um arquipélago do Pacífico habitado por povos polinésios. Antes da colonização, havia lá um sistema político centralizado com um líder hereditário – apesar de o sistema ser muito menos centralizado que um Estado e os poderes coercitivos do líder, limitados. Por 3.200 anos, o povo de Tonga conseguiu manter práticas sustentáveis por um arquipélago de 746 km² com dezenas de milhares de habitantes.[5.8] Não havia tecnologias de comunicação, então a informação viajava lentamente. Tonga é muito grande para que um único agricultor conheça todas as suas ilhas, ou mesmo somente as suas maiores ilhas. O líder conseguia tradicionalmente guiar e assegurar práticas sustentáveis sem recorrer à força porque ele tinha acesso à informação de todo o território, assim como uma federação ou uma assembleia geral teria se os habitantes da ilha se organizassem dessa maneira. Ficava a cargo dos indivíduos que construíram a sociedade implementar práticas particulares e apoiar a ideia de sustentabilidade.

O fato de que uma grande população consiga proteger o meio ambiente de uma maneira difusa ou descentralizada, sem liderança, é amplamente demonstrado pelos já mencionados habitantes das terras altas da Nova Guiné. A agricultura geralmente leva ao desmatamento, já que a terra é limpa para os campos, e o desmatamento pode matar o solo. Muitas sociedades acabam limpando mais terra para compensar a baixa produtividade do solo, agravando o problema. Várias civilizações já ruíram porque destruíram seu solo pelo desmatamento. O perigo da erosão do solo é acentuado em terrenos montanhosos, como as terras altas da Nova Guiné, onde fortes chuvas podem lavar completamente o solo exposto. Uma prática inteligente, que os agricultores na Nova Guiné aperfeiçoaram, é a silvicultura: integrar árvores com outros cultivos, combinando pomares, campo e floresta para proteger o solo e criar ciclos químicos simbióticos entre as várias plantas cultivadas.

O povo dessas terras desenvolveu técnicas especiais contra a erosão para evitar a perda do solo dos vales íngremes das montanhas. Qualquer agricultor podia ter ganho vantagem se fizesse atalhos que eventualmente causariam erosão e privariam as futuras gerações de um solo saudável; mesmo assim, técnicas sustentáveis eram usadas universalmente quando do início da colonização. Técnicas contra a erosão eram disseminadas e reforçadas com o uso exclusivo de meios coletivos e descentralizados. Os habitantes das terras altas não precisavam de especialistas para criar essas tecnologias ambientais e agrícolas, nem de burocratas para assegurar que todos as utilizassem. Pelo contrário, eles confiavam numa cultura que valorizava a experimentação, a liberdade individual, a responsabilidade social, a administração coletiva da terra e a comunicação livre. Inovações efetivas desenvolvidas em uma determinada área espalhava-se rápida e livremente de um vale para outro. Sem telefone, rádio ou internet, e separadas por montanhas íngremes, cada comunidade dos vales era como um país em si mesma. Centenas de linguagens são faladas nas terras altas da Nova Guiné, variando de uma comunidade para outra. Dentro desse mundo em miniatura, nenhuma comunidade podia ter certeza de que as outras não estavam destruindo o seu meio ambiente – e mesmo assim a sua abordagem descentralizada para proteger o meio ambiente funcionava. Por milhares de anos, elas protegeram o seu solo e geraram uma população de milhões de pessoas vivendo em uma densidade populacional tão alta que os primeiros europeus a voarem sobre a região acharam-na parecida com a Holanda.

O manejo da água naquele país de terras baixas nos séculos XII e XIII fornece outro exemplo de soluções de baixo para cima para problemas ambientais. Como grande parte dos Países Baixos localiza-se abaixo do nível do mar e quase toda a região enfrenta o perigo de enchentes, os agricultores tiveram que trabalhar constantemente para manter e melhorar o sistema de manejo da água. As proteções contra enchentes eram uma infraestrutura comum que beneficiava a todos, mesmo que precisassem que todos investissem no bem coletivo para mantê-la: um agricultor individual podia ter ganhos se não se comprometesse com o manejo de água, mas a sociedade inteira perderia se houvesse uma enchente. Este exemplo é especialmente significativo porque a sociedade holandesa não possuía os valores anarquistas comuns em sociedades indígenas. A área foi logo convertida ao cristianismo e doutrinada em seus valores ecocidas e hierárquicos; por centenas de anos ela esteve sob o controle do Estado, embora o império tenha se desmantelado e, durante os séculos XII e XIII, os Países Baixos não tinham efetivamente um Estado. A autoridade central permanecia forte na Holanda e na Zelândia, onde o capitalismo eventualmente surgiria, mas nas regiões mais ao norte, como Friesland, a sociedade era amplamente descentralizada e horizontal.

Naquela época, o contato entre cidades distantes dezenas de quilômetros – alguns dias de viagem – podia ser mais desafiador que a comunicação global nos tempos atuais. Apesar dessa dificuldade, comunidades agrícolas, cidades e vilas conseguiam construir e manter uma infraestrutura extensa e retirar areia do mar para se proteger de enchentes. Conselhos de vizinhos, organizando grupos cooperativos de trabalho ou partilhando compromissos entre comunidades, construíram e mantiveram diques, canais, eclusas e sistemas de drenagem necessários para proteger a sociedade inteira; era “uma abordagem conjunta de baixo para cima, desde as comunidades locais, que encontravam proteção organizando-se desse modo”.[5.9] A organização horizontal espontânea desempenhou um papel ainda mais importante em área feudais como a Holanda e a Zelândia, e é improvável que as fracas autoridades existentes naquelas regiões pudessem ter conduzido os trabalhos hídricos necessários por si mesmas, dado seu poder limitado. Embora as autoridades sempre levem o crédito pela criatividade das massas, a auto-organização espontânea persiste mesmo à sombra do Estado

O único modo de salvar o planeta

Quando se trata de proteger o meio ambiente, praticamente qualquer sistema social seria melhor que o que temos atualmente. O capitalismo é o primeiro arranjo social na história humana a colocar em perigo a sobrevivência de nossas espécies e da vida em geral na Terra. O capitalismo incentiva a exploração e a destruição da natureza e cria uma sociedade atomizada que é incapaz de proteger o meio ambiente. Sob o capitalismo, o ecocídio é literalmente um direito. Proteções ambientais são “barreiras ao comércio”; evitar que uma corporação desmate uma área comprada é uma violação da propriedade privada e da livre empresa. Permite-se que companhias produzam milhões de toneladas de plástico – a maior parte para embalagens que são jogadas fora – apesar de elas não terem nenhum plano para descartá-las e nem mesmo ideia do que acontecerá com elas; o plástico não se decompõe, de modo que o lixo plástico está enchendo o oceano e aparecendo dentro dos corpos de criaturas marinhas – e isso pode durar milhões de anos. Para salvar rinocerontes da ameaça de caçadores, serram-se seus chifres, que têm alto valor comercial; mas os caçadores continuam matando-os porque, uma vez que eles estejam extintos, o valor de algumas peças remanescentes de marfim de rinoceronte irá às alturas.

E, apesar de tudo isso, as universidades têm a audácia de doutrinar estudantes a acreditar que uma sociedade comunal seria incapaz de proteger o meio ambiente por causa da chamada tragédia dos comuns. Esse mito é geralmente explicado assim: imagine uma sociedade pastoril que tem o pasto como bem comum. Se cada pastor cria uma quantidade pequena de ovelhas, todos ganham, porque o pasto permanece fértil, mas qualquer um deles pode se beneficiar individualmente se criar mais ovelhas, porque receberá uma parcela maior do produto – desse modo, a propriedade coletiva supostamente leva a diminuição da quantidade de recursos. Os exemplos históricos usados para corroborar essa teoria geralmente são tomados de situações coloniais e pós-coloniais nas quais um povo oprimido, cujas formas tradicionais de organização e administração foram enfraquecidas, aglomera-se em uma terra marginal, com resultados previsíveis. Esse enredo pastoril assume uma situação que é extremamente rara na história humana: um coletivo comprimido e atomizado, indivíduos competitivos que valorizam mais a saúde pessoal que os laços sociais e a saúde ecológica, e sem arranjos sociais ou tradições que possam garantir um uso sustentável e compartilhado.

O capitalismo já causou a maior onda de extinções que atingiu o planeta desde que o impacto de um asteroide exterminou os dinossauros. Para evitar que uma mudança climática global realize um colapso ecológico total, e para evitar que a poluição e a superpopulação exterminem a maior parte dos mamíferos, aves, anfíbios e da vida marinha, temos que abolir o capitalismo, de preferência nas próximas décadas. Extinções causadas por humanos acontecem há, pelo menos, um século. O efeito estufa é amplamente conhecido há cerca de duas décadas. O melhor que a pretensa engenhosidade da livre empresa criou foi o mercado de carbono, uma farsa ridícula. Do mesmo modo, não podemos confiar em nenhum governo do mundo para salvar o planeta. A principal preocupação de um governo é sempre o seu próprio poder, e ele constrói a base de seu poder sobre relações econômicas. A elite governante precisa manter uma posição privilegiada, e esse privilégio depende da exploração de outras pessoas e do meio ambiente.

Sociedades igualitárias locais, ligadas por comunicação e consciência globais constituem a melhor chance para salvar o meio ambiente. Economias autossuficientes e independentes não deixam quase nenhuma pegada de carbono. Elas não precisam de petróleo para importar bens e exportar resíduos, ou grandes quantidades de eletricidade para abastecer complexos industriais para produzir bens para exportação. Elas precisam produzir a maior parte de sua energia pelo sol, vento, biocombustível e tecnologias similares, e aproveitam mais o que pode ser feito manualmente do que com aparelhos elétricos. Essas sociedades poluem menos porque têm menos incentivos para produzir em massa e não possuem os meios para despejar seus resíduos em outras terras. No lugar de aeroportos movimentados, rodovias congestionadas e longas viagens para trabalhar, podemos imaginar bicicletas, ônibus, trens inter-regionais e barcos. Do mesmo modo, as populações não crescerão demais porque as mulheres serão empoderadas de modo a controlar sua fertilidade e a economia localizada vai tornar clara a limitada disponibilidade de recursos.

Um mundo ecologicamente sustentável teria de ser antiautoritário, de modo que nenhuma sociedade pudesse prejudicar sua vizinhança para expandir sua base de recursos; e teria de ser cooperativo, de modo que as sociedades pudessem reunir-se em autodefesa contra grupos que desenvolvessem tendência imperialista. Mais importante, isso demandaria um ethos ecológico comum, de modo que as pessoas respeitariam o meio ambiente, ao invés de considerá-lo simplesmente matéria-prima para exploração. Podemos começar construindo esse mundo agora, aprendendo de sociedades indígenas ecologicamente sustentáveis, sabotando e expondo quem polui, disseminando um amor pela natureza e uma consciência sobre nossas biorregiões, e estabelecendo projetos que nos permitam satisfazer localmente nossas necessidades por comida, água e energia.

Leitura recomendada

Nirmal Sengupta, Managing Common Property: Irrigation in India and The Philippines, New Delhi: Sage, 1991.

Winona LaDuke, Recovering the Sacred: The Power of Naming and Claiming, Cambridge: South End Press, 2005.

Jan Martin Bang, Ecovillages: A Practical Guide to Sustainable Communities. Edinburgh: Floris Books, 2005.

Heather C. Flores, Food Not Lawns: How To Turn Your Yard Into A Garden And Your Neighborhood Into A Community. White River Jct., Vermont: Chelsea Green, 2006.

Jared Diamond, Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed, New York, Viking, 2005.

Murray Bookchin, The Ecology of Freedom: the Emergence and Dissolution of Hierarchy, Palo Alto, CA: Cheshire Books, 1982.

Elli King, ed., Listen: The Story of the People at Taku Wakan Tipi and the Reroute of Highway 55, or, The Minnehaha Free State, Tucson, AZ: Feral Press, 2006.

Bill Holmgren and David Mollison, Permaculture One: a Perennial Agriculture for Human Settlements. Sydney: Corgi books, 1978

Capítulo 5 — Crime

A prisão é a instituição que simboliza a dominação da forma mais concreta. Anarquistas querem a criação de uma sociedade capaz de proteger a si mesma e de resolver seus problemas internos sem polícias, juízes ou prisões; uma sociedade que não encare seus problemas em termos de bem e mal, de permitido e proibido, de pessoas que agem de acordo com a lei e pessoas criminosas.

Sem polícia, quem irá nos proteger?

Em nossa sociedade, a polícia se beneficia de uma quantidade enorme de propaganda, seja pelas coberturas de crimes feitas pela mídia de forma parcial e com intuito de promover o medo, seja através do fluxo enorme de filmes e séries de TV envolvendo policiais como figuras heroicas e protetoras.

Em uma sociedade hierárquica, quem tem a proteção da polícia? Quem tem mais motivos para temer o crime, e quem tem mais motivos para temer a polícia? Em algumas comunidades, a polícia é como uma força de ocupação; a polícia e o crime formam as presas engrenadas de uma armadilha que impede que as pessoas escapem de situações opressoras ou salvem suas comunidades da violência, da pobreza e da fragmentação.

Historicamente falando, a polícia não foi o resultado de uma necessidade social de proteger as pessoas de uma criminalidade crescente. Nos Estados Unidos, as forças policiais modernas surgiram em uma época na qual os crimes estavam diminuindo. A instituição da polícia apareceu como um meio de garantir um controle maior da classe dominante sobre a população e de expandir o monopólio estatal sobre a solução de conflitos sociais. Não foi uma resposta à criminalidade ou uma forma de resolvê-la; pelo contrário, ela coincidiu com a criação de novas formas de crime. No mesmo momento em que as forças policiais passavam por uma expansão e uma modernização, a classe dominante iniciava a criminalização de comportamentos que eram predominantes nas classes mais baixas e que foram considerados aceitáveis anteriormente, como vadiagem, apostar em jogos de azar e se embebedar em público[6.1]. As autoridades definem "atividade criminosa" de acordo com suas próprias necessidades, e então apresentam suas definições como neutras e atemporais. Para dar um exemplo, uma quantidade muito maior de pessoas morrem por causa de poluição e acidentes de trabalho do que pelo uso de drogas, mas as pessoas que traficam drogas são marcadas como ameaças à sociedade, e não as que são proprietárias de fábricas. E, mesmo quando estas violam a lei de um modo que mata pessoas, não são enviadas para uma prisão[6.2].

Atualmente, mais ou menos dois terços das pessoas presas nos EUA estão trancafiadas por conta de ofensas não-violentas. Não é surpresa alguma que a maioria dessas pessoas seja pobre e não branca, considerando a criminalização das drogas e da imigração, as penas desproporcionalmente duras para as drogas tipicamente usadas por pessoas pobres, e a maior chance que as pessoas não brancas possuem de serem condenadas ou sentenciadas de forma mais severa pelos mesmos crimes.[6.3] Da mesma forma, a presença intensa de polícias militarizadas em guetos e bairros pobres está ligada ao fato de que a criminalidade permanece alta nesses lugares enquanto as taxas de encarceramento crescem. A polícia e as prisões são sistemas de controle que preservam desigualdades sociais, espalham medo e indignação, excluem e alienam comunidades inteiras, e promovem extrema violência contra os setores mais oprimidos da sociedade.

As pessoas que conseguem organizar suas próprias vidas em suas comunidades estão melhor equipadas para proteger a si mesmas. Algumas sociedades e comunidades que ganharam autonomia com relação ao Estado organizam patrulhas voluntárias para ajudar as pessoas que passam necessidades e desencorajar atos de agressão. Diferentemente da polícia, esses grupos não costumam ter uma autoridade coercitiva ou uma estrutura burocrática fechada, e são mais provavelmente formados por pessoas voluntárias de dentro da própria comunidade. Eles focam em proteger as pessoas e não propriedades ou privilégios, e, na falta de um código legal, respondem às necessidades das pessoas e não a um protocolo nada flexível. Outras sociedades organizam-se para conter danos sociais sem criar instituições específicas. Em vez disso, para promover um ambiente seguro, empregam sanções difusas, que são respostas e atitudes espalhadas pela sociedade inteira e propagadas na cultura.

Anarquistas enxergam certos problemas que as sociedades autoritárias colocam sob a lógica de crime e castigo de uma forma totalmente diferente. Um crime é a violação da lei escrita, e leis são impostas pelas elites. Em última instância, a questão não é se alguém está causando dano a uma outra pessoa, mas se está desobedecendo às ordens da elite. Como resposta ao crime, o castigo cria hierarquias de moralidade e poder entre as pessoas criminosas e as que administram a justiça. Nega-se às primeiras os recursos necessários para que possam ser reintegradas na comunidade e parem de causar danos a outras pessoas.

Em uma sociedade empoderada, as pessoas não precisam de leis escritas; elas têm o poder de determinar se alguém as impede de satisfazer suas necessidades e podem convocar seus pares para que as ajudem a resolver os conflitos. Desse ponto de vista, o prolema não é o crime, mas os danos sociais - ações como assaltar e dirigir sob embriaguez, que podem de fato causar danos a outras pessoas. Esse paradigma acaba com a categoria de crime sem vítima e revela o absurdo que é proteger direitos de propriedade de pessoas privilegiadas em detrimento das necessidades que outras pessoas têm de sobreviver. Os ultrajes típicos da justiça capitalista, como prender quem passa fome por roubar de gente rica, não seriam possíveis em um paradigma baseado na necessidade.

Durante a greve geral em Seattle, em fevereiro de 1919, a cidade foi tomada pela classe trabalhadora. Seattle foi desativada comercialmente, mas as pessoas não deixaram que a cidade caísse em desordem. Pelo contrário, elas mantiveram todos os serviços essenciais funcionando, mas de forma organizada pela classe trabalhadora, sem a gerência patronal. Essas pessoas já faziam a cidade funcionar em todos os outros dias do ano de qualquer forma, e, durante a greve, mostraram que sabiam como conduzir seus trabalhos sem interferência de uma direção. Elas coordenaram uma organização que envolvia toda a cidade através do Comitê Geral de Greve, composto por membros de todos os sindicatos locais. A estrutura era semelhante à da Comuna de Paris; talvez até mesmo inspirada por ela. Membros de sindicatos e grupos específicos de pessoas trabalhadoras detinham a autonomia sobre seus empregos sem gerenciamento ou interferência do Comitê ou de qualquer outra entidade. As pessoas eram livres para realizar suas iniciativas em níveis locais. Motoristas de carroças de leite, por exemplo, montaram um sistema comunitário de distribuição de leite que seus patrões, presos a sua vontade de lucro, nunca teriam permitido.

As pessoas trabalhadoras em greve coletaram o lixo, montaram cafeterias públicas, distribuíram comida gratuitamente e mantiveram serviços de bombeiros. Também providenciaram proteção contra comportamentos antissociais como roubos, assaltos, assassinatos e estupros - a onda de crimes sobre a qual as pessoas autoritárias sempre profetizam. Uma guarda da cidade composta de veteranos de guerra desarmados caminhava pelas ruas para vigiar e responder chamados de ajuda, embora ela fosse autorizada a usar advertências e persuasão apenas. Com ajuda do sentimento de solidariedade que criou uma malha social mais forte durante a greve, a guarda voluntária foi capaz de manter um ambiente pacífico, realizando o que o próprio Estado não foi capaz de fazer.

Esse contexto de solidariedade, comida gratuita e empoderamento das pessoas comuns contribuiu para que a criminalidade fosse cortada pela sua raiz. Pessoas marginalizadas ganharam oportunidades de se envolver com a comunidade, participar das decisões, e serem inclusas na sociedade, coisas que lhes eram negadas no regime capitalista. A ausência da polícia, cuja presença acentua tensões entre classes e cria um ambiente hostil, pode ter diminuído os crimes nas classes mais baixas. Até mesmo as autoridades comentaram sobre como a cidade estava organizada. O major-general John F. Morrison, estacionado em Seattle, afirmou que nunca havia visto "uma cidade tão quieta e ordenada". No fim, a greve foi desfeita pela invasão de milhares de tropas e vice-chefes de polícia, somada à pressão exercida pela liderança do sindicato[6.4].

Na cidade de Oaxaca, em 2006, durante os cinco meses de autonomia que foram o ápice da revolta, a APPO, a assembleia popular organizada por docentes em greve e ativistas com intuito de coordenar sua resistência e organizar a vida na cidade estabeleceu uma vigia voluntária que ajudou a manter as coisas pacíficas em circunstâncias violentas e segregadoras. Já a polícia e as forças paramilitares assassinaram dez pessoas, e esse foi o único derramamento de sangue na ausência de poder estatal.

O movimento popular em Oaxaca foi capaz de manter uma paz relativa apesar de toda a violência imposta pelo Estado. E ele conseguiu isso modificando um costume local para dar conta da nova situação: empregaram topiles, uma guarda rotativa que garante a segurança em comunidades indígenas. O sindicato docente já usava topiles como voluntários de segurança durante a fase de acampamento, antes da APPO ser formada, e a APPO rapidamente ampliou a prática para que a mesma fosse incluída em uma comissão de segurança com a função de proteger a cidade de policiais e paramilitares. Uma boa parte das funções de topiles incluía a ocupação de prédios do governo e a defesa de barricadas e ocupações. Isso significava que tinham que lutar frequentemente contra policiais armados e paramilitares com nada além de pedras e fogos de artifício.

Alguns dos piores ataques ocorreram em frente aos prédios ocupados. Estávamos protegendo o prédio da Secretaria de Economia quando percebemos que havia um grupo de pessoas preparando um ataque contra nós em algum lugar do prédio. Batemos na porta e não houve resposta. Cinco minutos depois, um grupo armado saiu de trás do prédio e começou a disparar contra nós. Tentamos encontrar abrigo, mas sabíamos que, se recuássemos, todas as pessoas na frente do prédio - cerca de quarenta - correriam um perigo grave. Então decidimos manter nossa posição e nos defendemos com pedras. Continuaram atirando em nós até a munição acabar e foram embora, pois viram que não iríamos a lugar algum. Algumas pessoas ficaram feridas. Um cara levou um tiro na perna e um outro levou nas costas. Reforços chegaram mais tarde, mas os assassinos de aluguel já haviam se retirado.

Não possuíamos arma alguma. No Departamento de Economia, defendemo-nos com pedras. Conforme o tempo passava e os ataques com armas de fogo se tornavam mais frequentes, passamos a nos defender com: fogos de artifício, lança-foguetes caseiros, coquetéis molotov; cada pessoa estava com algo. E, quando não tínhamos nenhuma dessas coisas, defendíamos as pessoas com nossos corpos ou nossas próprias mãos[6.5].

Depois desses ataques, topiles ajudaram a levar as pessoas feridas para os centros de primeiros socorros.

A segurança voluntária também respondia a crimes comuns. Se ocorria um roubo ou assalto, as pessoas na vizinhança soavam os alarmes e topiles apareciam. Caso a pessoa assaltando estivesse sob efeito de drogas, ficava amarrada na praça central durante a noite e era obrigada a coletar lixo ou executar outro serviço comunitário pela manhã. Pessoas diferentes possuíam ideias diferentes sobre quais soluções de longo prazo deveriam ser instituídas; como a rebelião em Oaxaca envolvia certa diversidade política, nem todas essas ideias eram revolucionárias. Algumas pessoas queriam entregar quem praticava roubos ou assaltos para os tribunais, embora houvesse uma crença amplamente difundida de que o governo libertava todas essas pessoas e as estimulava a voltar e cometer mais crimes antissociais.

A história de Exárchia, um bairro no centro de Atenas, tem mostrado ao longo dos anos que a polícia não nos protege, ela nos coloca em perigo. Por anos, Exárchia tem sido o refúgio do movimento anarquista e da contracultura. O bairro se protegeu da gentrificação e do policiamento através de diversas maneiras. Carros de luxo são queimados regularmente se ficarem estacionados durante a noite. Depois de serem alvo de destruição de propriedade e pressão social, pessoas que são donas de restaurantes e lojas desistiram de remover cartazes políticos de suas paredes, expulsar pessoas em situação de rua, e qualquer outra forma de criar uma atmosfera comercial nas ruas; admitiram que as ruas pertencem às pessoas. Policiais à paisana que entram em Exárchia foram brutalmente agredidos em diversas ocasiões. Durante a preparação para as Olimpíadas, a cidade tentou renovar a Praça de Exárchia e transformá-la em um ponto turístico em vez de um ponto de encontro local. O novo plano, por exemplo, incluía uma fonte grande e nenhum banco. As pessoas da vizinhança começaram a se reunir, criaram seu próprio plano de renovação e informaram à empreiteira que o plano local seria usado no lugar do que foi fornecido pelo governo municipal. A destruição repetida de equipamentos de construção finalmente convenceu a empresa de quem mandava ali. O parque renovado atualmente tem mais espaços verdes, nenhuma fonte para turistas e novos e agradáveis bancos.

Ataques à polícia são frequentes em Exárchia e a tropa de choque armada está sempre por perto. Ao longo dos últimos anos, a polícia revezou entre tentar ocupar Exárchia à força e manter uma guarda nas fronteiras do bairro com grupos armados de policiais da tropa de choque constantemente preparados para uma investida. Em nenhum momento, a polícia conseguiu executar atividades de policiamento normais. A polícia não patrulha o bairro à pé e raramente passa de carro. Quando entra, faz isso preparada para lutar e se defender. As pessoas grafitam e colam cartazes em plena luz do dia. Em grande medida, é uma zona desprovida de lei, e as pessoas cometem crimes explicitamente com uma frequência impressionante. No entanto, não é um bairro perigoso. Os crimes preferidos são políticos ou pelo menos sem vítimas, como fumar maconha. É seguro para uma pessoa andar sozinha durante a noite (a não ser que seja policial), as pessoas nas ruas são tranquilas e amigáveis, e propriedade pessoal não corre nenhum risco, com exceção dos carros de luxo e coisas parecidas. A polícia não é bem-vinda e nem necessária.

E é exatamente nessa situação que ela demonstra seu verdadeiro caráter. Não é uma instituição que responde ao crime ou a uma necessidade social, mas sim uma que reivindica o controle social. No passado, a polícia tentou encher o local (e o movimento anarquista em particular) de drogas viciantes como heroína, e estimulava pessoas viciadas a passar seu tempo na Praça de Exárchia. O movimento anarquista teve de lidar com essas formas de violência policial e parar a expansão dessas drogas por conta própria. Incapaz de quebrar o espírito rebelde do bairro, a polícia apelou para táticas mais agressivas, ganhando características de uma ocupação militar. No dia 6 de dezembro de 2008, essa abordagem chegou à sua conclusão inevitável quando dois policiais mataram o anarquista de 15 anos Alexis Grigoropoulous a tiros no meio de Exárchia. Em poucas horas, o contra-ataque começou, e a polícia pela Grécia esteve por dias sob ataque de porretes, pedras, coquetéis molotov e, em alguns incidentes, armas de fogo. As zonas liberadas de Atenas e de outras cidades gregas estão crescendo, e a polícia tem evitado desocupar essas regiões porque as pessoas mostraram ser mais fortes. Atualmente, a mídia promove uma campanha de medo, aumentando a cobertura de crimes antissociais e tentando relacionar esses crimes à presença de áreas autônomas. Crime é uma arma do Estado, usada para assustar as pessoas, isolá-las e fazer o governo parecer necessário. Mas o governo é nada além de um esquema mafioso de proteção. O Estado é uma máfia que conseguiu ganhar controle sobre a sociedade e a lei é a codificação de tudo que nos foi roubado por ela.

O povo rotumano é um povo tradicionalmente sem Estado que vive na ilha de Rotuma no Pacífico Sul, ao norte de Fiji. De acordo com o antropólogo Alan Howard, membros dessa sociedade sedentária são socializados de forma a não serem violentos. Normas culturais promovem um comportamento respeitoso e gentil nas relações com crianças. Castigos físicos são extremamente raros, e quase nunca realizados com intuito de machucar a criança. Em vez disso, pessoas adultas rotumanas usam a vergonha no lugar do castigo, uma estratégia que garante que as crianças cresçam com um alto grau de sensibilidade social. Pessoas adultas fazem isso principalmente com crianças que praticam "bullying"; nos seus próprios conflitos, tentam ao máximo não enfurecer outras pessoas. Da perspectiva de Howard enquanto um estrangeiro vindo do Ocidente mais autoritário, as crianças recebem "um grau surpreendente de autonomia" e o princípio da autonomia pessoal se estende para toda a sociedade: "Não apenas indivíduos exercem autonomia dentro de suas famílias e comunidades, mas as vilas são também autônomas com relação umas às outras, sendo os distritos essencialmente unidades políticas autônomas”[6.6]. O povo rotumano provavelmente descreve sua própria situação usando uma linguagem diferente, embora não tenhamos achado qualquer relato de alguém de dentro. Talvez essas pessoas coloquem ênfase nas relações horizontais que conectam as famílias e as vilas, mas, para as pessoas que observam isso, tendo sido criadas na cultura europeia/estadunidense e treinadas para ter a crença de que a sociedade só permanece unida pela autoridade, o que mais chama atenção é a autonomia das diferentes famílias e vilas.

Embora o povo rotumano exista atualmente sob um governo imposto, ele evita contato e dependência com relação ao mesmo. Provavelmente não se trata de coincidência o fato de que a taxa de homicídios rotumana se encontra em um nível baixo como 2,02 em 100,000 pessoas por ano, uma taxa três vezes menor do que a dos EUA. Howard descreve a visão rotumana acerca do crime como sendo semelhante a de outros povos que vivem sem Estado: não como violação de um estatuto ou um código, mas como algo que causa danos ou que prejudica laços sociais. Da mesma forma, a mediação é importante para a solução de disputas de um jeito pacífico. Chefes e subchefes agem como mediadores, embora pessoas anciãs que tenham prestígio possam intervir nessa função também. Chefes não julgam, e, se não agem de forma imparcial, perdem as pessoas que os seguem, já que as famílias são livres para trocar de grupo. O mecanismo mais importante para a solução de conflitos é o pedido público de desculpas. O pedido público tem um grande peso atrelado: dependendo da seriedade da ofensa, pode ser acompanhado também por um ritual de ofertas de paz. Desculpar-se de forma adequada é algo honroso, enquanto negar esse pedido é fonte de desonra. Os membros mantêm suas posições e status no grupo sendo responsáveis, sendo sensíveis com a opinião coletiva e resolvendo conflitos. Se algumas pessoas agem do modo como poderíamos esperar em uma sociedade baseada em polícia e castigo, elas se isolam por conta própria e limitam sua influência prejudicial.

Por dois meses, no ano de 1973, detentos de um presídio de segurança máxima em Massachusetts mostraram que pessoas criminosas podem ser menos responsáveis pela violência em nossa sociedade do que seus guardas. Depois do massacre ocorrido na prisão em Attica, em 1971, trazer a atenção nacional para o trágico fracasso do sistema prisional em corrigir ou reabilitar pessoas condenadas por crimes, o governador de Massachusetts nomeou um comissário reformista para o Departamento de Correções. Enquanto isso, os detentos da prisão estatal de Walpole haviam formado um sindicato dos prisioneiros. Seus objetivos incluíam proteger-se dos guardas, bloquear tentativas da administração do presídio de instituir programas de modificação comportamental, e organizar os programas de educação, empoderamento e recuperação para detentos. Eles buscaram mais direitos relacionados a visitas, empregos e trabalhos voluntários fora da prisão, e a possibilidade de ganhar dinheiro para que fosse enviado às suas famílias. Em última análise, eles esperavam acabar com a reincidência - ex-detentos sendo condenados novamente e retornando para a prisão - e abolir o próprio sistema prisional.

Prisioneiros negros formaram um grupo cultural e educacional Black Power para criar uma unidade e se contrapor ao racismo da maioria branca. Isso se mostrou fundamental na formação do sindicato diante da repressão sofrida nas mãos dos guardas. Em primeiro lugar, foi preciso acabar com a guerra racial entre os detentos, uma guerra que era estimulada pelos guardas. Líderes de todas as facções de prisioneiros negociaram uma trégua geral garantida pela promessa de que qualquer detento que a violasse seria assassinado. O sindicato da prisão era apoiado por um grupo composto por ativistas de direitos civis focados em mídias e ativistas de caráter religioso, embora a comunicação entre os dois grupos tenha às vezes sido dificultada pela mentalidade de prestação de serviços e pelo compromisso ortodoxo com a não-violência por parte do setor religioso. Um fator que ajudou foi o comissário de Correções ter apoiado a ideia de um sindicato de detentos, em vez de se opor logo de início como a maioria na administração de prisões faria.

Ainda no início da vida do sindicato de Walpole, o superintendente do presídio tentou dividir os detentos estabelecendo um confinamento arbitrário justamente enquanto os prisioneiros negros estavam se preparando para celebrar o Kwanzaa. Os detentos brancos já haviam celebrado o natal sem nenhum incômodo, e os negros haviam passado o dia inteiro cozinhando e antecipando avidamente as visitas de familiares. Em um incrível ato de solidariedade, todos os prisioneiros iniciaram uma paralisação, recusando-se a trabalhar ou sair de suas celas. Por três meses, eles sofreram com espancamentos, confinamentos em solitária, fome, negação de cuidados médicos, vício em tranquilizantes fornecidos pelos guardas, e condições deploráveis devido ao acúmulo de excrementos e lixo dentro e em torno de suas celas. Por três meses, os prisioneiros se recusaram a se deixar quebrar ou dividir. Eventualmente, o Estado foi obrigado a negociar; as placas de carro normalmente produzidas pelos prisioneiros de Walpole estavam se esgotando e o governo estava ficando com uma imagem ruim na mídia por causa da crise.

Os detentos tiveram sua primeira demanda satisfeita: o superintendente foi forçado a se demitir. Demandas adicionais foram rapidamente atendidas, como expansão dos direitos de visita, licença do trabalho, programas auto-organizados, revisão e libertação das pessoas em segregação, e a presença de civis como observadoras dentro do presídio. Em troca, eles limparam toda a prisão e conseguiram algo que os guardas nunca trouxeram: paz.

Como protesto pela sua perda de controle, os guardas abandonaram seus empregos. Eles pensaram que isso mostraria o quão necessários eles eram, mas, para o seu constrangimento, o ato teve o efeito exatamente oposto. Por dois meses, os prisioneiros cuidaram da prisão eles mesmos. Na maior parte do tempo, os guardas não estavam presentes dentro dos blocos de celas, embora a polícia estadual controlasse o perímetro do presídio para evitar fugas. As pessoas atuando como observadoras civis permaneciam dentro do presídio 24 horas por dia, mas eram treinadas para não intervir; seu papel era documentar a situação, conversar com os detentos, e prevenir a violência dos guardas que ocasionalmente entravam na prisão. Uma dessas pessoas relatou:

A atmosfera era tão relaxada - nada parecida com o que eu esperava. Percebo que meu próprio pensamento foi condicionado dessa maneira pela sociedade e pela mídia. Esses homens não são animais, não são maníacos perigosos. Descobri que meus próprios medos não possuíam fundamento algum.

Outra pessoa insistia que “é necessário que nenhuma das pessoas que trabalhava antes no Bloco 9 [um bloco para segregação] retorne à prisão. Vale a pena pagar para que se aposentem. Os guardas são o problema da segurança”[6.7]

Walpole havia sido um dos mais violentos presídios dos Estados Unidos, mas, enquanto os prisioneiros estavam no comando, a reincidência caiu drasticamente e homicídios e estupros foram reduzidos a zero. Os detentos provaram falsos dois mitos fundamentais do sistema de justiça criminal: que as pessoas que cometem crimes devem ser isoladas, e que elas devem receber uma reabilitação forçada em vez de estar no controle de sua própria recuperação.

Os guardas estavam ansiosos para terminar esse experimento constrangedor de abolição da prisão. O sindicato dos guardas era forte o suficiente para provocar uma crise política, e o comissário de Correções não podia demitir nenhum deles, mesmo os que praticavam atos de tortura ou que emitiam declarações racistas para a imprensa. Para manter seu emprego, o comissário teve de trazer os guardas de volta para a prisão, eventualmente traindo os prisioneiros. Elementos centrais da estrutura de poder incluindo polícia, guardas, procuradores, figuras políticas e a mídia se colocaram contra as reformas e tornaram-nas impossíveis de se atingir pelos canais democráticos. As pessoas que atuavam como observadoras civis foram unânimes em concordar que os guardas trouxeram caos e violência de volta para o presídio, e que eles colocaram um fim nos resultados pacíficos da auto-organização dos prisioneiros de forma intencional. No fim, para destruir o sindicato dos prisioneiros, os guardas simularam uma rebelião e a polícia estadual foi chamada, atirando em diversos prisioneiros e torturando os organizadores principais. O líder mais reconhecido dos prisioneiros negros só conseguiu salvar sua vida pela autodefesa armada.

Muitas das observadoras civis e o comissário de Correções, que foi logo forçado a abandonar seu emprego, acabaram se tornando favoráveis à abolição das prisões. Os detentos que tomaram Walpole continuaram lutando por sua liberdade e dignidade, mas o sindicato dos guardas acabou acumulando mais poder do que antes, a mídia parou de falar em reforma prisional e, no momento em que escrevo isto, o presídio de Walpole, agora chamado MCI - Cedar Junction, ainda armazena, tortura e mata pessoas que merecem estar em suas comunidades trabalhando por uma sociedade mais segura.

E as gangues e “bullies”?

Algumas pessoas temem que, em uma sociedade sem autoridades, as pessoas mais fortes sairiam do controle, tomando e fazendo o que quisessem. Como se essa não fosse uma descrição do que normalmente acontece em sociedades com governo! Esse medo é fruto de um mito estatista que coloca as pessoas como isoladas umas das outras. O governo gostaria muito que você acreditasse que, sem ele para lhe proteger, você está vulnerável aos caprichos de quem é mais forte. No entanto, nenhuma pessoa que oprime outra (bully, valentão) pode ser mais forte do que uma comunidade inteira. Uma pessoa que viole a paz social, desrespeite as necessidades de outras pessoas, e aja de forma autoritária e opressora pode ser derrotada ou expulsa por uma vizinhança que trabalha em conjunto para restaurar a paz.

Em Christiania, o bairro autônomo e antiautoritário localizado na capital dinamarquesa de Copenhague, as pessoas têm lidado com seus próprios problemas, além dos problemas associados às visitas que recebem e à alta mobilidade social resultante delas. Muitas pessoas chegam como turistas e uma quantidade ainda maior vem para comprar haxixe - não existem leis em Christiania e as drogas leves são facilmente encontradas, embora as pesadas tenham sido banidas com êxito. Dentro de Christiania, existem inúmeras oficinas que produzem bens variados, sendo os mais famosos as bicicletas de alta qualidade; também existem restaurantes, cafés, um jardim de infância, uma clínica médica, uma loja de alimentação saudável, uma livraria, um espaço anarquista e uma casa de shows. Christiania nunca foi dominada com sucesso por gangues ou bullies que residissem lá. Em 1984, uma gangue de motoqueiros se mudou para lá com a esperança de explorar a ausência de leis da zona autônoma e assim monopolizar o comércio de haxixe. Depois de inúmeros conflitos, residentes de Christiania conseguiram expulsar os motoqueiros usando principalmente táticas pacíficas.

O pior caso de bullying veio da polícia, que recentemente voltou a entrar em Christiania para deter pessoas por causa de maconha e haxixe, geralmente como pretexto de aumentar as tensões. Pessoas da especulação imobiliária local adorariam ver o estado livre destruído pois o mesmo se encontra em um pedaço de terra que tem sido bastante valorizado. Décadas atrás, as pessoas que moravam em Christiania tiveram um debate tenso sobre como lidar com o problema das drogas pesadas provenientes de fora. Depois de muita oposição, decidiram pedir ajuda à polícia, mas logo descobriram que a polícia focava em prender pessoas por causa das drogas leves e protegia a disseminação das pesadas (como heroína), provavelmente esperando que uma epidemia de vícios destruísse o experimento social autônomo[6.8]. Obviamente não foi a primeira vez que a polícia ou agentes estatais espalharam drogas viciantes enquanto reprimiam as leves ou alucinógenas; na verdade, isso parece ser universalmente parte de estratégias de repressão. No fim das contas, as residentes de Christiania expulsaram a polícia e lidaram com o problema das drogas pesadas por conta própria, mantendo quem as traficava fora do bairro e usando a pressão social para desestimular seu uso.

Em Christiania, como em outros lugares, é o Estado que representa o maior perigo para a comunidade. Diferentemente das pessoas praticando bullying que são imaginadas aterrorizando uma sociedade sem leis, o Estado não pode ser derrotado facilmente. Normalmente, o Estado busca obter o monopólio da força sob o pretexto de proteger as pessoas cidadãs de quem as oprime; essa é a justificativa para a proibição do uso de força por parte de quem não faz parte do aparato estatal, principalmente se for para se autodefender do governo. Em troca do abandono desse poder, as pessoas são direcionadas ao sistema judicial como o meio de defender seus interesses; mas, obviamente, o sistema judicial é parte do Estado, e protege seus interesses acima de todos os outros. Quando o governo chega para tomar sua terra com o objetivo de construir um shopping, por exemplo, você pode levar o caso para um tribunal ou até mesmo para o conselho da cidade, mas você pode acabar se deparando com alguém que tem algo a lucrar com a construção do shopping. Os tribunais das pessoas que fazem o bullying não serão justos com suas vítimas e elas não serão simpáticas se você se defender contra a desocupação. Em vez disso, você irá para a prisão.

Nesse contexto, quem quiser uma solução frequentemente terá de buscá-la fora dos tribunais. Na Argentina, uma ditadura militar tomou o poder em 1976 e empreendeu uma “Guerra Suja” contra as pessoas de esquerda, torturando e matando 30.000 pessoas. Oficiais responsáveis pelas torturas e execuções foram perdoados pelo governo democrático que sucedeu a ditadura. As Mães da Praça de Maio, que começaram a se encontrar para exigir o fim dos desaparecimentos e para saber o que havia acontecido com suas filhas e filhos, foram uma importante força social no encerramento do regime de terror. Como o governo nunca tomou qualquer providência séria para responsabilizar os assassinos e torturadores, as pessoas elaboraram uma justiça popular que se baseia e vai além dos protestos e memoriais organizados pelas Mães.

Quando alguém que participou da Guerra Suja é localizado, ativistas colocam cartazes pela vizinhança informando de sua presença; pedem a lojistas locais que impeçam a entrada da pessoa, e seguem-na e a constrangem. Numa tática conhecida como “escracho”, centenas ou até milhares de pessoas marcham até a residência de quem participou da Guerra Suja com placas, faixas, fantoches e tambores. Elas cantam, entoam palavras de ordem e tocam músicas por horas, constrangendo o torturador e fazendo com que as todas pessoas saibam o que ele fez; pode ser que a multidão ataque a residência com bombas de tinta[6.9]. Apesar do sistema de justiça proteger as pessoas poderosas, os movimentos sociais da Argentina se organizaram coletivamente para envergonhar e isolar seus piores opressores (bullies).

E o que impedirá uma pessoa de matar outra?

Muitos dos crimes violentos podem ter sua origem traçada até fatores culturais. Crimes violentos, como o homicídio, provavelmente diminuiriam drasticamente em uma sociedade anarquista porque muitas de suas causas – pobreza, glorificação da violência na TV, polícia, guerra, sexismo e a normalização de comportamentos antissociais e individualistas – desapareceriam ou diminuiriam.

A diferença entre duas comunidades zapotecas ilustra o fato de que a paz é uma escolha. Zapotecas são uma nação indígena agrária e sedentária vivendo em uma terra atualmente reivindicada pelo Estado mexicano. Uma comunidade zapoteca, La Paz, possui uma taxa anual de 3,4 homicídios para 100.000 habitantes. Uma comunidade zapoteca vizinha possui um índice bem maior de 18,1 homicídios para 100.000. Quais atributos sociais acompanham o modo mais pacífico de vida? Diferentemente da vizinha mais violenta, a La Paz zapoteca não bate em suas crianças; da mesma forma, as crianças assistem menos violência e usam menos violência em suas brincadeiras. De modo similar, bater na esposa é algo raro e não é considerado aceitável; mulheres são tidas como iguais aos homens e usufruem de uma atividade econômica autônoma que é importante para a vida da comunidade de tal forma que elas não ficam dependentes dos homens. No que diz respeito à educação infantil, as implicações de tal comparação particular são corroboradas por pelo menos um estudo cultural comparativo sobre socialização, estudo esse que descobriu que técnicas de socialização afetivas e calorosas têm correlação com baixos níveis de conflito na sociedade[6.10].

As sociedades Semai e norueguesa foram mencionadas anteriormente como exemplos de sociedades com baixos índices de homicídios. Até o colonialismo, o povo Semai não possuía um Estado, enquanto a Noruega possui um governo. A socialização é relativamente pacífica entre as pessoas semai e norueguesas. Semais usam uma economia da dádiva de forma que a riqueza é distribuída igualmente, enquanto a Noruega é um dos países capitalistas com menor desigualdade econômica devido a suas políticas domésticas de caráter socialista. Uma semelhança mais profunda é a confiança na mediação em vez de castigo, polícia ou prisões para resolver os litígios. A Noruega de fato possui polícia e um sistema prisional, mas, em comparação com a maioria dos Estados, há uma confiança alta depositada nos mecanismos de mediação de conflitos, sendo estes não muito diferentes dos que florescem em sociedades pacíficas e desprovidas de Estado. A maioria dos litígios civis na Noruega deve ser levada a pessoas com a função de mediadoras antes que possam ser encaminhadas aos tribunais e milhares de casos criminais também são levados para essas pessoas. Em 2001, chegou-se a um acordo em 89% das mediações[6.11].

Então, em uma sociedade anarquista, crimes violentos seriam menos comuns. Mas, quando ocorrerem, estaria a sociedade mais vulnerável? Até porque, alguém poderia argumentar, mesmo quando a violência não é mais uma resposta social racional, assassinos psicopatas poderiam aparecer assim mesmo ocasionalmente. É suficiente dizer que qualquer sociedade capaz de derrubar um governo dificilmente estaria à mercê de assassinos psicopatas solitários. E sociedades que não se formaram de uma revolução mas possuem um sentimento forte de comunidade e solidariedade também são capazes de se proteger.

Inuítes, indígenas que vivem de caça e coleta nas regiões árticas da América do Norte, constituem um exemplo do que uma sociedade sem Estado pode fazer no pior cenário possível. De acordo com suas tradições, se uma pessoa comete um assassinato, a comunidade a perdoa e faz com que ela seja reconciliada com a família da vítima. Se essa mesma pessoa volta a cometer um homicídio, ela é assassinada, normalmente por membros de seu próprio grupo familiar, de tal forma que não sobram ressentimentos nem motivos para brigas.

Os métodos punitivos do Estado para lidar com o crime torna as coisas piores, não melhores. Os métodos restaurativos como resposta a danos sociais que são empregados em muitas sociedades sem Estado abrem novas possibilidades para se escapar dos ciclos de abuso, castigo e dano familiares para muitos de nós.

E o estupro, a violência doméstica e outras formas de agressão?

Muitas das ações que são consideradas crimes pelo nosso governo são completamente inofensivas; alguns crimes, como roubar das pessoas ricas ou sabotar instrumentos de guerra, podem, na verdade, diminuir a quantidade de danos. Ainda assim, o número de transgressões que são consideradas crimes atualmente podem realmente constituir um dano social real. Dessas transgressões, os homicídios são alvo de um sensacionalismo enorme, mas é raro em comparação a outros problemas comuns.

Violência doméstica e sexual ocorrem em excesso em nossa sociedade, e, mesmo na ausência de governo e de capitalismo, essas formas de violência permanecerão caso não sejam abordadas especificamente. Atualmente, muitas formas de violência sexual e doméstica são comumente toleradas; algumas são sutilmente estimuladas por Holywood, igrejas e outras instituições tradicionais. Hollywood frequentemente torna o estupro sexualizado e, junto com a mídia corporativa e a maioria das grandes religiões, glorifica a passividade e a subserviência das mulheres. No discurso que essas instituições influenciam, o grave problema do estupro conjugal é ignorado, e, como resultado disso, muitas pessoas ainda acreditam que um marido não tem como estuprar sua esposa porque ambas as partes estão ligadas por uma união sexual contratual. Noticiários e filmes de Hollywood regularmente apresentam o estupro como um ato cometido por um estranho - principalmente um estranho pobre e não-branco. Nessa versão, a única esperança de uma mulher é ser protegida pela polícia ou pelo namorado. Mas, na verdade, a maioria esmagadora de estupros é cometida por namorados, amigos e membros da família, em situações que se encontram na área nebulosa entre as definições tradicionais de consentimento e força. De um modo mais frequente, Hollywood ignora os problemas do estupro, do abuso e da violência doméstica como um todo, enquanto perpetua o mito do amor à primeira vista. Nesse mito, o homem conquista a mulher e ambas as partes satisfazem todas as necessidades emocionais e sexuais uma da outra, criando um par perfeito sem precisar conversar sobre consentimento, trabalhar na comunicação ou navegar por fronteiras emocionais e sexuais.

A polícia e outras instituições que pretendem proteger as mulheres do estupro as aconselham a não resistir por medo de provocar os agressores, mesmo quando todas as evidências e o senso comum sugerem que a resistência é quase sempre a melhor chance que uma mulher tem. O Estado raramente oferece cursos de autodefesa para mulheres, mas frequentemente julga mulheres que matam ou ferem seus agressores em legítima defesa. Pessoas que vão até o Estado para denunciar agressões físicas e sexuais encaram humilhações adicionais. Tribunais questionam a integridade moral e a honestidade de mulheres que corajosamente tornam públicas as agressões sexuais sofridas; juízes premiam pais abusivos com a custódia das crianças; a polícia ignora chamados de violência doméstica, até mesmo aguardando enquanto maridos batem nas esposas; Alguns regulamentos locais requerem que a polícia detenha alguém, ou mesmo ambas partes envolvidas, no caso de uma chamada de violência doméstica; é frequente ser a própria mulher enviada para a prisão após pedir ajuda. Pessoas transgêneras são ainda mais traídas pelo sistema legal, que se recusa a respeitar suas identidades e frequentemente as coloca de maneira forçada em celas com pessoas de gênero diferente. A classe trabalhadora e pessoas transgêneras em situação de rua são sistematicamente estupradas por agentes do sistema legal.

Uma grande quantidade de abuso causada indiretamente pelas autoridades é o resultado de pessoas descontando sua raiva em quem está abaixo delas na hierarquia social. Crianças, que costumam estar na base da pirâmide, recebem boa parte desse abuso em última instância. Autoridades que deveriam mantê-las em segurança - pais, parentes, padres, professores - são os seus abusadores mais prováveis. Procurar ajuda muitas vezes apenas torna tudo pior, porque, em nenhum momento, o sistema legal permite que essas pessoas tomem de volta o controle de suas vidas, mesmo quando é esse controle que sobreviventes de abuso mais precisam. Em vez disso, cada caso é decidido por assistentes sociais e juízes que têm pouco conhecimento da situação e centenas de outros casos para passar por sua arbitragem.

O paradigma atual de castigar quem comete ofensas e ignorar as necessidades das vítimas se provou um enorme fracasso e um aumento de aplicações das leis não mudaria isso. Pessoas que cometem abusos frequentemente foram elas mesmas vítimas de abuso; enviá-las para um presídio não diminui a probabilidade de agirem de forma abusiva. Pessoas que sobrevivem a um abuso podem se beneficiar de um espaço seguro, mas enviar quem cometeu esse abuso para a cadeia acaba com a chance de reconciliação. E ainda, se houver dependência financeira da parte que abusou, como frequentemente é o caso, essas pessoas podem escolher não denunciar por medo de terminarem desabrigadas, pobres ou em orfanatos.

Sob o Estado, tomamos as violências doméstica e sexual como crimes, como violações dos direitos das vítimas, inaceitáveis pois desafiam os mandamentos estatais. Em oposição a isso, muitas sociedades sem Estado têm usado um paradigma baseado na necessidade. Esse paradigma enquadra essas formas de violência como danos sociais, focando assim nas necessidades da pessoa que sobrevive de se recuperar e na necessidade de quem cometeu a ofensa de se tornar uma pessoa saudável e capaz de se relacionar com o resto da comunidade. Como esses atos de dano social não ocorrem de forma isolada, esse paradigma atrai toda a comunidade e busca restaurar a paz social mais ampla, enquanto respeita a autonomia e as necessidades autodefinidas de cada pessoa.

O método Navajo de “fazer as pazes” sobreviveu por séculos, apesar da violência do colonialismo. Esse método está sendo revivido atualmente para lidar com danos sociais e diminuir a dependência com relação ao governo dos EUA. O pessoal que estuda justiça restaurativa está olhando para o exemplo Navajo para conseguir alguma orientação. Na prática de justiça restaurativa do povo Navajo, uma pessoa que for respeitada por todas as outras por ser justa e imparcial age como pacificadora. Uma pessoa pode procurar outra para servir de pacificadora, caso esteja procurando ajuda para resolver por contra própria um problema, ou caso sua comunidade ou família esteja preocupada com seu comportamento, ou se ela feriu alguém ou foi ferida, ou ainda, caso ela esteja em litígio com outra pessoa de forma que as duas precisem de ajuda para encontrar a solução. Compare isso com o sistema estatal de justiça punitiva, no qual as pessoas apenas recebem atenção – e sempre uma atenção negativa – quando cometem uma infração legal. O próprio dano e as razões pelas quais ele foi causado são irrelevantes para o processo judicial.

O propósito do processo Navajo é ir ao encontro das necessidades de quem procura uma pessoa exercendo a função de pacificadora e encontrar a raiz do problema. “Quando membros da comunidade Navajo tentam explicar por que as pessoas causam danos a si mesmas e a outras pessoas, eles dizem que aquelas responsáveis pelo dano se comportam dessa forma porque se tornaram desconectadas do mundo circundante, das pessoas com as quais elas vivem e trabalham. Eles dizem que uma pessoa 'age como se não tivesse parentes'”. As pessoas pacificadoras resolvem isso “discutindo as coisas” e ajudando a pessoa que causou o dano a se religar à sua comunidade e reaver o apoio e as condições para que possa agir de uma maneira saudável. Além disso, elas fornecem apoio para a pessoa que sofreu o dano, procurando maneiras de fazê-la se sentir segura e completa novamente.

Para esse fim, o processo de fazer as pazes envolve a família e pessoas amigas das partes envolvidas. As pessoas apresentam suas narrativas, suas perspectivas sobre o problema e seus sentimentos. O objetivo final é encontrar uma solução prática que restaure os relacionamentos entre as pessoas. Para ajudar, a pessoa pacificadora faz um discurso que frequentemente baseia-se em histórias da criação Navajo para mostrar como personagens tradicionais lidaram com os mesmos problemas no passado. Nos casos nos quais há claramente alguém que agiu de forma errada e causou dano à outra pessoa, a ofensora frequentemente paga uma quantia acordada de restituição (ou nalyeeh) ao fim do processo. No entanto, nalyeeh não é uma forma de castigo no espírito “olho por olho”, mas sim um modo de “acertar as coisas para a pessoa que sofreu uma perda”. Uns 104 dos 110 capítulos (comunidades semiautônomas) da Nação Navajo possuem alguma pessoa designada como pacificadora, e membros respeitados de uma família foram convocados para resolver litígios de forma não-oficial em várias instâncias no passado[6.12].

Resistência Crítica [Critical Resistance] é uma organização antiautoritária nos EUA formada por ex-detentos e familiares de detentos com o objetivo de abolir o sistema prisional e suas causas. No momento em que este texto foi escrito, o grupo estava trabalhando na criação de “zonas livres de danos”. O objetivo dessas zonas seria providenciar “ferramentas e treinamentos para comunidades locais se fortalecerem e desenvolverem sua capacidade de resolver conflitos sem a necessidade de polícia, do sistema judiciário ou da indústria prisional. As zonas livres de dano utilizam uma abordagem abolicionista das comunidades em desenvolvimento, o que significa criar modelos hoje que representem como queremos viver no momento e no futuro”[6.13]. Ao construir relacionamentos mais fortes entre pessoas vizinhas e criar recursos comuns de forma proposital, as pessoas de um bairro podem manter traficantes de lado de fora, fornecer apoio às pessoas que sofrem com o vício, intervir em situações de abuso familiar, montar creches e alternativas para a entrada em gangues e aumentar a comunicação cara a cara.

Outros grupos antiautoritários, alguns inspirados nesse modelo, começaram o trabalho árduo de criar zonas livres de dano em suas próprias cidades. É claro, mesmo se não houvesse qualquer crime violento, um governo racista e capitalista ainda acharia motivos para aprisionar as pessoas: criar inimizades internas e punir rebeldes sempre foram as funções do governo, e tantas empresas privadas estão investindo no sistema prisional hoje em dia que este se tornou uma indústria baseada em crescimento. Mas, quando as pessoas não são mais dependentes da polícia e das prisões, quando as comunidades não estão mais paralisadas por danos sociais causados a si mesmas, é muito mais fácil organizar a resistência.

Pelos Estados Unidos e outros países, feministas têm organizado um evento chamado “Retome a Noite” [“Take Back the Night”] para abordar a questão da violência contra mulheres. Uma vez por ano, um grupo grande de mulheres e apoiadores marcham pela vizinhança ou campus durante a noite – um período do dia que muitas mulheres associam com um risco maior de sofrerem agressões sexuais – para retomar seu ambiente e dar visibilidade à questão. Esses eventos normalmente incluem educação acerca da predominância e das causas da violência contra mulheres. Alguns grupos também abordam a violência excessiva de nossa sociedade contra pessoas transgêneras. A primeira marcha Retome a Noite aconteceu na Bélgica em 1976, organizada por mulheres que estavam presentes no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres. O evento tem muito da tradição dos protestos na Noite de Santa Valburga [Walpurgisnacht] na Alemanha. Conhecida como Noite das Bruxas, no dia 30 de abril, a noite anterior ao 1º de maio, é uma noite tradicional para brincadeiras, tumultos e resistência pagã e feminista. Em 1977, feministas alemãs envolvidas com o movimento autonomista marcharam na Noite de Santa Valburga sob a bandeira “Mulheres retomam a noite!”. O primeiro evento “Retome a noite” nos EUA ocorreu no dia 4 de novembro de 1977, na zona de prostituição de São Francisco.

Uma ação desse tipo é um primeiro passo importante na criação de uma força coletiva capaz de modificar a sociedade. Sob o patriarcado, toda família está isolada, e, embora muitas pessoas sofram os mesmos problemas, elas o fazem sozinhas. Juntar pessoas para falar sobre um problema que havia sido indizível, retomar um espaço público que lhe foi negado – as ruas à noite – é uma metáfora viva da sociedade anarquista, onde as pessoas se reúnem para derrubar qualquer autoridade, qualquer pessoa opressora.

A violência sexual afeta todas as pessoas em uma sociedade patriarcal. Ela ocorre em comunidades radicais que são opostas ao sexismo e à violência sexual. A não ser que foquem em desaprender seu condicionamento patriarcal, pessoas que se autodeclaram radicais frequentemente respondem a problemas como estupro, assédio e outras formas de abuso e violência sexual através do mesmo comportamento que é tão comum no resto da sociedade: ignorando, justificando, recusando um posicionamento sobre, não acreditando ou até culpando a pessoa sobrevivente. Para combater isso, feministas e anarquistas na Filadélfia formaram dois grupos. O primeiro, Philly's Pissed, trabalha para ajudar sobreviventes de violência sexual:

Todo o trabalho da Philly's Pissed é realizado de forma confidencial a não ser que a sobrevivente peça que seja diferente. Não somos “especialistas” certificadas, mas um grupo de pessoas cujas vidas foram afetadas por agressões sexuais repetidas vezes e estamos fazendo nosso melhor para criar um mundo mais seguro. Respeitamos nosso próprio conhecimento e o de outras pessoas para descobrir o que parece ser mais seguro para cada pessoa. Philly's Pissed ajuda sobreviventes de agressões sexuais indo ao encontro de suas necessidades imediatas, assim como ajudando a articular e facilitar o que elas precisam para se sentirem seguras e no controle de suas vidas novamente.[6.14]

Se uma sobrevivente tem demandas a fazer para a pessoa agressora – por exemplo, que ela receba aconselhamento, que se desculpe publicamente ou que nunca mais chegue perto da sobrevivente – o grupo de apoio entrega-as. Se a sobrevivente desejar, o grupo torna pública a identidade da pessoa agressora para impedir que ela esconda suas ações e para que outras pessoas fiquem avisadas.

O segundo grupo, Philly Stands Up, trabalha com pessoas que cometeram agressões sexuais para oferecer apoio através do processo de se responsabilizarem por seus atos, aprenderem com eles e mudarem seus comportamentos, e restaurar relações saudáveis com sua comunidade. Os dois grupos também realizam oficinas em outras cidades para compartilhar suas experiências de resposta a agressões sexuais.

Para além da justiça individual

A noção de justiça talvez seja o produto mais perigoso de uma psicologia autoritária. Os piores abusos do Estado ocorrem nas suas prisões, suas inquisições, suas correções forçadas e reabilitações. Polícia, juízes e juízas, e guardas de prisão são agentes centrais de coerção e violência. Em nome da justiça, bandidos uniformizados aterrorizam comunidades inteiras, enquanto dissidentes fazem petições para o mesmo governo que as reprime. Muitas pessoas internalizaram as racionalizações da justiça estatal a tal ponto que morrem de medo de perder a proteção e arbitragem que os Estados supostamente fornecem.

Quando a justiça se torna a esfera particular de especialistas, a opressão não está muito atrás. Em sociedades sem Estado, que estão prestes a desenvolver as hierarquias coercivas que levam ao governo, uma característica comum parece ser um grupo de anciãos respeitados permanentemente confiados com o papel de resolver conflitos e encontrar a justiça. Em tal contexto, o privilégio pode se enraizar, já que as pessoas que se beneficiam dele podem moldar as normas sociais para preservar e ampliar seus privilégios. Sem esse poder, riqueza e poder individuais ficam sobre um fundamento frágil que qualquer pessoa pode desafiar.

A justiça do Estado começa com a recusa de se envolver com as necessidades humanas. Necessidades humanas são dinâmicas e somente podem ser compreendidas plenamente pelas pessoas que as experienciam. A justiça do Estado, pelo contrário, é a aplicação de prescrições universais codificadas em leis. Especialistas que interpretam as leis devem focar na intenção original da pessoa legisladora e não na situação presente. Se você precisa de pão e roubar é um crime, você será punido por roubá-lo, mesmo que você o tome de alguém que não precisa dele. Mas, se sua sociedade se concentra nas necessidades e nos desejos das pessoas e não no cumprimento de leis estáticas, você tem a oportunidade de convencer sua comunidade de que você precisava mais daquele pão que a pessoa da qual você o tomou. Dessa forma, a pessoa agente e as que foram afetadas permanecem no centro do processo, sempre com o poder para se explicar e desafiar as normas da comunidade.

Em comparação, a justiça depende de julgamentos, privilegiando uma pessoa poderosa que toma as decisões em detrimento de quem acusa e quem se defende, que ficam aguardando o resultado sem poder fazer nada. A justiça é a aplicação de moralidade, algo que, em suas origens, era justificado por uma ordenação divina. Quando as sociedades se afastam dos fundamentos religiosos, a moralidade se torna universal, ou natural, ou científica – esferas que se distanciam cada vez mais do público em geral – até que esteja moldada e embalada quase que exclusivamente pela mídia e pelo governo.

A noção de justiça e as relações sociais que por ela são implicadas são inerentemente autoritárias. Na prática, sistemas de justiça sempre dão vantagens injustas para as pessoas poderosas e causam danos terríveis nas pessoas desprovidas de poder. Ao mesmo tempo, eles nos corrompem eticamente e atrofiam nosso senso de responsabilidade e nossa capacidade de tomar iniciativa. Como uma droga, eles nos tornam dependentes enquanto imitam a satisfação de uma necessidade natural humana, que, nesse caso, é a necessidade de resolver conflitos. Assim, as pessoas imploram para os sistemas de justiça por reformas, não importa o quão irreais sejam suas expectativas, em vez de tomar as rédeas dos problemas. Para se recuperar de abusos, pessoas machucadas precisam reaver o controle sobre suas vidas; a pessoa que cometeu o abuso precisa recuperar as relações saudáveis com seus pares, e a comunidade precisa examinar suas normas e dinâmicas de poder. O sistema de justiça impede tudo isso. Ele acumula o controle, aliena comunidades inteiras e obstrui o exame das raízes dos problemas, preservando o status quo acima de tudo.

Polícia e tribunais fornecem um grau limitado de proteção, especialmente para as pessoas privilegiadas pelo racismo, pelo sexismo ou pelo capitalismo; mas o maior perigo que seres humanos enfrentam é o sistema em si. Por exemplo, milhares de pessoas trabalhadoras são mortas anualmente por negligência das empresas e por condições inseguras de trabalho, mas as pessoas que empregam nunca são punidas como assassinas e praticamente nunca são sequer acusadas como criminosas. O máximo que as famílias dessas pessoas trabalhadoras podem esperar é um acordo monetário de um tribunal civil. Quem decide que a pessoa que emprega e lucra com a morte da classe trabalhadora não deve receber nada pior que uma ação judicial, enquanto a esposa que atira em seu marido vai para a cadeia e o adolescente negro que mata um policial em legítima defesa recebe uma pena de morte? Certamente não é uma pessoa trabalhadora, uma mulher ou alguém negro.

Um sistema totalitário deve fornecer, subjugar ou dar um substituto para cada necessidade humana. No exemplo acima, o sistema de justiça coloca o assassinato de pessoas trabalhadoras como um problema a ser resolvido através de regulações e burocracias. A mídia contribui focando em uma cobertura grosseiramente desproporcional de assassinos em série e de “sangue frio”, quase sempre pobres e normalmente não-brancos, mudando assim a percepção das pessoas sobre os riscos que elas correm. Consequentemente, muitas pessoas temem as pessoas pobres mais do que seus patrões, e estão dispostas a apoiar a polícia e os tribunais que têm aquelas como alvos.

Claro que, em alguns casos, a polícia e os tribunais respondem positivamente quando pessoas trabalhadoras ou mulheres são mortas – embora isso seja frequentemente feito para compensar a fúria popular e desencorajar as pessoas de buscarem suas próprias soluções. Mesmo nesses casos, as respostas são geralmente tímidas ou contraproducentes.

Enquanto isso, o sistema de justiça serve de forma bem eficaz como uma ferramenta para remodelar a sociedade e controlar as classes mais baixas da população. Pense na “Guerra às Drogas”,travada desde a década de 1980 até o momento presente. Comparadas a homicídio e estupro, a maioria das drogas ilegais são relativamente inofensivas; no caso das que podem ser prejudiciais, tem sido demonstrado plenamente que atenção médica é uma resposta mais efetiva do que cumprir uma sentença na prisão. Mas o sistema de justiça declarou essa guerra para alterar as prioridades públicas: ela justifica a ocupação de bairros pobres, o encarceramento e a escravidão em massa de milhões de pessoas pobres e pessoas de cor, e a expansão dos poderes da polícia e de juízes e juízas.

O que a polícia faz com esse poder? Ela prende e intimida os elementos mais desprovidos de poder na sociedade. Pessoas pobres e pessoas de cor são as vítimas esmagadoras de detenções e condenações, para não mencionar o assédio diário e até assassinatos pelas mãos da polícia. Tentativas de reformar a polícia raramente fazem mais do que alimentar seus orçamentos e otimizar seus métodos para prender pessoas. E o que acontece com as milhões de pessoas encarceradas? Elas são isoladas, assassinadas aos poucos por dietas pobres e condições miseráveis de vida ou de forma rápida por guardas que nunca são condenados. Guardas prisionais estimulam gangues e a violência racial para facilitar a manutenção do controle. E frequentemente contrabandeiam e vendem drogas viciantes para engordar suas carteiras e anestesiar a população. Dezenas de milhares de pessoas encarceradas são confinadas em solitárias, algumas por décadas.

Estudos sem fim mostraram que tratar vício em drogas e outros problemas psicológicos como problemas criminais é ineficaz e desumano; tem sido demonstrado que maltratar as pessoas presas e lhes negar contato humano e oportunidades educacionais aumentam a reincidência[6.15]. Mas, para cada estudo mostrando como acabar com o crime e reduzir a população carcerária, o governo foi e fez exatamente o oposto: ele cortou programas educacionais, aumentou os confinamentos em solitária, prolongou sentenças e reduziu direitos de visita. Por quê? Porque, além de ser um mecanismo de controle, a prisão é uma indústria. Ela direciona bilhões de dólares de verba pública para instituições que fortalecem o controle estatal, como a polícia, os tribunais, empresas de vigilância e segurança, além de fornecer força de trabalho escrava que produz bens para o governo e para corporações privadas. Trabalho forçado ainda é legalizado no sistema prisional, e a maioria das prisões inclui fábricas nas quais as pessoas presas têm de trabalhar por alguns centavos por hora. As prisões também possuem o equivalente moderno da loja da empresa, onde a população carcerária tem de gastar todo o dinheiro que ganha e que as famílias mandam comprando roupas, comida ou ligações telefônicas lá dentro, tudo por preços inflacionados.

O sistema está além de qualquer esperança de reforma. Burocratas prisionais reformistas têm desistido ou acabaram apoiando a abolição das prisões. Um burocrata em posição alta na hierarquia que dirigia departamentos de correção juvenis em Massachusetts e Illinois concluiu que:

Prisões são burocracias ultrapassadas e violentas que não protegem a segurança pública. Não há como reabilitar ninguém dentro delas. A instalação produz violência que demanda mais da instalação. É uma profecia autorrealizável. Prisões oferecem a si mesmas como solução para os problemas criados por elas. Instituições são erguidas para fazer as pessoas fracassarem. Esse é seu propósito latente[6.16].

Esses não são problemas para serem resolvidos através de reformas ou modificações nas leis. O sistema de justiça organizou suas prioridades e as leis com o propósito específico de nos controlar e abusar de nós. O problema é a própria lei.

Frequentemente, as pessoas que vivem em uma sociedade com Estado assumem que sem um sistema centralizado de justiça seguindo leis claras seria impossível resolver qualquer conflito. Sem um conjunto comum de leis, todas as pessoas lutariam pelos seus próprios interesses, resultando em brigas perpétuas. Se métodos para lidar com dano social são descentralizados e voluntários, o que impede que as pessoas “façam justiça com as próprias mãos”?

Um importante mecanismo de nivelamento em sociedades sem Estado é que às vezes as pessoas realmente fazem justiça com as próprias mãos, especialmente quando estão lidando com pessoas em posição de liderança que estão agindo de forma autoritária. Qualquer pessoa pode obedecer sua consciência e fazer algo contra uma pessoa que ela pensa estar causando danos para a comunidade. No melhor dos casos, isso pode fazer com que outras pessoas reconheçam e confrontem o problema que elas tentaram ignorar. No pior, pode dividir a comunidade entre pessoas que consideram a ação justificada e pessoas que pensam que foi algo prejudicial. No entanto, mesmo isso é melhor que institucionalizar desequilíbrios de poder. Em uma comunidade onde todas as pessoas possuem o poder de fazer as coisas com as próprias mãos, onde todo mundo é igual, elas vão descobrir como é bem mais fácil discutir as coisas e tentar mudar as opiniões de seus pares do que fazer o que dá na telha ou causar conflitos agindo como justiceiras. O motivo pelo qual esse método não é usado em sociedades democráticas e capitalistas não é porque ele não funciona, mas porque existem certas opiniões que não devem ser modificadas, certas contradições que não devem ser abordadas e certos privilégios que não devem ser desafiados.

Em muitas sociedades sem Estado, não são as pessoas especializadas em defender a justiça que lidam com o mau comportamento, mas todo mundo, através do que profissionais da antropologia chamam de sanções difusas – sanções ou reações negativas que são difundidas pela sociedade. Todas as pessoas estão acostumadas a responder à injustiça e ao comportamento danoso, portanto todas estão mais empoderadas e mais envolvidas. Quando não há o Estado para monopolizar a manutenção diária da sociedade, as pessoas aprendem como fazer isso por si mesmas, e ensinam umas às outras.

Não precisamos definir abuso como um crime para saber que ele nos machuca. Leis são desnecessárias em sociedades empoderadas; nelas, existem outros modelos de resposta a danos sociais. Podemos identificar os problemas como violações das necessidades de outras pessoas em vez de uma violação de um código escrito. Podemos estimular um amplo envolvimento social na solução do problema. Podemos ajudar as pessoas que se machucaram a expressar suas necessidades e seguir seu exemplo. Podemos tornar as pessoas responsáveis pelos seus atos quando machucam outras, enquanto lhes damos apoio e as oportunidades de aprendizado e restabelecimento de relações respeitosas com a comunidade. Podemos enxergar os problemas como sendo de responsabilidade da comunidade inteira em vez de serem culpa de uma pessoa. Podemos recuperar o poder de curar a sociedade e quebrar o isolamento que nos foi imposto.

Leitura recomendada

Kristian Williams, Our Enemies in Blue. Brooklyn: Soft Skull Press, 2004.

Jamie Bissonette, When the Prisoners Ran Walpole: A True Story in the Movement for Prison Abolition, Cambridge: South End Press, 2008.

Dennis Sullivan and Larry Tifft, Restorative Justice: Healing the Foundations of Our Everyday Lives, Monsey, NY: Willow Tree Press, 2001.

Graham Kemp and Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004.

Michel Foucault, Discipline and Punish: the Birth of the Prison, New York: Pantheon Books, 1977.

Ammon Hennacy, The Book of Ammon. Salt Lake City: Catholic Worker Books, 1970.

Fred Woodworth, The Match! um periódico anarquista publicado em Tucson.

Capítulo 6 — Revolução

Para pôr fim a todas as hierarquias coercitivas e abrir espaço para organizar uma sociedade livre e horizontal, as pessoas devem superar os poderes repressivos do Estado, abolir todas as instituições do capitalismo, o patriarcado, a supremacia branca, e criar comunidades que se organizem sem novas autoridades.

Como as pessoas organizadas horizontalmente poderiam superar o Estado?

Se anarquistas acreditam na ação voluntária e na organização descentralizada, como poderiam ser suficientemente fortes para derrotar um governo ou um exército profissional? De fato, os movimentos anarquistas e antiautoritários fortes derrotaram exércitos e governos em uma série de revoluções. Frequentemente, isto ocorre em períodos de crise econômica (quando o Estado carece de recursos vitais) ou de crises políticas (quando o Estado perde a ilusão de legitimidade).

A revolução soviética de 1917 não começou com o terror autoritário que chegou depois que Lenin e Trotsky a sequestraram. Foi uma rebelião multiforme contra o czar e contra o capitalismo. Incluiu atores tão diversos como revolucionários socialistas, republicanos, sindicalistas, anarquistas e bolcheviques. Os próprios sovietes foram conselhos espontâneos de trabalhadores sem partido que se organizaram ao longo de linhas antiautoritárias. Finalmente os bolcheviques obtiveram o controle e suprimiram a revolução, jogando um efetivo jogo político que incluía cooptar ou sabotar os sovietes, tomar o exército, manipular e trair seus aliados, e negociar com as potências imperialistas. Os bolcheviques estabeleceram habilmente a si mesmos como o novo governo e seus aliados cometeram o erro de acreditar em sua retórica revolucionária.

Uma das primeiras ações do governo bolchevique foi firmar um tratado de paz com os impérios alemão e austríaco. Foi uma punhalada pelas costas. Para sair da Primeira Guerra Mundial e liberar o exército para ações internas, os leninistas cederam aos imperialistas um tesouro em dinheiro e recursos estratégicos, e cederam-lhes a Ucrânia sem consultar aos ucranianos. Os camponeses no sul da Ucrânia se rebelaram e foi ali onde o anarquismo foi mais forte durante a revolução soviética. Os rebeldes chamavam a si mesmos de Exército Insurgente Revolucionário. Depois de Nestor Makhno, seu estrategista militar mais influente e um organizador anarquista habilidoso, foram comumente conhecidos como makhnovistas. Makhno havia sido libertado da prisão depois da revolução em fevereiro de 1917 e regressou à sua cidade natal para organizar uma milícia anarquista para lutar contra as forças de ocupação alemãs e austríacas.

À medida que o exército anarquista insurrecto cresceu, desenvolveu-se uma estrutura mais formal para permitir a coordenação estratégica ao longo de várias frentes, mas seguia sendo uma milícia de voluntários baseada no apoio dos camponeses. Questões políticas e estratégicas eram decididas nos comitês gerais de camponeses e trabalhadores. Sendo ajudados em vez de impedidos por sua estrutura de participação flexível e tendo um forte apoio dos camponeses, eles libertaram uma área de aproximadamente 300 por 500 quilômetros, que continha 7 milhões de habitantes, em torno da cidade de Gulai-Polé. Às vezes, as cidades que rodeavam esta área anarquista – Aleksandrovsk e Ekaterinoslav (agora chamadas Zaporizhye e Dnipropetrovsk, respectivamente), assim como Melitopol, Mariupol e Berdyansk, foram libertadas do controle do Estado, apesar delas mudarem de mãos várias vezes durante a guerra. A auto-organização das linhas anarquistas implantou-se mais consistentemente nas zonas rurais nesses anos tumultuados. Em Gulai-Polé, os anarquistas estabeleceram três centros de ensino secundário e doaram dinheiro expropriado dos bancos aos orfanatos. Ao longo da área, aumentou a alfabetização entre os camponeses.

Além de enfrentarem os alemães e os austríacos, os anarquistas também lutaram contra as forças dos nacionalistas que trataram de submeter o recém-independente país sob um governo ucraniano próprio. Eles chegaram a ocupar a frente sul contra o exército dos Russos Brancos – a aristocracia, exército pró-capitalista financiado e armado em grande parte pelos franceses e estadunidenses –, enquanto que seus supostos aliados, os bolcheviques, retinham as armas e munições, e começavam a eliminar os anarquistas para deter a difusão do anarquismo emanado do território makhnovista. Os Russos Brancos finalmente abriram passagem através da faminta frente sul e reconquistaram Gulai-Polé. Makhno bateu em retirada para o oeste, arrastando consigo grande parte das milícias Brancas, o resto das quais havia derrotado o Exército Vermelho e avançava constantemente até Moscou. Na batalha de Peregenovka, no oeste da Ucrânia, os anarquistas arrasaram o Exército Branco que os perseguia. Apesar de estarem superados em número e armamento, executaram efetivamente uma série de brilhantes manobras desenvolvidas por Makhno, que não tinha formação militar nem experiência. O exército anarquista voluntário regressou a Gulai-Polé, libertando o campo e as cidades mais importantes dos Brancos. Esta repentina mudança cortou as linhas de abastecimento dos exércitos que haviam quase chegado a Moscou, forçando-os a retirar-se e salvando a Revolução Russa.

Por mais um ano, uma sociedade anarquista floresceu outra vez nos arredores de Gulai-Polé, apesar dos esforços de Lenin e Trotsky para reprimir os anarquistas da mesma forma que haviam reprimido toda a Rússia e o resto da Ucrânia. Quando uma nova incursão Branca sob o comando do general Wrangel ameaçou a revolução, os makhnovistas novamente concordaram em unir-se aos comunistas contra os imperialistas, apesar da traição anterior. O contingente anarquista aceitou uma missão suicida de expulsar o inimigo de suas posições armadas no istmo Perekop de Crimeia; obtiveram êxito nisto e capturaram a estratégica cidade de Simferopol, voltando a desempenhar um importante papel na derrota dos Brancos. Depois da vitória, os bolcheviques cercaram e massacraram a maioria do contingente anarquista, ocuparam Gulai-Polé e executaram muitos dos influentes organizadores e combatentes anarquistas. Makhno e alguns outros escaparam e confundiram o massivo Exército Vermelho com uma eficaz campanha de guerra de guerrilhas durante muitos meses, inclusive provocando várias deserções importantes. No entanto, ao final, os sobreviventes decidiram fugir para o oeste. Alguns camponeses da Ucrânia mantiveram seus valores anarquistas e levantaram a bandeira anarquista como parte da resistência camponesa contra os nazistas e os estalinistas durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo hoje em dia, a bandeira vermelha e negra é um símbolo da independência da Ucrânia, ainda que poucos conheçam suas origens.

Os makhnovistas do sul da Ucrânia mantiveram seu caráter anarquista em condições extremamente difíceis: guerras constantes, a traição e repressão dos supostos aliados, as pressões de morte que sofriam por defenderem-se com violência organizada. Nestas circunstâncias, seguiram lutando pela liberdade, mesmo quando não havia interesse militar. Uma e outra vez intercederam para evitar matanças contra comunidades judias, enquanto os nacionalistas ucranianos e os bolcheviques espalhavam as chamas do antissemitismo para proporcionar um bode expiatório para os problemas que eles mesmos agravaram. Makhno matou pessoalmente um chefe militar vizinho e potencial aliado que havia ordenado matanças, mesmo em momentos em que precisavam desesperadamente de aliados.[7.1]

Durante outubro e novembro [1919], Makhno ocupou Ekaterinoslav e Aleksandrovsk durante várias semanas, ao que obteve sua primeira oportunidade de aplicar os conceitos do anarquismo à vida da cidade. O primeiro ato de Makhno ao entrar em uma grande cidade (depois de abrir as prisões) era dissipar qualquer impressão de que ele viria introduzir uma nova forma de governo político. Publicaram anúncios informando às pessoas que estavam livres para organizar suas vidas segundo sua conveniência, que o Exército Insurgente “não lhes ditaria nem ordenaria que fizessem nada”. Foram proclamadas a liberdade de expressão, imprensa e reunião, e em Ekaterinoslav meia dúzia de periódicos que representavam uma ampla gama de opiniões políticas se levantaram durante a noite. Ainda que promovesse a liberdade de expressão, ao mesmo tempo Makhno não tolerava nenhuma organização política que buscasse impor sua autoridade sobre o povo. Portanto, dissolveu os “Comitês Revolucionários” bolcheviques (revkomy) em Ekaterinoslav e Aleksandrovsk, instando seus membros a “fazer um pouco de comércio honesto”.[7.2]

Os makhnovistas se colocaram para defender a região, deixando a organização socioeconômica para os povos e cidades; esta prática de não intervir sobre os outros foi acompanhada por uma ênfase interna na democracia direta. Os oficiais foram eleitos de cada subgrupo de combatentes e podiam ser revogados por esse mesmo grupo. Eles não eram reverenciados, não recebiam privilégios materiais e não podiam comandar na parte de trás do exército para evitar os riscos de combate.

Diferentemente, os oficiais do Exército Vermelho eram designados desde cima e recebiam os privilégios e salários mais altos na escala do exército czarista. Na verdade, os bolcheviques haviam essencialmente se empossado da estrutura e do pessoal do Exército Czarista depois da Revolução de Outubro. Conservaram a maior parte dos oficiais, mas o reformaram em um “exército popular” mediante a adição de funcionários políticos responsáveis pela identificação de “contrarrevolucionários” a serem eliminados. Também adotaram a prática imperialista de manter soldados longe do continente e de seus lares, em áreas onde não falavam o idioma, ao que seria mais provável obedecer às ordens de reprimir os moradores locais e menos provável de desertarem.

Sem dúvida, o Exército Insurgente Revolucionário impôs uma disciplina estrita, eliminando os suspeitos de espionagem e aqueles que abusavam dos camponeses para benefício pessoal, como vigaristas e estupradores. Os insurgentes devem ter mantido muitos dos mesmos poderes sobre a população civil como qualquer outro exército. Entre suas muitas oportunidades para abusar daquele poder, alguns deles provavelmente o fizeram. Contudo, sua relação com os camponeses foi única entre as grandes potências militares. Os makhnovistas não poderiam ter sobrevivido sem o apoio popular, e durante sua longa guerra de guerrilhas contra o Exército Vermelho, muitos camponeses lhes proporcionaram cavalos, comida, alojamento, ajuda médica, e coleta de informações. Na verdade, os próprios camponeses eram a maioria dos combatentes anarquistas.

Também se debateu quão democrática eram as organizações makhnovistas. Alguns historiadores dizem que Makhno exercia um controle substancial sobre os “sovietes livres”, os conselhos sem partido onde os trabalhadores e os camponeses tomavam suas decisões e organizavam seus assuntos. Mesmo os historiadores simpatizantes relatam anedotas de Makhno intimidando nas reuniões aos delegados que ele viu como contrarrevolucionários. Mas há que pesar estas contra as muitas ocasiões em que Makhno rechaçou posições de poder, ou o fato de que ele deixou o Soviete Revolucionário Militar, a assembleia que decidia a política militar das milícias camponesas, com intuito de salvar o movimento da repressão bolchevique.[7.3]

Uma das críticas que os bolcheviques faziam aos makhnovistas era que seu Soviete Revolucionário Militar, o mais próximo que podia haver de uma organização ditatorial, não exercia nenhum poder real – na realidade era só um grupo assessor – enquanto que os grupos individuais de trabalhadores e as comunidades camponesas conservavam sua autonomia. Mais indulgente é a descrição do historiador soviético Kubanin: “o órgão supremo do exército insurgente era seu Soviete Revolucionário Militar, eleito em uma assembleia geral de todos os insurgentes. Nem o comando geral do exército nem mesmo Makhno moviam realmente o movimento, senão que simplesmente refletiam as aspirações das massas, atuando como seus agentes ideológicos e técnicos.” Outro historiador soviético, Yefimov, disse: “Nunca nenhuma decisão foi tomada de forma individual. Todas as questões militares foram objeto de debate comum”.[7.4]

Amplamente superadas em número e armamento, as milícias anarquistas de voluntários derrotaram com êxito os exércitos alemães, austríacos, o nacionalista ucraniano, e aos Russos Brancos. Foi preciso um exército profissional abastecido pelas grandes potências industriais do mundo e a simultânea traição de seus aliados para poder detê-los. Se soubessem o que sabemos hoje – que os revolucionários autoritários podem ser tão tirânicos como os governos capitalistas –, e os anarquistas russos em Moscou e São Petersburgo houvessem obtido êxito em cuidar dos bolcheviques desde o sequestro da Revolução Russa, as coisas teriam sido diferentes.

Ainda mais impressionante que o exemplo dado pelos makhnovistas é a vitória obtida por várias nações indígenas em 1868. Em uma guerra de dois anos, milhares de guerreiros das nações Lakota e Cheyenne derrotaram os militares dos EUA e destruíram várias fortalezas do exército durante o que chegou a ser conhecido como a Guerra de Nuvem Vermelha. Em 1866, os Lakota se reuniram com o governo dos EUA em Fort Laramie, porque este último queria permissão para construir um caminho militar através do território do Rio Powder para facilitar a chegada dos colonos brancos que procuravam ouro. O exército dos EUA já havia derrotado aos Arapaho na sua tentativa de abrir a área para os colonos brancos, mas havia sido incapaz de derrotar os Lakota. Durante as negociações, tornou-se evidente que o governo dos EUA já havia iniciado o processo de construção de fortes militares ao longo deste caminho, sem nem sequer ter garantido a permissão para o mesmo. O chefe de guerra Oglala Lakota Nuvem Vermelha se comprometeu a resistir a qualquer intento branco em ocupar a área. Contudo, no verão de 1866 os militares dos EUA começaram a enviar mais tropas à região e a construir novas fortalezas. Os guerreiros Lakota, Cheyenne e Arapaho, seguindo a direção de Nuvem Vermelha, começaram uma campanha de resistência de guerrilha, fechando efetivamente a estrada Bozeman e cercando as tropas alojadas nos fortes. O exército ordenou uma agressiva campanha de inverno, e a 21 de dezembro, quando seu trem de madeira foi atacado mais uma vez, um exército de aproximadamente cem soldados dos EUA decidiu persegui-los. Perceberam-se mordendo a isca em uma armadilha na qual inclusive participou o guerreiro Oglala Cavalo Louco. Toda a campanha foi derrotada e assassinada por uma força dentre 1.000 a 3.000 guerreiros que esperavam para a emboscada. O oficial no comando dos soldados brancos foi apunhalado até a morte em um combate corpo a corpo. Os Lakota só deixaram vivo um rapaz com uma corneta, que lutou somente com sua corneta coberto por uma pele de búfalo, como um símbolo de honra – com esses atos os guerreiros indígenas demostraram a possibilidade de uma forma de guerra muito mais respeitosa, em contraste com os colonos e soldados brancos, que frequentemente extraíam os fetos das mulheres grávidas e utilizavam as genitálias amputadas de suas vítimas desarmadas como bolsas para o tabaco.

No verão de 1867, as tropas dos EUA com novos rifles de repetição lutaram contra os Lakota em duas batalhas, mas não alcançaram êxito nas ofensivas. Ao final, eles pediram para negociar a paz, ao qual Nuvem Vermelha contestou que só a concederia se os fortes militares fossem abandonados. O governo dos EUA esteve de acordo, e nas conversações de paz reconheceram os direitos dos Lakota às Black Hills e ao território do Rio Powder, uma enorme área que atualmente ocupa os estados de Dakota do Norte, Dakota do Sul, e Montana.

Durante a guerra, os Lakota e Cheyenne se organizaram sem coerção ou disciplina militar. Mas, contrariamente às dicotomias típicas, sua relativa falta de hierarquia não obstaculizou sua capacidade de organização. Pelo contrário, se mantiveram unidos durante uma guerra brutal baseando-se em uma disciplina coletiva e automotivada, assim como em diferentes formas de organização. No exército Ocidental, a unidade mais importante é a polícia militar ou o oficial que caminha atrás das tropas, com a pistola carregada e pronto para disparar em quem se volte e fuja. Os Lakota e Cheyenne não tinham a necessidade de impor disciplina desde cima. Eles estavam lutando para defender suas terras e sua forma de vida, em grupos unidos por laços de parentesco e afinidade.

Alguns grupos de combate se estruturaram com uma cadeia de comando, enquanto outros operavam de forma mais coletiva, mas todos eles se reuniam voluntariamente ao redor dos indivíduos com maiores capacidades organizativas, poder espiritual e experiência de combate. Esses chefes de guerra não controlavam aqueles que os seguiam, por mais que os inspirassem. Quando o moral estava baixo ou uma disputa parecia desesperada, os grupos guerreiros frequentemente iam para suas casas, sendo sempre livres para fazê-lo. Se um chefe declarava uma guerra, ele era o único obrigado a ir. Um líder que não consegue convencer ninguém de segui-lo à guerra só podia estar participando de um projeto vergonhoso e à beira do suicídio. Ao contrário, os políticos e generais na sociedade Ocidental podem começar guerras impopulares e eles nunca são os que sofrem as consequências.

As sociedades guerreiras exerceram um importante papel na organização indígena para a guerra, mas as sociedades de mulheres foram vitais também. Elas desempenharam um papel similar ao do Contramestre nos exércitos Ocidentais, fornecendo os alimentos e materiais, com a diferença que onde o Contramestre é somente uma peça obedecendo ordens, as mulheres Lakota e Cheyenne se negavam a cooperar se não estavam de acordo com as razões de uma guerra. Considerando que uma das contribuições mais importantes de Napoleão à guerra europeia foi a ideia de que “um exército marcha sobre seu estômago”, torna-se evidente que as mulheres Lakota e Cheyenne exerciam mais poder nos assuntos de suas nações que o que as histórias escritas por homens brancos nos levam a crer. Além disso, as mulheres que assim o decidiam podiam lutar junto aos homens.

Apesar de estarem incrivelmente superados em número pelos militares dos EUA e colonos paramilitares brancos, os nativos americanos venceram. Depois da Guerra de Nuvem Vermelha, os Lakota e Cheyenne desfrutaram de quase uma década de autonomia e paz. Contrários aos discursos pacifistas sobre a resistência militante, os vencedores não passaram a oprimir os outros ou criaram um incontrolável ciclo de violência só porque haviam lutado violentamente para expulsar aos invasores brancos. Eles ganharam para eles mesmos vários anos de liberdade e paz.

Em 1876, os militares dos EUA novamente invadiram o território Lakota para tentar obrigá-los a viver nas reservas, que haviam se transformado em campos de concentração como parte da campanha de genocídio contra as populações indígenas. Vários milhares de soldados participaram, começando com várias derrotas, das quais a mais notável foi a batalha de Greasy Grass Creek, também conhecida como a Batalha de Little Bighorn. Em torno de 1.000 guerreiros Lakota e Cheyenne, defendendo-se de um ataque, dizimaram a unidade de cavalaria sob o comando de George A. Custer e mataram várias centenas de soldados. O próprio Custer previamente havia invadido as terras Lakota para difundir rumores sobre ouro e provocar uma nova onda de colonos brancos, os quais foram uma importante força impulsora para o genocídio. Os colonos, além de ser uma força paramilitar armada responsável por uma grande parte dos abusos e assassinatos, serviam de pretexto suficiente para trazer o exército. A lógica era que os pobres e humildes fazendeiros, ao invadir outro país, deviam ser defendidos dos “índios saqueadores”.

O governo dos EUA, em última instância, venceu a guerra contra os Lakota, ao atacar suas vilas, invadindo seus terrenos de caça e instaurando uma forte repressão contra o povo que vive nas reservas. Um dos últimos a render-se foi o guerreiro Oglala Cavalo Louco, que havia sido um dos líderes mais eficazes na luta contra os militares dos EUA. Depois que seu grupo concordou entrar na reserva, Cavalo Louco foi detido e assassinado. Sua última derrota não indica uma debilidade na organização horizontal dos Lakota e Cheyenne. Na verdade, o que mais pesava era o fato de que a população branca estadunidense que tentava exterminá-los superava-os em número em uma proporção de mil para um. Além disso, tinha a capacidade de difundir o vício às drogas e enfermidades em sua própria casa enquanto destruíam sua fonte de alimento.

A resistência Lakota nunca terminou, e ainda pode ganhar finalmente a guerra. Em dezembro de 2007, um grupo de Lakotas fez valer novamente sua independência, informando ao Departamento de Estado dos EUA que estavam retirando-se de todos os tratados que já haviam sido quebrados pelo governo dos colonos, e separando-se, como uma medida necessária face às “condições do apartheid colonial”.[7.5]

Algumas das lutas mais intransigentes contra o Estado são indigenistas. As lutas atuais indigenistas criaram algumas das únicas áreas na América do Norte que gozam de autonomia física e cultural, e que tem sido autodefendidas com sucesso nos periódicos enfrentamentos com o Estado. Estas lutas geralmente não se identificam como anarquistas, e talvez por esta razão os anarquistas tenham, inclusive, muito mais a aprender com elas. Mas se a aprendizagem não é outra relação mercantil, um simples ato de aquisição, então deve vir acompanhada de relações horizontais de reciprocidade, quer dizer, de solidariedade.

A nação Mohawk lutou longamente contra a colonização e em 1990 obtive uma grande vitória contra as forças do Estado dos colonos. No território Kanehsatake, próximo a Montreal, os brancos na cidade de Oka queriam ampliar um campo de golfe à custa de um bosque onde se encontrava um cemitério Mohawk, o que desatou os protestos. Na primavera de 1990, os Mohawks estabeleceram um acampamento ali e bloquearam a estrada. Em 11 de julho de 1990, a polícia de Quebec atacou o acampamento com gás lacrimogêneo e armas automáticas, mas os defensores Mohawk estavam armados e entrincheirados. Um policial foi assassinado a tiros e o resto fugiu. Os automóveis da polícia que foram deixados para trás pelo pânico, foram utilizados para construir novas barricadas. Enquanto isso, os guerreiros Mohawk de Kahnawake bloquearam a ponte Mercier, interrompendo o tráfego das proximidades de Montreal. A polícia iniciou um cerco às comunidades Mohawk, mas mais guerreiros vieram, contrabandeando mantimentos. Os que resistiam organizaram comida, assistência médica e serviços de comunicação, e os bloqueios persistiram. Multidões brancas formadas em cidades aldeãs se amotinaram, exigindo a violência policial para abrir a ponte e restaurar o tráfego. Mais tarde, em agosto, estas multidões atacaram um grupo de Mohawks, enquanto a polícia se preparava.

Em 20 de agosto, os bloqueios se mantinham fortes e o exército canadense tomou o poder sob o cerco policial. No total, 4.500 soldados foram mobilizados, apoiados por tanques, veículos blindados, helicópteros de combate, aviões, artilharia e navios de guerra. Em 18 de setembro, os soldados canadenses atacaram Tekakwitha Island, disparando gás lacrimogêneo e balas. Os Mohawks responderam e os soldados tiveram que ser evacuados por helicóptero. Em todo Canadá os indígenas protestaram em solidariedade com os Mohawk, ocuparam edifícios, bloquearam vias férreas e estradas, e realizaram atos de sabotagem. Desconhecidos queimaram pontes da ferrovia em British Colombia e Alberta, e derrubaram cinco torres de energia em Ontário. Em 26 de setembro, o resto dos Mohawk sitiados declarou a vitória e se foram depois de queimar suas armas. O campo de golfe não foi construído, e a maioria dos detidos foi absolvida das acusações de porte de armas e distúrbios. “Oka serviu para revitalizar o espírito guerreiro dos povos indígenas e nossa vontade para resistir”.[7.6]

No final dos anos 1990, o Banco Mundial ameaçou não renovar um dos principais empréstimos de que o governo boliviano dependia, se eles não estivessem de acordo em privatizar todos os serviços de água na cidade de Cochabamba. O governo cedeu e firmou um contrato com um consórcio liderado pelas corporações da Inglaterra, Itália, Espanha, EUA e Bolívia. O consórcio de águas, na falta de conhecimento a respeito das condições locais, de imediato elevou as taxas, até o ponto que muitas famílias tiveram que pagar uma quinta parte de seus orçamentos mensais só pela água. Além disso, aplicaram uma política de cortar o serviço de água dos lares que não pagaram. Em janeiro de 2000, explodiram grandes protestos contra a privatização da água. Camponeses, principalmente indígenas, se reuniram na cidade, junto com trabalhadores aposentados, empregados da indústria têxtil, vendedores ambulantes, jovens sem lar, estudantes, e anarquistas. Os manifestantes tomaram a praça central e levantaram barricadas nas principais estradas. Organizou-se uma greve geral que paralisou a cidade durante quatro dias. Em 4 de fevereiro, uma grande marcha de protesto foi agredida por soldados da polícia. Duas centenas de manifestantes foram detidas, enquanto que 70 pessoas e 51 policiais foram feridos.

Em abril, as pessoas se apoderaram da praça central de Cochabamba outra vez, e quando o governo começou a prender os organizadores, os protestos se estenderam às cidades de La Paz, Oruro e Potosi, assim como em muitos povoados rurais. As principais estradas em todo o país foram bloqueadas. Em 8 de abril, o presidente boliviano declarou estado de sítio por 90 dias, proibindo reuniões de mais de 4 pessoas, a restrição da atividade política, permitindo detenções arbitrárias, o estabelecimento de toques de recolher, e colocou as estações de rádio sob o controle de militares. A polícia ocasionalmente se unia aos manifestantes para exigir aumentos salariais, inclusive participaram de alguns distúrbios. Mas, uma vez que o governo aumentou seus salários, voltaram a trabalhar e continuaram espancando e detendo seus antigos camaradas. Em todo o país, as pessoas lutaram contra a polícia e os militares com pedras e coquetéis molotov, sofrendo muitas lesões e diversas mortes. Em 9 de abril, soldados que tentavam eliminar uma barricada encontraram resistência e dispararam matando dois manifestantes e ferindo vários outros. Os vizinhos atacaram os soldados, se apoderaram de suas armas e abriram fogo. Mais tarde, invadiram um hospital e capturaram e lincharam um capitão do exército que estava ferido.

Enquanto os protestos violentos só mostravam sinais de crescimento, e com frequência devido aos repetidos assassinatos e à repressão violenta da polícia e dos militares, o Estado cancelou seu contrato com o consórcio de águas e em 11 de abril anulou a lei que autorizava a privatização da água em Cochabamba. A gestão da infraestrutura para a água foi entregue a um grupo comunitário de coordenação que havia surgido a partir das manifestações. Alguns dos envolvidos na luta posteriormente viajaram para Washington (DC, nos EUA) para unir-se aos manifestantes antiglobalização, demostrando sua intenção de fechar a reunião anual do Banco Mundial.[7.7]

As queixas dos manifestantes se estenderam para além da privatização da água na cidade. A resistência havia se generalizado em uma rebelião social que incluía o rechaço socialista ao neoliberalismo, o rechaço anarquista do capitalismo, o rechaço dos agricultores a suas dívidas, as demandas dos pobres para baixar os preços dos combustíveis e o fim das propriedades multinacionais sobre o gás boliviano, e as demandas indígenas pela soberania. Do mesmo modo, a resistência feroz nos anos posteriores derrotou a elite política da Bolívia em várias ocasiões. Agricultores e anarquistas armados com dinamite ocuparam os bancos para ganhar o perdão de suas dívidas. Sob a intensa pressão popular, o governo nacionalizou a extração de gás e um poderoso sindicato de camponeses e indígenas derrotou o programa de erradicação da coca apoiado pelos Estados Unidos. Os cultivadores de coca inclusive levaram seu líder, Evo Morales, a ser eleito presidente, dando à Bolívia seu primeiro chefe de Estado indígena. Por causa disto, a Bolívia enfrenta atualmente uma crise política que o governo pode ser incapaz de resolver; pois a elite tradicional, localizada nas áreas orientais brancas do país, se negam a submeter-se às políticas progressistas do governo de Morales. Nas zonas rurais, as comunidades indígenas utilizaram meios mais diretos para conservar sua autonomia. Continuaram com o bloqueio de estradas e sabotaram as tentativas de controle governamental de seus povoados através de atos cotidianos de resistência. Em não menos de uma dúzia de ocasiões em que um prefeito em particular ou um funcionário do governo mostrou-se especialmente intrusivo ou abusivo, ele acabou linchado pelos moradores locais.

A resistência descentralizada pode derrotar o governo em um enfrentamento armado – podendo também derrubar governos. Em 1997, a corrupção do governo e um colapso econômico provocaram uma insurreição massiva na Albânia. Em questão de meses, as pessoas se armaram e obrigaram o governo e a polícia secreta a fugirem do país. Eles não estabeleceram um novo governo nem se uniram sob um partido político. Melhor, se colocaram fora do Estado para criar regiões autônomas onde poderiam organizar suas próprias vidas. A rebelião se espalhou de forma espontânea, sem direção central ou mesmo coordenação. As pessoas em todo o país identificaram o Estado como seu opressor e atacaram-no. As prisões foram abertas, e as delegacias de polícia e os edifícios do governo foram queimados até virar cinzas. As pessoas trataram de cumprir com suas necessidades a nível local dentro das redes sociais preexistentes. Por desgraça, precisavam de um movimento conscientemente anarquista ou antiautoritário. Rechaçando as soluções políticas intuitivamente, mas não explicitamente, faltava uma análise que permitisse identificar todos os partidos políticos como inimigos por sua própria natureza. Em consequência, o partido da oposição socialista conseguiu instalar-se no poder, apesar disto implicar uma ocupação de milhares de Tropas da União Europeia para pacificar a Albânia por completo.

Mesmo nos países mais ricos do mundo, os anarquistas e outros rebeldes podem derrotar o Estado em uma área limitada, criando uma zona autônoma em que possam prosperar novas relações sociais. Em 1980-81, o partido conservador alemão perdeu o poder em Berlim depois de tentar esmagar pela força o movimento okupa. Os ocupantes ilegais ocuparam edifícios abandonados como uma luta contra a gentrificação e a decadência urbana, ou, simplesmente proporcionaram a si mesmos uma moradia livre. Muitos okupas, conhecidos como Autonomen, se identificaram como um movimento anticapitalista, antiautoritário que viu estas okupas como bolhas de liberdade nas quais se criavam os inícios de uma nova sociedade. Em Berlim, a luta mais violenta ocorreu no bairro de Kreuzberg. Em algumas áreas, a maioria dos residentes eram Autonomen, desertores escolares e imigrantes, sendo em muitos aspectos uma zona autônoma. Utilizando todo o poder da polícia, a cidade tentou desalojar as okupas e esmagar o movimento, mas os Autonomen se defenderam. Defenderam seus bairros com barricadas, pedras e coquetéis molotov superando a polícia no confronto de rua. Contra-atacaram causando estragos nos distritos financeiros e comerciais da cidade. O partido governante renunciou derrotado e os socialistas tomaram o poder; estes últimos empregaram uma estratégia de legalização na tentativa de minar a autonomia do movimento, já que não conseguiram desalojá-los à força. Enquanto isso, os Autonomen em Kreuzberg tomaram medidas para proteger o bairro dos vendedores de drogas com a campanha “os punhos contra as agulhas”. Também lutaram contra a gentrificação, destruindo restaurantes e bares burgueses.

Em Hamburgo, em 1986 e 1987, a polícia foi detida pelas barricadas dos Autonomen quando tentavam desalojar as okupas de Hafenstrasse. Depois de perder várias batalhas nas principais ruas e sofrer contra-ataques – como um ataque incendiário coordenado contra treze lojas de departamento causando danos de 10 milhões de dólares –, o prefeito legalizou as ocupações, que seguem em pé e seguem sendo centros de cultura e resistência política até o momento de escrever este livro.

Em Copenhague, Dinamarca, o movimento juvenil autônomo foi para o ataque em 1986. Enquanto se desenrolavam ações militantes de okupas e sabotagens às estações da Shell Oil e outros objetivos da luta anti-imperialista, várias centenas de pessoas desviaram sua marcha de protesto para surpreender e ocupar Ryesgade, uma rua no bairro de Osterbro. Levantaram barricadas e obtiveram o apoio do bairro e trouxeram mantimentos aos vizinhos idosos bloqueados pelas barricadas. Durante nove dias, os Autonomen tomaram as ruas, derrotando a polícia em várias batalhas importantes. As estações de rádio livres em toda Dinamarca ajudaram a mobilizar apoio, incluindo alimentos e mantimentos. Finalmente, o governo anunciou que traria os militares para limpar as barricadas. Os jovens nas barricadas anunciaram uma conferência de imprensa, mas quando chegou a manhã marcada, haviam desaparecido. Dois negociadores da cidade se perguntavam:

Para onde foram as BZers [brigadas de ocupação] quando se foram? Que lições a prefeitura aprendeu? Parece que a ação pode começar novamente, em qualquer lugar, a qualquer momento. Ainda maior. Com os mesmos participantes.[7.8]

Em 2002, a polícia de Barcelona tentou desalojar o Can Masdeu, um grande centro social ocupado em uma colina nos arredores da cidade. Can Masdeu estava conectado com o movimento de okupa, o movimento ecologista e a tradição local de resistência. O entorno da colina estava coberta de jardins, muitos deles utilizados pelos antigos vizinhos que relembram a ditadura e a luta contra ela, e entendem que esta luta ainda continua em nossos dias apesar da aparência de uma democracia. Consequentemente, o centro recebeu o apoio de muitos cantos da sociedade. Quando a polícia chegou, os vizinhos levantaram barricadas e fecharam a passagem, e por muitos dias onze pessoas penduraram-se pelo lado de fora da construção, balançando pela encosta, acima do chão. Os apoiadores vieram aos montes e desafiavam a polícia, enquanto que outros tomavam medidas em toda a cidade, bloqueando o tráfego e atacando bancos, escritórios imobiliários, um McDonalds, e outras lojas. A polícia tentou fazer com que os que se penduravam do edifício passassem fome e utilizaram táticas psicológicas contra eles, mas finalmente fracassaram. A resistência derrotou a intenção de desalojo e a zona autônoma sobrevive até nossos dias, com jardins comunitários ativos e um centro social.

Em 6 de dezembro de 2008, a polícia grega disparou para matar o anarquista Alexis Grigoropoulos de quinze anos de idade no centro de Exarchia, a fortaleza autônoma anarquista no centro de Atenas. Em questão de minutos, grupos anarquistas de afinidade se comunicaram por internet e telefone celular iniciando ações em todo o país. Estes grupos de afinidade, centenas deles, que haviam desenvolvido relações de confiança e segurança e a capacidade de realizar ações ofensivas em anos anteriores, se organizaram e realizaram numerosos ataques em pequena escala contra o Estado e o capital. Estes ataques incluíam simples graffittis, expropriações populares nos supermercados, ataques com molotov contra a polícia, suas patrulhas e delegacias e ataques com bombas contra veículos e escritórios dos partidos políticos, instituições e empresas que haviam causado reações ofensivas contra movimentos sociais, imigrantes, trabalhadores, presos e outros. A continuidade das ações criou um contexto de forte resistência que poderia emergir quando a sociedade grega estivesse pronta.

O ódio pelo assassinato de Alexis forneceu um ponto de encontro para os anarquistas, que começaram a atacar a polícia por todo o país, enquanto que a polícia em muitas cidades nem sequer sabia o que estava acontecendo. A força do ataque rompeu a ilusão da paz social, e nos dias posteriores, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas para expressar a raiva que também abrigavam contra o sistema. Imigrantes, estudantes, secundaristas, trabalhadores, idosos, os revolucionários da geração anterior – toda a sociedade grega saiu para participar em uma diversidade de ações. Eles lutaram contra a polícia e venceram, ganhando o poder para transformar suas cidades. Lojas de luxo e edifícios do governo foram atacados e reduzidos às cinzas. Escolas, estações de rádio, teatros e outros edifícios foram ocupados. Sua dor se converteu em celebração quando as pessoas atearam fogo e comemoraram com festa nas ruas a destruição do velho mundo. A polícia respondeu com a força, ferindo e prendendo centenas de pessoas e enchendo o ar com gases lacrimogêneos. O povo se defendeu com mais incêndios, queimando tudo o que odiava e produzindo densas nuvens de fumaça negra que neutralizavam o gás lacrimogêneo.

Quando as pessoas começaram a ir para casa, talvez para voltar à normalidade, os anarquistas mantiveram os distúrbios em marcha, de modo que não restasse dúvida que as ruas pertencem ao povo e que um novo mundo estava ao seu alcance. Em meio a todos os graffittis que apareceram nas paredes estava a promessa: “Somos uma imagem do futuro”. Os distúrbios duraram duas semanas consecutivas. A polícia perdeu qualquer vestígio de controle e havia ficado sem gás lacrimogêneo. No final das contas, as pessoas voltaram para casa por puro cansaço físico, mas não se detiveram. Os ataques continuaram e grande parte da sociedade grega começou a participar em ações criativas. A sociedade grega havia se transformado. Todos os símbolos do capitalismo e do governo demonstraram provocar o desprezo das massas. O Estado perdeu sua legitimidade e os meios de comunicação se limitaram a repetir a clara mentira: os manifestantes não sabem o que querem. O movimento anarquista ganhou o respeito de todo o país e inspirou a nova geração. Os distúrbios diminuíram, mas as ações continuaram. Ao escrever estas linhas, as pessoas por toda a Grécia continuam ocupando edifícios, iniciando centros sociais, protestando, atacando, avaliando suas estratégias, e realizando massivas assembleias para determinar a direção de sua luta.

Os Estados democráticos ainda consideram a opção de chamar o exército quando suas forças policiais não podem manter a ordem, e de vez em quando o fazem inclusive nos países mais progressistas. No entanto, essa opção também abre perigosas possibilidades. Os dissidentes também podem tomar as armas; se a luta continua ganhando popularidade, mais e mais gente passa a ver o governo como uma força de ocupação. Em um caso extremo, os militares podem amotinar-se e a luta se difunde. Na Grécia, os soldados estavam circulando panfletos prometendo que se lhes chamassem para esmagar a revolta, entregariam suas armas ao povo e abririam fogo contra as polícias. A intervenção militar é uma etapa inevitável de qualquer luta para derrubar o Estado, mas se os movimentos sociais podem demonstrar o valor e a capacidade organizativa para derrotar a polícia, eles podem ser capazes de derrotar os militares ou ganhá-los para o seu lado. Graças à retórica dos governos democráticos, os soldados de hoje estão muito menos preparados psicologicamente para reprimir levantamentos locais tão brutalmente como o fariam com um país estrangeiro.

Devido à natureza de integração globalizada do sistema, os Estados e outras instituições de poder se reforçam mutuamente, e portanto são mais fortes até certo ponto. Mas para além desse ponto, todos eles são mais débeis e vulneráveis a um colapso em escala global como nunca antes na história. Uma crise política na China poderia destruir a economia dos EUA, e derrubar também outras peças do dominó. Todavia, ainda não chegamos ao ponto em que podemos derrubar a estrutura de poder mundial, mas é significativo que em competências específicas, o Estado seja frequentemente incapaz de nos derrotar, e as bolhas de autonomia coexistem com o sistema que pretende ser universal e sem alternativas. Governos são derrubados todo ano. O sistema ainda não foi abolido porque os vencedores destas lutas sempre têm sido cooptados e reincorporados no capitalismo global. Mas se os movimentos antiautoritários tomarem explicitamente a iniciativa na resistência popular, este será um sinal de esperança para o futuro.

Como saberemos se os revolucio-nários não se converterão em novas autoridades?

Não é inevitável que revolucionários se convertam nos novos ditadores, sobretudo se seu objetivo principal é a abolição de toda autoridade coercitiva. As revoluções através de todo o século XX criaram novos sistemas totalitários, mas todas elas foram dirigidas ou sequestradas por partidos políticos, nenhum dos quais denunciava o autoritarismo. Pelo contrário, um grande número deles prometeu criar uma “ditadura do proletariado” ou governo nacionalista.

Os partidos políticos, afinal, são instituições inerentemente autoritárias. Mesmo no caso improvável de que legitimamente venham de grupos desempoderados e construam estruturas internas democráticas, ainda devem negociar com as autoridades existentes para ganhar influência, e seu objetivo final é ganhar o controle sobre uma estrutura de poder centralizado. Para que os partidos políticos obtenham o poder através do processo parlamentar, devem deixar de lado todos os princípios igualitários e metas revolucionárias que possam ter tido e cooperar com os acordos preexistentes de poder, como as necessidades dos capitalistas, as guerras imperialistas, e assim sucessivamente. Esse triste processo foi demonstrado pelos partidos socialdemocratas de todo o mundo, desde Labour no Reino Unido, o Partido Comunista na Itália, até mais recentemente o Partido Verde na Alemanha ou o Partido dos Trabalhadores no Brasil. Por outro lado, quando os partidos políticos, como os bolcheviques, os Khmer Rouge, e os comunistas cubanos tratam de impor a mudança através da adoção do controle em um golpe de Estado ou guerra civil, seu autoritarismo é ainda mais imediatamente visível.

Contudo, revolucionários expressamente antiautoritários têm uma história de destruição do poder em vez de tomá-lo. Nenhum de seus levantes foi perfeito, mas eles têm dado uma esperança para o futuro e lições sobre como se poderia alcançar uma revolução anarquista. Embora o autoritarismo seja sempre um risco, ele não é um resultado inevitável da luta.

Em 2001, depois de anos de discriminação e brutalidade, os Amazigh (berbere), habitantes de Cabília, uma região da Argélia, se levantaram contra o predominante governo árabe. O estopim da sublevação aconteceu a 18 de abril, quando a força policial matou um jovem local e depois submeteu vários estudantes a detenções arbitrárias, ainda que o movimento resultante tenha demonstrado claramente ser muito mais amplo que apenas uma reação contra a brutalidade policial. A partir de 21 de abril, as pessoas entraram em confronto com a polícia, queimaram delegacias, edifícios governamentais, e escritórios de partidos políticos de oposição. Ao perceberem que os escritórios de serviços sociais governamentais não foram poupados, os intelectuais e jornalistas nacionais assim como os esquerdistas na França paternalista advertiram que os equivocados amotinados estavam destruindo sua própria vizinhança – omitindo o fato, por hipocrisia ou ignorância, de que os serviços sociais nas regiões pobres têm a mesma função que a polícia, apenas realizando a parte mais suave do trabalho.

Os distúrbios transformaram-se em insurreição e as pessoas de Cabília logo alcançaram uma de suas principais demandas – a eliminação da polícia na região. Muitos postos da polícia que não foram totalmente queimados foram sitiados, suas linhas de abastecimento foram cortadas, fazendo com que a polícia tivesse que sair em esquadras em missões apenas de abastecimento. Nos primeiros meses, a polícia matou mais de uma centena de pessoas e feriu milhares, mas os insurgentes não deram um passo atrás. Devido à ferocidade da resistência mais que à generosidade do governo, Cabília ainda estava fora dos limites da força policial no início de 2006.

O movimento prontamente foi organizando a região liberada seguindo linhas tradicionais e antiautoritárias. As comunidades ressuscitaram a tradição Amazigh de Aarch (ou aaruch no plural), uma assembleia popular para auto-organização. Cabília se beneficiou de uma cultura antiautoritária profundamente enraizada. Durante a colonização francesa, a região era o berço de frequentes levantamentos e da resistência cotidiana à administração do governo.

Em 1948, por exemplo, uma assembleia de vila proibiu formalmente a comunicação com o governo sobre assuntos da comunidade: “Quem passar informação a qualquer autoridade, seja sobre a moralidade de outro cidadão, seja sobre as cifras fiscais, será multado em dez mil francos. É o tipo mais grave de multa que existe. O prefeito e a guarda rural não estão excluídos” [...] E quando os movimentos atuais começaram a organizar comitês de bairros e vilas, um delegado (da Aarch de Ait Djennad) declarou, para demonstrar que ao menos a recordação desta tradição não havia se perdido: “Antes, quando o tajmat era encarregado de resolver os conflitos entre pessoas, eles castigavam ao ladrão ou o vigarista, não era necessário ir ao tribunal. Na verdade, isso era vergonhoso”.[7.9]

A partir de 20 de abril, os delegados de 43 cidades na subprefeitura de Beni Duala, em Cabília, estavam coordenando a convocatória para uma greve geral, assim como as pessoas em muitos povoados e bairros organizavam assembleias e coordenações. Em 10 de maio, os delegados, a partir das diferentes assembleias e coordenações ao longo de Beni Duala, se reuniram para formular as demandas e organizar o movimento. A imprensa, demonstrando o papel que atuaria durante a insurreição, publicou um anúncio falso dizendo que a reunião havia sido cancelada, mas ainda assim, um grande número de delegados se reuniu, sobretudo os de wilaya, ou distrito de Tizi Uzu. Eles expulsaram um prefeito que tentou participar nas reuniões. “Aqui não precisamos de prefeito ou de qualquer outro representante do Estado”, disse um delegado.

Os delegados das aaruch mantiveram reuniões e criaram uma coordenação interwilaya. Em 11 de junho, eles se reuniram em El Kseur:

Nós, representantes das wilayas de Sétis, Bordj-Bu-Arreridj, Buira, Bumerdes, Bejaia, Tizi Uzu, Argel, assim como o Comitê das Universidades de Argel, reunidos hoje, segunda-feira, 11 de junho de 2001, na Casa da Juventude “Mouloud Feraoun” em El Kseur (Bejaia), adotamos a seguinte lista de demandas:

Que o Estado seja responsabilizado urgentemente por todas as vítimas feridas e pelas famílias dos mártires da repressão durante estes eventos.

O julgamento por um tribunal civil dos autores, instigadores e cúmplices destes crimes e sua expulsão das forças de segurança e dos cargos públicos.

O status de mártir para dignificar a cada vítima morta durante estes eventos, e a proteção de todas as testemunhas.

A retirada imediata das brigadas da força policial e os reforços da URS.

A anulação dos processos judiciais contra todos os manifestantes, assim como a libertação daqueles que já foram condenados durante estes eventos.

O abandono imediato dos expedientes punitivos, da intimidação, e das provocações contra a população.

A dissolução das comissões de investigação iniciadas pelo poder.

A satisfação das reclamações dos Amazigh, em todas as suas dimensões (de identidade, civilização, idioma e cultura), sem referendo e sem condições, e a declaração do Tamazight como a língua nacional e oficial.

Por um Estado que garanta todos os direitos socioeconômicos e de todas as liberdades democráticas.

Contra as políticas de subdesenvolvimento, a pauperização e miserabilização do povo argelino.

A colocação de todas as funções executivas do Estado, incluídas as forças de segurança, sob a autoridade efetiva de órgãos democraticamente eleitos.

Por um urgente planejamento socioeconômico para toda Cabília.

Contra a Tamheqranit [aproximadamente, a arbitrariedade do poder] e todas as formas de injustiça e exclusão.

Pela reconsideração, caso a caso, das avaliações regionais para todos os estudantes reprovados.

Pela entrega de auxílio desemprego para todos os que recebem menos de 50% do salário mínimo.

Exigimos com urgência uma resposta oficial e pública a estas demandas.

Ulac Smah Ulac (A luta continua)[7.10]

Em 14 de junho, centenas de milhares de pessoas marcharam em Argel para representar estas demandas, mas foram dispersadas e sequestradas preventivamente pela ação policial. Embora o movimento tenha sido sempre mais forte em Cabília, nunca esteve limitado a fronteiras nacionais/culturais, e recebeu apoio em todo o país. Porém, os partidos políticos de oposição trataram de estragar o movimento reduzindo as demandas a simples medidas contra a brutalidade policial e o reconhecimento oficial da língua berbere. Mas a derrota da marcha em Argel demonstrou a debilidade do movimento fora de Cabília. Um morador de Argel disse, em relação à dificuldade da resistência na capital em contraste com as regiões berberes: “Eles têm sorte. Em Cabília, nunca estão sozinhos. Todos têm sua cultura, suas estruturas. Vivemos em meio a informantes e pôsteres do Rambo”.

Em julho e agosto, o movimento se propôs a tarefa de refletir estrategicamente sobre sua estrutura: adotaram um sistema de coordenação entre as aaruch, dairas e as comunas de wilaya, e a eleição de delegados dentro dos povoados e bairros; estes delegados formaram uma coordenação municipal que gozava de plena autonomia para agir. A coordenação de toda wilaya se compõe de dois delegados de cada uma das coordenações municipais. Em um caso típico, em Bejaia, a coordenação expulsou os sindicalistas e esquerdistas que haviam se infiltrado, e lançou uma greve geral por sua própria iniciativa. Na conclusão deste processo de reflexão, o movimento identificou como uma de suas principais debilidades a relativa falta de participação das mulheres dentro das coordenações (embora as mulheres tenham desempenhado um papel importante na insurreição e em outras partes do movimento). Os delegados resolveram incentivar uma maior participação das mulheres.

Ao longo desse processo, alguns delegados dialogaram secretamente com o governo, enquanto a imprensa se empenhava em difamar o movimento e sugerir que suas demandas mais cívicas poderiam ser aceitas pelo governo, ignorando suas demandas mais radicais. Em 20 de agosto, o movimento demonstrou seu poder dentro de Cabília com uma grande marcha de protesto seguida por uma rodada de reuniões interwilaya. A elite do país esperava que essas reuniões demonstrassem a “maturidade” do movimento e resultasse em diálogo, mas as coordenações continuaram rechaçando as negociações secretas e reafirmaram os acordos de El Kseur. Os comentaristas assinalaram que se o movimento continuasse rechaçando o diálogo enquanto empurra suas demandas e defende exitosamente sua autonomia, as pessoas tornariam-se impossíveis de governar e poderiam provocar o colapso do poder do Estado, ao menos em Cabília.

Em 10 de outubro de 2002, depois de ter sobrevivido a mais de um ano à violência e à pressão por participar na política, o movimento pôs em marcha um boicote às eleições. Para a grande frustração dos partidos políticos, as eleições foram bloqueadas em Cabília, e no resto da Argélia a participação foi notavelmente baixa.

Desde o início, os partidos políticos se viram ameaçados pela auto-organização da revolta e tentaram com todas as suas forças levar o movimento para dentro do sistema político. Porém, não foi tão fácil. A princípio, o movimento adotou um código de honra em que todos os delegados da coordenação tiveram que jurar. O código dizia:

Os delegados do movimento prometem:

Respeitar os termos enunciados no capítulo de Princípios Orientadores das coordenações das aaruch, dairas e comunas.

Honrar o sangue dos mártires continuando a luta até a realização de seus objetivos e não usar sua memória para lucrar com fins partidaristas.

Respeitar o espírito decididamente pacífico do movimento.

Não tomar nenhuma ação encaminhada para estabelecer conexões diretas ou indiretas com o poder.

Não usar o movimento com fins partidaristas para puxar votos em eleições ou com intenções de tomar o poder.

Renunciar ao movimento publicamente antes de buscar qualquer objetivo eleitoral.

Não aceitar nenhum cargo político (nomeação por decreto) nas instituições de poder.

Mostrar civismo e respeito aos demais. Dar ao movimento uma dimensão nacional.

Não burlar a estrutura adequada em matéria de comunicação.

Prestar efetiva solidariedade a qualquer pessoa que tenha sofrido alguma lesão devido à atividade como delegado do movimento.

Nota: qualquer delegado que viole o Código de Honra será denunciado publicamente.[7.11]

E de fato, os delegados que romperam sua promessa foram condenados ao ostracismo e mesmo atacados.

A pressão por incorporar o movimento continuava. Os Comitês e Conselhos anônimos começaram a emitir comunicados de imprensa denunciando a “espiral de violência” dos jovens e os “fracos cálculos políticos daqueles que seguem parasitando o debate público” e silenciando os “bons cidadãos”. Mais tarde, esse conselho em particular esclareceu que esses bons cidadãos eram “todas as personagens científicas e políticas do município capazes de dar sentido e consistência ao movimento.”[7.12]

Nos anos seguintes, o enfraquecimento do caráter antiautoritário do movimento mostrou-se um grande obstáculo para as insurreições libertárias que conseguiram uma bolha de autonomia: não é um autoritarismo inevitável que lhes arrasta, senão a constante pressão internacional sobre o movimento para institucionalizá-lo. Em Cabília, grande parte dessa pressão veio das ONGs europeias e organismos internacionais que diziam trabalhar pela paz. Exigiram que as coordenações Aaruch adotassem táticas pacíficas, que abandonassem seu boicote político e apresentassem candidatos às eleições. Desde então, o movimento ficou dividido. Muitos delegados e anciãos Aarch autonomeados dirigentes entraram na arena política, onde seus principais objetivos são reformar a Constituição da Argélia para instaurar reformas democráticas e encerrar a ditadura atual. Enquanto isso, o Movimento para a Autonomia de Cabília (MAK), segue insistindo em que o poder deve ser descentralizado e a região deve conquistar independência.

Cabília não recebeu apoio importante nem solidariedade de movimentos antiautoritários ao redor do mundo, os quais poderiam ter ajudado a diminuir a pressão pela institucionalização. Parte disto se deve ao isolamento e ao eurocentrismo de muitos destes movimentos. Simultaneamente, o movimento limitou seu alcance às fronteiras estatais e carecia de uma ideologia revolucionária explícita. Por si só, a preocupação pelo civismo e a ênfase na autonomia encontrada na cultura Amazigh são claramente antiautoritárias, mas em uma disputa contra o Estado isso dá lugar a um sem número de ambiguidades. As demandas do movimento, caso alcançadas em sua totalidade, teriam tornado o governo impraticável e, portanto, eles seriam revolucionários. Porém, não se reclama explicitamente a destruição do “poder”, e assim deixa-se muito espaço para o Estado reinserir-se no movimento. Apesar do Código de Honra proibir exaustivamente a colaboração com os partidos políticos, a ideologia cívica do movimento tornou esse tipo de colaboração inevitável ao exigir um bom governo, que, é claro, é impossível. Bom governo é o codinome para autoengano e traição.

Uma ideologia ou uma análise revolucionária assim como antiautoritária poderia ter impedido a incorporação do movimento à política tradicional e facilitado a solidariedade com movimentos em outros países. Ao mesmo tempo, os movimentos em outros países poderiam ter se posicionado pela solidariedade, o que teria contribuído para o desenvolvimento de uma compreensão mais ampla da luta. Por exemplo, devido uma série de razões históricas e culturais é provável que a insurreição na Argélia nunca identifique a si mesma como “anarquista”, porém, foi um dos exemplos mais inspiradores da anarquia que surgiu nesses anos. A maioria daqueles que se autoidentificam como anarquistas não perceberam isso e estiveram impedidos de iniciar relações de solidariedade devido um preconceito cultural contra as lutas que não adotem a estética e a herança cultural comum predominante entre os revolucionários europeus/americanos.

Os experimentos históricos de coletivização e o comunismo anarquista que tiveram lugar na Espanha em 1936 e 1937 só puderam acontecer porque os anarquistas se prepararam para derrotar os militares em uma insurreição armada, e quando os fascistas deram seu golpe de Estado, eles foram capazes de derrotá-los militarmente ao longo de grande parte do país. A fim de proteger o novo mundo que estavam construindo, organizaram-se para conter os fascistas, que eram melhor equipados, com a guerra de trincheiras, declarando: “Não passarão!”

Embora tivessem muito com o que se manter ocupados na frente interna – estabeleceram escolas, coletivizaram a terra e as fábricas, reorganizaram a vida social –, os anarquistas criaram e treinaram milícias de voluntários para lutar na linha de frente. No início da guerra, a Coluna Durruti fez os fascistas recuarem na frente de Aragão, e em novembro exerceram um importante papel ao derrotar a ofensiva fascista em Madrid. Houve muitas críticas às milícias de voluntários, a maioria vinda dos jornalistas burgueses e estalinistas que queriam substituir as milícias por um exército profissional totalmente sob seu controle. George Orwell, que lutou em uma milícia trotskista, esclareceu as coisas:

Todo mundo, desde o general até o soldado, recebia o mesmo pagamento, comia a mesma comida, usava a mesma roupa, e misturava-se em termos de completa igualdade. Se se quisesse dar uma tapinha nas costas do general ao comando da divisão e pedir-lhe um cigarro, podia fazê-lo, e ninguém acharia aquilo curioso. Teoricamente, cada milícia era uma democracia e não uma hierarquia... Tentou-se produzir dentro da milícia uma espécie de modelo de trabalho temporário de uma sociedade sem classes. É claro que não era uma igualdade perfeita, mas havia ali um esforço nesse sentido que eu nunca havia visto ou acima do que poderia achar concebível em tempos de guerra...

... Depois virou moda criticar as milícias, e então sugeriam que as falhas que se deviam à falta de capacitação e de armamento eram consequência do sistema igualitário. Na realidade, o projeto militar recém-levantado era uma multidão indisciplinada não porque os funcionários tratavam por “camarada” os soldados rasos, mas porque as tropas de novatos eram sempre uma multidão indisciplinada... os jornalistas que zombavam do sistema da milícia raramente lembravam que as milícias tinham que manter a linha, enquanto que o Exército Popular treinava na parte traseira. E é um elogio à força da disciplina “revolucionária” que as milícias se mantiveram o tempo todo no campo de batalha. Até próximo de junho de 1937, não havia nada para mantê-las ali exceto a lealdade de classe... Um Exército de conscritos nas mesmas circunstâncias – sem a sua “polícia de combate” – teria desaparecido... No início, o caos aparente, a falta geral de treinamento, o fato de que frequentemente tinha-se que argumentar durante cinco minutos antes que conseguisse que obedecessem uma ordem, me espantou e enfureceu. Tinha minhas ideias do exército britânico, e certamente as milícias espanholas eram muito diferentes dele. Mas considerando as circunstâncias, eram os melhores soldados que alguém poderia esperar.[7.13]

Orwell revelou que as milícias estavam sendo deliberadamente privadas do armamento que precisavam para a vitória por um aparato político determinado a desmanchá-los. Contudo, em outubro de 1936, as milícias anarquistas e socialistas fizeram os fascistas recuar novamente na frente de Aragão, e mantiveram a linha pelos oito meses seguintes, até que foram substituídos forçosamente pelo exército do governo.

O conflito foi longo e sangrento, cheio de perigos, oportunidades sem precedentes, e difíceis decisões. Ao longo dele, os anarquistas tiveram que demonstrar a viabilidade de seu ideal de uma verdadeira revolução antiautoritária. Experimentaram uma série de sucessos e fracassos que, considerados em conjunto, mostram o que é possível e os perigos que os revolucionários devem evitar para resistir serem as novas autoridades.

Atrás das linhas, os anarquistas e socialistas aproveitaram a oportunidade para colocar seus ideais em prática. Na área rural espanhola, os camponeses expropriaram a terra e aboliram as relações capitalistas. Não havia nenhuma política uniforme de governo e logo os camponeses estabeleceram o anarco-comunismo; empregaram uma variedade de métodos para derrubar seus senhores e criar uma nova sociedade. Em alguns lugares, os camponeses assassinaram clérigos e proprietários de terra, ainda que frequentemente isto ocorresse em represália direta contra os que haviam colaborado com os fascistas ou com o regime anterior ao entregar nomes de radicais para que fossem presos e executados. Em vários levantamentos na Espanha entre 1932 e 1934, os revolucionários haviam mostrado uma baixa predisposição a assassinar seus inimigos políticos. Por exemplo, quando os camponeses do povoado andaluz de Casas Viejas desfraldaram a bandeira vermelha e negra, a violência só foi dirigida contra os títulos de propriedade, que foram queimados. Nem os chefes políticos nem os proprietários foram atacados, eram simplesmente informados que já não tinham o poder ou a propriedade. O fato de que estes camponeses pacíficos foram massacrados posteriormente pelos militares, nas mãos dos chefes e proprietários de terras, pode ajudar a explicar suas condutas mais agressivas realizadas em 1936. E a Igreja na Espanha foi, em grande medida, uma instituição pró-fascista. Os sacerdotes foram durante muito tempo os provedores de abusivas formas de educação e os defensores do patriotismo, do patriarcado e dos direitos divinos dos proprietários de terra. Quando Franco deu seu golpe de Estado, muitos dos sacerdotes atuaram como paramilitares fascistas.

Existiu um longo debate nos círculos anarquistas sobre se a luta contra o capitalismo como sistema necessitava do ataque específico a indivíduos no poder, para além das situações de autodefesa. O fato de que aqueles no poder, quando mostraram misericórdia, viraram-se e deram aos pelotões de fuzilamento os nomes dos rebeldes para puni-los e desencorajar futuras rebeliões, ressaltou o argumento de que as elites não estão somente exercendo inocentemente um papel dentro de um sistema impessoal, senão que se envolveram especificamente na guerra contra os oprimidos. Portanto, os homicídios perpetrados pelos anarquistas e camponeses espanhóis não eram sinais de um autoritarismo inerente à luta revolucionária, mas antes uma estratégia intencional dentro de um perigoso conflito. O comportamento dos estalinistas naquele momento, que estabeleceu um grupo de polícia secreta para torturar e executar seus antigos camaradas, demonstra quão baixo podem cair as pessoas quando acreditam estar lutando por uma causa justa. Mas o exemplo de contraste oferecido por anarquistas e outros socialistas demonstra que tal comportamento não é inevitável.

Uma demonstração da ausência de autoritarismo entre os anarquistas pode ser verificada no fato de que os mesmos camponeses que se libertaram violentamente não obrigaram os camponeses individualistas a coletivizar suas terras junto com o resto da comunidade. Na maioria dos povoados vizinhos às áreas anarquistas, as propriedades individuais e as coletivas existiam ao mesmo tempo. No pior dos casos, onde um camponês anticoletivo tivesse no meio das terras de camponeses que gostariam de uni-las, a maioria geralmente lhe perguntava se trocaria sua terra por outra em outro lugar para que os demais camponeses pudessem somar seus esforços para formar um coletivo. Em um exemplo documentado, a coletivização dos camponeses ofereceu terras de melhor qualidade a cada proprietário de terra com o fim de garantir uma resolução consensual.

Nas cidades e dentro das estruturas da CNT, o sindicato de trabalhadores anarquistas com mais de um milhão de membros, a situação era mais complicada. Depois que os grupos de defesa elaborados pela CNT e a FAI (Federação Anarquista Ibérica) derrotaram a sublevação fascista na Catalunha e confiscaram as armas do seu arsenal, a CNT espontaneamente organizou os conselhos de fábrica, as assembleias de bairro, e outras organizações capazes de coordenar a vida econômica. E mais, fizeram-no de forma não-partidarista, em colaboração com outros trabalhadores de todas as tendências políticas. Apesar dos anarquistas serem a força mais poderosa na Catalunha, demonstraram muito pouco desejo de reprimir outros grupos – em diferença marcante com o Partido Comunista, os trotskista, e o nacionalismo catalão. O problema veio dos delegados da CNT. O sindicato havia falhado em estruturar-se a si mesmo de uma forma que impedisse a institucionalização. Delegados dos Comitês regionais e Nacionais não podiam ser reeleitos caso falhassem em agir como desejado, não havia nenhum costume para evitar que a mesma pessoa mantivesse posições constantes nesses comitês superiores, e as negociações ou decisões tomadas pelos comitês mais altos nem sempre tinham que ser ratificadas por todos os membros. Por outro lado, coerentemente desde o princípio, os militantes anarquistas rechaçaram as posições na Confederação, enquanto os intelectuais se concentraram nas teorias abstratas e o planejamento econômico movia os comitês centrais. Portanto, no momento da revolução em julho de 1936, a CNT tinha uma liderança estabelecida, e esta liderança foi isolada do movimento de fato.

Anarquistas como Stuart Christie e os veteranos do grupo Juventudes Libertárias que chegaram a participar na luta de guerrilhas contra os fascistas durante as décadas seguintes argumentam que estas dinâmicas separavam a liderança de facto da CNT das bases, e as aproximava dos políticos profissionais. Assim, na Catalunha, quando foram convidados para participar em uma frente popular antifascista juntamente com os partidos autoritários socialistas e republicanos, condescenderam. Para eles, tratava-se de um gesto de pluralismo e solidariedade, assim como um meio de autodefesa contra a ameaça colocada pelo fascismo.

Seu distanciamento da base lhes impediu de dar-se conta de que o poder já não estava nos edifícios do governo, senão que já estava nas ruas e onde quer que os trabalhadores tomassem as fábricas de forma espontânea. Ignorando isso, eles na realidade impediram a revolução social, desencorajando as massas armadas de perseguir a plena realização do comunismo anarquista por receio de incomodar seus novos aliados.[7.14] Em todo caso, os anarquistas nesse período enfrentaram decisões muito difíceis. Os representantes ficaram presos entre o fascismo que avançava e aliados traiçoeiros, enquanto que nas ruas havia que se escolher entre aceitar as duvidosas decisões de uma liderança autodesignada ou dividir o movimento sendo demasiado crítico.

Mas apesar do repentino poder adquirido pela CNT – que era a força política organizada dominante na Catalunha e uma força importante em outras províncias –, tanto as lideranças como a base atuaram de forma cooperativa em vez da busca sedenta de poder. Por exemplo, nos comitês antifascistas propostos pelo governo catalão, eles se permitiram por-se em nível igualitário com o relativamente fraco sindicato de trabalhadores socialistas e o partido nacionalista catalão. Uma das principais razões que a direção da CNT deu para colaborar com os partidos autoritários foi a de que a supressão do Governo na Catalunha seria equivalente à imposição de uma ditadura anarquista. Mas sua suposição de que conseguir desfazer-se do governo (ou mais precisamente, permitir que um movimento popular espontâneo o faça) significava substituí-lo pela CNT mostrou quão cegos estavam a respeito de sua própria importância. Eles falharam em dar-se conta de que a classe trabalhadora foi desenvolvendo novas formas de organização, tais como conselhos de fábrica, que podiam florescer melhor transcendendo às instituições preexistentes – seja a CNT ou o governo – em vez de ser absorvidos por elas. A direção da CNT “não percebeu o quão poderoso era o movimento popular e que seu papel como porta-vozes sindicais era agora hostil ao curso da revolução”.[7.15] Em vez de pintar um quadro otimista da história, devemos reconhecer que esses exemplos demonstram que navegar pela tensão entre a eficácia e o autoritarismo não é fácil, mas é possível.

Para começar, como as comunida-des decidem se organizar por conta própria?

Todas as pessoas são capazes de auto-organizar a si próprias – tenham elas ou não experiência no trabalho político. É claro, tomar o controle de nossas vidas pode não ser fácil a princípio, mas é iminentemente possível. Na maioria dos casos, as pessoas optam pela solução óbvia, de forma espontânea realizam grandes reuniões abertas com seus vizinhos, companheiros de trabalho ou de barricada para averiguar o que há que se fazer. Em outros casos, a sociedade se organiza através das organizações revolucionárias preexistentes.

A rebelião popular em 2001, na Argentina, viu as pessoas tomando o controle sobre suas vidas a um nível sem precedentes. Formaram assembleias em bairros, ocuparam as fábricas e as terras abandonadas, criaram redes de troca, bloquearam estradas para obrigar o governo a conceder um auxílio aos desempregados, tomaram as ruas contra a letal repressão policial, e obrigaram quatro presidentes e vários vice-presidentes e ministros da área econômica a renunciarem em rápida sucessão. Além do mais, não nomearam líderes, e a maioria das assembleias de bairro rechaçou os partidos políticos e sindicatos que tentavam cooptar estas instituições espontâneas. Dentro das assembleias, nas ocupações de fábricas e outras organizações, praticava-se o consenso e promovia-se a organização horizontal. Nas palavras de um ativista envolvido no estabelecimento de estruturas sociais alternativas em seu bairro, onde o desemprego alcançou 80%: “Estamos construindo poder, não tomando-o.”[7.16]

As pessoas formaram mais de 200 assembleias de bairro só em Buenos Aires, que envolveram milhares de pessoas. De acordo com uma enquete, uma a cada três moradoras da capital havia assistido a uma assembleia. As pessoas começaram a reunir-se em suas vizinhanças, frequentemente em torno de uma refeição comum, ou panelada popular. Rapidamente ocupavam um espaço para servir como centro social – em muitos casos, um banco abandonado. Logo a assembleia de bairro realizava reuniões semanais “sobre assuntos da comunidade, mas também sobre temas como a dívida externa, a guerra e o livre comércio”, assim como “de que forma podiam trabalhar juntos e como viam o futuro.” Muitos centros sociais eventualmente ofereciam:

um espaço de informação e às vezes computadores, livros, e várias oficinas como ioga, defesa pessoal, idiomas e habilidades básicas. Muitos também têm hortas comunitárias, clubes de crianças para depois da escola, e turmas para a educação de adultos, eventos sociais e culturais, cozinham coletivamente a comida, e se mobilizam politicamente para eles mesmos e em apoio aos piqueteiros e às fábricas ocupadas.[7.17]

As assembleias criaram grupos de trabalho, tais como os de saúde e comitês de meios de comunicação alternativos, que se reuniam adicionalmente e envolviam as pessoas mais interessadas nesses projetos. Segundo jornalistas independentes visitantes:

Algumas assembleias têm em torno de 200 pessoas participando, outras são bem menores. Uma das assembleias a qual assistimos tinha umas 40 pessoas presentes, que incluíam desde duas mães sentadas amamentando, um advogado de terno, um hippie magro com roupas folgadas, um taxista de idade avançada, um mensageiro de bicicleta com dreadlocks, até uma estudante de enfermagem. Era uma mostra de toda a sociedade argentina posta de pé em um círculo em uma esquina da rua, sob a luz alaranjada de um poste, passando um megafone e discutindo como recuperar o controle de suas vidas. De vez em quando um carro passava buzinando em sinal de apoio, e tudo isto acontecia entre as 20h e meia-noite de uma quarta-feira![7.18]

Logo, as assembleias de bairro estavam se coordenando a nível da cidade. Uma vez por semana, as assembleias enviavam porta-vozes à plenária dos bairros (interbarrio), que reunia milhares de pessoas de toda a cidade para propor projetos conjuntos e planos de protesto. Nessa plenária, as decisões eram tomadas com uma maioria de votos, mas a estrutura não era coercitiva pois as decisões não eram obrigatórias – elas só se realizavam se as pessoas tinham o entusiasmo para fazê-las. Consequentemente, se um grande número de pessoas na interbarrio votava em favor de abster-se em uma proposta concreta, a proposta era reelaborada para que recebesse mais apoio.

A estrutura da assembleia se expandiu rapidamente a níveis provinciais e nacionais. Dentro de um prazo de dois meses desde o começo da sublevação, a “Assembleia Nacional de Assembleias” estava propondo que o governo fosse substituído pelas assembleias. Isso não ocorreu, mas no final, o governo da Argentina se viu obrigado a fazer concessões populares – anunciou que não pagariam sua dívida internacional, uma ocorrência sem precedentes. O Fundo Monetário Internacional estava tão assustado com a rebelião popular e o apoio dado pelo movimento antiglobalização em todo o mundo, e tão envergonhado pelo colapso do seu dileto exemplo, que teve que aceitar esta surpreendente derrota. O movimento na Argentina exerceu um papel fundamental no cumprimento de um dos principais objetivos dos movimentos antiglobalização, que foi a derrota do FMI e do Banco Mundial. Enquanto escrevo isto, estas instituições estão desacreditadas e em bancarrota. Nesse meio tempo, a economia argentina se estabilizou e a maior parte da indignação popular esmoreceu. No entanto, algumas das assembleias que conseguiram um forte enraizamento durante a revolta continuam operando sete anos depois. Da próxima vez que o conflito vier à superfície, essas assembleias se manterão na memória coletiva como as sementes de uma sociedade futura.

A cidade de Gwangju (ou Kwangju), na Coreia do Sul, libertou-se durante seis dias em maio de 1980, depois de protestos estudantis e dos trabalhadores contra a ditadura militar, os quais se intensificaram em resposta à declaração da lei marcial. Os manifestantes incendiaram a estação de televisão estatal e se apoderaram de armas, rapidamente organizaram um “exército de cidadãos” que obrigou a saída da polícia e dos militares. Tal como em outras rebeliões urbanas, inclusive as de Paris em 1848 e 1968, em Budapeste em 1919, e em Beijing em 1989, os estudantes e os trabalhadores de Gwangju formaram rapidamente assembleias abertas para organizar a vida na cidade e comunicar-se com o mundo exterior. Os participantes da revolta falaram de um complexo sistema de organização desenvolvido de forma espontânea em um curto período de tempo – e sem os líderes dos principais grupos estudantis e organizações de protesto, que já haviam sido presos. Seu sistema incluía um Exército Cidadão, um Centro de Operações, um Comitê Cidadão-Estudantil, um Comitê de Planejamento, e departamentos locais de defesa, investigação, informação, serviços públicos, enterro dos mortos, e outros serviços.[7.19] Foi necessária uma invasão em grande escala por parte das unidades especiais militares da Coreia com o apoio dos EUA para esmagar a rebelião e evitar que ela se estendesse. Várias centenas de pessoas morreram na operação. Inclusive seus inimigos descreveram a resistência armada como “feroz e bem organizada”. A combinação de organização espontânea, assembleias abertas, e comitês com um enfoque organizacional específico deixou uma profunda impressão, que mostra a rapidez com que a sociedade pode mudar uma vez que rompe com o hábito de obedecer ao governo.

Na Revolução Húngara de 1956, o poder do Estado foi derrubado depois que as massas de manifestantes estudantis se armaram. Grande parte do país ficou nas mãos das pessoas, que teve que organizar a economia e formar milícias rapidamente para repelir a invasão soviética. Inicialmente, cada cidade se organizou de forma espontânea, mas as formas de organização que surgiram foram muito similares, talvez por terem se desenvolvido sob a mesma cultura e contexto político. Os anarquistas húngaros foram influentes no novo Conselho Revolucionário que federaram para coordenar a defesa e tomaram parte nos conselhos de trabalhadores que ocuparam as fábricas e as minas. Em Budapeste, os velhos políticos formaram um novo governo e tentaram enquadrar esses conselhos autônomos em uma democracia multipartidária. Porém, a influência do governo não se estendia para além da capital nos dias que antecederam a segunda invasão soviética que obteve êxito em esmagar o levantamento. A Hungria não tinha um grande movimento anarquista naquele momento, mas a popularidade dos diversos conselhos mostra quão contagiosas são as ideias anarquistas uma vez que as pessoas decidem se organizar. E sua capacidade de manter o país funcionando e derrotar a primeira invasão do Exército Vermelho mostra a eficácia dessas formas de organização. Não havia necessidade de colocar um modelo institucional complexo para que as pessoas deixassem para trás seu governo autoritário. Tudo o que precisavam era a determinação de reunir-se em seções públicas para decidir seus futuros, e a confiança em si mesmos de que podiam fazer a coisa funcionar, mesmo que no início não tivessem clareza sobre como fazer.

Como funcionarão as reparações de opressões passadas?

Se o governo e o capitalismo desaparecessem da noite para o dia, as pessoas ainda estariam divididas. Os legados da opressão geralmente determinam onde vivemos, nosso acesso à terra, à água, a um meio ambiente limpo e à infraestrutura necessária; assim como o nível de violência e trauma em nossas comunidades. As pessoas são amplamente reconhecidas em diferentes graus de privilégios sociais de acordo com a cor da pele, sexo, nacionalidade, classe econômica e outros fatores. Caso os explorados da Terra se revoltem e apoderarem-se das riquezas de nossa sociedade, o que exatamente herdariam? Terra saudável, água limpa e hospitais, ou solos esgotados, depósitos de lixo, e tubulações de chumbo? Em grande medida, depende da cor da pele e da nacionalidade.

Uma parte essencial da revolução anarquista é a solidariedade global. Solidariedade é o completo oposto de caridade. Ela não depende de uma desigualdade entre quem doa e quem recebe. Como todas as coisas boas da vida, a solidariedade se compartilha. Logo, destrói as categorias de doador e receptor e não ignora nem valoriza quaisquer dinâmicas desiguais de poder que possam existir entre os dois. Não pode haver verdadeira solidariedade entre um revolucionário em Illinois e um revolucionário em Mato Grosso se eles ignoram que a casa de um se constrói com madeira roubada das terras do outro, arruinando o solo e deixando ele e sua comunidade com menos possibilidades para o futuro.

A anarquia deve se fazer totalmente incompatível com o colonialismo, seja um colonialismo que continua até a atualidade com novas formas ou um legado histórico que tentamos ignorar. Portanto, uma revolução anarquista também deve basear-se nas lutas contra o colonialismo. Isso inclui as pessoas no Sul Global, que estão tentando reverter o neoliberalismo, nações indígenas que lutam por recuperar suas terras, e comunidades negras que seguem lutando para sobreviver às sequelas da escravidão. As pessoas que têm sido privilegiadas pelo colonialismo – as brancas e todas as que vivem na Europa ou em um Estado de colonizadores europeus (os EUA, Canadá, Austrália) – deveriam apoiar política, cultural e materialmente essas outras lutas. Devido às rebeliões antiautoritárias terem conseguido um alcance limitado até agora (e as reparações significativas teriam que ser em escala mundial devido à globalização da opressão), não há exemplos que demonstrem plenamente como seriam essas reparações. No entanto, alguns pequenos exemplos mostram que a vontade de fazer as reparações existe, e que os princípios anarquistas da ajuda mútua e ação direta podem conseguir reparações com maior eficácia que os governos democráticos – que se negam a reconhecer a magnitude dos crimes do passado e suas vergonhosas meias medidas. O mesmo ocorre com os governos revolucionários, que geralmente herdam e encobrem a opressão dentro dos Estados que tomam – como demonstra a frieza com que os governos da URSS e China tomaram seus lugares nas cabeças de impérios raciais pretendendo ser anti-imperialistas.

No estado de Chiapas, no sul do México, os Zapatistas se levantaram em 1994 e ganharam a autonomia de dezenas de comunidades indígenas. Nomeada em honra ao camponês revolucionário mexicano Emiliano Zapata e adotando uma mescla de ideias indígenas, marxistas e anarquistas, os zapatistas formaram um exército guiados pelos populares “encuentros”, ou reuniões, para lutar contra o capitalismo neoliberal e as contínuas formas de exploração e genocídio infligidas pelo Estado mexicano. Para levantar essas comunidades da pobreza após seguidas gerações de colonialismo, e para ajudar a contra-atacar os efeitos dos bloqueios militares e a perseguição, os zapatistas pediram apoio. Milhares de voluntárias e pessoas com experiência técnica vieram de todo o mundo para ajudar as comunidades zapatistas a criar sua infraestrutura, e outras milhares continuaram apoiando os zapatistas através do envio de doações em dinheiro, equipamentos ou compra de bens de comércio justo[7.20] produzidos no território autônomo. Essa ajuda é dada em espírito de solidariedade; ainda mais importante, realizou-se nos próprios termos zapatistas. Isso contrasta com o modelo da caridade cristã, onde os objetivos do doador privilegiado são impostos aos receptores pobres, de quem se espera que fiquem agradecidos.

Os camponeses na Espanha haviam sido oprimidos ao longo de séculos de feudalismo. A revolução parcial em 1936 lhes permitiu recuperar o privilégio e a riqueza que os opressores haviam roubado de seu trabalho. Se reuniram em assembleias camponesas nos povoados libertados para decidir como redistribuir os territórios confiscados dos grandes proprietários de terra, para que os que haviam trabalhado como servos virtuais finalmente poderiam ter acesso à terra. Diferentemente da farsa das Comissões de Reconciliação dispostas na África do Sul, Guatemala e outros países que protegem os opressores de qualquer real consequências contra eles e, sobretudo, preservam a distribuição desigual do poder e o privilégio que é o resultado direto de opressões passadas, essas assembleias empoderaram os camponeses espanhóis para decidir por si mesmos a forma de recuperar sua dignidade e igualdade. Além de redistribuir a terra, também tomaram as igrejas pró-fascistas e vilas de luxo para serem utilizadas como centros comunitários, armazéns, escolas, e clínicas. Em cinco anos de reforma agrária instituída pelo Estado, o governo republicano da Espanha redistribuiu 876.327 hectares de terra; em somente umas poucas semanas de revolução, os camponeses tomaram para si mesmos 5.692.202 hectares de terra.[7.21] Essa cifra é ainda mais significativa se considerarmos que a essa redistribuição se opuseram republicanos e socialistas, e que só se deu nas partes do país que não eram controladas pelos fascistas.

Como aparecerá um ethos comunitário, antiautoritário e ecológico?

No longo prazo, uma sociedade anarquista funcionará melhor se ela desenvolver uma cultura que valoriza a cooperação, a autonomia, e os comportamentos ambientalmente sustentáveis. A estruturação de uma sociedade pode fomentar ou obstaculizar esse espírito, tal como nossa sociedade atual recompensa a competição, as condutas opressivas e contaminantes e desencoraja as antiautoritárias. Em uma sociedade não-coercitiva, as estruturas sociais não podem obrigar as pessoas a viverem de acordo com os valores anarquistas: elas têm que querer fazer isso, e pessoalmente identificar-se com esses valores. Felizmente, o ato da rebelião contra a cultura capitalista autoritária pode por si mesma popularizar os valores antiautoritários.

O antropólogo e anarquista David Graeber escreve sobre os Tsimihety em Madagascar, que se rebelaram e se retiraram da dinastia Maroansetra. Mesmo um século depois dessa rebelião, os Tsimihety “estão marcados pelas práticas e a organização social resolutamente igualitárias”, a tal ponto que isso define a sua própria identidade.[7.22] O novo nome da tribo escolhido por eles mesmos, Tsimihety, significa “os que não cortam o pelo”, em referência ao costume dos submetidos pelos Maroansetra de cortar-se o cabelo como um sinal de submissão.

Durante a Guerra Civil espanhola em 1936, foram realizadas uma série de transformações culturais. No campo, a juventude politicamente ativa desempenhou um importante papel desafiando costumes conservadores e induzindo suas vilas a adotar uma cultura anarco-comunista. A posição das mulheres em particular começou a mudar rapidamente. Elas organizaram o grupo anarco-feminista Mujeres Libres para ajudar alcançar as metas da revolução e assegurar que as mulheres gozariam de um lugar na vanguarda da luta. As mulheres lutaram no fronte, literalmente, unindo-se às milícias anarquistas para manter a linha contra os fascistas. Mujeres Libres organizava cursos de armas de fogo, escolas, programas de cuidados com crianças e grupos sociais só de mulheres para ajudá-las a adquirir as habilidades necessárias para participar na luta como iguais. As membras do Mujeres Libres discutiram com seus companheiros masculinos, enfatizando a importância da libertação da mulher como uma parte necessária de qualquer luta revolucionária. Não era uma preocupação menor a ser tratada depois da derrota do fascismo.

Nas cidades da Catalunha, as restrições sociais sobre as mulheres diminuíram consideravelmente. Pela primeira vez na Espanha, as mulheres podiam caminhar sozinhas pela rua sem um acompanhante – para não mencionar que muitas delas caminhavam pelas ruas vestidas com uniformes da milícia e portando armas. Mulheres anarquistas como Lucía Sánchez Saornil escreveram sobre o quão empoderador foi para elas transformar a cultura que as havia oprimido. Os observadores masculinos, de George Orwell a Franz Borkenau, também ressaltaram a mudança nas condições das mulheres na Espanha.

Na revolta impulsionada pelo colapso econômico da Argentina em 2001, a participação nas assembleias populares ajudou as pessoas apolíticas a construir uma cultura antiautoritária. O movimento piqueteiro, outra forma de resistência popular, exerceu uma grande influência na vida e na cultura de muitos dos desempregados. Os piqueteiros eram pessoas desempregadas que com seus rostos mascarados montavam piquetes, fechando as estradas para cortar o comércio e ganhar influência para demandas como comida dos supermercados ou auxílios para desempregados. Além dessas atividades, os piqueteiros também auto-organizaram uma economia anticapitalista, incluindo escolas, grupos de meios de comunicação, lojas que distribuíam roupas, padarias, clínicas e grupos para consertar as casas das pessoas e construir estruturas tais como redes de esgoto. Muitos dos grupos piqueteiros estavam afiliados com o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD). Seu movimento já havia se desenvolvido muito antes da massiva retirada de fundos feita pela classe média em dezembro de 2001, e em muitos aspectos estavam na vanguarda da luta na Argentina.

Dois voluntários do Indymedia [Centro de Mídia Independente], que viajaram dos EUA e da Grã-Bretanha para a Argentina para documentar a rebelião para os países de língua inglesa, passaram um tempo com um grupo no bairro Admirante Brown ao sul de Buenos Aires.[7.23] Os membros desse grupo em particular, similar a muitos dos piqueteiros no MTD, só recentemente haviam sido motivados ao ativismo, por causa do desemprego. Mas suas motivações não eram puramente materiais. Por exemplo, eles frequentemente realizaram eventos culturais e educativos. Ambos ativistas de Indymedia relataram uma oficina realizada em uma padaria do MTD em que os membros do coletivo discutiram as diferenças entre uma padaria capitalista e outra anticapitalista. “Nós produzimos para nossos vizinhos... e para ensinar a fazer coisas novas, para aprender a produzir para nós mesmos”, explicou uma mulher de uns cinquenta anos. Um jovem com uma camiseta do Iron Maiden complementou: “Nós produzimos para que todos possam viver melhor”.[7.24] O mesmo grupo operava um Ropeiro (uma loja de roupas), e muitos outros projetos assim foram dirigidos por voluntários e dependiam de doações, embora todos na área fossem pobres. Apesar desses desafios, abriam duas vezes ao mês para dar roupas gratuitamente às pessoas que não podiam pagá-las. No resto do tempo, os voluntários reformavam a roupa velha que era descartada. Na ausência dos motivos que impulsionam o sistema capitalista, as pessoas claramente se sentiam orgulhosas de seu trabalho, mostrando aos visitantes como restauravam a roupa apesar da escassez de materiais.

O ideal comum entre os piqueteiros inclui um firme compromisso com formas não-hierárquicas de organização e a participação de todos os membros, jovens e velhos, em seus debates e atividades. As mulheres eram frequentemente as primeiras a irem aos piquetes e chegaram a ter um considerável poder dentro do movimento piqueteiro. Dentro desses organismos autônomos muitas mulheres ganharam, pela primeira vez em suas vidas, a oportunidade de participar em decisões de grande escala ou assumir outros papéis dominados por homens. Na padaria em particular, na realização da oficina descrita anteriormente, uma jovem mulher estava responsável pela segurança, outro papel tradicionalmente masculino.

Ao longo da rebelião de 2006 em Oaxaca, assim como antes e depois, a cultura indígena foi uma fonte de resistência. Por mais que eles dessem o exemplo de comportamentos de cooperação antiautoritários e ecologicamente sustentáveis antes do colonialismo, os povos indígenas na resistência de Oaxaca chegaram a valorizar e enfatizar as partes de sua cultura que contrastam com o sistema que valoriza a propriedade em detrimento da vida, que incentiva a competição e a dominação, e que explora o meio ambiente até a extinção. Sua capacidade para praticar uma cultura antiautoritária e ecológica – trabalhando conjuntamente em um espírito de solidariedade e nutrindo-se da pequena quantidade de terra da que dispunham – potencializou a resistência e, portanto, suas possibilidades de sobrevivência. Assim, a resistência ao capitalismo e ao Estado é por vezes um meio de proteger as culturas indígenas e um cadinho que forja um forte ethos antiautoritário. Muitas das pessoas que participaram da rebelião não eram indígenas, mas foram influenciadas e inspiradas pela cultura indígena. Portanto, o ato de rebelar-se, por si só, permitiu às pessoas eleger valores sociais e formar sua própria identidade.

Antes da rebelião, o empobrecido estado de Oaxaca vendeu sua cultura indígena como uma mercadoria para atrair turistas e criar um negócio. A Guelaguetza, uma importante reunião de culturas indígenas, havia se convertido em uma atração turística patrocinada pelo Estado. Porém, durante a rebelião em 2006, o Estado e o turismo foram jogados para o escanteio, e em julho os movimentos sociais organizaram a Guelaguetza do Povo, não para vendê-la aos turistas, senão para eles mesmos desfrutarem. Após bloquearem exitosamente o evento comercial armado para os turistas, centenas de estudantes da cidade de Oaxaca e pessoas dos povoados em todo o estado começaram a organizar seu próprio evento. Confeccionaram trajes e praticaram danças e canções das sete regiões de Oaxaca. Ao final, a Guelaguetza Popular foi um grande sucesso. Todo mundo assistiu de forma gratuita e o lugar estava cheio. Havia mais danças tradicionais como nunca se havia produzido nas Guelaguetza comerciais. Enquanto anteriormente o evento havia sido produzido pelo dinheiro – a maioria do qual era monopolizado pelos patrocinadores e o governo –, agora ele se convertera em um dia para confraternizar, tal como havia sido tradicionalmente. No coração de um movimento anticapitalista, majoritariamente indígena, ele foi uma festa, uma celebração dos valores que mantêm o movimento unido, e um renascimento das culturas indígenas que estavam sendo aniquiladas ou reduzidas a um exotismo comercial.

Enquanto a Guelaguetza foi reclamada como parte da cultura indígena em apoio a uma rebelião anticapitalista e a sociedade libertadora que tratavam de criar, outra festa tradicional modificou-se para servir o movimento. Em 2006, o Día de los Muertos, uma festividade mexicana que sincretiza a espiritualidade indígena com influências católicas, coincidiu com um violento ataque governamental contra o movimento. Justo antes do 1º de novembro, as forças policiais e paramilitares mataram uma dúzia de pessoas, ao que os mortos estavam ainda frescos nas mentes de todos. Grafiteiros que haviam desempenhado um papel importante no movimento em Oaxaca cobriram as paredes com mensagens muito antes das pessoas ocuparem as emissoras de rádio para darem-se a si mesmos uma voz. Quando o Día de los Muertos e a forte repressão do governo coincidiram em novembro, esses artistas tomaram a frente adaptando a festa para homenagear aos mortos e honrar a luta. Cobriram as ruas com os tradicionais tapetes – coloridos murais de areia, gesso e flores –, mas desta vez os tapetes continham mensagens de resistência e esperança, ou retratavam os nomes e rostos de todas as pessoas que haviam morrido. As pessoas também fizeram esculturas de esqueletos e altares para cada pessoa assassinada pela polícia e pelos paramilitares. Um dos artistas grafiteiros, Yescka, o descreveu assim:

Neste ano, no Día de los Muertos, as festas tradicionais assumiram novos significados. A presença intimidativa das tropas da Polícia Federal encheu o ar – um ambiente de tristeza e caos pairava sobre a cidade. No entanto, temos conseguido superar nossos medos e nossas perdas. As pessoas queriam seguir com a tradição, não só por seus antepassados, mas também por todos os que morreram no movimento nos últimos meses.

Ainda que soe um pouco contraditório, o Día de los Muertos é quando há mais vida em Oaxaca. Há carnavais, e as pessoas se vestem com diferentes trajes, tais como demônios ou esqueletos cheios de penas coloridas. Desfilam pelas ruas dançando ou criando obras de teatro de acontecimentos cômicos cotidianos; este ano com um tom político-social.

Não deixamos que as forças da Polícia Federal e sua guarda detivessem nossa celebração ou nossa dor. A via turística inteira no centro da cidade, Macedonio Alcalá, estava cheia de vida. A música de protesto soava e a gente dançava e via a criação de nossos famosos murais de areia, chamados tapetes.

Os dedicamos às pessoas mortas no movimento. Qualquer um que quisesse, podia juntar-se para contribuir com os mosaicos. A mescla de cores expressava nossos sentimentos misturados de repressão e liberdade, alegria e tristeza; de ódio e amor. As obras de arte e os cantos que impregnam as ruas criaram um cenário inesquecível, que em última instância, transforma nossa tristeza em gozo.[7.25]

Enquanto os festivais tradicionais e obras de arte desempenharam um papel no desenvolvimento de uma cultura libertadora, a luta mesma, especialmente as barricadas, construíram um ponto de encontro onde a alienação se acabava e os vizinhos construíam novas relações. Uma mulher descreveu sua experiência:

Encontras todo tipo de pessoas nas barricadas. Muita gente nos diz que se conheceram nas barricadas. Apesar de serem vizinhos, não se conheciam antes. “Nunca falei com meu vizinho antes porque não pensei que o agradasse, mas agora que estamos na barricada juntos, é um compañero.” Assim, as barricadas eram não só uma barreira para o tráfego, senão que se converteram em espaços onde os vizinhos podiam conversar e as comunidades podiam conhecer-se. As barricadas se converteram em uma via na qual as comunidades se empoderavam.[7.26]

Ao longo da Europa, dezenas de vilas autônomas têm construído uma vida fora do capitalismo. Sobretudo na Itália, França e Espanha, esses povoados existem fora do controle estatal regular e com pouca influência da lógica de mercado. Às vezes comprando terras baratas, mas frequentemente ocupando vilas abandonadas, essas novas comunidades autônomas criam a infraestrutura para uma vida libertária e comunitária, e a cultura que a acompanha. Essas novas culturas substituem a família nuclear por uma família muito mais ampla, inclusiva e flexível, unida pela afinidade e pelo amor consensual em vez do amor por laço sanguíneo e pela propriedade. Elas destroem a divisão do trabalho por gênero, enfraquecem a segregação pela idade e hierarquia, e criam valores e relações comunais e ecológicas.

Pode-se encontrar uma rede particularmente notável de aldeias autônomas nas montanhas ao redor de Itoiz, em Navarra, parte do País Basco. A mais antiga delas, Lakabe, vem sendo ocupada há vinte e oito anos até este escrito, e é o lar de umas trinta pessoas. Projeto do amor, Lakabe desafia e transforma a estética tradicional de pobreza das zonas rurais. Os pisos e corredores são charmosos mosaicos de pedra e telha, e a casa mais nova que encontra-se ali poderia passar por um refúgio de luxo de um milionário – exceto pelo fato que foi construída por pessoas que vivem ali, e planejada em harmonia com o meio ambiente para receber luz solar e proteger-se do frio. Lakabe possui uma padaria comunal e um refeitório comunitário, que em dias normais é o local de deliciosos banquetes onde toda a vila se reúne para comer junto.

Aritzkuren, outro dos povoados aos arredores de Itoiz, traz certa estética que representa outra ideia da história. Há treze anos, uma porção de pessoas ocupou o povoado, que havia sido abandonado há mais de cinquenta anos. Desde então, se tem construído todas as suas habitações dentro das ruínas da antiga aldeia. Metade de Aritzkuren ainda são ruínas, decompondo-se lentamente no bosque em uma colina à uma hora da estrada pavimentada mais próxima. As ruínas são uma recordação da origem e fundação das partes vivas da aldeia, e que servem como espaços de armazenamento para os materiais de construção que serão utilizados para renovar o resto dela. O novo sentido da história que vive em meio a estas pedras empilhadas não é nem linear nem amnésico, mas orgânico – onde o passado é a casca do presente e o adubo do futuro. Também é pós-capitalista, sugerindo uma volta à terra e a criação de uma nova sociedade nas ruínas da antiga.

Uli, outro dos povoados abandonados e reocupados, se dissolveu depois de mais de uma década de existência autônoma, mas a taxa de êxito de todos os povoados juntos é estimulante, com cinco de seis ainda muito fortes. O “fracasso” de Uli demonstra outra das vantagens da organização anarquista: um coletivo pode dissolver-se em vez de permanecer preso para sempre em um erro ou sufocando as necessidades individuais para perpetuar uma coletividade artificial. Esses povoados em suas encarnações anteriores, um século antes, se dissolveram somente pela catástrofe econômica da industrialização capitalista. Do contrário, seus membros rapidamente teriam se mantido unidos por um sistema de parentesco rigidamente conservador imposto pela igreja.

Em Aritzkuren, como em outros povoados autônomos em todo o mundo, a vida é ao mesmo tempo trabalhosa e relaxada. Os moradores precisam construir toda sua infraestrutura por si mesmos e criar a maioria das coisas que necessitam com suas próprias mãos. Assim, há muito trabalho por fazer. As pessoas se levantam pela manhã e trabalham em seus próprios projetos, ou senão se reúnem para um esforço coletivo decidido em uma reunião anterior. Em seguida, vem um grande almoço que uma pessoa prepara para todo mundo de forma rotativa. As pessoas têm a tarde toda para descansar, ler, ir à cidade, trabalhar no jardim, ou consertar um edifício. Alguns dias absolutamente ninguém trabalha. Se uma pessoa decide deixar passar um dia, não há recriminações, porque há reuniões onde as responsabilidades se distribuem uniformemente. Nesse contexto, que se caracteriza por uma estreita relação com a natureza, pela liberdade individual inviolável se mistura com uma vida social coletiva, e a fusão entre trabalho e prazer, o povoado de Aritzkuren não só criou um novo estilo de vida, senão uma ética compatível com a vida em uma sociedade anarquista.

A escola que está sendo construída em Aritzkuren é um poderoso símbolo disso. Há várias crianças vivendo em Aritzkuren e em outras vilas. Seu meio ambiente já oferece uma grande quantidade de oportunidades de aprendizagem, mas há muitos desejos de se criar um ambiente educativo formal e a oportunidade de empregar métodos alternativos de ensino em um projeto que pode ser acessível às crianças de toda a região.

Como indica a escola, os povoados autônomos rompem o estereótipo da comuna hippie como uma tentativa de evasão e de criar uma utopia em um microcosmo em vez de mudar o mundo existente. Apesar de seu isolamento físico, esses povoados estão muito envolvidos com o mundo exterior e com os movimentos sociais que lutam por mudá-lo. Os moradores compartilham suas experiências na criação de coletivos sustentáveis com outros anarquistas e com coletivos autônomos em todo o país. Muitas pessoas se dividem a cada ano entre o povoado e a cidade, equilibrando uma existência mais utópica com a participação nas lutas em curso. Os povoados também servem como refúgio para os ativistas que se permitem um descanso da vida da cidade. Muitos dos povoados realizam projetos que os mantêm envolvidos nas lutas sociais; por exemplo, um povoado autônomo na Itália, oferece um ambiente tranquilo para um grupo que traduz textos radicais. Do mesmo modo, os povoados ao redor de Itoiz, por vinte anos tem sido uma parte importante da resistência contra o funcionamento da represa hidroelétrica dali.

Durante uns dez anos, a partir da ocupação de Rala, próximo de Aritzkuren, os povoados autônomos ao redor de Itoiz criaram uma rede, trocando ferramentas, materiais, experiências, alimentos, sementes e outros recursos. Eles se reúnem periodicamente para discutir a ajuda mútua e os projetos comuns; os moradores de um povoado vão até o outro para comer, conversar ou oferecer uma dúzia mais de mudas de framboesas. Também participam nas reuniões anuais que reúnem as comunidades autônomas de toda a Espanha para discutir o processo de construção de coletivos sustentáveis. Nestas, cada grupo apresenta um problema que tem sido incapaz de resolver, como o rodízio de responsabilidades ou pôr em prática as decisões por consenso. Logo, cada um deles se oferece como mediador enquanto que outro coletivo discute seu problema – preferencialmente um problema que o grupo mediador tem experiência em resolver.

Os povoados de Itoiz são notáveis, mas não são os únicos. Ao leste, nos Perineus Aragonenses, as montanhas de La Solana contêm quase vinte povoados abandonados. Ao escrever estas linhas, sete destes povoados foram reocupados. A rede entre eles se encontra ainda em uma etapa informal, e muitos dos povoados estão habitados somente por algumas pessoas em uma etapa temporária, no processo de renovação dos mesmos; mas muitas dessas pessoas estão mudando para ali a cada ano e em pouco tempo poderá ser uma constelação de ocupações rurais mais ampla que Itoiz. Muitos destes povoados mantêm fortes conexões com o movimento okupa em Barcelona, existindo um convite aberto às pessoas para visitá-los, ajudá-los, ou mesmo mudarem-se para lá.

Sob certas circunstâncias, uma comunidade também pode obter a autonomia que precisa para construir uma nova forma de vida através da compra de terras, em vez de ocupá-la. Porém, apesar de ser mais seguro, esse método cria pressões adicionais para produzir e ganhar dinheiro para sobreviver, ainda que estas pressões não sejam fatais. Longo Maï é uma rede de cooperativas e povoados autônomos que começou em Basileia, Suíça, em 1972. O nome no idioma provençal significa “que dure bastante”, e até agora elas têm cumprido com seu epônimo. As primeiras cooperativas de Longo Maï foram as granjas Le Pigeonnier, Grange Neuve, e San Hipólito, localizadas próximas à aldeia Limans em Provença. Ali vivem 80 adultos e muitas crianças em 300 hectares de terra, onde se pratica a agricultura, a jardinagem, e o pastoreio. Eles mantêm 400 ovinos, aves de curral, coelhos, abelhas e cavalos de tração. Também funciona uma oficina mecânica, uma serralheria, uma oficina de carpintaria e um estúdio de têxteis. A estação de rádio alternativa Radio Zinzine tem transmitido da cooperativa durante 25 anos, completados em 2007. Centenas de jovens passaram pela cooperativa, ajudando e aprendendo novas habilidades, e frequentemente ganhando seu primeiro contato com a vida comunitária ou a agricultura não-industrial e o trabalho artesanal.

Desde 1976, Longo Maï tem uma cooperativa de tecelagem em Chantemerle, nos Alpes franceses. Usando tintas naturais e a lã de 10.000 ovelhas, em sua maioria locais, ela produz suéteres, camisas, lençóis, e tecido para a venda direta. A cooperativa estabeleceu o sindicato ATELIER, uma rede de criadores e trabalhadores da lã. A fábrica produz sua própria eletricidade com energia hidráulica em pequena escala.

Também na França, próximo de Arles, a cooperativa Mas de Granier se encontra num terreno de 20 hectares. Ela cultiva campos de feno e oliveiras, e nos anos bons produzem azeite de oliva suficiente tanto para manter-se como também para outras cooperativas de Longo Maï. Ela dedicada três hectares às verduras orgânicas, entregue semanalmente a pessoas cadastradas da comunidade em geral. Algumas das verduras são enlatadas em conservas na própria fábrica da cooperativa. Também cultivam grãos para o pão, as massas e a alimentação dos animais.

Na região de Transkarpaty na Ucrânia, a Zeleniy Hai, um pequeno grupo da Longo Maï, nasceu depois da queda da União Soviética. Criaram uma escola de idiomas, uma oficina de carpintaria, um rancho de gado, e uma fábrica de laticínios. Também há um grupo de música tradicional. A rede Longo Maï usou seus recursos para ajudar a formar uma cooperativa na Costa Rica, em 1978, que entregou terra a 400 camponeses sem-terra que fugiam da guerra civil na Nicarágua, o que lhes permitiu criar uma nova comunidade e produzir o próprio sustento. Também há cooperativas Longo Maï na Alemanha, Áustria e Suíça, produzindo vinhos, construindo edifícios com materiais locais e ecológicos, tocando escolas e muito mais. Na cidade de Basileia, o grupo mantém um edifício de oficinas que serve como ponto de coordenação, centro de informação, e um centro de visitantes.

A convocatória para a rede de cooperação, redigida em Basileia em 1972, diz em um trecho:

O que você espera de nós? Que nós, para não sermos excluídos, nos submetamos à injustiça e às loucas compulsões desse mundo, sem esperanças ou expectativas? Nos negamos a continuar essa batalha impossível de ganhar.

Nos negamos a jogar um jogo que já está perdido, um jogo cujo único resultado é nossa criminalização. Essa sociedade industrial, sem dúvida, cava sua própria tumba, e não queremos participar disso.

Preferimos buscar uma forma de construir nossas próprias vidas, de criar nossos próprios espaços, algo para o que não há lugar dentro desse cínico mundo capitalista. Podemos encontrar espaço suficiente nas áreas desfavorecidas econômica e socialmente, de onde os jovens fogem em cifras crescentes, e só ficam as pessoas que não têm outra opção.[7.27]

Como a agricultura capitalista é cada vez mais incapaz de alimentar o mundo à raiz das catástrofes relacionadas com o clima e a contaminação, parece quase inevitável que um grande número de pessoas deva voltar à terra para criar formas sustentáveis e localizadas de agricultura. Ao mesmo tempo, os habitantes das cidades precisam se conscientizar sobre de onde vem sua água e comida, e uma forma de fazer isso é visitando e ajudando os povoados.

Uma revolução que são muitas revoluções

Muitas pessoas pensam que as revoluções tragicamente sempre vão da esperança à traição. O resultado final das revoluções na Rússia, China, Argélia, Cuba, Vietnã e outros países foi a criação de novos regimes autoritários, alguns piores que seus predecessores, outros apenas diferentes. Contudo, as grandes revoluções do século XX foram realizadas por pessoas autoritárias com a intenção de criar novos governos, não de aboli-los. Agora está óbvio, se não esteve antes, que os governos sempre manterão ordens sociais opressivas.

Mas a história está cheia de evidências de que as pessoas podem derrubar seus opressores sem substituí-los. Para isso, precisam da referência de uma cultura igualitária, ou de objetivos, estruturas e meios explicitamente antiautoritários, e um ethos igualitário. Um movimento revolucionário deve rechaçar todos os governos e reformas possíveis, para que não possam ser restaurados, como muitos dos rebeldes em Cabília e Albânia. É preciso se organizar flexivelmente e de forma horizontal, o que garante que o poder não será permanentemente delegado aos líderes, ou ancorados em uma organização formal, como aconteceu com a CNT na Espanha. Por último, deve-se considerar que todas as insurreições envolvem diversas estratégias e participantes. Essa multidão variada se beneficiará a partir da comunicação e coordenação, mas não deve ser homogeneizada ou controlada de um ponto central. Essa normalização e centralização não são nem desejáveis nem necessárias; as lutas descentralizadas, como as empreendidas pelos Lakota ou as okupas de Berlim e Hamburgo, demonstraram ser capazes de derrotar as lentas forças do Estado.

Um novo ethos pode surgir no processo de resistência, já que encontramos causa comum com estranhos e descobrimos nossas próprias forças. Também pode ser nutrido pelos ambientes que construímos para nós mesmos. Um verdadeiro ethos libertador não é simplesmente um novo conjunto de valores, mas um novo enfoque para a relação entre o indivíduo e sua cultura; ele requer que as pessoas deixem de ser receptores passivos da cultura para se tornar participantes na sua criação e reinterpretação. Nesse sentido, a luta revolucionária contra a hierarquia nunca termina, mas continua de uma geração para a seguinte.

Para obter êxito, a revolução deve dar-se em muitas frentes e ao mesmo tempo. Ela não deve trabalhar para abolir o capitalismo deixando o Estado ou o patriarcado intocados. Uma revolução exitosa deve estar composta por muitas revoluções, realizadas por diferentes pessoas com diferentes estratégias, respeitando a autonomia de cada uma e construindo solidariedade. Isso não acontecerá da noite para o dia, mas no curso de uma série de conflitos que se acumulam uns sobre os outros.

As revoluções sem êxito não são fracassos a menos que as pessoas percam a esperança. Em seu livro sobre a rebelião popular na Argentina, dois ativistas do Reino Unido concluem com as palavras de um piqueteiro de Solano:

Não penso que dezembro de 2001 tenha sido uma oportunidade perdida para a revolução, ou que tenha sido uma revolução fracassada. Foi e é parte do atual processo revolucionário daqui. Aprendemos muitas lições sobre a organização e força coletiva, e as barreiras da autogestão. Abriu os olhos de muita gente sobre o que podemos fazer juntos, e que tomando o controle de nossas vidas e atuando de maneira coletiva, seja como parte de um piquete, em uma padaria comunal ou em um clube para crianças depois da escola, tudo isso melhora espetacularmente a qualidade de nossas vidas. Se a luta se mantém autônoma e com a gente, a revolta seguinte terá uma base sólida sobre a qual construir...[7.28]

Leituras Recomendadas

Dee Brown, Bury My Heart at Wounded Knee, New York: Holt, Rinehart & Winston, 1970.

David Dixon, Never Come to Peace Again: Pontiac’s Uprising and the Fate of the British Empire in North America. Norman: University of Oklahoma Press, 2005.

Diana Denham and C.A.S.A. Collective (eds.), Teaching Rebellion: Stories from the Grassroots Mobilization in Oaxaca, Oakland: PM Press, 2008.

Alexandre Skirda, Néstor Majnó, Anarchy’s Cossack: The Struggle for Free Soviets in the Ukraine 1917–1921, London: AK Press, 2005.

Alfredo Bonanno, From Riot to Insurrection: analysis for an anarchist perspective against post industrial capitalism. London: Elephant Editions, 1988.

John Jordan and Jennifer Whitney, Que Se Vayan Todos: Argentina’s Popular Rebellion, Montreal: Kersplebedeb, 2003.

Jaime Semprun, Apologie pour l’Insurrection Algérienne, Paris: Editions de L’Encyclopédie des Nuisances, 2001.[7.29]

George Orwell, Homage to Catalonia, London: Martin Secker & Warburg Ltd., 1938. George Katsiaficas, The Subversion of Politics: European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life. Oakland: AK Press, 2006.

A.G. Grauwacke, Autonome in Bewegung, Berlin: Assoziation A, 2008.

Leanne Simpson, ed. Lighting the Eighth Fire: The Liberation, Resurgence, and Protection of Indigenous Nations, Winnipeg: Arbeiter Ring, 2008.

A.G. Schwarz, Tasos Sagris, and Void Network, eds. We Are an Image from the Future: The Greek Revolts of December 2008. Oakland: AK Press, 2010.

Capítulo 7 — Sociedades vizinhas

Devido o anarquismo se opor à dominação e à conformidade imposta, uma revolução anarquista não poderá criar um mundo anarquista por completo. As sociedades anarquistas teriam que encontrar formas pacíficas de convivência com as sociedades vizinhas, defender-se de seus vizinhos autoritários, e apoiar a libertação nas sociedades com dinâmicas de opressão interna.

Uma sociedade anarquista poderia defender-se de um vizinho autoritário?

Algumas pessoas temem que uma revolução anarquista seria um risco sem sentido, porque uma sociedade antiautoritária seria rapidamente conquistada por um vizinho autoritário. Obviamente, uma revolução anarquista não é um assunto estritamente nacional, limitado às fronteiras do governo que foi derrubado. A ideia não é criar uma pequena bolha de liberdade no qual podemos nos ocultar ou retirar, mas a abolição dos sistemas de escravidão e de dominação em escala mundial. Devido algumas áreas poderem libertar-se ante que outras, a questão segue sendo se uma sociedade anarquista estaria a salvo de um vizinho autoritário.

Na realidade, a resposta é não. Os Estados e o capitalismo são imperialistas por natureza, e sempre tentam conquistar seus vizinhos e universalizar seu governo: a elite das sociedades hierárquicas já está em guerra com suas próprias classes inferiores, e estendem essa lógica a suas relações com o resto do mundo, que se converte em nada mais que um conjunto de recursos para explorar, assim como para obter vantagem em sua guerra sem fim. Por outro lado, as sociedades anarquistas incentivam a revolução nas sociedades autoritárias, tanto através da solidariedade internacional com os rebeldes em ditas sociedades, como proporcionando um exemplo subversivo de liberdade, mostrando aos submetidos pelo Estado que não é necessário viver no medo e na submissão. Mas de fato, nenhuma dessas sociedades estaria a salvo da outra. No entanto, de nenhuma forma, uma sociedade anarquista estaria indefesa.

A sociedade anarquista no sul da Ucrânia, em finais da Primeira Guerra Mundial, era uma grande ameaça para os impérios alemão e austríaco, para o Exército Branco, para a curta vida do Estado nacionalista ucraniano, e para a União Soviética. As milícias de voluntários dos makhnovistas inspiraram importantes deserções das filas do autoritário Exército Vermelho, obrigando os austro-alemães e os nacionalistas que tentavam reclamar suas terras a retirarem-se, e contribuíram para a derrota do Exército Branco. Isso é especialmente notável se se considera que se armaram quase totalmente com as armas e munições apreendidas do inimigo. Coordenando forças de até dezenas de milhares, os anarquistas regularmente lutavam em várias frentes e mudavam da guerra frontal à de guerrilha com uma fluidez que os exércitos convencionais eram incapazes. Apesar de estarem sempre amplamente superados em número, defenderam suas terras por vários anos. Em duas batalhas decisivas, a de Peregonovka e a do istmo de Perekop, as milícias makhnovistas derrotaram o enorme Exército Branco, que era abastecido pelos governos ocidentais.

Uma extraordinária mobilidade e um punhado de engenhosos truques constituíam os dispositivos táticos de Makhno. Viajando a cavalo e em leves carruagens de camponeses (tatchanki), onde montavam metralhadoras, seus homens [ed: e mulheres] moviam-se rapidamente de uma lado para o outro através da estepe aberta entre o Dniéper e o Mar de Azov, crescendo e tornando-se um pequeno exército, e inspirando o terror nos corações de seus adversários. Os grupos guerrilheiros independentes aceitaram o comando de Makhno e uniram-se atrás de seu estandarte negro. Os aldeães voluntariamente forneciam alimentos e cavalos de reposição, o que permitiu aos makhnovistas viajar 40 ou 50 milhas por dia com pouca dificuldade. Eles podiam aparecer de repente onde menos eram esperados, atacar os nobres e as guarnições militares, e logo desaparecer, tão rápido quanto haviam chegado [...] Quando estavam encurralados, os makhnovistas enterravam suas armas, e separadamente tomavam o caminho de volta aos seus povoados, e começavam a trabalhar nos campos, à espera de um novo sinal para desenterrar um novo esconderijo de armas e reaparecer em um lugar inesperado. Os insurgentes de Makhno, nas palavras de Victor Serge, revelaram “uma capacidade épica para a organização e o combate.”[8.1]

Depois que seus supostos aliados, os bolcheviques, tentaram impor o controle burocrático sobre o sul da Ucrânia enquanto os makhnovistas lutavam na frente, eles tiveram êxito na guerra de guerrilha travada contra o massivo Exército Vermelho durante dois anos, ajudados pelo apoio popular. A derrota decisiva dos anarquistas na Ucrânia demonstrou a necessidade de uma maior solidariedade internacional. Se outros levantamentos contra os bolcheviques tivessem sido melhor coordenados, estes poderiam não ter sido capazes de concentrar grande parte de seus esforços em esmagar os anarquistas na Ucrânia – assim como se os socialistas libertários em outros países tivessem difundido a notícia da repressão bolchevique, em vez de terem se juntado em manifestações com Lênin. Uma rebelião antiautoritária em um canto do mundo poderia inclusive ser capaz de defender-se do governo se são derrubados junto alguns governos vizinhos, mas não pode fazê-lo com todos os governos do mundo. A repressão global deve encontrar uma resistência global. Felizmente, como o capital se globaliza, as redes populares também o fazem. Nossa capacidade para formar movimentos em todo o mundo e atuar com rapidez em solidariedade com a luta do outro lado do planeta é maior do que nunca.

Em algumas partes da África pré-colonial, as sociedades anárquicas eram capazes de existir lado a lado com “Estados predatórios” durante séculos, devido a que o terreno e a tecnologia disponíveis favoreciam a “guerra defensiva com arcos e flechas – a arma de guerra ‘democrática’, já que qualquer um podia ter uma.”[8.2] A tribo Seminole da Flórida é um exemplo inspirador de uma sociedade anarquista sem Estado que persiste apesar dos esforços de um extremamente poderoso e tecnologicamente avançado Estado vizinho, com uma população mil vezes maior. Os Seminole, cujo nome significa originalmente “Os Fugitivos”, formados a partir de várias nações indígenas, principalmente do Western Creek, que fugiam do genocídio através da parte sudeste do que os brancos haviam decidido que seriam os Estados Unidos. Os Seminoles também incluíam um importante número de escravos africanos e até uns poucos brancos europeus que haviam fugido da sociedade opressiva dos Estados Unidos.

A inclusividade dos Seminole demonstra como os indígenas estadunidenses viam as tribos e nações como assuntos de associação voluntária e aceitação dentro de uma comunidade, em vez das restritivas categorias étnico/hereditárias que o Ocidente presume que eles se organizam. Os Seminole se faziam chamar de “o povo jamais conquistado”, já que nunca firmaram um tratado de paz com os colonizadores. Sobreviveram a uma série de guerras travadas contra eles pelos Estados Unidos e conseguiram matar 1.500 soldados dos EUA e um número desconhecido de milicianos. Durante a Segunda Guerra Seminole, de 1835 a 1842, os mil guerreiros Seminole nos Everglades empregaram táticas de guerrilha com efeitos devastadores, ainda que enfrentassem 9.000 soldados profissionais e bem equipados. A guerra custou 20 milhões de dólares ao governo dos EUA, uma soma enorme naquela época. Ao fim da guerra, o governo dos EUA havia conseguido forçar a maioria dos Seminole ao exílio em Oklahoma, mas renunciaram à conquista do resto do grupo, que nunca se rendeu e seguiu vivendo sem o controle do governo durante décadas.

Os Mapuche são um grande grupo de indígenas que vive nas terras hoje ocupadas pelos Estados de Chile e Argentina. Tradicionalmente tomavam decisões por consenso e com um mínimo de hierarquia. A falta de qualquer aparato estatal não lhes impede de se defender. Antes da invasão europeia, se defenderam com sucesso de seus vizinhos hierárquicos, os Incas, que foram, para os padrões europeus, muito mais avançados. Durante a conquista espanhola, os Incas foram rapidamente reduzidos, mas as terras mapuches eram conhecidas como o “cemitério de espanhóis”. Depois que os mapuches derrotaram aos conquistadores em uma série de guerras que se prolongaram durante cem anos, a Espanha firmou o tratado de Killin, admitindo seu fracasso em conquistar os mapuches e seu reconhecimento como uma nação soberana. A soberania mapuche foi reconhecida em 28 tratados posteriores.

Em suas guerras contra os espanhóis, os grupos Mapuche se unificavam sob líderes de guerra eleitos (Taqui ou “portadores do machado”). Diferente das tropas de um exército, os grupos mantêm sua autonomia e lutam livremente em vez de fazê-lo sob coerção. Essa falta de hierarquia e coerção provou ser uma vantagem militar para os Mapuche. Ao longo da América, os grupos indígenas hierarquizados como os Incas e Astecas foram derrotados rapidamente pelos invasores, já que frequentemente se rendiam após perder o líder ou a capital. Também se viram debilitados por ataques de vingança vindos de grupos vizinhos, inimigos feitos antes da chegada dos europeus. Os grupos indígenas anarquistas foram frequentemente os mais capazes de manter uma guerra de guerrilhas contra os ocupantes.

De 1860 a 1865, os Mapuche foram invadidos e “pacificados” pelos Estados chileno e argentino, um genocídio que custou centenas de milhares de vidas. Os invasores iniciaram um processo de supressão da linguagem Mapuche e a cristianização dos povos conquistados. Mas a resistência Mapuche continua, e graças a ela, um grande número de comunidades Mapuche segue desfrutando de um relativo grau de autonomia. Sua resistência continua sendo uma ameaça para a segurança do Estado chileno. Até este escrito, vários Mapuches estão presos por leis antiterroristas da era Pinochet, pelos ataques contra as plantações de reflorestamento e as minas de cobre que estão destruindo a terra.

A feroz resistência indígena não foi o único obstáculo importante para o colonialismo. Dado que os recursos foram transferidos à força da América para Europa, um fenômeno surgiu da longa e orgulhosa tradição do banditismo para infundir medo nos corações dos comerciantes que traficavam ouro e escravos. Escritores, de Daniel Defoe a Peter Lamborn Wilson, têm descrito a pirataria como uma luta contra o cristianismo, o capitalismo, o mercantilismo que o antecedeu e o governo. Os paraísos piratas eram uma ameaça constante para o estabelecimento da ordem – eram os provocadores do saque globalizado colonialista, instigadores das rebeliões de escravos. Eram os refúgios onde os fugitivos de classes baixas podiam se esconder e se unir na guerra contra seus antigos senhores. A república pirata de Salé, próxima do que hoje é a capital do Marrocos, foi pioneira nas formas de democracia representativa um século antes da revolução francesa. No Caribe, muitos dos fugitivos se uniram aos remanescentes de sociedades indígenas e adotaram estruturas igualitárias. Essa classe social pirata também continha muitos proto-anarquistas revolucionários sociais, como Levellers, Diggers e Ranters, banidos para as prisões inglesas no Novo Mundo. Muitos capitães piratas eram eleitos e imediatamente revogados.

As autoridades eram frequentemente surpreendidas por suas tendências libertárias; o governador holandês de Mauricio reuniu-se com uma tripulação de piratas e comentou: “Cada homem tinha tanto a dizer quanto o capitão e cada homem levava suas próprias armas em seu cobertor.” Isso era profundamente ameaçador para a ordem da sociedade europeia, onde as armas de fogo se limitavam às classes altas, e proporcionavam um grande contraste com os navios mercantes onde tudo o que podia ser utilizado como arma se mantinha sob chave e cadeado, e com a Marinha, onde o objetivo principal dos soldados que estavam nos navios de guerra era manter aos marinheiros em seus lugares.[8.3]

As sociedades piratas cultivaram uma maior igualdade de gênero, e assim um número de capitães piratas eram mulheres. Muitos piratas viam a si mesmo como Robin Hood, e poucos se consideravam súditos de qualquer Estado. Embora vários outros piratas envolveram-se no mercantilismo, participando na venda de bens roubados pelo maior lance ou mesmo no comércio de escravos, uma outra corrente da pirataria constituiu uma força temporária a favor do abolicionismo, ajudando as rebeliões de escravos e aceitando muitos ex-escravos. As autoridades no norte das colinas americanas como Virgínia estavam preocupadas com as conexões entre a pirataria e as insurreições de escravos. O medo de que os escravos fugissem para se unirem aos piratas e assim roubassem os seus antigos senhores, e também das revoltas raciais mistas, incentivaram o desenvolvimento de leis nas colônias para castigar a mistura racial. Essas foram algumas das primeiras tentativas jurídicas para institucionalizar a segregação e generalizar o racismo entre a classe baixa branca.

Ao longo do Caribe e outras partes do mundo, os redutos piratas libertados prosperaram durante anos, apesar de estarem rodeados de mistério. O fato dessas sociedades piratas serem um problema generalizado e de longa duração para os poderes imperiais, assim como muitas delas serem escandalosamente libertárias, está documentado. Entretanto, não temos outros tipos de informações, já que os piratas estiveram em guerra com quem escrevia a história. É revelador que a utopia pirata mais bem descrita, Libertalia, ou alternativamente Libertatia, seja muito controvertida. Muitas partes de sua história são, em geral, reconhecidas como fictícias, assim como algumas fontes afirmam que Libertatia nunca existiu em sua totalidade, enquanto que outros sustentam que seu lendário fundador, o capitão James Misson, era apenas uma invenção literária, mas que o assentamento pirata em si, existiu.

A expansão das armadas de Grã Bretanha e Estados Unidos finalmente esmagou a pirataria no século XIX, mas nos séculos XVII e XVIII, os piratas constituíam uma poderosa sociedade sem Estado que travou uma guerra contra o imperialismo e o governo, e possibilitou milhares de pessoas a libertarem-se em um momento em que a opressão da civilização ocidental superou todas as barbaridades anteriores na história mundial.

O que faremos com as sociedades que permaneçam patriarcais ou racistas?

O anarquismo está empenhado na autonomia e na ação social, mas não é uma tendência isolacionista ou provincial. Os movimentos anarquistas sempre estiveram preocupados com os problemas mundiais e as lutas distantes. Embora os governos também professem preocupação pelos problemas em outras partes do mundo, o anarquismo se distingue por sua negação a impor soluções. A propaganda estatista afirma que precisamos de um governo mundial para libertar os povos das sociedades opressivas, mesmo enquanto a ONU, a OTAN, os EUA e outras instituições seguem promovendo a opressão e participando em guerras para defender a ordem mundial hierarquizada.[8.4]

Os enfoques anarquistas são locais e globais, com a premissa da autonomia e da solidariedade. Se uma sociedade vizinha é patriarcal, racista ou opressiva de alguma outra maneira, uma cultura anarquista oferece uma ampla gama de possíveis respostas para além da apatia e a “libertação” pela força. Em todas as sociedades opressivas pode-se encontrar pessoas que lutam por sua própria liberdade. É muito mais realista e eficaz apoiar essas pessoas, deixando que elas levem suas próprias lutas, em vez de tentar oferecer a libertação da mesma forma que um missionário oferece as “boas novas”.

Quando Emma Goldman, Alexander Berkman, Steimer Mollie, e outros anarquistas foram deportados dos EUA para Rússia e descobriram o Estado opressor criado pelos bolcheviques, difundiram a informação a nível internacional para estimular os protestos contra os bolcheviques e o apoio aos muitos anarquistas e a outros presos políticos. Eles trabalharam com a Cruz Negra Anarquista, uma organização de apoio a presos políticos com delegações a nível internacional, que apoiava os presos políticos na Rússia e também fora dela. Em várias ocasiões, o apoio e a solidariedade internacional que eles organizaram pressionou Lênin a suspender temporariamente a repressão que se praticava contra seus opositores políticos e para libertar prisioneiros políticos.

A Cruz Negra Anarquista, originalmente chamada de Cruz Vermelha Anarquista, foi formada na Rússia durante a falida revolução de 1905 para ajudar os perseguidos pela reação do governo. Em 1907, formaram-se delegações internacionais em Londres e Nova Iorque. A solidariedade internacional que eles mobilizaram ajudou a manter vivos presos anarquistas e a outros lhes permitiu escapar. O resultado foi que em 1917, o movimento revolucionário na Rússia era mais forte, desfrutou de mais conexões internacionais e esteve melhor equipado para derrubar o governo czarista.

A Associação Revolucionária de Mulheres do Afeganistão (RAWA), fundada em Cabul no ano de 1977, lutou pela libertação da mulher contra a violência dos fundamentalistas islâmicos. Também lutava contra a ocupação por parte de regimes como a URSS, que foi a responsável por assassinar a fundadora da RAWA no Paquistão, em 1987. Depois da luta contra a ocupação soviética e os talibãs, elas passaram a opor-se à Aliança do Norte, que chegou ao poder com o apoio dos EUA. Através de uma série de situações desesperadas, elas se mantiveram firmes em sua convicção de que a libertação só pode vir de dentro. Mesmo em meio à opressão do Talibã, elas se opuseram à invasão dos EUA, em 2001, argumentando que se os ocidentais tinham realmente tanta vontade em ajudar a libertar o Afeganistão teriam que apoiar aos grupos afegãos que lutavam para libertar a si mesmos. Suas predições demonstraram-se corretas, pois as mulheres afegãs enfrentaram muitas das mesmas opressões sob a ocupação dos EUA como haviam sofrido sob o regime talibã. Segundo RAWA: “acreditamos que a liberdade e a democracia não podem ser doadas; é dever do povo de um país lutar e alcançar esses valores.”[8.5]

O que evitará as disputas e guerras constantes?

Nas sociedades estatais, a crise da guerra tem buscado uma unificação governamental cada vez a níveis mais altos. Em última instância, um governo mundial. Esse esforço claramente não tem sido exitoso – afinal, a guerra é a saúde do Estado – mas o êxito não é sequer desejável dentro desse modelo. O que um governo mundial se esforçaria para conseguir seria a ocupação global, e não a paz mundial. Para tomar o exemplo da Palestina, porque é ali onde as tecnologias e métodos de controle são desenvolvidos para que mais tarde sejam adotados pelos militares dos EUA e os governos de todo o mundo, a ocupação só explode em uma guerra visível uma vez a cada poucos anos. Entretanto, os ocupantes estão constantemente travando uma guerra invisível para preservar e estender seu controle, com o uso dos meios de comunicação, das escolas, do sistema judicial penal, dos sistemas de tráfego, dos anúncios, dos protocolos políticos, da vigilância e das operações secretas. Apenas quando os palestinos se defendem e revidam e uma guerra que não se pode ignorar estoura é que as Nações Unidas e as organizações humanitárias entram em ação. Mas não para corrigir os males passados e presentes, senão para voltar à anterior ilusão de paz e assegurar que esses erros não possam ser questionados. Ainda que com menor intensidade, a mesma guerra invisível é travada contra nações indígenas, imigrantes, minorias étnicas, pessoas pobres, trabalhadores e todos aquelas que têm sido colonizadas e exploradas.

Nas sociedades sem Estado e de pequena escala no passado, a guerra era comum mas não era universal, e em muitas de suas manifestações não era especialmente sangrenta. Algumas sociedades sem Estado não participavam na guerra. A paz é uma opção, e elas elegeram-na ao valorizar a reconciliação cooperativa dos conflitos e comportamentos de cuidado. Outras sociedades sem Estado que se empenhavam na guerra geralmente praticavam uma variedade inofensiva e ritual da mesma. Em alguns casos, a linha entre o evento desportivo e a guerra não fica clara. Como se descreve em alguns relatos antropológicos, as equipes ou grupos de guerra de duas comunidades diferentes se reuniam em um lugar preestabelecido para brigar. O propósito não era aniquilar o outro lado, nem sequer matar ninguém necessariamente. Alguém em um lado atirava uma lança ou disparava uma flecha e todos observavam se não atingia alguém antes de lançar a próxima. Frequentemente voltavam para casa depois que alguém se feria, ou mesmo antes.[8.6] Na guerra tal como a praticavam os Lakota e outros indígenas das planícies da América do Norte, valorizava-se mais tocar um inimigo com um pau – “golpes falsos” – que matá-lo. Outras formas de guerra eram simplesmente realizar um assalto – vandalizando ou roubando as comunidades vizinhas, e frequentemente tentando escapar antes da briga começar. Se esse tipo de luta caótica fossem as guerras de uma sociedade anarquista, como não preferi-las aos frios e mecânicos banhos de sangue do Estado!

Mas as sociedades que não querem a guerra com seus vizinhos podem estruturar-se para evitá-las. Não ter fronteiras é um primeiro passo importante. Frequentemente podemos chegar à verdade simplesmente invertendo as racionalizações do Estado, e esse chavão de que as fronteiras nos mantêm seguros pode ser facilmente decodificada como: são as fronteiras que nos põe em perigo. Se há um conflito social, é muito mais provável que apareça a violência se há um “nós” e um “eles”. As claras divisões sociais e as fronteiras impedem a reconciliação e o entendimento mútuo e fomentam a competição e a polarização.

O antropólogo anarquista Harold Barclay descreve algumas sociedades em que cada pessoa está conectada com as outras através de múltiplas e sobrepostas redes que surgem do parentesco, do matrimônio, das afiliações de clã, etc.:

Temos exemplos de sistemas políticos anárquicos entre povos [...] cuja população alcançava centenas de milhares de pessoas e com uma alta densidade demográfica, frequentemente mais de 100 pessoas por milha quadrada. Tais ordens sociais se podem alcançar através de um sistema de linhagem segmentário que, como temos visto, tem certo paralelismo com a ideia anarquista do federalismo. Ou como entre os Tonga e alguns pastores da África Oriental, as grandes populações podem estar impregnadas por um arranjo mais complexo que afilia a pessoa com uma série de cortes transversais e divisões de grupos a fim de ampliar seus vínculos sociais em uma ampla área. Em outras palavras, os indivíduos e os grupos constituem uma multidão de locais interconectados, o que produz a integração de uma grande entidade social, mas sem nenhum tipo de coordenação centralizada de fato.[8.7]

Além dessa propriedade de autoequilíbrio das sociedades cooperativas, alguns povos sem Estado desenvolveram outros mecanismos para evitar rixas. Os aborígenes Mardu, da Austrália Ocidental, vivem tradicionalmente em pequenos grupos, mas periodicamente se congregam para celebrar reuniões massivas, onde as disputas entre indivíduos ou entre grupos diferentes são resolvidos à vista de toda a sociedade. Dessa forma, podem evitar rixas prolongadas e não esclarecidas, e todo mundo está à disposição para ajudar a resolver os conflitos. Os KonKomba e os Nuer da África reconhecem as relações bilaterais de parentesco e a sobreposição das relações econômicas. Na medida em que todo mundo se relaciona com todos os demais, não existe um eixo claro de conflito que possa apoiar uma guerra. Um tabu cultural comumente mantido contra rixas também incentiva as pessoas para resolver as disputas pacificamente. O antropólogo E. E. Evans-Pritchard descreve a sociedade Nuer como uma “anarquia organizada”.

O movimento anarquista de hoje segue lutando contra as fronteiras que dividem o mundo capitalista. A rede antiautoritária No Border, formada na Europa ocidental em 1999, tem se tornado ativa em toda o continente, assim como também na Turquia, América do Norte e Austrália. Os esforços da No Border incluem o apoio aos imigrantes ilegais, educação sobre o racismo estimulado pelas políticas governamentais de imigração, protestos contra funcionários do governo, ações contra as companhias aéreas para pôr fim às deportações, e acampamentos No Border espalhados pela fronteira de dois países. No decorrer da existência da rede, os participantes forçaram a abertura de passagens na fronteira entre Espanha e Marrocos, invadiram um centro de detenção para menores nos Países Baixos para levar ajuda e abrir a comunicação, destruíram parcialmente um centro de detenção e sabotaram as empresas envolvidas nas deportações na Itália, fecharam um centro de detenção na Grécia, e libertaram dezenas de imigrantes de um centro de detenção na Austrália. Os acampamentos do No Border trazem pessoas de muitos países para desenvolver estratégias e realizar ações conjuntas. Frequentemente se instalam na periferia das áreas de expansão do “Primeiro Mundo” – por exemplo, na Ucrânia, entre Grécia e Bulgária, ou entre os EUA e o México. Lemas comuns nos protestos dos No Border incluem: “Sem fronteiras, nem nação, Não mais deportações!” e “Liberdade de movimentação, liberdade de residência: direito de vir, direito de ir, direito a ficar!”.

As sociedades anarquistas estimulam a livre criação de redes sobrepostas entre vizinhos, comunidades e sociedades. Essas redes podem incluir a troca de materiais, a comunicação cultural, as amizades, as relações familiares e a solidariedade. Não há uma clara delimitação onde termina uma sociedade e onde começa outra, ou qual dos lados tem um conflito. Quando há uma disputa, é provável que as partes que se enfrentam tenham muitas relações sociais em comum, e que muitos terceiros acabem envolvidos. Em uma cultura que dá ênfase à competição e à conquista, alguém poderia apoiar um lado e impedir a possibilidade da reconciliação. Mas se a cultura valoriza a cooperação, o consenso e a conectividade social, e suas relações econômicas reforçam esses valores, as pessoas estão mais propensas a estimular a mediação e a paz entre as partes rivais. Pode ser que o façam por um interesse pessoal de paz, devido a uma preocupação pelo bem-estar das pessoas envolvidas na luta, ou longe do interesse próprio direto, já que também dependem da saúde das redes sócias em questão. Em tal sociedade, o interesse próprio, os interesses da comunidade e os ideais confluiriam muito mais do que em nossa sociedade.

Em áreas maiores ou populações mais diversas, nas quais a manutenção de um ethos cultural comum e a resolução espontânea de conflitos podem não ser suficientes como proteção contra conflitos graves, múltiplas sociedades podem criar federações intencionais ou pactos de paz. Um exemplo de pacto de paz antiautoritário com uma longevidade muito maior que a maioria dos tratados entre Estados é a confederação promulgada entre os Haudennosaunne, frequentemente referida como a Liga Iroquesa. Os Haudennosaunne compõem-se de cinco nações de línguas similares, na parte nordeste do território apropriado pelos Estados Unidos e o sul do que atualmente se considera como as províncias canadenses de Ontário e Quebec.

A Confederação foi formada aproximadamente a 31 de agosto de 1142.[8.8] Cobria uma área geográfica enorme, considerando que as únicas opções para o transporte eram em canoas e a pé. Os Haudennosaunne eram agricultores sedentários que viviam com as maiores densidades populacionais de todos os habitantes do nordeste até o século XIX, com uma média de 200 pessoas por acre.[8.9] As terras agrícolas comunais rodeavam cidades muradas. As cinco nações envolvidas – Seneca, Cayuga, Onondaga, Oneida e Mohawk – têm uma longa história de lutas internas, incluindo as guerras motivas pela competição por recursos. A confederação teve muito êxito em pôr fim a isso. Para todos os efeitos, as cinco nações – e mais tarde uma sexta, os Tuscarora, que fugiram da colonização inglesa das Carolinas –, viveram em paz durante mais de quinhentos anos, mesmo ao longo da expansão genocida dos europeus e da troca de armas e álcool por peles de animais, que fez com que muitas outras nações se dividissem ou entrassem em guerra com seus vizinhos. A confederação foi temporariamente rompida durante a revolução americana, devido às diferentes estratégias sobre qual lado ajudar para minimizar os efeitos da colonização.

A vida econômica comunal das cinco nações teve um importante papel em sua habilidade para viver em paz; uma metáfora usada frequentemente pela federação era levar a todos a viver juntos na mesma casa comunal e a comer do mesmo prato. Todos os grupos da federação enviavam delegados para reunir-se e oferecer uma instância para a comunicação, a resolução de conflitos e discutir as relações com as sociedades vizinhas. As decisões se tomavam mediante o consenso, sujeitas à aprovação de toda a sociedade.

O movimento anarco-sindicalista de origem europeia tem história em criar federações internacionais para compartilhar informação e coordenar lutas contra o capitalismo. Essas federações poderiam ser um precedente direto para estruturas globais que facilitem viver em paz e prevenir a guerra. A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) continha sindicatos anarco-sindicalistas de uns 15 países de 4 continentes, e periodicamente realizava congressos internacionais, cada vez em um país diferente. A AIT foi fundada em 1922 e continha inicialmente milhões de membros. E ainda que quase todos os sindicatos filiados foram forçados à clandestinidade ou ao exílio durante a Segunda Guerra Mundial, desde então tem-se regenerado e continuam reunindo-se.

Redes, e não fronteiras

Como os Estados-nação evoluíram na Europa durante centenas de anos, os governos trabalharam duro para fabricar um sentido de comunidade sobre a base de uma linguagem comum, uma cultura comum e uma história comum, tudo o qual se confundia com um governo comum. Essa comunidade fictícia serve para fomentar a identificação e, portanto, a lealdade às autoridades centrais, para ocultar o conflito de interesses entre as classes baixas e da elite, enquadrando-as dentro do mesmo grupo, e para confundir a grande fortuna ou a glória dos governantes com uma grande fortuna compartilhada por toda gente, o que também torna mais fácil para as pessoas pobres em um país matar as pessoas pobres de outros países através da criação de um distanciamento psicológico entre eles.

Num exame geral, essa noção de que os Estados-nação estão baseados na cultura e na história compartilhada é uma fraude. Por exemplo, a Espanha foi criada mediante a expulsão dos Mouros e Judeus. Mesmo tirando isso, sem o centro de gravidade produzido pelo Estado, a Espanha não existiria. Não há somente uma língua espanhola, há pelo menos cinco: Catalão, Basco, Galego, Castelhano, e o dialeto árabe desenvolvido no Marrocos e Andaluzia. Se qualquer uma dessas línguas fosse objeto de um cuidadoso escrutínio, apareceriam mais fraturas. Os valencianos poderiam dizer, não sem razão, que sua língua não é a mesma que o catalão, mas se se põe a sede do governo em Barcelona obterá a mesma supressão do valenciano que o governo espanhol emprega contra o catalão.

Sem a homogeneização forçada dos Estados-nação, haveria ainda mais variedade, assim como línguas e culturas evoluindo e mesclando-se entre si. As fronteiras dificultam essa difusão cultural, e promovem assim o conflito ao formalizar as similitudes e as diferenças. As fronteiras não protegem o povo, porque são um meio pelo qual os governos protegem seus ativos, os quais nos incluem. Quando as fronteiras mudam em uma guerra, o Estado vencedor avança, fundamentando suas reivindicações em um novo território, novos recursos e novos sujeitos. Estamos saqueando – potenciais buchas de canhão, contribuintes e mão de obra –, e as fronteiras são as paredes de nossa prisão.

Mesmo sem fronteiras, em algumas ocasiões pode haver diferenças claras nas formas que as sociedades se organizam – por exemplo, uma pode tratar de conquistar um vizinho ou manter a opressão das mulheres. No entanto, as sociedades sem fronteiras e descentralizadas ainda podem defender-se da agressão. Uma comunidade com um claro senso de sua autonomia não tem que ver um invasor cruzar uma linha imaginária para dar-se conta de uma agressão. As pessoas lutam ferozmente por sua liberdade, por seus próprios lares e são capazes de se organizar de forma espontânea. Se não houvessem governos para financiar complexos militares, essas campanhas de lutas defensivas no geral se beneficiariam dessa vantagem, ao que não teriam que pagar para ir à ofensiva. Quando os Estados europeus conquistaram s outras partes do mundo, desfrutavam de certas vantagens determinantes, incluindo a densidade populacional sem precedentes e as tecnologias que suas vítimas nunca tinham visto antes[8.10]. Essas vantagens existiram em um determinado momento histórico, e já não são pertinentes. A comunicação agora é global, a densidade populacional e a resistência às enfermidades têm uma distribuição mais uniforme e as armas populares necessárias para empreender uma efetiva defesa armada contra os exércitos mais avançados tecnologicamente – fuzis de assalto e explosivos – estão disponíveis na maior parte do mundo e se podem fabricar em casa. Em um futuro sem governos, as sociedades agressivas estariam em desvantagem.

Os anarquistas estão rompendo as fronteiras hoje em dia através da criação de redes em todo o mundo, minando o nacionalismo e lutando em solidariedade com os imigrantes que estão alterando a homogeneidade dos Estados-nação. As pessoas nas fronteiras podem ajudar a aboli-las apoiando as travessias de fronteiras ou ajudando as pessoas que cruzam ilegalmente, aprendendo a língua falada no outro lado, e construindo comunidades que abarquem a fronteira. As pessoas que vivem mais distantes das fronteiras podem colaborar pondo fim à sua aliança com a cultura centralizada e homogênea, e desenvolvendo a cultura local, dando boas-vindas aos imigrantes em suas comunidades, através da difusão da consciência e atuando em solidariedade com as lutas em outras partes do mundo.

Leituras Recomendadas

Harold Barclay, People Without Government: An Anthropology of Anarchy, London: Kahn and Averill, 1982.

Starhawk, The Fifth Sacred Thing. New York, Bantam, 1993.

Stephen Arthur, “Where License Reigns With All Impunity: An Anarchist Study of the Rotinonshón:ni Polity”, Northeastern Anarchist Nº12, Winter 2007. http://nefac.net/anarchiststudyofiroquois#

Capítulo 8 — O Futuro

Estamos lutando por nossas próprias vidas, mas também por um mundo que nunca chegaremos a ver.

Com o tempo, será que o Estado não iria reaparecer?

A maioria dos exemplos citados neste livro já não existe, e alguns só duraram uns poucos anos. As sociedades sem Estado e os experimentos sociais em sua maioria foram conquistados pelas potências imperialistas ou reprimidas pelos Estados. Mas a história também demonstrou que a revolução é possível, e que a luta revolucionária não conduz inevitavelmente ao autoritarismo. As ideias revolucionárias autoritárias, como a socialdemocracia ou o marxismo-leninismo estão desacreditadas em todo o mundo. Enquanto os partidos políticos socialistas continuam sendo parasitas que sugam as energias vitais dos movimentos sociais, vendendo visivelmente seus distritos eleitorais cada vez que chegam ao poder, uma mescla diversa de horizontalidade, indigenismo, autonomismo e anarquismo tem chegado ao primeiro plano em todas as emocionantes rebeliões sociais da última década; as revoltas populares na Argélia, Argentina, Bolívia e México, o Autonomen na Itália, Alemanha e Dinamarca, os estudantes e os insurgentes na Grécia, a luta dos agricultores na Coreia, e o movimento antiglobalização que uniu países em todo o mundo. Esses movimentos têm a possibilidade de abolir o Estado e o capitalismo em meio à crise dos próximos anos.

No entanto, algumas pessoas temem que mesmo se uma revolução global abolisse o Estado e o capitalismo, estes inevitavelmente ressurgiriam com o tempo. Isso é compreensível, já que a educação estatal tem doutrinado a acreditar nos mitos do progresso e a história unilinear – a ideia de que só há uma narrativa global e que conduz inexoravelmente à supremacia da civilização Ocidental. De fato, ninguém sabe exatamente como o Estado se desenvolveu, mas o certo é que isso não foi um processo nem inevitável nem irreversível. A maioria das sociedades nunca desenvolveu Estados voluntariamente, e talvez muitas sociedades os desenvolveram e logo os abandonaram ou os mantiveram. Da perspectiva dessas sociedades, o Estado pode parecer mais uma escolha ou uma imposição que uma evolução natural. A linha de tempo que usamos também afeta nossos pontos de vista. Por dezenas de milhares de anos, os Estados foram inúteis para a humanidade, e depois que desaparecerem será claro que eles eram uma aberração, que se originaram em umas poucas partes do mundo e que controlaram temporariamente o destino de todos no planeta. Até serem novamente erradicados.

Outro conceito errôneo é que as sociedades sem Estado estão vulneráveis a serem sequestradas por agressivos machos alfa que se autonomeariam líderes. Pelo contrário, parece que o modelo de uma sociedade de “Grandes Homens” nunca levou a um Estado, ou sequer a uma chefia. As sociedades que permitem que um homem mais forte, talentoso ou mandão tenha mais influência, geralmente, caso chegue a ser demasiado autoritário, o ignoram ou o matam, e assim esse “Grande Homem” não é capaz de estender sua influência muito longe, geográfica ou temporalmente. As características físicas nas que se baseia sua liderança são efêmeras e logo desvanecem ou são substituídas.[9.1]

Parece que os Estados desenvolveram gradualmente sistemas de parentescos aceitos culturalmente que uniam a gerontocracia com o patriarcado. No período de algumas gerações, prestava-se mais respeito aos homens mais velhos e se lhes dava maior exclusividade como mediadores de conflitos e como distribuidores de dádivas. Não foi preciso muito tempo nesse processo para que eles possuíssem algo parecido ao poder de fazer cumprir sua vontade. Devemos lembrar que à medida que as pessoas entregavam mais de suas responsabilidades a certos membros da comunidade e lhes ofereciam mais respeito, elas não tinham mais como saber os resultados de suas ações – nenhuma maneira de saber o quão ruim uma sociedade hierárquica pode se tornar. Uma vez que as elites sociais obtiveram poderes coercitivos, surgiu uma nova dialética do desenvolvimento social, e é provável que o Estado tenha surgido nesse ponto, ainda que não fosse inevitável, porque a maioria seguia sendo uma força social com o poder de retirar a elite ou deter o processo.

As sociedades modernas com a memória coletiva das técnicas burocráticas poderiam voltar a desenvolver um Estado muito rapidamente, mas temos a vantagem de saber aonde conduz este caminho e ser conscientes dos sinais de advertência. Depois de ter lutado duro para ganhar a liberdade, as pessoas teriam muita motivação para frear o ressurgimento do Estado se isso estivesse acontecendo próximo a elas.

Felizmente, uma sociedade anarquista é sua própria recompensa. Muitas sociedades sem Estado, depois do contato colonial, tiveram a oportunidade de unir-se a uma sociedade hierárquica e no entanto continuam resistindo, tais como os Kung, que seguem vivendo no deserto Kalihari apesar dos esforços do governo de Botsuana para “sedentarizá-los”.

Também há exemplos de experimentos sociais antiautoritários de longa duração que se desenvolveram dentro de uma sociedade estatal. Em Gloucestershire, Inglaterra, anarquistas tolstoianos fundaram a colônia de Whiteway em 40 acres de terra no ano de 1898. Depois de terem comprado as terras, queimaram o título da propriedade. Consequentemente tiveram que construir suas próprias casas já que não podiam obter hipotecas. Mais de cem anos depois, esse município anarco-pacifista ainda existe, e alguns dos atuais habitantes são descendentes dos fundadores. Eles tomam decisões em uma assembleia geral e compartilham uma série de instalações comuns. Às vezes, Whiteway abriga refugiados e dissidentes. Também acolhe uma série de iniciativas de cooperação tais como uma padaria e um grêmio de artesãos. Apesar das pressões externas do capitalismo e das relações hierárquicas reproduzidas pela sociedade estatal, Whiteway segue sendo igualitário e antiautoritário.

Dou outro lado do Mar do Norte, em Appelscha, Friesland, um povoado anarquista comemorou seus 75 anos em 2008. Atualmente composto por caravanas, casas móveis (trailers), e umas poucas edificações permanentes, o campo de Appelscha tem participado ativamente nos movimentos anarquistas e antimilitaristas desde que o sacerdote Domela Nieuwenhuis deixou a igreja e começou a pregar o ateísmo e o anarquismo. Um grupo de trabalhadores começou a reunir-se ali e logo adquiriu as terras, onde se têm realizado reuniões anarquistas anuais a cada dia de Pentecostes. Retomando o movimento de abstinência socialista, que reconhece o álcool como uma praga paralisante sobre os trabalhadores e uma forma de escravidão dos empresários que vendem bebidas alcoólicas nas lojas da empresa, esse campo segue livre do álcool. Em 2008, 500 pessoas de todos os Países Baixos, assim como Alemanha e Bélgica, participaram de uma reunião anual de anarquistas em Appelscha, se uniram aos anarquistas que vivem ali todo o ano para realizar um fim de semana de oficinas e discussões sobre temas como o pacifismo, a libertação animal, a luta contra o fascismo, o sexismo dentro do movimento, a saúde mental, e a campanha que manteve os Jogos Olímpicos fora de Amsterdam no ano de 1992. Havia programação para as crianças, apresentações sobre a história do acampamento, comidas comunais, e suficiente entusiasmo no ar para prometer uma nova geração de anarquismo na região.

Outros projetos anarquistas também podem sobreviver cem anos. Sociedades específicas, comunidades e organizações não necessitam ser gravadas em pedra; anarquistas não precisam adotar medidas restritivas para preservar as instituições à custa de seus participantes. Às vezes, o melhor que uma comunidade ou organização pode fazer por seus participantes é permitir-lhes seguir adiante. Não há privilégios hereditários ou constituições que devam ser ditadas ou impostas no futuro. Ao permitir maior fluidez e mudança, as sociedades anarquistas podem durar muito mais.

A maioria das sociedades ao longo da história humana tem sido comunais e sem Estado, e muitas delas se prolongaram durante milhares de anos até que foram destruídas ou conquistadas pela civilização Ocidental. O crescimento e o poder da civilização Ocidental não eram inevitáveis, mas foram o resultado de determinados processos históricos que sem dúvida dependem da coincidência geográfica.[9.2] Os êxitos militares de nossa civilização podem parecer provar sua superioridade, mas mesmo na ausência de resistência, os problemas endêmicos de nossa civilização como o desmatamento e a mudança climática poderiam acarretar seu desaparecimento, revelando ser um fracasso total em termos de sustentabilidade. Outros exemplos de sociedades hierárquicas insustentáveis, desde os Sumérios à Ilha de Pascoa, mostram a rapidez com que uma sociedade aparentemente em seu apogeu pode colapsar.

A ideia de que o Estado inevitavelmente ressurgirá com o passar do tempo é outra dessas fantasias irremediavelmente eurocêntricas que a cultura Ocidental doutrina as pessoas. Dezenas de sociedades indígenas de todo o mundo nunca desenvolveram Estados, prosperaram durante milhares de anos, nunca se renderam, e quando finalmente triunfaram sobre o colonialismo jogaram fora as imposições da cultura branca, que incluem o Estado e o capitalismo, e revitalizaram suas culturas tradicionais, as quais todavia levam consigo. Muitos grupos indígenas têm experiências de contato com o Estado que remontam a centenas ou mesmo milhares de anos atrás, e em nenhum momento se entregaram voluntariamente à autoridade estatal. Anarquistas ocidentais têm muito a aprender com essa persistência, e todas as pessoas da sociedade Ocidental deveriam se atentar: o Estado não é uma adaptação inevitável, é uma imposição, e uma vez que aprendamos a derrotá-lo de vez, não deixaremos que retorne.

E os outros problemas que não podemos prever?

As sociedades anarquistas enfrentarão problemas que não podemos sequer prever agora, do mesmo modo que se encontrarão com dificuldades que podemos vislumbrar, mas não poderemos resolvê-las sem o laboratório histórico fornecido pela revolução. Porém, um dos muitos erros do Estado é a neurótica suposição de que a sociedade é perfectível, que é possível elaborar modelos que solucionem todos os problemas antes que ocorram. Preferir leis ao invés de olhar caso a caso e usar o sentido comum; manter um exército permanente ou garantir os poderes de emergência da polícia de forma permanente – isso é tudo derivado da paranoia do estatismo.

Não podemos nem devemos fixar as contingências da vida num modelo. Em uma sociedade anarquista, teríamos que inventar soluções totalmente novas para problemas totalmente imprevisíveis. Em caso de ganharmos essa oportunidade, o faremos com alegria, botando a mão na massa nas complexidades da vida, percebendo nosso enorme potencial e alcançando novos níveis de crescimento e maturidade. Não podemos nunca mais entregar o poder de resolver cooperativamente nossos próprios problemas.

Fazendo com que a Anarquia funcione

Há um milhão de maneiras de atacar as estruturas interconectadas de poder e opressão, e criar a anarquia. Só você pode decidir que caminho tomar. É importante não deixar que seus esforços se desviem para qualquer dos canais do sistema construídos para incorporar e neutralizar a resistência, tais como solicitar as mudanças através de um partido político em vez de fazê-lo você mesma, ou permitir que seus esforços e criações se convertam em matérias-primas, produtos, ou moda. Para nos libertarmos, temos que recuperar o controle sobre todos os aspectos de nossas vidas: nossa cultura, nosso ócio, nossas relações, nossa habitação, educação e saúde, a forma de proteger nossas comunidades e a produção de nossos alimentos. Quer dizer, tudo. Sem ficar isolada em campanhas por apenas uma causa, verifique onde estão suas próprias paixões e habilidades, quais problemas lhe preocupam e a sua comunidade, e o que você mesma pode fazer. Ao mesmo tempo, mantenha-se a par do que as outras pessoas estão fazendo para poder construir relações mutuamente inspiradoras de solidariedade.

É possível que já existam grupos antiautoritários ativos em sua região. Você também pode começar seu próprio grupo. Uma grande coisa em ser anarquista é que você não precisa pedir permissão. Se não há ninguém com quem tenha a possibilidade de trabalhar, talvez possa ser o próximo Robin Hood (essa posição que tem estado vaga durante tempo demais!). Ou se um objetivo é demasiado grande, comece com algo pequeno, por exemplo, fazendo grafites ou murais, distribuindo literatura, ou executando um pequeno projeto DIY[9.3], até que tenha acumulado certa experiência e confiança em suas próprias capacidades, e conheça outras pessoas que queiram trabalhar ao seu lado.

A anarquia se desenvolve na luta contra a dominação, e em qualquer lugar onde exista opressão, também existirá resistência. Essas lutas não necessitam chamar a si mesmas de anarquistas para serem terreno fértil para a sublevação e a liberdade. O importante é que as apoiemos e as façamos mais fortes. O capitalismo e o Estado não serão destruídos se nos distanciarmos da criação de alternativas maravilhosas. Houve um tempo em que o mundo estava cheio de alternativas maravilhosas e o sistema soube muito bem o que fazer para conquistá-las e destruí-las. Independentemente do que acreditamos, temos que estar preparadas para defender nossas crenças.

Nenhum livro por si só é suficiente para explorar todas as possibilidades da revolução anarquista. Aqui há vários outros que podem ser úteis.

Leituras Recomendadas

CrimethInc., Recipes for Disaster: An Anarchist Cookbook, Olympia: CrimethInc. Workers’ Collective, 2005; and Expect Resistance, Salem: CrimethInc. Workers’ Collective 2008.

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Trapese Collective, ed. Do It Yourself: a handbook for changing our world, London: Pluto Press, 2007.

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Isy Morgenmuffel and Paul Sharkey (eds.), Beating Fascism: Anarchist anti-fascism in theory and practice, London: Kate Sharpley Library, 2005.

Call (Appel in the original French, an anonymous manifesto with no publication information given).

E o artigo, zine ou livro que você escreverá para compartilhar suas experiências com o mundo e expandir nossa caixa de ferramentas coletivas...

Funciona quando fazemos

com que funcione

As diversas pessoas que conspiraram para passar adiante estas histórias rebeldes através do papel e fazê-las chegar em suas mãos foram atenciosas o suficiente de modo a proporcionar, através do exemplo, uma parte da anarquia: o livro em si. Imaginar a rede descentralizada, o caos harmônico, a confluência de desejos livres, foi o que o fez possível. Com paixão e determinação, milhões de pessoas deram vida às histórias que apresentamos, e muitas delas lutaram, inclusive além do ponto de uma derrota certa, com a esperança de que suas utopias pudessem inspirar futuras gerações. Centenas de outras pessoas documentaram estes mundos e os mantêm vivos em nossas mentes. Uma dúzia mais delas se uniram para editar, desenhar e ilustrar o livro, e inclusive colaboraram com a correção, impressão e distribuição. Não temos chefes nem nos pagam para fazer isso. De fato, o livro se vende a preço de custo e nosso objetivo com a distribuição não é fazer dinheiro, mas sim compartilhá-lo com vocês.

Editar livros é uma empresa que supúnhamos devíamos deixar aos profissionais, e os livros eram algo que supúnhamos havíamos que comprar e consumir, e não algo que nós mesmas fizéssemos. No entanto, nos permitimos perseguir esse projeto, e esperamos ter demonstrado que você também pode. Pode ser tentador apresentar tão ambicioso projeto como um produto final realizado por arte da magia, deixando quem está lendo adivinhar como o fizemos e desfrutar dessa ilusão nós mesmos. Porém, às vezes é melhor deixar que uma importuna rajada de vento levante as cortinas e revele o que há por trás do cenário. Este livro, então, não é diferente de todos os demais exemplos iluminados neste documento, que em sua criação foi também uma questão de conflito construtivo. O conjunto de pessoas responsáveis de forma imediata na publicação não é um círculo homogêneo, senão que inclui grupos editoriais com diferentes modos de funcionamento, e um autor principal para quem a escritura é uma atividade individual. Devido às diferentes necessidades e opiniões, algumas pessoas não podiam ver como este projeto conseguiria acabar, e como anarquistas, elas eram livres para abandonar o grupo quando assim o desejassem, já que já haviam influenciado positivamente o manuscrito. Enquanto isso, graças à flexibilidade da organização, o projeto pôde continuar.

Sendo o individualista neste grupo, aprendi e me desenvolvi de uma forma que seria impossível se estivesse em um grupo autoritário. Com um editor tradicional, me veria obrigado a ceder quando aparecesse um desacordo, não por ser convencido de seus pontos de vista, senão devido ao fato de que eles controlam os recursos e poderiam ter determinado se o livro seria impresso ou não. Mas com nossa disposição horizontal, eu poderia receber críticas que sabia que tinham a intenção de desenvolver o livro em todo o seu potencial pro mundo, e não só para fazer que se vendesse melhor em um mercado idiotizado.

É claro, a publicação de um livro não é a conquista mais surpreendente, e esta pequena acumulação de papéis, por lutadora que seja, certamente não vai desatar uma tormenta no Winter Palace[10.1]. Mas um de nossos pontos mais básicos é que a anarquia é muito mais comum do que nos têm feito acreditar. E, caramba, se nós pudemos fazê-la funcionar, você também pode.

Tal como as outras histórias contadas aqui, a história de nossa narrativa contém suas próprias debilidades. Eu gostaria de ser o primeiro a pontuá-las. Inevitavelmente, algumas coisas estão faltando. Uma delas tem a ver com realismo. Ao fazer este livro, tratamos de não idealizar os exemplos, ainda que seja evidente que estas páginas não proporcionam o espaço para uma análise completa das fortalezas e debilidades de cada revolução ou experimento social citado. Porém, quisemos dar uma ideia da abundância de complexidades e dificuldades que espreitam sob a superfície de cada exemplo da anarquia. Mas se o livro é de alguma forma bem sucedido, se os leitores simplesmente não dizem, Oh, que lindo, a anarquia é possível!,e logo voltam para suas vidas, mas que realmente se armam com esse conhecimento para mergulharem na criação de um mundo anarquista, rapidamente você descobrirá o quão difícil é fazê-lo.

A verdade é que às vezes a anarquia não funciona. Às vezes, as pessoas não aprendem a cooperar, ou um determinado grupo não encontra a forma de compartilhar as responsabilidades, ou as disputas internas deixam todo um movimento mal amparado e incapaz de sobreviver às graves pressões do mundo ao seu redor. Mesmo alguns dos exemplos descritos neste livro finalmente vieram abaixo devido seus próprios fracassos internos. Em outros casos, uma comunidade libertada foi brutalmente reprimida, um centro social ocupado que criou uma bolha de liberdade contra o Estado e o capital será despejado pelo proprietário, ou o Estado encontrará alguma desculpa para prender aquelas pessoas que lutam para criar um mundo novo.

Muitas pessoas que lutaram pela anarquia terminaram mortas e derrotadas, ou simplesmente desmoralizadas. E seus sacrifícios não serão celebrados, a menos que nós mesmas escrevamos aquela história, para aprender com seus erros e nos inspirarmos pelas que venceram.

Outra falha deste livro é que não fomos capazes de idealizar o suficiente estes exemplos. Receio que nossa humilde intenção de sermos objetivos omite a inspiração que se sente ao pôr a anarquia em prática, apesar de todas as dificuldades. As histórias aqui apresentadas são reais, em um nível mais profundo que as notas de rodapé e a crônica de datas e nomes possam expressar. Algumas dessas histórias vivenciei por mim mesmo, e estão misturadas na própria redação do livro. A tediosa satisfação de organizar infoshops e aprender a utilizar o consenso, desafiando o asfixiante terreno psicológico dos Estados Unidos, foi minha inspiração para o início de um livro sobre o que na realidade deveria ser um mundo anarquista. Ainda que não tenha terminado, este projeto me levou a investigar e conhecer quais caras a anarquia já teve. Em um banco no parque de Berlim, enquanto descansava após estudar o movimento autônomo daquela cidade, esbocei um esquema deste novo livro, e um par de semanas depois, em Christiania, vi como todo um bairro que vive em anarquia parece perfeitamente normal.

Me ocorreu que poderia encontrar muito mais histórias de vida se eu procurasse. Durante o ano seguinte, fui visitar um acampamento anarquista de setenta e cinco anos nos Países Baixos, e mergulhei em uma continuidade de lutas em que o passado não encerra o presente, senão que o fecunda. Estive em cidades provinciais da Ucrânia que uma vez derrubaram a autoridade e tentei imaginar como elas eram, me fiz jardineiro em uma vila anarquista nas montanhas da Itália e senti até os ossos o que significava a abolição do trabalho. Em minhas viagens, mantive correspondência com um de meus melhores amigos que foi a Oaxaca durante seis meses e participou na rebelião de lá.

De forma bastante apropriada, terminei de escrever em uma casa ocupada em Barcelona, onde fiquei à espera de julgamento e ameaçado de prisão depois que um policial me incriminou. O parque localizado na rua abaixo costumava ser o presídio da cidade, mas os anarquistas o derrubaram em 1936. Em 2007, nosso centro social começou os protestos contra nosso iminente despejo, armando uma tenda livre, expondo uma seleção de livros de nossa biblioteca, contando histórias às crianças. Inesperadamente ilegalizado, percebi como minha sobrevivência estava ligada à rede de espaços libertários ao longo da cidade, que me abrigaram e alimentaram. E estes espaços, por sua vez, dependem da luta de todas nós para criá-los e defendê-los.

O mesmo é certo de todas as outras histórias que temos visto: nenhuma delas deve sua existência aos expectadores. Estas histórias mostram que a anarquia pode funcionar. Mas temos que construí-las nós mesmas. A coragem e a confiança que precisamos para fazer isto não se podem encontrar em nenhum livro. Elas já nos pertencem. Só temos que reclamá-las.

Que estas histórias saltem de suas páginas e entrem em seus corações, e encontrem vida nova.

Peter Gelderloos

Barcelona, dezembro 2008

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[1.1] Sam Mbah e I. E. Igariway escrevem que, antes do contato colonial, quase todas as sociedades africanas tradicionais eram "anarquias", e eles constroem um forte argumento para esta conclusão. O mesmo poderia ser dito de outros continentes. Contudo, como os autores não vêm de nenhuma dessas sociedades, e já que a cultura ocidental tradicionalmente acredita ter o direito de representar outras sociedades considerando seus próprios interesses, é melhor evitar essas caracterizações gerais, mantendo, enquanto isso, o esforço de aprender com esses exemplos.

[2.1] “The Really Really Free Market: Instituting the Gift Economy,” Rolling Thunder, No. 4 Spring 2007, p. 34.

[2.2] Robert K. Dentan, The Semai: A Nonviolent People of Malaya. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979, p. 48.

[2.3] Christopher Boehm, “Egalitarian Behavior and Reverse Dominance Hierarchy,” Current Anthropology, Vol. 34, No. 3, junho de 1993.

[2.4] N.T.: Um minério que é uma mistura de columbite e tantalite.

[2.5] Amy Goodman, “Louisiana Official: Federal Gov’t Abandoned New Orleans,” Democracy Now, 7 de setembro de 2005. Fox News, CNN e The New York Times deram notícias falsas de assassinatos e gangues de estupradores no Superdome [um ginásio esportivo], onde os refugiados se reuniram durante a tormenta. (Aaron Kinney, “Hurricane Horror Stories,” Salon.com)

[2.6] Jesse Walker (“Nightmare in New Orleans: Do disasters destroy social cooperation?” Reason Online, 7 de setembro de 2005) cita os estudos do sociólogo E.L. Quarantelli, que constatou que “Depois do cataclismo, os laços sociais se fortalecem, o voluntarismo cresce enormemente e a violência é rara (...)”.

[2.7] N.T.: Em tradução livre, “feroz”, “raivoso”.

[2.8] Roger M. Keesing, Andrew J. Strathern, Cultural Anthropology: A Contemporary Perspective, 3ª edição, New York: Harcourt Brace & Company, 1998, p.83.

[2.9] Judith Van Allen “Sitting On a Man”: Colonialism and the Lost Political Institutions of Igbo Women.” Canadian Journal of African Studies. Vol. ii, 1972, pp. 211–219.

[2.10] Johan M.G. van der Dennen, “Ritualized ‘Primitive’ Warfare and Rituals in War: Phenocopy, Homology, or...?” rechten.eldoc.ub.rug.nl Entre outros exemplos, van der Dennen cita os habitantes das terras altas da Nova Guiné, entre os quais bandos em guerra se enfrentavam, gritavam insultos e arremessavam flechas sem penas, e portanto sem direção, enquanto um outro bando nas cercanias gritava que era errado que irmãos brigassem e tentavam acalmar a situação antes que houvesse derramamento de sangue. A fonte original deste relato é Rappaport, R.A. (1968), Pigs for the Ancestors: Ritual in the Ecology of a New Guinea People. New Haven: Yale University Press.

[2.11] “The Aims and Means of the Catholic Worker,” The Catholic Worker, maio de 2008.

[2.12] Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004. A taxa de homicídios entre os Semai: p. 191. Outras taxas de homicídio: p. 149. A baixa taxa de homicídios na Noruega mostra que sociedades industriais também podem ser pacíficas. Deve-se notar que a Noruega tem uma das menores diferenças de distribuição de riqueza entre os países capitalistas e possui uma baixa confiança na polícia e em prisões. A maioria das disputas civis e muitas questões criminais no país são resolvidas através de mediação (p. 163).

[2.13] Robert K. Dentan, The Semai: A Nonviolent People of Malaya. Nova Iorque: Holt, Rinehart and Winston, 1979, p. 59.

[2.14] Dmitri M. Bondarenko e Andrey V. Korotayev, Civilizational Models of Politogenesis, Moscou: Russian Academy of Sciences, 2000.

[2.15] Harold Barclay, People Without Government: An Anthropology of Anarchy, Londres: Kahn and Averill, 1982, p. 98.

[2.16] Christopher Boehm, “Egalitarian Behavior and Reverse Dominance Hierarchy,” Current Anthropology, Vol. 34, N. 3, junho de 1993.

[2.17] As vitórias do movimento e o fracasso do FMI e do Banco Mundial são sustentados por David Graeber em “The Shock of Victory,” Rolling Thunder n. 5, primavera de 2008.

[2.18] Os parágrafos que dizem respeito aos povos das montanhas do sudeste asiático baseiam-se na palestra “Civilizations Can’t Climb Hills: A Political History of Statelessness in Southeast Asia”, realizada por James C. Scott na Universidade de Brown, Providence, em Rhode Island, no dia 2 de fevereiro de 2005.

[3.1] Alan MacSimoin, “The Korean Anarchist Movement,” numa fala em Dublin, setembro de 1991. MacSimoin referencia Ha Ki-Rak, A History of the Korean Anarchist Movement, 1986.

[3.2] Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, New York: Free Life Editions, 1974, p. 73.

[3.3] Ditto, p. 73. As estatísticas da cidade de Graus são da p. 140.

[3.4] Gaston Leval, Collectives in the Spanish Revolution, London: Freedom Press, 1975, pp. 206–207.

[3.5] Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, New York: Free Life Editions, 1974, p. 113.

[3.6] The criticisms of the this and the following paragraphs are based on an interview with Marcello, “Criticisms of the MST,” February 17, 2009, Barcelona.

[3.7] Wikipedia, “Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca,” [viewed November 6, 2006

[3.8] Diana Denham and C.A.S.A. Collective (eds.), Teaching Rebellion: Stories from the Grassroots Mobilization in Oaxaca, Oakland: PM Press, 2008, interview with Marcos.

[3.9] Ditto, interview with Adán.

[3.10] Melford E. Spiro, Kibbutz: Venture in Utopia, New York: Schocken Books, 1963, pp. 90–91.

[3.11] Robert Fernea, “Putting a Stone in the Middle: the Nubians of Northern Africa,” in Graham Kemp and Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 111.

[3.12] Alice Schlegel, “Contentious But Not Violent: The Hopi of Northern Arizona” in Graham Kemp and Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004.

[4.1] Melford E. Spiro, Kibbutz: Venture in Utopia, New York: Schocken Books, 1963, pp. 83–85.

[4.2] Gemma Aguilar, “Els okupes fan la feina que oblida el Districte,” Avui, sábado, 15 de dezembro de 2007, p. 43.

[4.3] Natasha Gordon e Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey through Argentina’s Popular Uprising, Leeds (Reino Unidos): University of Leeds, 2004, p. 45.

[4.4] William Foote Whyte and Kathleen King Whyte, Making Mondragon: The Growth and Dynamics of the Worker Cooperative Complex, Ithaca, New York: ILR Press, 1988, p. 5.

[4.5] Malcolm Gladwell, The Tipping Point: How Little Things Can Make a Big Difference. New York: Little, Brown, and Company, 2002, pp. 183–187.

[4.6] N.T.: Acrônimo proveniente da expressão inglesa “participatory economy”.

[4.7] Michael Albert, Parecon: Life After Capitalism, New York: Verso, 2003, pp. 104–105.

[4.8] Diana Denham and C.A.S.A. Collective (eds.), Teaching Rebellion: Stories from the Grassroots Mobilization in Oaxaca, Oakland: PM Press, 2008, interview with Tonia.

[4.9] Idem, interview with Francisco.

[4.10] Cahal Milmo, “On the Barricades: Trouble in a Hippie Paradise,” The Independent, 31 de maio de 2007.

[4.11] Tecnicamente, os humanos idosos têm uma função reprodutiva porque armazenam tipos obscuros de informação, como o modo de sobreviver a desastres naturais que ocorrem somente uma vez a várias gerações, e também porque podem servir para aumentar a coesão social aumentando a quantidade de relações existentes dentro da comunidade – por exemplo, o número de pessoas com os mesmos avós é muito maior que o número de pessoas com os mesmos pais. Entretanto, esses benefícios para a sobrevivência não são imediatamente óbvios e não há evidências de alguma sociedade humana que fizesse esses cálculos ao decidir alimentar ou não suas vovós. Em outras palavras, o fato de que avaliemos os benefícios dos idosos é um reflexo de nossa habitual generosidade social.

[4.12] Gaston Leval, Collectives in the Spanish Revolution, Londres: Freedom Press, 1975, p. 270.

[4.13] Neille Ilel, “A Healthy Dose of Anarchy: After Katrina, nontraditional, decentralized relief steps in where big government and big charity failed,” Reason Magazine, dezembro de 2006.

[4.14] Site da Escola Livre de Albany (acesso em 24 de novembro de 2006): www.albanyfreeschool.com

[4.15] Natasha Gordon e Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey through Argentina’s Popular Uprising, Leeds (UK): Universidade de Leeds, 2004, pp. 43–44.

[4.16] Ver o capítulo 5 em Uri Gordon, Anarquia Viva! Política Anti-autoritária da Prática para a Teoria, Desterro: Editora Subta, 2015.

[4.17] A descrição dos habitantes das terras altas da Nova Guiné consta no livro de Jared Diamond (Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed, Nova Iorque, Viking, 2005). Particularmente, o retrato de sua curiosidade, inteligência e humanidade presta um grande serviço para afastar do imaginário o estereótipo dos chamados povos primitivos como sendo macacos que grunhem ou bons selvagens.

[4.18] “Wikipedia survives research test,” BBC News, 15 de dezembro de 2005 news.bbc.co.uk

[4.19] “Editorial administration, oversight and management” Wikipedia, en.wikipedia.org

[4.20] Patrick Fleuret, “The Social Organization of Water Control in the Taita Hills, Kenya,” American Ethnologist, Vol. 12, 1985.

[4.21] Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, Nova Iorque: Free Life Editions, 1974, p. 66.

[4.22] Idem, p. 88.

[4.23] Todas as frases e estatísticas do parágrafo vêm de Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, Nova Iorque: Free Life Editions, 1974, pp. 88–92.

[4.24] Idem, pp. 75–76

[4.25] George Katsiaficas, The Subversion of Politics: European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life. Oakland: AK Press, 2006, pp. 84–85.

[4.26] The Stonehenge Free Festivals, 1972–1985. www.ukrockfestivals.com Acesso em 8 de maio de 2008.

[4.27] The Curious George Brigade, Anarchy In the Age of Dinosaurs, CrimethInc. 2003, pp. 106–120. A estatística sobre Gana aparece na página 115.

[4.28] Apesar de o autor deste trecho escolher o termo “governo”, o conceito subjacente não deve ser lido como o que é considerado governo na sociedade ocidental. Na tradição Ayllu, a liderança não é uma posição social privilegiada ou uma posição de comando, mas uma forma de “serviço comunitário”.

[4.29] Emily Achtenberg, “Community Organizing and Rebellion: Neighborhood Councils in El Alto, Bolivia,” Progressive Planning, Nº 172, verão de 2007.

[4.30] Todas as frases sobre o Symphony Way estão artigo de Daria Zelenova “Anti-Eviction Struggle of the Squatters Communities in Contemporary South Africa”, apresentado na conferência “Hierarchy and Power in the History of Civilizations,” na Academia Russa de Ciências, Moscou, junho de 2009.

[4.31] Oxfam America, “Havana’s Green Revelation,” www.oxfamamerica.org [acesso em 5 de dezembro de 2005]

[4.32] Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, Nova Iorque: Free Life Editions, 1974, pp. 163–164.

[5.1] N.T.: Período, entre 1868 e 1912, em que o Japão passou de uma sociedade feudal para uma de relações modernas.

[5.2] Esta teoria sobre o destino da Ilha de Páscoa é convincentemente defendida em Jared Diamond, Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed, New York, Viking, 2005.

[5.3] Eric Alden Smith, Mark Wishnie, “Conservation and Subsistence in Small-Scale Societies,” Annual Review of Anthropology, Vol. 29, 2000, pp. 493–524. “À medida que a densidade populacional e a centralização crescem, as comunidades podem acabar excedendo o tamanho e a homogeneidade necessárias para sistemas endógenos de administração comunal” (p. 505). Os autores também apontam que a interferência colonial e pós-colonial acabou com muitos sistemas de manejo comunal de recursos. Bonnie Anna Nardi, “Modes of Explanation in Anthropological Population Theory: Biological Determinism vs. Self-Regulation in Studies of Population Growth in Third World Countries,” American Anthropologist, vol. 83, 1981. Nardi aponta que, à medida que a tomada de decisões, a sociedade e a identidade vão de uma escala reduzida a uma escala nacional, o controle de fertilidade perde sua efetividade (p. 40).

[5.4] Bruce Stewart, citado em Derrick Jensen, A Language Older Than Words, White River Junction, Vermont: Chelsea Green Publishing Company, 2000, p.162.

[5.5] Jared Diamond, Collapse: how societies choose to fail or succeed, New York: Viking, 2005, pp. 292–293

[5.6] Por exemplo, os Estados Unidos e a Europa Ocidental, responsáveis pela maior parte dos gases que provocam o efeito estufa, estão atualmente forçando centenas de milhões de pessoas a morrer a cada ano ao invés de restringirem suas culturas do carro e reduzirem suas emissões.

[5.7] A cifra de 10% e a menção dos dois ataques na Alemanha vem de Nathaniel C. Nash, “Oil Companies Face Boycott Over Sinking of Rig,” The New York Times, 17 de junho de 1995.

[5.8] Jared Diamond, Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed, New York: Viking, 2005, p. 277.

[5.9] H. Van Der Linden, “Een Nieuwe Overheidsinstelling: Het Waterschap circa 1100–1400” in D.P. Blok, Algemene Geschiednis der Nederlanden, deel III. Haarlem: Fibula van Dishoeck, 1982, p. 64.

[6.1] Essa análise foi bem documentada por Kristian Williams em Our Enemies in Blue. Brooklyn: Soft Skull Press, 2004.

[6.2] Em 2005, 5.734 pessoas morreram por causa de lesões traumáticas durante o trabalho, e estima-se que entre 50.000 e 60.000 morreram de doenças profissionais, de acordo com o documento “Facts About Worker Safety and Health 2007.” da ALF-CIO www.aflcio.org De todos assassinatos de pessoas trabalhadoras devido à negligência de quem emprega ocorridos entre 1982 e 2002, menos de 2000 foram investigados pelo governo, e apenas 91 desses resultaram em condenações, tendo meros 16 casos terminado com encarceramento, mesmo a sentença máxima tendo sido de seis meses de acordo com David Barstow, "U.S. Rarely Seeks Charges for Deaths in Workplace", New York Times, 22 de dezembro, 2003.

[6.3] Essas são estatísticas amplamente disponíveis provenientes do Escritório do Censo dos EUA, do Departamento de Justiça, de pesquisadores independentes, da Human Rights Watch e outras organizações. Elas podem ser encontradas, por exemplo, em drugwarfacts.org [visualizado em 30 de dezembro de 2009].

[6.4] Wikipédia, “Seattle General Strike of 1919”, en.wikipedia.org [visualizado em 21 de junho de 2007]. Fontes impressas citadas nesse artigo incluem: Jeremy Brecher, Strike!, Revised Edition. South End Press, 1997; e Howard Zinn, A People’s History of the United States, Perrenial Classics Edition, 1999.

[6.5] Diana Denham and C.A.S.A. Collective (eds.), Teaching Rebellion: Stories from the Grassroots Mobilization in Oaxaca, Oakland: PM Press, 2008, entrevista com Cuatli.

[6.6] Alan Howard, “Restraint and Ritual Apology: the Rotumans of the South Pacific”, em Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 42.

[6.7] Ambas citações são fornecidas por Jamie Bissonette, When the Prisoners Ran Walpole: a true story in the movement for prison abolition, Cambridge: South End Press, 2008, p. 160.

[6.8] Não tem como não comparar isso com a disseminação do ópio na China pelo governo britânico, ou com o governo dos EUA espalhando whisky entre as pessoas indígenas e, posteriormente, heroína nos guetos.

[6.9] Natasha Gordon e Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey through Argentina’s Popular Uprising, Leeds (UK): University of Leeds, 2004, p. 66–68.

[6.10] Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 73–79. O estudo comparativo em questão é M.H. Ross, The Culture of Conflict, New Haven: Yale University Press, 1993.

[6.11] Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 163.

[6.12] Todas as citações e estatísticas sobre a Nação Navajo são provenientes de Dennis Sullivan e Larry Tifft, Restorative Justice: Healing the Foundations of Our Everyday Lives, Monsey, NY: Willow Tree Press, 2001, p. 53–59.

[6.13] www.harmfreezone.org [visualizado em 24 de novembro de 2006].

[6.14] Philly’s Pissed, www.phillyspissed.net [visualizado em 20 de maio de 2008].

[6.15] George R. Edison, MD, “The Drug Laws: Are They Effective and Safe?”, The Journal of the American Medial Association. Vol. 239 Nº.24, 16 de junho de 1978. A.W. MacLeod, Recidivism: a Deficiency Disease, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1965.

[6.16] Jamie Bissonette, When the Prisoners Ran Walpole: A True Story in the Movement for Prison Abolition, Cambridge: South End Press, 2008, p. 201. Considere também as histórias de John Boone e outros burocratas presentes.

[7.1] Algumas fontes da cultura hegemônica ainda acreditam que os makhnovistas estavam por trás das matanças antissemitas na Ucrânia. Em Nestor Makhno, Anarchy’s Cossack, Alexandre Skirda remonta esta afirmação às raízes da luta propagandística contra Makhno, enquanto cita fontes contemporâneas hostis que logo reconheceram que os makhnovistas eram as únicas unidades militares que não realizavam as matanças. Ele também faz referência a esta propaganda desprezada pelos makhnovistas mostrando a luta contra o antissemitismo como uma ferramenta da aristocracia, contra as milícias judias que lutaram entre os makhnovistas, e contra as matanças realizadas pessoalmente por Makhno.

[7.2] Paul Avrich, The Russian Anarchists, Oakland: AK Press, 2005, p. 218.

[7.3] Makhno tinha a esperança de que Lenin e Trotsky estivessem mais motivados por uma vingança pessoal contra ele do que de por um desejo absoluto por esmagar aos sovietes livres, e que suspenderiam a repressão se ele se fosse.

[7.4] Alexandre Skirda, Nestor Makhno, Anarchy’s Cossack: TheStruggle for Free Soviets in the Ukraine 1917-1921, London: AK Press, 2005, p. 314.

[7.5] Amy Goodman, “Lakota Indians Declare Sovereignty from US Government”, Democracy Now!, 26 de dezembro de 2007.

[7.6] De um panfleto anônimo ilustrado, “The Oka Crisis”.

[7.7] Óscar Oliveira, Cochabamba! Water War in Bolivia, Cambridge: South End Press, 2004.

[7.8] George Katsiaficas, The Subversion of Politics: European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life. Oakland: AK Press, 2006, p. 123.

[7.9] Jaime Semprún, Apología por la Insurrección Argelina, Bilbao: Muturreko Burutazioak, 2002, p. 34 (traduzido do francês para o espanhol por Javier Rodríguez Hidalgo). As citações nos seguintes parágrafos são das páginas 18 e 20.

[7.10] Jaime Semprún, Apología por la Insurrección Argelina, Bilbao: Muturreko Burutazioak, 2002, pp. 73-74 (traduzido do francês para o espanhol por Javier Rodríguez Hidalgo).

[7.11] Idem, p. 80. Quanto ao quarto ponto, diferente da sociedade ocidental e suas diferentes formas de pacifismo, a pacificidade do movimento na Argélia não exclui a legítima defesa ou mesmo o levantamento armado, como demonstra o ponto anterior a respeito dos mártires. Por sua vez, a pacificidade indica uma preferência pelos resultados pacíficos e consensuais em vez da coação e a autoridade arbitrária.

[7.12] Idem, p. 26.

[7.13] George Orwell, Homage to Catalonia, London: Martin Secker &Warburg Ltd., 1938, pp. 26-28.

[7.14] Haviam 40.000 militantes anarquistas armados em Barcelona e seus arredores. O governo catalão havia sido efetivamente abolido, mas a CNT simplesmente ignorou, e em seu lugar começou com as negociações. Stuart Christie, We, the Anarchists! A study of the Iberian Anarchist Federation (FAI) 1927-1937, Hastings, UK: The Meltzer Press, 2000, p. 106.

[7.15] Idem, p. 101.

[7.16] John Jordan e Jennifer Whitney, Que Se Vayan Todos: Argentina’s Popular Rebellion, Montreal: Kersplebedeb, 2003, p. 56.

[7.17] Natasha Gordon e Chatterton Pablo, Taking Back Control: A Journey through Argentina’s Popular Uprising, Leeds (UK): University of Leeds, 2004.

[7.18] John Jordan and Jennifer Whitney, Que Se Vayan Todos: Argentina’s Popular Rebellion, Montreal: Kersplebedeb, 2003, p. 9.

[7.19] George Katsiaficas, “Comparing the Paris Commune and the Kwangju Uprising”, http://www.eroseffect.com. Que a resistência estava “bem organizada” provém de um informe da conservadora Heritage Foundation, Daryl M. Plunk’s “South Korea’s Kwangju Incident Revisited”, The Heritage Foundation, Nº35, 16 de setembro de 1985.

[7.20] Os bens produzidos de forma ecológica, por trabalhadores que recebem salários dignos em condições saudáveis de trabalho.

[7.21] Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives, New York: Free Life Editions, 1974, p. 71.

[7.22] David Graeber, Fragments of an Anarchist Anthropology, Chicago: Prickly Paradigm Press, 2004, pp. 54-55.

[7.23] John Jordan and Jennifer Whitney, Argentina’s Popular Rebellion, Montreal: Kersplebedeb, 2003, pp. 42-52.

[7.24] Idem, pp. 43-44.

[7.25] Diana Denham and C.A.S.A. Collective (eds.), Teaching Rebellion: Stories from the Grassroots Mobilization in Oaxaca, Oakland: PM Press, 2008, entrevista com Yescka.

[7.26] Idem, entrevista com Leyla.

[7.27] “Longo Maï”, Buiten de Orde, verão de 2008, p. 38. Tradução própria.

[7.28] Natasha Gordon and Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey through Argentina’s Popular Urrising, Leeds (UK): University of Leeds, 2004.

[7.29] Para aqueles que não leem francês ou espanhol, em 2004 Firestarter Press publicou um bom zine sobre esta insurreição, chamado “You Cannot Kill Us, We Are Already Dead”. Algeria’s Ongoing Popular Uprising.

[8.1] Paul Avrich, The Russian Anarchists, Oakland: AK Press, p. 212-213.

[8.2] Harold Barclay, People Without Government: Na Anthropology of Anarchy, London: Kahn and Averill, 1982, p. 57.

[8.3] “Pirate Utopias”, Do or Die, Nº8, 1999, pp. 63-78.

[8.4] Só para citar um exemplo, as missões “humanitárias” da ONU tem-se visto capturadas em repetidas ocasiões dentro de redes de tráfico sexual nos países onde estão trabalhando pela manutenção da paz. “Mas o problema está além de Kosovo e o tráfico sexual. Onde quer que a ONU tenha estabelecido operações nos últimos anos, os estupros de mulheres parecem continuar.” Michael J. Jordan, “Sex Charges haunt UN forces”, Christian Science Monitor, 26 de novembro de 2004. A imprensa da corrente hegemônica não pode ir tão longe para admitir que esta realidade é universal aos militares, usem capacetes azuis ou não.

[8.5] “About RAWA,” http://www.rawa.org/rawa.html [Visualizado em 22 de junho de 2007].

[8.6] Ver a citação de van der Dennen e Rappaport no capítulo 1, (p. 36).

[8.7] Harold Barclay, People Without Government: Na Anthropology of Anarchy, London: Kahn and Averill, 1982, p. 122.

[8.8] As tradições orais Haudennosaunne sempre sustentaram esta data de início, mas antropólogos brancos racistas desacreditaram esta afirmação e estimaram que a liga iniciou no ano 1500. Alguns inclusive levantam a hipótese de que a constituição das Cinco Nações foi escrita com ajuda europeia. Contudo, evidências arqueológicas recentes e o registro de um coincidente eclipse solar respaldam as histórias orais, o que demonstra que a federação foi invenção própria. Wkipedia, “The Iroquois League”, http://en.wikipedia.org/wiki/Iroquois_League [visualizado em 22 de junho de 2007].

[8.9] Stephen Arthur, “Where License Reigns With All Impunity: An Anarchist Study of the Rotinonshón:ni Polity”,Northeastern Anarchist Nº12, Inverno de 2007 http://nefac.net/anarchiststudyofiroquois#greatpeace.

[8.10] N.d.E.: a concentração populacional somada à intensa e histórica domesticação animal fez da Europa um centro de epidemias. Sem a imunidade para tais doenças, em poucos anos todas as etnias que entraram em contato com os colonizadores saqueadores sofreram milhares de mortes (algumas, inclusive, foram até a extinção). Ver o livro Armas, germes e aço, de Jared Diamond.

[9.1] Veja-se, por exemplo, Dmitri M. Bondarenko e Andrey V. Korotayev, Civilizational Models of Politogenesis, Moscú: Russian Academy of Sciences, 2000.

[9.2] O argumento de que algumas sociedades foram capazes de dominar o mundo devido as condições geográficas mais que qualquer superioridade inerente, é habilmente apresentada por Jared Diamond em Guns, Germs, and Stell: The Fates of Human Societies, New York: W.W. Norton, 1997.

[9.3] DIY é a abreviação de Do It Yourself (faça você mesmo). [N.T.]

[10.1] N.d.T.: o Palácio de Inverno, em São Petersburgo (Rússia), foi a residência oficial dos monarcas russos do séc. XVIII ao XX. Hoje é o local do Museu Hermitage.