Título: A inutilidade das leis
Data: 1886
Fonte: Os grandes escritos anarquistas, 2 ed.
Notas: Lei e autoridade, 1886 Fonte: KROPOTKIN, Peter. A inutilidade das leis. In: WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas, 2 ed. Tradução de Júlia Tettamanzi e Betina Becker. Porto Alegre: L & PM Editores, 1981, pág. 101–6.
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A um exame atento, as milhares de leis que existem para regular a humanidade parecem estar divididas em três categorias principais: proteção da propriedade, proteção dos indivíduos, proteção do governo. E analisando cada uma destas categorias, chegamos a uma única e inevitável conclusão lógica e necessária: a inutilidade e perniciosidade das leis.

Os socialistas sabem o que significa proteção da propriedade. As leis que regulam a propriedade não foram criadas para garantir, nem ao indivíduo nem à sociedade o gozo do produto do seu trabalho. Pelo contrário, elas foram criadas para despojar o produtor de uma parte daquilo que ele produziu e para garantir a outras pessoas a posse daquela porção do produto que foi roubado, ou do produtor em particular ou da sociedade em geral. Quando, por exemplo, a lei assegura ao Senhor Fulano de Tal o direito sobre uma casa, ela não está estabelecendo seu direito sobre uma casinha que ele mesmo tenha construído, ou a um prédio erguido com a ajuda de alguns amigos. Se fosse assim, seus direitos nem seriam questionados. Mas pelo contrário, a lei está estabelecendo seus direitos sobre uma casa que não é fruto do seu trabalho, em primeiro lugar porque ele a fez construir por outros, aos quais nem sequer pagou o preço justo pelo trabalho realizado e, depois, porque a casa representa um valor social que ele não poderia ter produzido para si. A lei, no caso, está estabelecendo o seu direito a algo que pertence a todas as pessoas em geral e a nenhuma em particular. A mesma casa construída nos confins da Sibéria não teria o mesmo valor que tem numa cidade grande e, como sabemos, este valor é o resultado de cerca de 50 gerações de homens que construíram a cidade, embelezaram-na, dotando-a de água e gás, belas avenidas, universidades, teatros, lojas, vias férreas e estradas que levam a todas as direções. Assim, ao reconhecer os direitos do Sr. Fulano a uma determinada casa em Paris, Londres ou Rouen, a lei está lhe reservando, injustamente, certa porção do produto do trabalho da humanidade, como um todo. E é precisamente porque essa apropriação – e todas as outras formas de propriedade que tenham as mesmas características – é uma injustiça gritante que são necessários todo um arsenal de leis e um exército de soldados, policiais e juízes para mantê-las contra o bom senso e o sentimento de justiça inerentes à humanidade.

A metade das nossas leis – o código civil de cada país – não serve a qualquer outro propósito senão o de manter esta apropriação, este monopólio em benefício de determinados indivíduos em detrimento de toda a humanidade. Três quartos das causas julgadas pelos tribunais não são nada mais do que disputas entre monopolistas – dois ladrões lutando pela posse do produto de seus roubos. E muitas das nossas leis criminais têm o mesmo objetivo em vista, tendo sido criadas para manter o trabalhador numa posição de subordinação em relação ao patrão, proporcionando a segurança necessária para que a exploração continue.

Quanto a garantir ao produtor o produto do seu trabalho, não há qualquer lei que ao menos tente fazê-lo, já que isso é algo tão simples, tão natural, de tal modo integrado aos usos e costumes da humanidade, que o Direito nem sequer cogitou disso. O banditismo às escancaras, com espada na mão, não é uma característica da nossa época. Nem jamais dois trabalhadores chegam a disputar o produto do seu trabalho. Se têm um desentendimento, eles o resolvem chamando uma terceira pessoa, sem que haja necessidade de recorrer à lei. O único ser capaz de arrancar de outro o produto do seu trabalho é o proprietário que interfere sempre para ficar com a parte do leão. Quanto à humanidade em geral, ela em toda a parte respeita o direito de cada um àquilo que ele mesmo criou, sem recorrer a qualquer lei especial.

Como todas as leis sobre propriedade, que enchem grossos volumes de Códigos de Direito e fazem as delícias de nossos advogados, não têm qualquer outro objetivo senão o de proteger a apropriação injusta, garantir que certos indivíduos se apropriem indevidamente do trabalho de outros seres humanos, não há nenhuma razão que justifique a sua existência. No dia da Revolução, os revolucionários sociais estão firmemente decididos a acabar com todas elas. E na verdade, nada mais justo do que fazer-se uma grande fogueira ao ar livre lançando nela todas as leis que tratassem dos assim chamados “direitos de propriedade”, todos os títulos de propriedade, todos os registros e escrituras: em uma palavra, tudo aquilo que tivesse qualquer ligação com uma instituição que logo será vista como uma nódoa da humanidade, tão humilhante quanto a escravidão ou o servilismo de outras épocas.

As observações que acabamos de fazer a respeito das leis sobre a propriedade poderiam ser aplicadas também à segunda categoria de leis: aquelas destinadas a manter os governos, ou seja, as leis constitucionais. É outra vez um arsenal de leis, decretos, disposições, decisões de conselhos e o que mais houver, criados com o fim de proteger as diversas formas de governo, seja ele representativo, delegado ou usurpado, sob cujo tacão a humanidade se contorce. Sabemos bem – e os anarquistas não cansam de demonstrá-lo em suas eternas críticas contra as várias formas de governo – que a missão de todos os governos, monárquicos, constitucionais ou republicanos, é proteger e manter através da força, os privilégios das classes dominantes – a aristocracia, o clero e os comerciantes. Mais de um terço de todas as leis que existem – a cada país tem milhares delas que regulam os impostos, as taxas, a organização dos departamentos ministeriais e suas repartições, as Forças Armadas, a Polícia, a Igreja, etc. – não tem qualquer outro objetivo senão manter, remendar e desenvolver a máquina administrativa. E esta máquina, por sua vez, funciona quase que exclusivamente para proteger os privilégios da classe dominante. Analise estas leis, observe-as em ação no dia-a-dia e descobrirá que nenhuma delas merece ser preservada.

Sobre estas leis não pode haver duas opiniões diversas – não apenas os anarquistas como os radicais mais ou menos revolucionários concordam que a única coisa a fazer com as leis que tratam da organização dos governos seria arremessá-las ao fogo.

Resta considerar a terceira categoria, aquela que diz respeito à proteção dos indivíduos e ao combate e prevenção do “crime”, a mais importante delas, já que a maior parte dos preconceitos a ela estão vinculados; porque, se desfruta de uma certa consideração especial, é em consequência da crença de que este tipo de lei é absolutamente indispensável à manutenção da segurança em nossas sociedades.

Essas leis, criadas a partir das práticas mais úteis às comunidades humanas, foram mais tarde aproveitadas pelos governantes como um dos meios para justificar sua própria dominação. A autoridade dos chefes das tribos, das famílias mais ricas da cidade e do rei dependia da função de juízes que desempenham o mesmo nos nossos dias: sempre que é discutida a necessidade da existência de um governo é o seu papel como juiz supremo que está sendo posto em questão. “Se não houvesse governo, os homens acabariam por destruir-se uns aos outros” – diz o orador da aldeia. “O principal objetivo de todos os governos é assegurar a cada acusado o direito de ser julgado por doze homens honestos”, afirmou Burke. Pois bem, apesar de todos os preconceitos que ainda existem em torno do tema, já é tempo de que os anarquistas declarem, em alto e bom som, que esta categoria de lei é tão inútil e injuriosa quanto as precedentes.

Em primeiro lugar, quanto aos assim chamados “crimes” – assaltos contra pessoas – é sabido que pelo menos 2/3 e frequentemente 3/4 deles são instigados pelo desejo de apossar-se da fortuna alheia. Esta imensa classe de “crimes e delitos” desaparecerá no dia em que a propriedade privada deixar de existir. “Mas – dirão alguns – se não tivermos leis para contê-los e castigos para detê-los, sempre haverá bandidos para tentar contra a vida de seus semelhantes, que levarão a mão à faca em todas as lutas nas quais se envolverem e vingarão a mais insignificante ofensa com a morte”. Este refrão é repetido sempre que se põe em dúvida o direito que a sociedade tem de punir os criminosos.

Entretanto, há um fato relacionado a este assunto que hoje já foi suficientemente provado: a severidade da pena não diminui a quantidade de crimes. Enforque e esquarteje os criminosos se quiser, e o número de crimes continuará igual. Elimine a pena de morte e não terá um crime a mais, eles diminuirão até. As estatísticas o provam. Mas se a colheita for boa, o pão barato e fizer bom tempo, o número de crimes cairá imediatamente. Isso também pode ser provado pelas estatísticas. A quantidade de crimes sempre aumenta ou diminui em proporção direta aos preços dos alimentos e ao estado do tempo. Não que a fome seja a causa de todos os crimes. Não é este o caso. Mas se a colheita é boa, e os alimentos podem ser comprados a um preço acessível quando o sol brilha, os homens, de coração mais leve e menos infelizes que de costume, não se entregam a paixões sombrias, nem mergulham a faca no peito de seu semelhante por motivos banais.

Além do mais, é também sabido que o medo do castigo nunca impediu que qualquer crime fosse cometido. Aquele que mata seu vizinho por vingança ou miséria, não pensa muito nas consequências; e houve, até hoje, bem poucos assassinos que não estivessem firmemente convencidos de que não deveriam ter sido acusados.

Não falando de uma sociedade em que o homem receberá uma educação melhor, em que o desenvolvimento de todas as suas faculdades e a possibilidade de exercê-las irá proporcionar-lhe tantas alegrias que ele não procurará envenená-las com remorsos – mesmo numa sociedade como a nossa, mesmo com estes tristes produtos da miséria que hoje vemos entre o povo das grandes cidades. No dia em que os criminosos não sofrerem mais qualquer castigo, o número de crimes não aumentará e é extremamente provável que, pelo contrário, sofra o decréscimo por criminosos reincidentes, homens que a prisão embruteceu.

Somos continuamente lembrados dos benefícios que a lei confere e dos efeitos benéficos do castigo, mas terão aqueles que nos falam tentado alguma vez fazer um balanço entre os benefícios atribuídos às leis e castigos e os efeitos degradantes que esses castigos tiveram sobre a humanidade? Tente calcular todas as perversas paixões que os atrozes castigos infligidos em nossas ruas despertaram na humanidade. O homem é o animal mais cruel que existe na face da terra. E quem terá estimulado e desenvolvido esses instintos cruéis, desconhecidos mesmo entre os macacos, senão o rei, o juiz e os padres apoiados em leis que permitiam que a pele fosse arrancada em tiras, o breu fervente derramado sobre as feridas, os membros arrancados, os ossos esmagados, os homens despedaçados para que sua autoridade fosse mantida? Tente avaliar a torrente de depravação libertada entre a sociedade humana pela política de delação encorajada pelos juízes e paga em dinheiro vivo pelos governos, a pretexto de auxiliar na descoberta de “crimes”. Basta apenas que entre nas prisões e veja no que se transforma um homem privado da liberdade e encerrado com outros seres depravados, mergulhados no vício e na corrupção que escorre das próprias paredes das nossas prisões. Basta lembrar que, quanto mais reformas sofrem estas prisões, mais detestáveis se tornam. Nossas modernas prisões-modelo são mil vezes mais abomináveis do que as masmorras da Idade Média. Finalmente, basta lembrar da corrupção e depravação que existem entre os homens, alimentadas pela ideia da obediência – que é a própria essência da lei – da punição; da autoridade arrogando-se o direito de punir, de julgar sem considerar nem a nossa consciência, nem a estima de nossos amigos; da necessidade de que hajam carrascos, carcereiros e informantes – em uma palavra, de todos os atributos da lei e da autoridade. Pense em tudo isto e certamente concordará conosco quando afirmamos que uma lei que inflige punições é uma abominação que deveria deixar de existir.

Povos sem organização política e, portanto, menos depravados do que nós entenderam perfeitamente que o homem a quem chamam de “criminoso” é simplesmente um infeliz; que a solução não é açoitá-lo, acorrentá-lo ou matá-lo no cadafalso ou na prisão, mas ajudá-lo como a um irmão, dispensando-lhe um tratamento baseado na igualdade e nos costumes em vigor entre os homens honestos. Na próxima revolução, esperamos que o grito de guerra seja: “Queimem as guilhotinas, destruam as prisões, expulsem os juízes, os policiais e os informantes – a raça mais imunda que existe sobre a face da terra; tratem como a um irmão o homem que foi levado pela paixão a praticar o mal contra seu semelhante; e, sobretudo, retirem dos ignóbeis produtos da ociosidade da classe média a possibilidade de exibir seus vícios sob cores atraentes, e estejam certos de que apenas uns poucos crimes violentos virão perturbar a nossa sociedade”.

Os principais incentivadores do crime são a ociosidade, a lei – leis que regem a propriedade, o governo, as punições e os delitos – e a autoridade que toma a seu cargo a criação e aplicação destas leis.

Chega de leis! Chega de juízes! Liberdade, igualdade e solidariedade humana são as únicas barreiras efetivas que podemos opor aos instintos antissociais de alguns seres que vivem entre nós.